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sexta-feira, dezembro 12, 2014

Ao Cair da Noite

Gosto de comparar a atividade de escrever com uma corrida: um romance está para um conto assim como uma maratona está para os cem metros rasos. O romancista, tal como o maratonista, precisa saber administrar seus recursos ao longo da "prova", saber o momento de acelerar e o de desacelerar, e pode até mesmo, com técnica e paciência, recuperar-se de uma largada ruim e vencer. Já o contista vive situação semelhante à de um corredor velocista: a vitória e a derrota são decididas em questão de instantes. Numa corrida de cem metros rasos, a única maneira de vencer é garantindo a dianteira logo nos primeiros segundos; não haverá tempo para tentar de novo. O mesmo se aplica ao conto: o autor só dispõe do espaço de poucas páginas para fazer com que sua história funcione – ou não. No mundo do atletismo, é preciso escolher: não dá para ser velocista e maratonista, já que cada modalidade requer preparação física e treinamento específicos. Na literatura, em princípio, nada impede que um mesmo autor se dedique ao romance e ao conto, mas apenas os muito bons em seu ofício conseguem se sair igualmente bem nos dois gêneros.

Nenhum crítico do mainstream jamais vai admitir que Stephen King seja um bom escritor. A maioria deles provavelmente nunca o leu, nem pretende; parece que meter o malho no cara é meio que um requisito para ser bem visto em certos círculos, quiçá para ser convidado a certas festas. Não é considerado cool gostar de Stephen King, talvez porque ele tenha muitos fãs e seus livros vendam muito. Afinal, admitir que algo de que o "grande público" gosta possa ser bom significa admitir também que muito mais gente além dos críticos pode ter cérebro, e isso seria blasfemo, não seria?

A essa espécie de "crítico", deixo o meu mais cordial fuck you, junto com minhas desculpas a algum que eventualmente não se enquadre no estereótipo. O que acontece é que King geralmente satisfaz com brilhantismo a todas as exigências que um leitor razoável poderia fazer a um escritor: sua prosa é fluente, agradável de acompanhar, seus personagens têm vida, sua narração prende, seus mistérios convencem, seus horrores funcionam. Se tudo isso não bastar para fazer de alguém um bom escritor, bem, então receio que coisa alguma possa fazer essa "mágica".

Portanto, e pouco importa o que digam certos frustrados invejosos, sim, Stephen King é um dos que dominam, e muito bem, a arte da escrita. Quem já leu várias de suas obras tem a impressão de que ele fica à vontade tanto em narrativas curtas quanto nas longas, e isso torna duplamente curiosa a confidência que ele nos faz na introdução de Ao Cair da Noite: sua própria experiência, como escritor, a respeito da questão conto/romance. Segundo King, "muitas coisas na vida são como andar de bicicleta, mas escrever contos não é uma delas. pra esquecer como se faz". Ele começa relembrando (com uma certa nostalgia, ao que parece) os tempos em que era um jovem professor do ensino médio, escrevia contos nas horas vagas e tentava vendê-los para publicação em revistas. Nessa época, pelo que nos conta, ele não se lançava em reflexões teóricas sobre o ato de escrever: simplesmente escrevia, de forma mais ou menos instintiva, conforme as ideias iam aparecendo, e a "opção" pelo conto não era opção nenhuma, mas uma necessidade, já que histórias curtas são mais rápidas de escrever e mais fáceis de vender, o que era um fator a considerar para um jovem aspirante a escritor, e já com esposa e filhos em quem pensar. Mais tarde, com a carreira já consolidada e podendo escrever em tempo integral, King passou a se dedicar ao romance, e, segundo ele mesmo, parece ter perdido a "manha" de como escrever contos; ele chega a contar, no que parece até uma confissão, que algumas boas ideias morreram porque ele não sabia mais como pô-las por escrito.

A salvação (sempre segundo King) veio de forma inesperada, com um convite para editar o volume de 2006 de uma antologia anual que reúne sempre 20 dos melhores contos publicados nos EUA ao longo do ano anterior. Para selecionar os 20 que fariam parte do livro, King leu centenas de contos, a maioria de autores novos, o que, para ele, valeu por um curso intensivo de recapitulação sobre a arte da ficção curta. É a essa experiência que o escritor atribui o revigoramento de suas capacidades como contista, e, por conseguinte, a própria existência da maior parte das histórias que encontramos neste Ao Cair da Noite. Que, vamos admitir desde já, estão longe de ter a mesma força que aquelas do extraordinário Sombras da Noite: seja devido à idade ou por algum outro motivo, Stephen King parece cada vez mais relutante em recorrer a elementos sobrenaturais, preferindo com frequência o thriller psicológico e o suspense. Mesmo quando o sobrenatural aparece, geralmente é de forma bem mais soft que aquilo que nós, leitores de longa data, estávamos acostumados a esperar de King. Há apenas uma ou outra exceção – mas nem mesmo tudo isso faz de Ao Cair da Noite uma leitura ruim.

