Dentro do subgênero de fantasia conhecido como sword and sorcery ('espada e feitiçaria'), o britânico Michael Moorcock (1939-) é um dos autores que mereceriam ter bem mais fama do que têm. Seu personagem mais conhecido, Elric de Melniboné, é, de várias maneiras, o oposto do típico herói desse subgênero – e, como o "típico" herói de sword and sorcery tem em Conan seu mais clássico exemplo, é interessante lembrar que o cimério e o melniboneano já se encontraram nos quadrinhos da Marvel: o épico crossover começa com uma luta, é claro (os fãs não dispensariam isso!), mas o breve duelo não chega a ter um desfecho, e os dois acabam por se tornar aliados – temporários e relutantes aliados, e de forma alguma amigos.
E por que seria Elric o oposto de Conan? Bem… Enquanto o herói cimério de Robert E. Howard desconfia da magia (embora, ao longo da carreira, por vezes tenha aceito a ajuda de magos e feiticeiros) e faz muita questão de só confiar em sua própria força, coragem e em sua espada, Elric é tanto um feiticeiro quanto um guerreiro – talvez mais feiticeiro que guerreiro. Albino e de constituição física frágil, ele ganha força e resistência por meio da magia e de uma misteriosa ligação com sua espada, Stormbringer (algo como 'a que traz a tempestade'), uma enorme lâmina feita de algum metal negro desconhecido, que, sem o auxílio da magia, ele não seria capaz sequer de levantar, quanto mais de manejar. Entre outros poderes, ela tem a capacidade de absorver a força vital daqueles que mata e transferi-la para seu detentor. Elric não gosta disso, dando por vezes a impressão de sentir que seu vínculo com a espada perverte sua própria humanidade, mas o considera, no fim das contas, um mal necessário.
Mais diferenças: Conan, um bárbaro do norte sem quaisquer traços de nobreza em suas origens, alimentou desde a juventude o sonho de tornar-se rei, o que eventualmente conseguiria; Elric, por outro lado, é um imperador, embora seu império, Melniboné, esteja em decadência, depois de ter dominado o mundo por dez mil anos. O mundo em questão, por falar nisso, parece ser a Terra, talvez num passado há muito esquecido, talvez num futuro distante: o prólogo da primeira parte, intitulada O Advento do Caos, diz que a saga de Elric tem lugar "dez mil anos antes de a História ser registrada ou dez mil anos depois que deixaram de ser compostas as crônicas, como se preferir", mas, ao longo do livro, novas informações que vão aparecendo revelam que a primeira possibilidade deve ser a verdadeira. A rigor, o uso da palavra "humanidade" no parágrafo anterior é impróprio: os melniboneanos não se consideram humanos e veem com preocupação a ascensão dos "Jovens Reinos", estes sim povoados por homens no sentido estrito do termo, que parecem estar ganhando poder e influência à medida que Melniboné enfraquece.
Fazer esse paralelo entre os dois heróis deixa óbvio que Moorcock cresceu lendo as histórias de Howard, assim como as de Edgar Rice Burroughs e, possivelmente, também as de Lord Dunsany, mas quis que suas aventuras fantásticas tivessem uma cara própria, e conseguiu isso com Elric. A exemplo dos contos de Howard sobre Conan, e também dos de Fafhrd, escritos por Fritz Leiber, as histórias sobre o imperador albino foram publicadas soltas, sem seguirem uma ordem, e organizá-las numa cronologia é tarefa complexa. Sei que isso já foi feito nos Estados Unidos, onde a saga de Elric foi publicada em vários volumes; provavelmente no Reino Unido também. No Brasil, por outro lado, até onde sei, só temos este volume, publicado pela editora Francisco Alves em 1975, dentro de sua coleção Mundo Fantástico, paralela à Mundos da Ficção Científica – ambas trazem gratas recordações para os fãs brasileiros de literatura de imaginação das décadas de 70 e 80 (pessoalmente, estou nessa desde os anos 80). O título original era Stormbringer.
A aventura começa quando, tarde da noite, uma tempestade sobrenatural desaba sobre Karlaak, a capital de Melniboné, e um grupo de assassinos inumanos – criaturas brutais enviadas pelos misteriosos Senhores do Caos – penetra na cidade, aproveitando-se de os portões estarem abertos, e as sentinelas, adormecidas, tudo efeitos da mesma magia que conjurou a tempestade para facilitar-lhes a missão. E sua missão parece ser a de matar Elric, que dorme em sua alcova no palácio, ao lado de sua esposa, a bela Zarozínia, sem de nada suspeitar. Parece, mas não é. Elric enfrenta os invasores, mas está sem sua espada, da qual prefere manter-se longe sempre que ela não é indispensável, e acaba subjugado, desacordado com um golpe na cabeça. Ao recuperar a consciência, fica surpreso por ainda estar vivo, mas a coisa seguinte que percebe é que a imperatriz foi raptada. Durante a luta, Elric conseguiu matar um dos sequestradores, e agora, por meio de magia, faz com que o cadáver se levante e fale. O efeito só dura alguns minutos, tempo suficiente para a criatura "desmorta" enunciar um enigma, que fala sobre uma guerra prestes a ser travada, e sobre um parente de Elric que deverá lutar ao seu lado empunhando a "cópia fiel" de Stormbringer. O imperador espera que, se for capaz de desvendar a charada e de sobreviver aos perigos aos quais ela conduzirá, talvez consiga recuperar sua esposa.
