segunda-feira, março 05, 2018

Conan, o Bárbaro (Livro 1)

Não vou me meter a biografar o Pipoca & Nanquim ou seus membros – contento-me em dizer o que todo mundo que os conhece já sabe: trata-se de um dos melhores, e provavelmente o melhor canal dedicado à cultura nerd no YouTube brasileiro, com montes de vídeos instrutivos, divertidos e por vezes inspiradores, principalmente a respeito de cinema e quadrinhos (como o nome do canal sugere), mas não deixando de abordar também games, literatura e assim por diante. Daniel Lopes, Bruno Zago e Alexandre Callari entendem pacas do que falam, e, tão ou mais importante que isso, realmente amam esse negócio. E o mais legal: para benefício geral da nação nerd de língua portuguesa, os caras agora têm a própria editora, quer dizer, passaram do estágio de apenas "falar sobre" para o de produzir material. E que material! Este ambicioso projeto vem suprir uma lacuna que os fãs brasileiros de Robert E. Howard sempre sentiram: uma edição que fosse definitiva, contendo todas as histórias por ele escritas sobre sua mais famosa criação. E, palavra de honra, a qualidade mostrada neste primeiro volume me surpreendeu, ainda que minhas expectativas não fossem nada baixas, considerando a evidente paixão desses camaradas pela obra de Howard e o esmero que eles costumam colocar no que fazem, o que dá pra sentir só de assistir a seus vídeos. Callari, que, dos três, parece ser o mais ligado à literatura e o mais fã de Conan, encarregou-se da tradução, que ficou excelente – um tipo de tradução que, infelizmente, é muito raro, aquele feito por alguém que, além da capacidade técnica para tanto, tem um conhecimento profundo do assunto do qual a obra trata. A apresentação gráfica e editorial é de babar: a capa dura ostenta uma pintura de Frank Frazetta, simplesmente um dos mais aclamados ilustradores de fantasia de todos os tempos, e famoso, em especial, por causa de seu trabalho com Conan – e na capa propriamente dita, é só isso. O título, nome do autor e demais informações necessárias estão numa sobrecapa de acetato transparente que pode ser removida e recolocada à vontade, de modo que nada atrapalhe quando você quiser apenas admirar a arte de Frazetta, ou mostrá-la a alguém. O único e ligeiro senão no aspecto da qualidade editorial é o papel do miolo do livro; para uma edição tão caprichada, eu teria escolhido um papel melhor, o que poderia encarecer um pouco o produto final, mas valeria e muito a pena.

Tem gente que simplesmente pula introduções e prefácios; eu sou a favor de pelo menos dar-lhes uma chance, e, na introdução deste primeiro volume, Alexandre Callari opta por não se estender e apenas oferece ao leitor de primeira viagem, se houver algum, algumas informações importantes sobre o personagem e seu criador. Minha única objeção refere-se à parte que diz que Robert E. Howard é "amplamente aceito" como o pioneiro do subgênero sword and sorcery; e não é uma objeção ao fato de Callari estar dizendo isso, pois, de fato, a maior parte dos leitores e fãs do subgênero atribuem a Howard a sua invenção. Porém, nem sempre uma informação muito difundida está cem por cento correta: o autor anglo-irlandês Lord Dunsany escreveu histórias desse tipo mais de vinte anos antes dele. Não tenho certeza se Howard chegou a lê-lo, mas é bem provável que sim, já que H. P. Lovecraft, com quem ele manteve intensa correspondência durante anos, conhecia e admirava Dunsany (como podemos constatar em seu famosíssimo ensaio O Horror Sobrenatural na Literatura), e seria natural que tivesse comentado sobre ele com o amigo. De qualquer modo, se Dunsany influenciou Howard, não foi de forma vigorosa; na verdade, não consigo pensar em ninguém que pareça ter tido alguma influência notável sobre este último, cujo estilo e temática sempre me pareceram únicos. É claro que nenhum escritor se faz a partir do nada; Howard, como todos, teve antecessores que lhe deram um norte. Porém (e isso são poucos os que conseguem), ele foi capaz de aprender com esses autores sem se tornar parecido com eles.