Uma observação que talvez seja pertinente: revendo o sumário do livro, verifiquei que Ao Cair da Noite inclui ao todo 13 histórias; destas, cinco não mostram qualquer sinal de elementos sobrenaturais. Em quatro outras, o sobrenatural até aparece, mas de forma incidental, quer dizer, ele faz parte da narrativa, mas sem desempenhar papel central, ou até mesmo é apresentado com incerteza – sabem aquele tipo de situação em que o personagem e/ou o leitor ficam em dúvida sobre se estão diante de um mistério ou se a coisa pode ter explicação natural? Sobram quatro contos nos quais a presença do sobrenatural é indiscutível e essencial, e foi uma sacada inteligente começar o livro justamente com um desses: Willa, um dos "contos novos". Trata-se da história de um grupo de passageiros cujo trem sofreu uma pane, e que agora estão encalhados num fim-de-mundo semiesquecido no interior do Wyoming, à espera de que sejam tomadas providências para permitir que continuem sua viagem. O protagonista, David, tem a sensação de que há alguma coisa importante que ele e seus companheiros estão deixando de perceber, mas não consegue distinguir o que pode ser. Quando nota que sua noiva, Willa, que viajava com ele, não está na estação, David deduz que ela deve ter ido (sem avisá-lo) matar o tempo num bar de beira de estrada a alguma distância dali, e decide ir atrás dela, sem imaginar o que irá descobrir.

O segundo conto, A Corredora, em compensação, é um típico "Stephen King 2.0". Uma mulher chamada Emily perdeu seu bebê de poucos meses; nessa situação, em que muitas pessoas buscariam alívio no álcool, ela, quem diria, encontra refúgio na corrida. Começa a praticá-la todos os dias, de forma cada vez mais obsessiva, até estar com um preparo físico digno de uma atleta olímpica – e um casamento a ponto de implodir. Ao ter um atrito sério com o marido por conta dessa obsessão, Emily decide sair de casa, ao menos por uns tempos, toma emprestada a casa de praia de seu pai, e lá fica durante as semanas seguintes, preenchendo o tempo com leitura e, é claro, principalmente com corridas. O que ela não esperava era que um de seus vizinhos naquela praia tranquila fosse um maníaco homicida, e que correr, que era sua terapia, pudesse, de uma hora para outra, virar um fator crucial para sua sobrevivência. Uma história sem qualquer sugestão de presenças espectrais, mas na qual não faltam surpresas, aflição e arrepios.

Seguem-se altos e baixos, como é normal em qualquer livro de contos. Há certas histórias curtas e, a meu ver, sem maior relevância: O Sonho de Harvey, Posto de Parada, The New York Times a Preços Promocionais Imperdíveis (sim, isso é o título do conto!) e mais algumas. Mas é então que nos deparamos com algo muito mais interessante: As Coisas que Eles Deixaram Para Trás. Essa é a história de Scott Staley, um homem que um belo dia achou que andava trabalhando demais e precisava de um descanso, e então ligou para o trabalho e mentiu que estava doente. Atire a primeira pedra quem nunca fez isso pelo menos uma vez na vida! Acontece que: 01) Scott trabalhava no World Trade Center; 02) o dia em que ele decidiu dar-se folga foi precisamente terça-feira, 11 de setembro de 2001. Não é difícil imaginar o efeito de algo assim sobre a cabeça de uma pessoa. Todos os colegas de trabalho de Scott – pessoas com quem ele conviveu durante anos – morreram de uma vez só, e ele sabe que só se salvou por acaso, pelo fato fortuito de seu desejo de ficar na cama haver sobrepujado sua força de vontade exatamente naquele dia, e não em outro qualquer. Mas, terríveis como possam ser, esses eventos ainda fazem parte do universo conhecido e "palpável". Bem diferente dos fatos inexplicáveis que começam a acontecer com Scott cerca de um ano depois: objetos pessoais dos colegas mortos aparecem em seu apartamento, lugar ao qual apenas ele deveria ter acesso, sem contar que tais objetos já nem deveriam existir, pois não há como não terem sido destruídos no atentado que matou seus donos. Com o surgimento de cada objeto, Scott também passa a ter terríveis visões dos últimos e desesperados momentos da pessoa que o possuía. Mesmo quase pirando de medo (e quem o culparia por isso?), nosso herói sente, ou acredita, que tudo isso esteja acontecendo por um motivo; talvez seus colegas, onde quer que estejam, queiram que ele faça por eles algo que já não podem fazer por si mesmos.