E é, a princípio, sozinho que Elric se aventura; não se faz acompanhar sequer por uma guarda pessoal, como um soberano normalmente faria, talvez na esperança de conseguir viajar incógnito – por mais que, no caso dele, isso seja quase impossível. É verdade que, numa sociedade de características medievais como o Império de Melniboné e terras vizinhas – sem imprensa, TV, internet e coisas que tais –, a maior parte da população que vive longe da capital nunca viu seu monarca e não o reconhecerá se por acaso o encontrar… A menos que o monarca em questão tenha uma aparência tão incomum a ponto de chamar atenção e causar comentários: vocês também não se lembrariam se, numa ruela enlameada de alguma aldeia, cruzassem com um sujeito magrelo, com pele e cabelo brancos feito marfim e olhos vermelhos ardentes, portando uma gigantesca espada negra de aparência tão exótica quanto a dele?
Seguindo as pistas enigmáticas obtidas do assassino morto-vivo, o herói albino viaja para o oeste, onde os reinos de Dharijor e Pan Tang formaram uma aliança e estão se preparando para invadir outros reinos vizinhos. Os exércitos dos defensores são comandados pela rainha Yishana de Jharkor, aliada e outrora amante de Elric, e sob sua bandeira, entre outros, lutam os mercenários de Imrryr, liderados por um homem de nome Dyvim Slorm, primo de Elric e seu único parente vivo. Quanto à cópia fiel da espada, é fato que Stormbringer possuía uma "gêmea", Mournblade (a "lâmina lamentosa", mais ou menos; o verbo to mourn quer dizer lamentar ou prantear, geralmente por alguém que morreu, podendo significar também, por extensão, 'estar de luto'); ocorre que essa segunda espada era empunhada por Yyrkon, outro primo, que Elric matou durante uma disputa dinástica anos antes, e a arma, ao que se acredita, foi perdida, de modo que parece impossível o pleno cumprimento da profecia. Em todo caso, Elric e Dyvim Slorm juntam-se ao exército de Yishana para a batalha que decidirá o destino do oeste.
E que batalha é essa! Saber narrar bem um combate em massa é tão importante para o escritor de fantasias épicas quanto para o de ficção histórica, e Moorcock demonstra ter o dom, mas não se trata de uma batalha "comum", entre tropas de homens protegidos por armaduras e usando lanças, espadas e arcos; há tropas assim, é claro, mas há também tigres treinados para o combate, cavaleiros montando répteis de seis patas em vez de cavalos, esquadrões de homens alados… Sim, eu também fiquei imaginando como seria isso tudo num filme, e é pena ser tão improvável que algo assim se concretize. De qualquer forma, a batalha, na qual Elric arrisca a vida, é apenas um passo em sua busca por Zarozínia. O narrador diz explicitamente que o albino se considera um realista, mas, em seus atos, pelo menos nesta história, ele demonstra um pendor para o fatalismo: seu inimigo morto fez uma profecia, e os mortos, se, por um lado, não podem dar respostas diretas, tampouco podem mentir. Sendo assim, Elric está disposto a cumprir seu papel nessa profecia, mesmo sem compreendê-la totalmente, na esperança de que, em seu desenlace, sua esposa lhe seja devolvida, como também foi profetizado. Porém, há mais em jogo que apenas sua vida. As forças do Caos que tramaram o rapto da imperatriz querem algo em troca de sua libertação: exigem a entrega tanto de Stormbringer quanto de Mournblade, as únicas armas que podem, nas mãos certas, representar um entrave a seus planos de dominar o mundo.
Elric odeia Stormbringer (a espada possui vontade própria e até um certo tipo de inteligência maligna, mais ou menos como o Um Anel de Tolkien) e ficaria feliz de nunca mais empunhá-la; portanto, em nível pessoal, aceitaria a troca com a maior das alegrias. Acontece que, se o fizer, estará, com esse ato, condenando o mundo a uma era de trevas e terror, e, embora preocupar-se com a sorte de povos ou reinos não seja nele uma reação natural, o imperador albino possui, sim, uma consciência. Talvez seu heroísmo tenha ainda mais valor por não ser instintivo como o de um Hércules ou um Super-Homem: ao contrário, escolher seu curso de ação numa situação como essa custa-lhe angústia e indecisão. Elric carrega o fardo de ser o último imperador de Melniboné, e de lhe haver cabido ocupar o trono exatamente durante esses dias, que equivalem ao apocalipse para esse mundo antediluviano. Os servos do Caos desprezam a Ordem porque, segundo eles, ela limita a matéria, enquanto o Caos representa possibilidades infinitas; para o mundo, porém, essas possibilidades acarretam catástrofes: ao mesmo tempo em que eclodem guerras terríveis, o próprio planeta parece estar em convulsão, assolado por terremotos, erupções vulcânicas e tempestades sobrenaturais. Além disso, a influência do Caos puro causa espantosas transformações nos seres vivos que estiverem nas proximidades, deformando seus corpos em paródias obscenas de suas aparências originais, ora mudando-os em figuras tortas e desproporcionais, ora fazendo com que desenvolvam aleatoriamente vários membros e cabeças em qualquer lugar do corpo. Enfim, os piores pesadelos ganham existência material.