Callari também toca em um, ou melhor, dois pontos importantes da cosmovisão de Howard, que ficam mais e mais evidentes conforme vamos percorrendo as histórias deste primeiro livro: sua crença de que a barbárie é o estado natural do homem (um fato incontestável, mas nem sempre o que é natural é melhor) e de que o homem bárbaro é mais digno, "limpo" e merecedor de admiração que o civilizado (uma ideia pra lá de discutível). O mito do "nobre selvagem" (aliás, eu não sabia que esse conceito era de Rousseau; valeu, Alexandre!) está tão presente nos contos de Conan quanto no romance O Guarani, de José de Alencar – só que de forma bem mais radical. Para Howard, o homem civilizado é sempre traiçoeiro, corrupto e mentiroso, enquanto os bárbaros são retos e leais, incapazes de falsidade; acho um tanto surpreendente que ele tivesse tal opinião, sendo, como era, um apaixonado por História, e é provável que a tivesse revisto, caso vivesse o suficiente para chegar a um certo grau de maturidade. Porém, é de fantasia que se trata: o mundo é do autor, e, nele, as coisas são como sua imaginação quiser que sejam.

Uma das boas sacadas desta nova edição das histórias de Conan é algo que pode parecer óbvio, mas que ninguém ainda havia feito: elas nos são apresentadas na ordem em que foram publicadas (o que não é necessariamente sinônimo de na ordem em que foram escritas). Assim, a primeira é A Fênix na Espada (1932), a primeira aventura de Conan propriamente dita, que o mostra já como rei da Aquilônia, o mais poderoso reino de sua era. Trata-se de uma reescrita da história By This Axe I Rule! ('Por Este Machado Eu Governo!'), escrita em 1929, tendo como protagonista Kull da Atlântida, o primeiro herói de sword and sorcery criado por Howard (pois Salomão Kane, de 1928, não é exatamente sword and sorcery). Kull, na minha opinião, é um personagem tremendamente subestimado, embora não seja o único: depois que Conan emplacou, nenhum dos outros heróis de Howard teve muita chance de mostrar seu potencial. O atlante serviu, mais ou menos, de protótipo para o cimério, mas os dois não são o mesmo personagem com nomes e ambientações diferentes, como alguns detratores de Howard, do alto do seu preconceito, já afirmaram: cada um deles é único. Conan é diferente do cimério típico, como faz notar o conde Próspero, seu amigo e conselheiro, nessa primeira história: enquanto seus compatriotas são austeros e até um tanto lúgubres, ele é apaixonado pela vida em todos os seus aspectos. Deixou a terra natal porque ansiava por ver as maravilhas do mundo e viver aventuras; gosta de rir e divertir-se, gosta de boa comida, de vinho e de mulheres. Não sabemos o suficiente dos atlantes para poder dizer se Kull é como eles ou não, mas, em comparação com Conan, ele é mais introspectivo, dado a reflexões sobre o mundo e a existência. Isso, porém, pode ser apenas reflexo de uma maior maturidade, pois a maioria das histórias de Kull o mostram já como rei e um homem plenamente adulto, enquanto as de Conan cobrem um arco de tempo muito maior, e muitas delas tratam da juventude do personagem.