As Coisas que Eles Deixaram Para Trás é um ótimo conto, mas não leva a coroa de melhor do livro, só por culpa de N. Acredito que essa seja a história curta de maior alcance e a mais ambiciosa a sair do computador de King em muitos anos. Certo, não é tão "curta" assim: são 57 páginas. A narrativa é apresentada como sendo um conjunto de anotações feitas por John Bonsaint, um renomado psiquiatra que se suicidou recentemente. À primeira vista, as anotações parecem banais, referindo-se a um paciente que o Dr. Bonsaint designa apenas pela inicial N. E esse "N." sofre de um caso extremo de TOC (Transtorno Obsessivo-Compulsivo), que o faz gastar horas, todos os dias, a contar e organizar todo tipo de coisa. Pacientes desse transtorno geralmente não conseguem explicar o porquê de agirem assim; alguns relatam sentir que contar e organizar é necessário para manter o universo nos eixos – só que, no caso de N., isso não é força de expressão. Ele afirma saber exatamente onde, quando e como começou seu distúrbio: num campo na região rural de uma pequena cidade do Maine (claro que tinha que ser no Maine!), onde chegou por acaso, enquanto praticava seu hobby de fotografar paisagens. Nesse campo existe um estranho círculo de pedras, que, examinadas à luz do dia, não parecem ter nada de extraordinário… Mas, ao crepúsculo, parecem ter sido entalhadas com caras espantosas; algumas, de monstros inimagináveis; outras, humanas, mas, segundo N., ainda mais horrendas que as primeiras.


Além disso, as pedras, vistas a olho nu, são sete, mas, olhando através do visor de sua câmera, são oito. Ele está convencido de que o círculo é algum tipo de portal, ligando nosso mundo a alguma dimensão de pesadelos, e o que é pior: está convencido também de que esse portal está apenas precariamente selado, e de que o fato de tê-lo descoberto fez dele, N., o guardião involuntário da passagem. O conto perpetua uma tradição antiga na literatura fantástica, aquela clássica situação em que o desafortunado personagem se vê diante da que talvez seja a dúvida mais angustiante com que um ser humano pode se defrontar: estou mesmo lidando com algo sobrenatural, ou estou simplesmente ficando louco? A mesma indagação já deu origem a um punhado de obras-primas do gênero; para conhecer um excelente exemplo, leiam O Horla, de Guy de Maupassant – em minha opinião, um dos melhores contos de terror já escritos. Durante a leitura de N., também é impossível não pensar em H. P. Lovecraft, inclusive (mas não apenas) pela menção do nome "Cthun", que bem poderia ser apenas outra forma de "Cthulhu"!… Porém, apesar dessas insinuações de dívidas para com esses autores, King faz questão de deixar bem explícito que a influência decisiva para N. veio mesmo de O Grande Deus Pã, de Arthur Machen: a epígrafe do livro é um trecho dele; no próprio conto, o personagem N. pergunta ao Dr. Bonsaint se alguma vez o leu; e se, com tudo isso, alguma dúvida ainda restar, uma das notas ao final do volume esclarece tudo. Apesar de meu primeiro contato com a obra de Machen não ter sido tão emocionante quanto eu esperava, eu sempre soube que O Grande Deus Pã era uma história que eu teria que ler, e agora muito mais.

Para finalizar, quero registrar a curiosa presença de O Gato dos Infernos, um conto antigo (a publicação original é de 1977, e tem adaptação no filme Tales from the Darkside, ou Contos da Escuridão, de 1990), mas que, inexplicavelmente, ainda não havia aparecido em nenhuma das coletâneas anteriores. É legal ter esse vislumbre do "antigo" Stephen King, o do tempo em que ele não se preocupava tanto em soar moderno. Entretanto, eu procuro não julgá-lo: um escritor não tem que escrever pensando em agradar a seus leitores, tem que escrever para agradar a si mesmo, e, ainda que Ao Cair da Noite não tenha me mantido empolgado da primeira à última página como outros trabalhos do autor já fizeram, ele de forma alguma é um livro que eu considere dispensável. Todo fã de King tem que ler.

