Mostrando postagens com marcador Augusto. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Augusto. Mostrar todas as postagens

sexta-feira, abril 14, 2017

O Resgate das Águias

Cinco anos se passaram desde a traição de Armínio, que levou três legiões romanas à destruição na floresta de Teutoburgo. Como ele esperava que acontecesse, Roma não fez novas tentativas de estabelecer bases permanentes na margem oriental do Reno, mas fortaleceu suas posições na margem ocidental e, com toda a certeza, não se esqueceu da humilhação sofrida. Armínio esperava por isso também, e, embora ele próprio não possa transpor o rio – se o fizesse, seria um homem morto, em menos tempo do que leva dizê-lo –, não deixou de enviar regularmente espiões, que percorrem as ruas das cidades romanas da Germânia, ouvem a conversa dos legionários nas tabernas, e coisas assim. Graças a isso, ele sabe dos planos do imperador Augusto de tentar retomar o território perdido e punir exemplarmente as tribos que se rebelaram, e está fazendo seus próprios planos para que a "Germânia Livre" esteja preparada quando esse dia chegar, o que agora parece estar muito perto. Nesse período de cinco anos, Armínio tem levado a vida normal de um homem das tribos na Germânia, muito diferente da do oficial romano que ele já foi. Sucedeu ao pai como chefe da tribo dos Cherusci e casou-se com a bela Tusnelda, filha de Segestes – um chefe tribal leal a Roma, que inclusive tentou, inutilmente, alertar o governador Varo sobre a traição planejada por Armínio; como é fácil imaginar, o convívio entre genro e sogro não é dos mais tranquilos. As articulações de Armínio para ampliar seu poder até tornar-se uma espécie de rei (coisa que os germanos, divididos em tribos, nunca tiveram) ainda não deram frutos, mas ele não tem pressa.

Corre o ano 14 d. C. e Augusto ainda é o imperador, mas é agora um homem bastante idoso, tendo governado por mais de 40 anos. Como não tem filhos homens, nomeou como herdeiro o enteado, Tibério, que, também sem descendência masculina, por sua vez adotou o sobrinho Nero Cláudio Druso Germânico, filho de seu falecido irmão de mesmo nome. Germânico, portanto, já era o segundo na linha de sucessão ao trono quando assumiu o cargo de governador da Germânia, terra onde seu pai alcançou glória no campo de batalha e fez jus ao agnomen que lhe legou, embora seja mais correto dizer que o que ele realmente assumiu foi o governo da pequena parte da Germânia que Roma ainda controlava. Sua posse ocorreu no ano 13, mas O Resgate das Águias começa com um prólogo ambientado em 12, quando foi celebrado em Roma um triunfo em honra de Tibério, por suas vitórias na Ilíria. É aí que vamos reencontrar Lúcio Comênio Tulo, o protagonista de Águias em Guerra.

Apesar de seu comportamento heroico durante a malfadada batalha da floresta de Teutoburgo (se é que dá para chamar aquilo de batalha), Tulo, como a maioria dos sobreviventes, caiu em desgraça. No caso dele, isso se deu, principalmente, devido às maquinações de seu desafeto Lúcio Túbero, que também sobreviveu, mas, ao contrário dele, ficou bem na "foto", ocupando agora, aos 22 anos, o posto de legado, comandante de uma legião. Túbero conseguiu que Tulo fosse rebaixado de posto: anteriormente primus pilus de uma coorte, ele é agora um centurião comum, tendo sido realocado na Quinta Legião, junto com os soldados que conseguiu salvar. Muitos de seus novos colegas oficiais o respeitam, mas alguns – em especial os centuriões de patentes superiores à sua – gostam de fazê-lo alvo de chacota porque, de toda uma coorte, só conseguiu salvar 15 homens… Sendo que, se eles soubessem quais eram as condições em Teutoburgo, perceberiam que até mesmo isso foi um feito admirável.

(Para os raros mas obstinados nerds de história militar: a Quinta Legião aí referida é a própria Legio V Alaudae, 'Quinta Legião das Cotovias', em tradução literal. Formada por Júlio César na Gália, em 52 a. C., ela ganhou esse nome por causa dos penachos em estilo gaulês que os soldados usavam nos elmos nos primeiros tempos, e que lembravam o penacho do pássaro. Já seu emblema, um elefante, foi ganho após a batalha de Tapsos, em 46 a. C., na qual a Quinta enfrentou com sucesso uma carga de elefantes de guerra númidas. Não deve ser confundida com a Legio V Macedonica.)