Pra variar, divaguei; vamos voltar a A Fênix na Espada. A história põe em cena um Conan maduro, que já deve ir adiantado na casa dos 40 e ocupa o trono da Aquilônia há alguns anos. O cimério vê com uma certa amargura o quanto a opinião do povo sobre ele mudou ao longo de tão pouco tempo: quando derrubou o rei anterior, o insano e tirânico Numedides, ele foi aclamado como libertador; anos depois, os aquilonianos resmungam contra ele, ressentidos por serem um povo civilizado sendo governado por um bárbaro. O maior responsável por isso é Rinaldo, um bardo meio louco, mas de inegável talento, que açula o povo entoando canções de lamento por Numedides, como se este tivesse sido um rei virtuoso em vez do doido devasso e sanguinário que efetivamente foi, e descrevendo Conan como um bruto e um tirano (em By This Axe I Rule!, o nome do poeta era Ridondo). Rinaldo, porém, é um sonhador sem qualquer espírito prático. Quem se aproveita do efeito que suas canções têm sobre a população é Ascalante, um conde aquiloniano que perdeu seu título e terras, talvez por ocasião da queda de Numedides, e agora está urdindo uma trama para derrubar e matar Conan. Vários outros conspiradores se juntam a ele, todos planejando traições mútuas (afinal, são homens civilizados). O mais interessante é que Ascalante tem um escravo chamado Toth-Amon, um estígio (da Stygia, reino inspirado no Egito) que diz já ter sido um grande mago, cujo nome inspirava temor até em reis e feiticeiros poderosos. Acontece que todo o seu poder estava atrelado a um anel, e este foi roubado… Caramba, parece que certas ideias realmente caem em várias cabeças ao mesmo tempo quando chega a hora: do outro lado do Atlântico e mais ou menos na mesma época, Tolkien estava dando forma a suas histórias sobre Sauron e o Um Anel!… Privado de seus poderes e reduzido à servidão, Toth-Amon faz planos sombrios de vingança contra seu senhor e anseia pelo dia em que voltará a ser grande e temido. E já basta, para não dar spoiler. É interessante notar que, além desta, o mago estígio aparece em outra história, O Deus na Urna, a última deste volume, que foi escrita depois, mas, cronologicamente, passa-se antes de A Fênix na Espada, além de ser mencionado em A Hora do Dragão – e essas são todas as suas aparições em histórias de Robert E. Howard. Outros escritores que levaram adiante o legado do autor, notoriamente L. Sprague de Camp e Lin Carter, exploraram muito mais o seu potencial vilanesco, fazendo dele um dos mais perigosos e recorrentes adversários de Conan, ideia que seria ainda mais expandida nos quadrinhos.

Outra coisa que eu não poderia deixar passar em branco: para o leitor bem enfronhado no universo de Howard, há em A Fênix na Espada vários detalhes que denunciam o fato de que se tratava originalmente de uma aventura de Kull. Em seu diálogo com Próspero, Conan diz que "há alguma coisa oculta, um movimento sutil do qual não estamos cientes. Eu o sinto tal qual, na minha juventude, sentia o tigre escondido na grama alta". A juventude de Kull, não a de Conan, está estreitamente relacionada com tigres: sua tribo de nascimento e seu nome, se chegou a tê-lo, não eram conhecidos, pois ele foi achado, pelos caçadores da Tribo do Mar, vivendo na floresta com uma família de tigres, animais que também tinham um papel importante na mitologia da Atlântida, cujas tribos bárbaras mantinham com eles uma relação marcada por cautela e respeito. Ainda mais bárbaros que os cimérios, os atlantes acreditavam em totens, isto é, espíritos animais que protegeriam cada pessoa – e o totem de Kull, naturalmente, era o tigre. Mantendo a simetria entre os dois personagens, e já que (ao menos aparentemente) os cimérios não tinham totens, Conan, durante seus dias de pirata, ganhou o cognome de Amra, 'leão' na língua de alguma tribo fictícia da Costa Negra; mais tarde, como rei da Aquilônia, ele adotaria um leão dourado como emblema pessoal.