sábado, abril 30, 2005

Contos Fantásticos do Século XIX Escolhidos por Ítalo Calvino

Alguns anos atrás, li um ensaio bastante curioso, de autoria do escritor americano Howard Phillips Lovecraft (1890-1937), intitulado O Horror Sobrenatural na Literatura. Publicado postumamente em 1945, o livro pretendia ser um guia para os interessados em conhecer as obras e os autores mais importantes da moderna literatura fantástica ― campo do qual o autor podia falar com conhecimento de causa, pois, para quem não o conhece, Lovecraft, discípulo aplicado de Edgar Allan Poe, é hoje considerado um dos nomes mais importantes da literatura de terror e fantasia de todos os tempos nos Estados Unidos. Esse ensaio era uma leitura muito interessante, mas acabava deixando no leitor (ao menos no leitor brasileiro) um sentimento de frustração, já que a vasta maioria dos trabalhos citados por Lovecraft nunca tinham sido publicados por estas plagas, nem havia perspectiva próxima de que viessem a sê-lo, pois a literatura de imaginação nunca foi considerada, dentro do restrito mercado editorial brasileiro, um campo em que valesse a pena investir, já que não falava ao gosto da maioria do ainda mais restrito público leitor.

Ultimamente, entretanto, pode-se arriscar dizer que a situação está mudando. A tremenda popularidade que a obra de J. R. R. Tolkien começou a ganhar no país por volta de meados dos anos 90, e que estourou de uma vez por todas com o lançamento da vitoriosa trilogia cinematográfica O Senhor dos Anéis, trouxe em sua esteira uma ampliação radical do mercado potencial para a literatura de imaginação como um todo. O estilo que em alguns círculos é chamado de "fantasia medieval", do qual Tolkien é o maior expoente, era praticamente desconhecido no Brasil até há alguns anos ― já agora, a maioria das livrarias tem dezenas de títulos do gênero para oferecer, sendo alguns até de autores nacionais. E não causa estranheza que o leitor já acostumado com a literatura de fantasia através de Tolkien e seus seguidores, tenha maior facilidade em interessar-se pelo lado mais sombrio da ficção fantástica.

Assim, por meio da antologia Contos Fantásticos do Século XIX Escolhidos por Ítalo Calvino, eu, e presumo que um bom número de outros leitores do ensaio de Lovecraft, tive por fim o prazer de realmente conhecer diversas das histórias resenhadas com tanto entusiasmo pelo autor americano. O nome do organizador da antologia já há que ser considerado uma recomendação: Calvino, autor de uma obra mundialmente aclamada, tanto como ficcionista quanto como teórico da literatura, escreveu, entre muitas outras coisas, uma pequena pérola intitulada Por Que Ler os Clássicos, livro que deve fazer parte do arsenal de todos os que trabalham na área da literatura ou dos que simplesmente a amam, pois nos abastece com uma fartura de respostas para dar aos onipresentes imbecis (desculpem-me, mas a palavra é essa mesmo) que vêm perguntar "para que serve" ler Homero, Cervantes ou Shakespeare. Com o estofo proporcionado por sua vasta bagagem de conhecimentos sobre literatura universal, Calvino selecionou com rara felicidade uma série de textos que representam o que de melhor se produziu em matéria de ficção fantástica no século XIX.

A antologia contempla desde textos e autores famosos como os americanos Nathaniel Hawthorne (O Jovem Goodman Brown) e Edgar Allan Poe (O Coração Denunciador) até os praticamente desconhecidos, ao menos entre nós, como o polonês Jan Potocki (História do Demoníaco Pacheco), além de cobrir uma surpreendente diversidade de estilos dentro do que se convencionou chamar "horror gótico": temos oportunidade de percorrer desde os exageros emotivos e estilísticos (intencionais?) do romantismo alemão (E. T. A. Hoffmann com o seu O Homem de Areia), passando por climas sombrios como no já citado Goodman Brown de Hawthorne, e indo até coisas que dificilmente seríamos capazes de classificar como "horror", pois o efeito que produzem é bem outro, como no caso da hilária O Nariz, do russo Nikolai Gogol. Há ainda textos nos quais o macabro e o engraçado se entrecruzam de forma magistral, como em A Mão Encantada, de Gérard de Nerval ― aliás, dono de um estilo absolutamente delicioso, cheio de frases pitorescas e tiradas engraçadas. As histórias encadeiam-se umas nas outras sem a menor intenção de ilustrar uma "evolução" da literatura fantástica ao longo do século, mas antes uma variação natural de tons, conforme a índole de cada autor e o ambiente cultural onde seu talento se desenvolveu. Calvino faz questão de nos mostrar tanto autores cujos nomes são automaticamente associados ao conto fantástico ― Poe ou Guy de Maupassant, por exemplo ― quanto aqueles que se celebrizaram em outros ramos da literatura, mas que eventualmente se dedicaram a explorar o campo do insólito: Hans Christian Andersen, Balzac, Walter Scott...