Os historiadores registraram que os romanos que foram capturados vivos pelos germanos na floresta de Teutoburgo, e posteriormente libertados em troca de resgate, ficaram marcados pela desonra, e foram proibidos pelo imperador, sob pena de morte, de pisar na Itália durante o resto de suas vidas. Para seus objetivos literários, o autor Ben Kane estendeu a mesma proibição a todos os sobreviventes de Teutoburgo, mesmo aqueles (poucos) que escaparam sem terem sido capturados, como Tulo e seus homens. Portanto, ele e seu segundo em comando, Marco Fenestela, estão correndo um enorme risco quando decidem ir a Roma assistir ao triunfo – provavelmente o mais grandioso espetáculo que um cidadão romano da época podia esperar ver ao longo de sua vida, algo que, visto na infância, ainda era lembrado e contado na velhice. Esperam não ser reconhecidos por ninguém, mas Germânico, com outros generais, está acompanhando Tibério em seu triunfo…

Um dos motivos para que Germânico seja adorado por seus soldados é sua capacidade de olhar para cada um deles como indivíduo, não como um simples número que engrossa suas tropas, e parece que tal fama é merecida, pois, de seu lugar na procissão triunfal, ele avista Tulo, com quem se encontrou na Germânia anos antes – e o reconhece, mesmo em trajes civis e no meio de uma multidão de espectadores. O mais importante, porém, é que Germânico não o denuncia como "deveria" fazer. Numa conversa que os dois têm mais tarde, ele elogia Tulo pelo que fez em Teutoburgo e diz que precisará de homens como ele para concretizar seu plano de vingar o massacre e recuperar as águias perdidas da Décima Sétima, Décima Oitava e Décima Nona legiões, que caíram nas mãos dos germanos e devem agora estar ornamentando como troféus os salões de diferentes chefes tribais. Para Tulo, que só vive pela esperança de ter a chance de fazer justamente isso, a fim de restaurar sua honra, essa promessa é um presente dos deuses.

E é assim que, dois anos depois, Tulo e Fenestela, assim como o restante dos soldados da Quinta e das outras três legiões locais, estão esperando pela chegada de Germânico. Quando ele por fim chega, entretanto, não pode dedicar-se imediatamente ao plano de punir os germanos e recuperar as águias, tendo primeiro que lidar com uma insurreição entre suas próprias tropas: parte dos soldados estão insatisfeitos por não terem seus soldos reajustados há muitos anos, e pelo fato de alguns deles já terem passado há muito do prazo regular para se reformarem, e mesmo assim não serem dispensados. A coisa já passou do estágio dos protestos verbais: os revoltosos tomaram o controle dos acampamentos e assassinaram vários oficiais contra os quais tinham queixas já antigas – e, é claro, seja qual for o desfecho das negociações, os homens que fizeram isso não podem ser deixados impunes. Isso coloca Tulo, junto com outros oficiais e soldados que se mantiveram leais, numa das situações mais repulsivas que um legionário romano poderia imaginar: a de receber a ordem de matar um camarada. Essa insurreição é histórica, e é mencionada também em Eu, Claudius, Imperador, de Robert Graves, mas aparece com bem mais detalhes aqui, provavelmente porque O Resgate das Águias é narrado sob o ponto de vista de um oficial das legiões da Germânia, que está lá e vê tudo acontecer, enquanto, no livro de Graves, o narrador é Cláudio, irmão de Germânico – um intelectual que mora em Roma, de modo que só sabe do caso através de informações de segunda ou terceira mão. Aquele movimentado ano 14 é marcado, ainda, pela morte de Augusto, sucedido por Tibério, com Germânico precisando esfriar o ânimo de suas legiões, que querem que ele derrube o tio e se faça, ele próprio, imperador.