Depois de A Fênix na Espada, temos A Cidadela Escarlate, que foi a primeira história pensada desde o início para ser sobre Conan, e também esta apresenta o cimério como rei. Amalrus, rei de Ophir – reino aliado da Aquilônia – envia uma mensagem urgente pedindo ajuda, pois, segundo ele, o exército de Koth, sob o comando do rei Strabonus, está invadindo seus domínios. Sem de nada suspeitar, Conan lidera um contingente do exército aquiloniano até Ophir, só para descobrir que era tudo um engodo: Amalrus e Strabonus, na verdade, estão mancomunados, e tramaram uma vil traição contra ele (são civilizados, lembrem-se). As tropas aquilonianas, em terrível inferioridade numérica, são exterminadas, e o rei bárbaro é aprisionado. Sua captura com vida só é possível graças aos truques do mago Tsotha-lanti, pois, se dependesse dele, Conan não teria se rendido, e sim morrido com a espada na mão, levando consigo quantos inimigos pudesse, no velho estilo cimério. Uma vez dominado, porém, ele é levado para a Cidadela Escarlate do título, um castelo de propriedade de Tsotha-lanti, nos arredores de Khorshemish, a capital de Koth. Sobre o que acontece nas masmorras dessa fortaleza, o povo conta as mais tenebrosas histórias, e é para essas masmorras que Conan é conduzido: em vez de simplesmente mandar degolá-lo ou estrangulá-lo, Tsotha quer que ele tenha o fim mais terrível possível, entregue às criaturas inomináveis que sua magia blasfema evocou sabe-se lá de onde. O conto apresenta tensão ininterrupta, tanto ao narrar os acontecimentos nas masmorras quanto nas cenas de batalha, que são de tirar o fôlego. A Cidadela Escarlate, só essa história, daria um filmaço; bastaria um diretor e um roteirista que realmente conhecessem a fundo a obra de Howard e fizessem o propósito de serem tão fiéis a ela quanto possível, rompendo com a formulazinha "Conan 2011" de Marcus Nispel, que parece ter enterrado por tempo indeterminado as possibilidades de voltarmos a ver Conan nas telas. Por que um filme de Conan não pode apresentar tramas mais adultas, de maior alcance, e batalhas do nível das de O Senhor dos Anéis?

A Torre do Elefante (1933) é a terceira história, e a primeira a tratar da juventude do bárbaro, talvez com seus 18 anos, ainda no início de suas andanças pelos reinos civilizados. Na Cidade dos Ladrões em Zamora, ele ouve rumores de que o feiticeiro Yara esconde em sua torre, situada na parte da cidade reservada aos templos, um fabuloso tesouro em pedras preciosas, sendo a mais valiosa delas aquela conhecida como o Coração do Elefante, e decide invadir o lugar para tentar roubar a lendária gema. Quem viu o filme Conan, o Bárbaro (1982) vai reconhecer facilmente de onde algumas de suas situações foram copiadas, mas a principal atração desse conto é que, nele, Conan tem um vislumbre da vastidão e antiguidade do universo – coisas que jamais haviam passado por sua cabeça adolescente e inculta – ao conversar com certa criatura com eras de idade e origem extraterrestre, num dos muitos elos que podem ser encontrados entre as obras de Howard e as de Lovecraft. Os dois e mais um punhado de escritores amigos (com destaque para August Derleth e Clark Ashton Smith) tinham um acordo mediante o qual podiam usar em suas histórias elementos das obras uns dos outros – ou seja, esse negócio de "universo compartilhado" está longe de ser uma ideia nova –, o que dava aos leitores uma marcante sensação de realidade: se uma cidade, planeta, época etc. são mencionados por um só autor, pode-se facilmente assumir que ele os tenha inventado, mas, se são vários escritores citando as mesmas coisas, fica mais difícil descartar a possibilidade de que essas coisas tenham ao menos um pé no mundo real, o que acrescenta à leitura uma dose extra de emoção. Por conta disso, várias histórias de Howard podem ser consideradas parte dos Mitos de Cthulhu, inaugurados por Lovecraft e em construção até hoje.