Se tivesse que escolher as melhores histórias do livro, eu apontaria A Vênus de Ille, de Prosper Merimée, que expressa com tremenda força ― mas sempre com sutileza ― a sensação de um horror que ressurge depois de ter ficado adormecido desde a Antiguidade, tudo girando em torno do achado de uma antiga estátua romana; Amour Dure, em que um jovem estudioso de História se vê apaixonado por uma dama bela e terrível, morta há trezentos anos; O Demônio da Garrafa, de Robert Louis Stevenson, que consegue a proeza de manter o leitor acorrentado à narrativa, mesmo lidando com um tema tão batido quanto o que lhe dá título; quanto a Poe e Hawthorne, nem é preciso dizer que seus trabalhos estão entre os melhores.

Mas a melhor história de todas é a que Calvino, sabiamente, reservou para o fim: Em Terra de Cego, do grande H. G. Wells. O conto fala de um vale encravado no meio dos Andes, onde um grupo de exilados, mestiços de espanhóis e índios, se refugiou no século XVI, e onde existe todo o necessário para que uma pequena população humana viva em paz e fartura ― com o inconveniente de que, por alguma razão misteriosa, lá todas as crianças nascem cegas. Devido à erupção de um vulcão que fecha sua única saída, o vale acaba ficando isolado do mundo exterior, e durante três séculos só nascem lá pessoas cegas. Um dia, já no século XIX, Nuñez, um guia de alpinismo, perde-se de seu grupo e é arrastado por uma avalanche para dentro do vale. Por algum tempo ele acredita que, pelo fato de poder ver, será admirado e invejado por aquele bizarro povo cego ("Em terra de cego, quem tem um olho é rei"), mas logo se decepciona: depois de catorze gerações só de cegos, os habitantes do vale esqueceram tudo sobre o mundo exterior. Ao longo dos séculos surgiram entre eles alguns de espírito filosófico que começaram a questionar as lembranças transmitidas pelos ancestrais, passaram a considerá-las meras crendices ("Por que temos que crer em coisas que nenhum de nós nunca viu?"), e acabaram por negá-las completamente e por convencer os demais. Agora, todos ali ignoram completamente que existe um mundo lá fora: para eles, o universo é aquele vale. E não é tudo: palavras como luz e trevas, dia e noite, olhar, ver, simplesmente não existem em seu vocabulário, nem tampouco a palavra cego, pois esqueceram por completo tudo o que diz respeito ao sentido da visão. As histórias de Nuñez sobre o mundo exterior soam para eles como delírios de um louco, assim como tudo o que ele lhes diz sobre poder "ver". A história é uma alegoria extremamente inteligente que critica certos postulados filosóficos e a maneira como geralmente o conhecimento humano é construído.

É claro que nem tudo é perfeito: há coisas sem as quais o livro poderia passar muito bem, como Os Buracos da Máscara, de um tal Jean Lorrain, texto sem pé nem cabeça cujo único mérito é ser curto, e que simplesmente descreve as alucinações da mente de um drogado, ou Os Amigos dos Amigos, de Henry James ― não tenho a menor intenção de pôr em dúvida a importância ou os méritos de James, mas esse conto em particular, a meu ver, não tem por que ser considerado literatura fantástica, já que as brevíssimas menções que faz a aparições fantasmais não passam de um pretexto para páginas e mais páginas descrevendo as inseguranças sentimentais da heroína narradora.

Apesar desses tropeços, cada conto do livro reserva ao leitor uma ou várias surpresas, e, como guia nessa viagem pelo mundo da imaginação visionária, dificilmente poderíamos querer alguém melhor que Ítalo Calvino, que nos situa no contexto através de uma interessantíssima introdução, além de ter escrito para cada história um pequeno prefácio que fornece informações importantes sobre o autor ― embora seja muito incômodo o fato de o organizador, por alguma razão misteriosa, ter decidido várias vezes bancar o desmancha-prazeres, contando ao incauto leitor o final do conto que ele ainda nem começou a ler. Depois de três ou quatro dessas, passei a adotar o expediente de simplesmente pular o prefácio e depois voltar atrás para lê-lo ― após ter terminado o conto, é claro. Recomendo aos demais leitores fazer o mesmo, e basta tomar esse pequeno cuidado para ter garantidos alguns momentos de arrepios inesquecíveis.