Superadas todas essas turbulências, Germânico decide aproveitar o desusado bom tempo daquele outono para atravessar o Reno com suas quatro legiões, reforçadas por tropas auxiliares gaulesas e germânicas (das poucas tribos germanas ainda leais a Roma, claro está) e cair sobre um punhado de aldeias habitadas pela tribo dos Marsi, uma das que se juntaram ao exército de Armínio cinco anos antes. Quando as legiões romanas atacavam com ordens para riscar do mapa uma cidade ou aldeia, o procedimento padrão era matar todos os homens; mulheres e crianças normalmente eram poupadas, mesmo que fosse só para passarem o resto da vida como escravas. Desta vez, porém, as ordens são mais duras ainda: ninguém deve sobreviver – ninguém mesmo. A ideia é que fique absolutamente claro que não haverá misericórdia para os que se aliaram a Armínio. A narração do ataque aos Marsi é tanto mais perturbadora por se parecer muito com a do ataque dos Usipeti às aldeias sob proteção romana no livro Águias em Guerra: o leitor fica se perguntando onde foi parar a distinção entre barbárie e civilização, que os romanos pareciam prezar tanto. A verdade é que, como dizia Conan numa história que li certa vez, a guerra nunca é civilizada. É claro que, para Tulo, assim como para qualquer homem decente, a necessidade de chacinar mulheres e crianças é encarada com repugnância… Só que, como em qualquer grupo numeroso, não se pode esperar que todos no exército sejam decentes, de modo que é muito difícil impedir que estupros e outras crueldades desnecessárias aconteçam.

Seja como for, o "recado" é entendido por Armínio, que não perde tempo em, mais uma vez, chamar às armas as tribos germânicas, encorajando-as a deixar temporariamente de lado as rixas que têm umas com as outras para enfrentarem juntas o contra-ataque romano. Para se prepararem, os germanos dispõem do restante do outono, bem como do inverno de 14-15, já que, depois dessa investida rápida contra os Marsi, que estavam mais próximos, os romanos só poderão dar sequência à campanha na primavera.

O que o chefe dos Cherusci não esperava era receber um golpe tão doloroso: uma expedição furtiva liderada por Tulo e por seu próprio irmão, Flavo (que era um dos germanos leais a Roma) consegue penetrar em sua aldeia durante sua ausência, resgatar Segestes, que ele estava mantendo prisioneiro, e, o pior de tudo, raptar Tusnelda, grávida de seu primeiro filho. Por algum tempo, chega a parecer que os romanos vão conseguir exatamente o que esperavam com isso: desestabilizar o chefe germano, levá-lo a agir de forma precipitada e fazer alguma bobagem, mas, depois de se entregar a uma fase de desespero e bebedeira, Armínio se recupera o suficiente para retomar o complicado trabalho de coordenar as tribos para que ajam juntas contra o inimigo. Daí para diante, os capítulos se revezam entre os esforços de Armínio com esse objetivo e a narração da campanha romana, sob o ponto de vista de Tulo. As partes que narram as reuniões de Armínio com outros chefes evidenciam bem aquilo que foi, historicamente falando, a única coisa que o impediu de causar danos ainda maiores ao Império Romano: o zelo quase paranoico com que cada tribo germânica fazia questão de manter sua independência em relação a todas as demais, e a consequente fragilidade de qualquer aliança entre elas. Armínio sabe que é o mais preparado de todos os chefes, porque viveu entre os romanos, foi treinado para ser um oficial do exército imperial, aprendeu suas táticas e seu modo de pensar, mas os outros não gostam nem um pouco de sua tendência a querer mandar em tudo e a agir como se fosse o único ali com capacidade para liderar um exército contra os romanos, embora o seja. Suas ambições reais não passam despercebidas aos olhos de alguns mais perspicazes, que não perdem a oportunidade de lembrá-lo de que, ali, ele é apenas o que seus inimigos romanos chamariam em latim de primus inter pares ('primeiro entre iguais'), e, mesmo isso, somente em caráter provisório. A lealdade de cada chefe nunca pode ser tida como certa, e precisa ser ganha repetidamente, mais vezes por meio de bajulação que de boas ideias ou liderança inspiradora, o que leva Armínio a ter inveja dos generais romanos, que têm assegurada por juramento a obediência de seus soldados e oficiais, sendo que qualquer insubordinação é considerada traição.