O conto seguinte é Black Colossus, também de 1933, que, em publicações anteriores, apareceu com o título A Libertação de Thugra Khotan, mas aqui chama-se O Colosso Negro, tradução direta do original. Alexandre Callari explica, em algum vídeo do Pipoca & Nanquim, que um de seus objetivos nesta edição foi o de purgar certos ranços adaptativos deixados por L. Sprague de Camp e Lin Carter durante o tempo em que foram os responsáveis pelo espólio literário de Robert E. Howard, e um desses ranços foram os novos títulos atribuídos a diversas histórias; De Camp, ou Carter, ou ambos, não gostavam do uso repetido que Howard fazia do adjetivo "negro" em seus títulos (de fato, praticamente um terço das histórias de Conan escritas por ele tem a palavra "black" no título original). O Colosso Negro trata da cidade de Khoraja, que eu desconfio ter sido inspirada em Cartago: tal como esta última começou como uma colônia fenícia no norte da África, que mais tarde tornou-se independente, Khoraja tem origens kothianas, mas encontra-se em território outrora tomado ao reino de Shem; poderíamos dizer que é uma "Cartago terrestre", situada longe do mar, e, portanto, sem as tradições náuticas de sua equivalente histórica. E Khoraja está enfrentando tempos sombrios: seu jovem rei caiu prisioneiro dos ophirianos, que pedem por ele um resgate que levaria a cidade à bancarrota; ao mesmo tempo, Koth, que nunca verdadeiramente aceitou a emancipação de sua colônia, ensaia movimentos para tentar retomá-la pela força. Para completar, das fronteiras da Stygia surgiu um profeta-feiticeiro conhecido como Natohk, que levantou um exército de fiéis e atualmente marcha em direção a Khoraja. Na ausência do rei, o fardo de tentar administrar esse caos pesa sobre os delicados ombros de sua irmã, a princesa Yasmela. À beira do desespero, a princesa recorre a um oráculo do deus Mitra, que a aconselha a sair às ruas sozinha, à noite, e pedir ajuda ao primeiro homem que encontrar – e, para surpresa de ninguém, o primeiro homem que ela encontra é Conan, até então um simples capitão mercenário em seu exército. Yasmela, fiando-se no conselho do deus, confia ao bárbaro o comando supremo das tropas, na esperança de que ele possa salvar sua cidade. A história não oferece surpresas, o enredo não é um dos mais criativos já desenvolvidos pelo autor, e, para falar francamente, se eu decidisse contar o final, isso nem poderia ser considera-do um spoiler, tão previsível ele é; por outro lado, o conto inclui uma batalha magistralmente narrada, que parece ser o cerne da coisa toda, como se Howard tivesse bolado primeiro a batalha e depois construído o resto da história a fim de poder usá-la. Destaca-se também a atenção dada ao "magnetismo animal" exercido por Conan sobre a princesa, que, cansada dos homens polidos e elegantes da corte, sente uma atração incontrolável por aquele estrangeiro de maneiras selvagens e cuja franqueza chega a ser brutal.

Em Xuthal do Crepúsculo, encontramos Conan completamente encrencado, perdido nos desertos do leste, em vias de morrer de sede, fome e calor, depois de uma campanha malsucedida como mercenário num exército que foi derrotado, como é revelado mais adiante na história. Depois que esse exército foi desbaratado, parte dos mercenários, entre eles Conan, tentaram, por algum tempo, sobreviver como saqueadores nas fronteiras de Shem, e lá, durante um ataque a um mercado de escravos, o cimério tomou para si uma jovem brituniana, Natala, que agora é sua única companhia naquele infortúnio, e tudo indica que a garota terá a duvidosa honra de morrer ao seu lado. Mas ainda não é chegada a hora do bárbaro: em meio ao deserto, o casal encontra uma misteriosa cidade que parece desabitada, mas onde poderão abrigar-se do sol e, talvez, com muita sorte, achar água. A seu tempo, descobrirão que a cidade não é exatamente desabitada: ela abriga os últimos sobreviventes de uma raça antiga e outrora poderosa, mas agora em processo de extinção. O motivo disso é que esses sobreviventes pouco se importam com a vida real e o mundo em volta, preferindo passar seus dias e noites imersos nos sonhos fantásticos induzidos pela lótus negra. De tempos em tempos, a intervalos irregulares, uma criatura misteriosa que parece uma sombra disforme emerge do subsolo e leva um dos habitantes, presumivelmente para se alimentar, como se fosse um tenebroso deus-monstro reclamando um sacrifício. Xuthal do Crepúsculo tem um forte componente de terror, revelando a influência de Lovecraft de forma mais marcada (e muito mais horripilante) que A Torre do Elefante. Se tem um pequeno defeito, é a aparição mui conveniente de certa personagem para colocar Conan e Natala a par de toda essa situação, mas isso não chega a prejudicar a experiência do leitor. E, embora eu esteja ciente de que muita gente acha que Howard é "literatura pra macho", já conheci garotas que eram fanáticas por Conan, então deve haver algumas leitoras por aí. A essas, peço que se lembrem das várias heroínas fortes e decididas que o autor criou em outras de suas histórias, e tentem não se irritar muito ao ler sobre Natala, uma "linda nulidade" que basicamente fica abraçada aos joelhos do herói, grita muito (de preferência nos momentos mais impróprios, de modo a atrair a atenção de qualquer monstro ou inimigo num raio de quilômetros) e chega até a, movida pelo medo, agarrar-se a Conan, mais exatamente a seu braço direito, bem quando ele pode precisar sacar depressa a espada.