Embora seja um feiticeiro erudito, iniciado em muitos mistérios, o monarca albino ainda é um mortal, e, por isso, há muitas coisas que não pode vislumbrar ou compreender. Uma delas lhe é revelada por um ser misterioso, imortal, de nome Sepiriz, que lhe oferece ajuda e aconselhamento para sua missão, e o teor da revelação é que, não importa o que Elric faça, ele não pode verdadeiramente salvar o mundo que conhece: esse mundo deve e vai desaparecer, abrindo espaço para o que Sepiriz chama de "os verdadeiros primórdios da história da humanidade", o que parece significar o início da História que conhecemos. Tudo o que Elric pode influenciar é que espécie de mundo vai se erguer dos escombros do seu milênios depois: se as forças do Caos vencerem, elas terão absoluto domínio nos tempos futuros; se Elric as derrotar, isso não significa que o Caos será erradicado, mas fará com que, no novo mundo, a Ordem, ou a Lei, como os personagens a chamam, tenha ao menos uma chance de luta. Nenhuma das duas forças deve alcançar uma vitória definitiva sobre a outra, pois é no embate interminável entre elas, e no precário e incerto equilíbrio que daí nasce, que o universo encontra condições de existir e de se desenvolver: o Caos puro o levaria ao colapso, a Ordem pura resultaria em estagnação.
Eu não iria ao ponto de dizer que Elric defende a Ordem, e sim que procura favorecer esse equilíbrio, mas mesmo isso já representa uma opção radical para ele, filho de uma raça gerada pelo Caos, se é que pode-se falar em opção quando existe um destino que somente ele pode cumprir. É nesse destino, e no modo como se posiciona diante dele, que reside aquilo que faz de Elric um personagem tão interessante, pelo menos no meu modo de ver. Ele não é bondoso nem altruísta por natureza, embora ainda seja mais afável que a média de seu povo – os melniboneanos são essencialmente caóticos e cruéis –, mas, mesmo assim, aceita os riscos e os sofrimentos que sabe que estão à sua espera, somente pelo bem de um mundo onde nem ele, nem nenhum descendente seu viverá, e no qual ninguém saberá que ele existiu.
Até agora, eu só tinha conhecimento indireto sobre a obra de Michael Moorcock, e Elric era para mim apenas um personagem que tinha aparecido numa aventura de Conan; sabia que ele tinha uma vida própria na literatura, e que suas histórias haviam inspirado pelo menos três músicas do Blind Guardian: Fast to Madness, do álbum Follow the Blind (1989), The Quest for Tanelorn, do Somewhere far Beyond (1992) e Tanelorn (Into the Void), do At the Edge of Time (2010), mas é a primeira vez que tenho a oportunidade de realmente lê-lo, e agora posso atestar que Moorcock é, sem sombra de dúvida, um dos maiores nomes da história do subgênero sword and sorcery e, ouso dizer, até mesmo da literatura de fantasia em geral, e deveria ser considerado leitura obrigatória para a geração que hoje "viaja" nas páginas das Crônicas de Gelo e Fogo de George R. R. Martin e de outros expoentes atuais desse segmento. É complicado ficar contando com traduções – este volume já é muito antigo (e, cronologicamente falando, deve ser o último da saga, por motivos que vocês terão que ler para saber), e nunca ouvi falar em outras edições nacionais desta ou de outras aventuras de Elric –, mas, se você lê em inglês e gosta desse tipo de literatura, eis aqui um mundo cujo fim será um privilégio testemunhar.
Em tempo: se eventualmente for feito um filme baseado em A Espada Diabólica, as partes a respeito dos dragões, e, mais especificamente, a respeito de seu uso como armas de guerra, na certa farão muitos quadrúpedes da internet soltarem comentários como "pô, véi, copiaram Game of Thrones na cara dura!" (As maiúsculas, a pontuação e os acentos são generosidade minha, é claro.) Espero que haja alguém com paciência para explicar que Michael Moorcock escreveu as histórias de Elric entre as décadas de 60 e 90, sendo que A Espada Diabólica foi originalmente publicada em 1965, quando George R. R. Martin, aos 17 anos, ensaiava os primeiros passos em sua carreira de escritor – e, muito provavelmente, era um ávido leitor de Moorcock.
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