O Resgate das Águias não fica devendo nada a Águias em Guerra nos quesitos tensão, ação, atmosfera, reconstituição histórica ou personagens convincentes, provando ser uma sequência perfeitamente condigna para seu antecessor. A Trilogia das Águias de Ben Kane é um prato cheio (e apetitoso!) para os fãs da Antiguidade, mais especificamente do Império Romano, e, mais especificamente ainda, das legiões. Há poucos livros tão bons em fazer você se sentir como se estivesse marchando por um território hostil, com uma cangalha de madeira sobre os ombros contendo 30 quilos de equipamento, um elmo fazendo correr suor pelo seu rosto, e a consciência de estar sendo observado por hordas de bárbaros desgrenhados escondidos no mato, que o matarão com o maior prazer na primeira oportunidade que tiverem. As legiões me fascinam, sem dúvida, mas só como objeto de estudo: não lamento nadinha o fato de não ter feito parte de uma!… Era uma vida dura e brutal. O século XXI tem muitos defeitos, mas também tem vantagens suficientes para que eu prefira estar aqui, confortavelmente instalado na minha poltrona, e apenas ler sobre as façanhas e as provações daqueles bravos soldados. Sendo assim, que bom que temos Ben Kane! Ave atque vale.

segunda-feira, outubro 31, 2016

Águias em Guerra

No início do primeiro século da Era Cristã, o então recém-instituído Império Romano parecia estar levando adiante com sucesso a conquista da Germânia, que, ao que tudo indicava, seguiria o mesmo caminho de muitas outras nações da Europa, Oriente Médio e norte da África: o de tornar-se mais uma província romana. Nas batalhas de Arbalo e do rio Lúpia, ambas em 11 a. C., o general romano Nero Cláudio Druso, enteado do imperador Augusto, havia obtido vitórias importantes sobre diversas tribos germânicas, as quais, desde então, polarizavam-se entre as que aceitavam o domínio de Roma e as que não o aceitavam – o que também era uma parte normal do processo de conquista. De todo modo, e muito graças a essas vitórias, a região do vale do Reno passou os vinte anos seguintes em relativa tranquilidade, experimentando um intenso desenvolvimento. Novas fortificações militares iam sendo construídas, e, em volta delas, surgiam vilas planejadas, mais limpas e seguras que os aldeamentos nativos. Boas estradas e pontes sólidas facilitavam a circulação de pessoas e mercadorias. Pela primeira vez, aquelas plagas até então selvagens ganhavam ares de civilização, e muitos dos nativos se adaptavam à nova realidade, passando a ganhar seu sustento graças às oportunidades que a presença dos romanos havia trazido, nos ramos do comércio e da indústria. Artesanias de diversos tipos, tabernas e pequenos comércios prosperavam como nunca, já que agora tinham como fregueses os soldados e os funcionários do Império Romano, que tinham salários regulares (!), o que, salvo algum imprevisto, significava dinheiro para gastar todos os meses – algo que, para os germânicos pobres, parecia coisa de outro mundo. Com isso, o padrão de vida médio da população da região sofreu uma melhora significativa, de modo que, apesar dos impostos que agora precisavam pagar a Roma, muitos não estavam descontentes. Em suma, no ano 9 d. C., a fase inicial e violenta da conquista parecia ter sido superada; daí em diante, ela se consolidaria na base da integração e da aculturação. Era o que parecia.

(A propósito: Druso, depois de sua morte, ganhou do senado de Roma o título de "Germânico", em homenagem a suas vitórias na Germânia. O título foi incorporado a seu nome, que passou a ser Nero Cláudio Druso Germânico, e foi herdado por seus filhos. O mais velho deles levou o mesmo nome que o pai e foi praticamente uma segunda edição dele, pois também se tornou um general de renome e praticou façanhas notáveis na Germânia; o mais jovem, Tibério Cláudio Druso Nero Germânico, foi imperador de 41 a 54, com o nome de Cláudio.)

Da integração de que falávamos há pouco fazia parte, entre outras coisas, o costume de aceitar o alistamento de nativos no exército; eles serviriam nas auxiliae (tropas auxiliares) como cavalarianos, arqueiros, ou como infantaria leve, dotando a máquina de guerra romana com alcance e mobilidade, coisas que não eram o forte das legiões. Depois de arremessar os dois ou três dardos (pila, plural de pilum) que levavam, os legionários tinham que passar ao combate corpo a corpo; tampouco podiam mover-se muito depressa com suas pesadas armaduras e escudos. Por isso as auxiliae eram necessárias, embora, verdade seja dita, geralmente não gozassem de muito prestígio: os legionários regulares tendiam a olhar os soldados auxiliares com certo desprezo, já que, afinal, eram "bárbaros", que só ganhariam a cidadania romana – e, por consequência, o direito de ficar em pé de igualdade com eles – ao final de seu tempo de serviço, se vivessem até lá, é claro. Porém, também era tendência que esse preconceito fosse abrandando ao longo do tempo, pois, como a cidadania era extensiva aos descendentes, os filhos de soldados auxiliares podiam ser legionários, e essas novas gerações (ao menos, era o que se esperava) veriam os auxiliares com outros olhos.