The Pool of the Black One, aqui intitulada O Poço Macabro, foi a última aventura de Conan daquele tão produtivo ano de 1933. Trata-se de um clássico entre as histórias que retratam os dias do cimério na pirataria. Nos mares a oeste do continente hiboriano, reina uma feroz rivalidade entre duas facções de piratas. De um lado há os bucaneiros zíngaros (de Zingara, uma antiga palavra usada para referir-se a ciganos, mas que, no mundo de Howard, designa um reino inspirado na Espanha dos séculos XV e XVI, a maior potência marítima dos tempos em que Conan viveu); do outro, os piratas barachos, sem uma nacionalidade certa (parece haver uma predominância de kothianos e argosianos, mas há entre eles homens de quase todas as nações conhecidas; em geral são aventureiros sem terra), mas assim chamados porque sua base de operações são as Ilhas Barachas, a sudoeste da costa zíngara. Conan, depois de um tempo com os barachos, precisa fugir por causa de alguma rixa que não é detalhada e acaba, de uma maneira surpreendente, juntando-se à tripulação de um navio zíngaro comandado pelo legendário capitão Zaporavo, o Falcão. Embora o comandante não esconda que tem suas reservas em relação ao novo tripulante bárbaro, Conan granjeia aceitação a bordo por mostrar-se valioso no trabalho, graças a sua força e habilidade. E, conforme os dias passam, ele descobre que Zaporavo não está em busca de navios ou cidades para pilhar; em vez disso, conduz sua embarcação por águas estranhas e pouco navegadas, até chegar a uma ilha que não está  na maioria dos mapas, onde, ao que parece, ele acredita que talvez estejam escondidos tesouros acumulados por reis esquecidos de uma civilização já desaparecida. É claro que Howard não traria Conan até um lugar assim se não fosse para defrontá-lo com um desafio à sua altura, de modo que a ilha oculta bem mais que tesouros: mais uma vez fica provado que remanescentes de um passado tenebroso, inimaginável, ainda podem ser encontrados por aqueles suficientemente ousados ou tolos para explorar os cantos mais recônditos do mundo.

Terminada O Poço Macabro, temos uma secção de extras que inclui o poema Ciméria, a respeito da terra natal de Conan, o artigo Os Anais da Era Hiboriana, fonte essencial de informações para o leitor que deseje se "achar" no mundo criado por Howard, e, curiosamente, o conto O Deus na Urna; creio que este tenha sido colocado entre os extras por ser uma das histórias nunca publicadas em vida do autor. É outro episódio da juventude de Conan, e, se quisermos situá-lo cronologicamente (preocupação que Howard, ao que parece, jamais teve), é provável que tenha lugar pouco antes ou pouco depois de A Torre do Elefante. Tal como nesta última, encontramos aqui um Conan muito jovem e ainda pouco afeito aos costumes civilizados, que ganha a vida como ladrão, ofício no qual sobressai mais pela ousadia que pela habilidade. E como ladrão, ele foi contratado para invadir um palacete conhecido como o Templo de Kallian Publico, sendo este o estranho nome de seu proprietário. Apesar de ser chamado assim, o lugar não é realmente um templo, e sim um misto de museu particular e antiquário, cujo dono está acostumado a negociar itens raros, valiosos e potencialmente perigosos com uma gama de clientes que varia de meros ricaços com mania de colecionar curiosidades até magos de reconhecido poder. Ocorre que, embora o jovem cimério tenha conseguido entrar sem ser notado, um infeliz acaso faz com que Publico seja assassinado exatamente enquanto ele está ali, a polícia aparece e Conan fica detido no local enquanto os fatos são investigados. Trata-se de uma história atípica, com pouca ação, talvez uma tentativa de Howard na direção do conto policial, e, em todo caso, muito diferente do que seus leitores estavam acostumados a receber dele, o que pode explicar o fato de não ter sido aceita pela Weird Tales (revista que publicou originalmente a maior parte das histórias de Conan), vindo a público somente em 1952, dezesseis anos depois da morte do autor.