Esse status mais baixo de que padeciam os soldados das auxiliae tinha exceções. Uma delas foi Ermin, ou Irmin (nome que os romanos latinizavam para Armínio, e que evoluiu para Hermann no alemão moderno), filho de Segímero, um dos líderes da tribo germânica dos Cherusci ('queruscos'). Ainda durante a fase inicial da tentativa de conquista da Germânia, o general e mais tarde imperador Tibério (irmão de Nero Cláudio Druso) tentara convencer Segímero a se aliar ao Império, e, para demonstrar benevolência, tomou Armínio, ainda menino, sob sua proteção, e o enviou para ser educado em Roma. Armínio retornou à Germânia por volta do ano 2, com cerca de 18 anos de idade, tendo ganho a cidadania romana (um caso excepcional, devido a suas origens aristocráticas e ao papel-chave que esperava-se que tivesse na política Roma/Germânia durante os próximos anos) e a patente de tribuno militar. Sua missão consistiria em liderar a cavalaria formada por seus compatriotas, apoiando as legiões em qualquer luta que fosse necessário travar contra as tribos que ainda não reconheciam a soberania de Roma. Públio Quintílio Varo, que ocupou o cargo de governador da Germânia no ano 6, repetidamente demonstrou estima pessoal pelo jovem oficial, e gostava de citá-lo como exemplo de bárbaro que se adaptara com sucesso ao modo de vida romano. Mal sabia Varo que Armínio, no íntimo, nunca havia sido sincero em sua aliança com Roma: em segredo, ele imaginava maneiras de unificar as tribos germânicas divididas por rivalidades para, aproveitando-se da confiança que os romanos agora depositavam nele, orquestrar uma insurreição que os expulsasse para sempre das terras ancestrais de seu povo.

(Tudo até aqui é histórico; de agora em diante, passo a comentar o romance Águias em Guerra, no qual o escritor queniano Ben Kane recria a história da batalha da Floresta de Teutoburgo, cujo desfecho frustrou em definitivo os planos romanos de conquista para a maior parte do território germânico.)

A narrativa do livro acompanha dois homens: um germano, Armínio, e um romano, o veterano centurião primus pilus Lúcio Comênio Tulo. Lembrando: o primus pilus (latim para 'primeira lança', às vezes traduzido como primeiro-centurião) era o comandante da primeira centúria de uma coorte, e tinha, na prática, uma patente mais alta que a dos outros centuriões, sendo responsável pela coorte toda (seis centúrias formavam uma coorte, e dez coortes formavam uma legião). Tulo é um homem enrijecido por muitas batalhas nas diferentes províncias onde já serviu, e está numa altura da vida em que a ideia de reformar-se vai assumindo contornos mais concretos. Com 40 e poucos anos, passou os últimos 25 no exército – ou seja, já poderia estar reformado, mas optou por prorrogar seu tempo de serviço, provavelmente por não conseguir imaginar-se vivendo como civil. Agora, no entanto, até seu vigor físico já não é o mesmo de outros tempos, e ele considera que pode ser uma boa ideia ir descansar, deixando as lides militares para oficiais mais jovens e ambiciosos.

O que Tulo não esperava era ser agraciado com a missão de servir de ama-seca para um desses jovens oficiais. O tribuno Lúcio Túbero acaba de chegar de Roma, tem 17 anos e está empolgado com seu primeiro comando militar. Ansioso por mostrar seu valor em combate, ele não recebe bem a notícia de que sua primeira missão será uma patrulha de rotina pela margem leste do Reno, na qual as probabilidades de ocorrer alguma luta são quase nulas: as tribos da região são aliadas de Roma, e aquelas que permanecem hostis estão, em princípio, bem distantes. Essas patrulhas, além de servirem para exercitar os soldados em longas marchas, tinham uma função eminentemente ostensiva: a visão de tropas romanas em movimento era considerada salutar mesmo para as tribos nativas já pacificadas, pois as inspirava a pagar seus impostos sem resmungar e desestimulava qualquer ideia infeliz que pudesse andar revolvendo nas cabeças dos menos satisfeitos. Nenhum incidente é esperado durante os vários dias que esse deslocamento deverá durar, mas há um fio de esperança para Túbero: nos últimos tempos, germanos Tencteri, cuja tribo ainda não aceita o domínio romano, têm feito incursões à região do rio para roubar gado de outras tribos, e há alguma chance de que a patrulha tope com um desses bandos de ladrões. Naturalmente que, embora Túbero tenha a patente mais alta, Tulo é quem de fato comanda a operação – mas o centurião percebe logo que deve ser sutil e diplomático: Túbero é afoito e arrogante. O consolo de Tulo reside no fato de que muitos tribunos que começaram desse jeito amadureceram e acabaram por tornar-se bons oficiais… O que não muda a antipatia instantânea que ele logo sente pelo moleque.