Como eu disse no início, Conan, o Bárbaro da editora Pipoca & Nanquim é uma edição muito caprichada, demonstrando genuíno amor e respeito pela obra de Robert E. Howard. Alexandre Callari fez um ótimo trabalho na tradução, mantendo intactos tanto quanto possível, na minha opinião, a fluência e o sabor característico da prosa do autor. O texto, entretanto, tem alguns problemas, de modo que eu recomendaria uma nova revisão mais minuciosa antes que saiam as próximas tiragens (pois não tenho dúvida de que essa primeira vai se esgotar em pouco tempo e continuará a haver gente querendo comprar o livro). Pequenos deslizes de regência e concordância são facilmente perdoáveis e, de modo geral, não comprometem a leitura; chamou bem mais a minha atenção o fato de, por vezes, certas palavras serem usadas de formas estranhas. Em O Colosso Negro, quando Yasmela corre uma cortina para apresentar Conan a algumas figuras importantes de Khoraja, o texto original diz que "it was perhaps not an entirelly happy moment for the disclosure"; tentando evitar um excesso de literalidade, eu traduziria isso como 'esse talvez não tenha sido o momento mais propício para a apresentação', ou coisa semelhante. Callari traduziu assim: "Talvez não tenha sido o momento mais fortuito para revelá-lo" (grifo meu). "Fortuito"? O que "fortuito" tem a ver com isso?… Na mesma história, onde, no original, lia-se "the steel-clad company was thundering down the valley", a tradução ficou 'a frota desceu o vale trovejando'. Frota é de navios, aviões ou outros tipos de veículos, enquanto essa passagem refere-se a um esquadrão de cavalaria; a melhor tradução para company seria companhia mesmo. Outra falha que notei não é de tradução, mas de digitação/revisão, e é bastante engraçada: sempre que o texto descreve o teto de algum recinto como sendo abobadado, ou seja, em forma de abóbada, que é um elemento arquitetônico, o que aparece grafado é abobado, o que tem um sentido um pouco diferente (risos). E há outras pequenas arestas, enfim, nada que não possa ser facilmente corrigido.

À guisa de conclusão, preciso dizer que não tenho nem palavras para expressar o tamanho da gratidão que eu e todos os outros fãs brasileiros de Robert E. Howard devemos ao bravo trio do Pipoca & Nanquim. Howard é um autor essencial para todo amante da literatura de fantasia, e ter na estante uma edição abrangente e bem cuidada de suas histórias a respeito de sua mais importante criação é coisa indispensável, mas que ainda não tínhamos tido oportunidade de obter. Torçamos para que Alexandre, Daniel e Bruno, depois desse primeiro grande triunfo howardiano, continuem a empunhar firme suas espadas rumo a novas conquistas e glórias. Sem desconsiderar os vários outros lançamentos que sua editora já fez e sem dúvida continuará fazendo, espero fortemente que não parem por aqui com a obra de Howard: Conan tinha que ser o primeiro, é claro, mas Kull, Bran Mak Morn, Salomão Kane e outros personagens criados pelo autor também merecem e precisam tornar-se mais conhecidos do público nacional. E, não querendo ser sonhador demais, quem sabe essas novas edições da obra de Howard não possam abrir caminho para a publicação de outros autores de fantasia que foram seus contemporâneos e continuam, a bem dizer, inéditos no Brasil? Seria o Pipoca & Nanquim fazendo História.