Só para esclarecer aos que não estiverem familiarizados com a hierarquia do exército romano, os tribunos militares eram os oficiais diretamente subordinados a um legado, que era o comandante de uma legião (um general podia comandar diversas legiões). Cada tribuno tinha sob suas ordens vários centuriões e, teoricamente, cerca de mil legionários, embora, na prática, fossem quase sempre menos, pois era raro que uma centúria tivesse exatamente cem homens. A questão delicada aí é que o posto de tribuno era muitas vezes ocupado por jovens oriundos das famílias patrícias (isto é, aquelas de berço nobre e normalmente ricas), formados numa academia, mas sem qualquer experiência militar real, que estavam dando seus primeiros passos no cursus honorum (detalhes aqui). Enfim, Túbero é um exemplar típico. Colocar um rapazola inexperiente numa posição de comando era uma concessão política, mas ninguém era louco de não tomar precauções para evitar que isso acabasse em desastre: os tribunos sempre tinham junto de si centuriões experientes para auxiliá-los e aconselhá-los, e, na maioria das vezes, eram espertos o suficiente para ouvir o que eles diziam. Havia um mecanismo que visava garantir isso: ao mesmo tempo em que estavam sob as ordens do tribuno, os centuriões tinham o poder de avaliá-lo. Se os relatórios que eles encaminhassem ao legado ou ao general em comando fossem continuamente desfavoráveis, o tribuno podia perder seu posto – o que seria um grande problema para sua carreira futura. Esse sistema, de modo geral, era eficiente, embora, é claro, não fosse à prova de influências e "amizades". E, como também é claro, era impossível evitar que alguns desastres efetivamente acontecessem.

Um deles tem lugar durante a patrulha pela margem leste: Túbero, acompanhado de alguns outros oficiais montados, decide explorar o caminho à frente das tropas e acaba topando com alguns guerreiros germanos que vêm conduzindo uma boiada. Assumindo logo que se trate dos ladrões Tencteri e sem falar a língua dos germanos, que tampouco falam latim, o tribuno arma uma confusão que resulta na morte de vários homens – que não são Tencteri coisa nenhuma, e sim da tribo local dos Usipeti, há muito aliados a Roma. A única maneira de evitar que a justa indignação do restante da tribo degenere numa revolta seria que o governador Varo fizesse um pedido formal de desculpas e aplicasse a Túbero uma punição exemplar… Mas o governador não se atreve a tanto, já que o rapaz é filho de um homem importante de Roma, amigo do próprio imperador. Armínio, que já antes disso vinha fazendo contatos com o objetivo de articular uma rebelião, habilmente tira proveito do ressentimento gerado pelo incidente para estimular um ânimo de rebeldia inclusive entre as tribos que até aí estavam do lado dos romanos. Tudo de forma discreta, até que chegue o momento certo para "virar a mesa". Desnecessário dizer que convencer as tribos germânicas de que tinham um inimigo comum – no caso, Roma – era o único meio factível de conseguir que cooperassem entre si, pois, sob condições normais, as relações de umas com as outras variavam da desconfiança à inimizade mortal.

Águias em Guerra é uma leitura empolgante! A recriação histórica parece perfeita aos olhos de alguém com um conhecimento bastante razoável sobre a época (modéstia à parte, esse sou eu – risos); Kane tomou umas poucas liberdades, as quais ele esclarece na nota ao final do livro. Além disso, há uma atmosfera de tensão ininterrupta, pois o autor consegue fazer o leitor sentir a enormidade do que está se preparando para acontecer. Armínio, ardiloso, esforça-se por parecer o oficial perfeito aos olhos do governador Varo: eficiente, solícito… Um pouco eficiente e solícito demais para o gosto de Tulo, que, apesar de manter relações cordiais com o germano, conserva, durante todo o tempo, uma certa reserva a respeito dele. Por mais de uma vez o centurião tenta expor sua desconfiança ao governador, mas este sempre o repreende duramente por "ousar" pôr em dúvida a lealdade de Armínio, a quem ele considera não só um fidelíssimo aliado de Roma, como seu amigo pessoal – uma opinião que Armínio trata de reforçar, repetidamente visitando o governador para longas conversas regadas a vinho e convidando-o para caçadas. Varo, apesar de também já haver exercido comandos militares, é essencialmente um político; Tulo, por outro lado, é um soldado até o último fio de cabelo, e a intuição que tantas vezes salvou sua vida (e as de seus homens) no campo de batalha, parece alertá-lo a manter um pé atrás em relação a Armínio. Enfim, se Tulo, e não Varo, fosse o governador da Germânia naqueles dias, é possível que os alemães de hoje falassem uma língua neolatina… Certo, Tulo é um personagem fictício, mas é provável que houvesse diversos homens parecidos com ele à volta do Varo histórico, e, se tivessem conseguido que ele os ouvisse, a História poderia ter tomado outro rumo. O pior é que vários indícios do que ia acontecer chegaram ao conhecimento de Varo, que os ignorou porque confiava cegamente em Armínio. E, se pensarmos bem, não havia como não vazarem informações: para conseguir a adesão de uma tribo a sua causa, Armínio precisava expor seu plano, que então era discutido entre os chefes e todos os guerreiros – e todos sabemos que um segredo que é confiado a muita gente nunca permanece secreto por muito tempo. O desastre poderia ter sido evitado se o governador tivesse sido mais esperto, o que tornou o caso todo ainda mais difícil de descer pela goela dos romanos.

Voltando ao livro, o momento que Armínio esperou durante tantos anos finalmente chega no outono do ano 9, quando a Décima Sétima, Décima Oitava e Décima Nona legiões, lideradas por Varo em pessoa, estão retornando de seu acampamento próximo à vila de Porta Westfalica para suas bases permanentes na cidade de Vetera (a atual Xanten), onde deverão passar o inverno – e onde o relativo sedentarismo imposto pelas condições do tempo durante a estação fria será um descanso mais do que bem-vindo para os soldados, depois de uma primavera e verão de marchas exaustivas e algumas lutas. Acontece que, durante a marcha, Armínio procura Varo com a notícia (falsa) de uma sublevação entre os Angrivari, uma tribo cujo território fica relativamente próximo dali. Garantindo ao governador que ele e seus cavaleiros conhecem bem os caminhos da região e sabem exatamente por onde o exército deve marchar para chegar ao local o mais depressa possível, Armínio consegue que as legiões se metam numa trilha estreita e tortuosa, por dentro da floresta de Teutoburgo, na atual Baixa Saxônia, Alemanha. Na floresta, as três legiões, totalizando cerca de 14 mil homens, seriam emboscadas por uma confederação de tribos germânicas com cerca de 20 mil. Em circunstâncias normais, esse grau de inferioridade numérica nem chegaria a preocupar as legiões romanas, acostumadas a enfrentar – e derrotar – inimigos duas, três vezes mais numerosos que elas, mas desorganizados e pouco disciplinados. O problema foi o local onde o ataque ocorreu: para poderem transitar por aquela trilha estreita, as legiões tinham sido obrigadas a se afunilar até estarem marchando quase em fila indiana; isso, mais a densa mata que as rodeava, tornou impossível aos soldados entrarem em formação com a rapidez necessária ao serem atacados de surpresa por inimigos que, ao contrário deles, estavam acostumados com a floresta e com o terreno acidentado e lamacento. Os germânicos emergiam das sombras da floresta, faziam ataques-relâmpago e tornavam a desaparecer, para, pouco mais tarde, repetirem a manobra, e assim sucessivamente, causando baixas e minando o moral dos soldados. Ou seja, tudo correu conforme os planos de Armínio, que desde o início pretendia colocar as legiões no terreno mais desfavorável possível para elas, onde seus homens pudessem atacar sem precisar enfrentar os romanos em combate direto, pois ele sabia que, se o fizessem, eles perderiam. De cada legião não restou mais que um punhado de sobreviventes, e, ainda pior que isso, suas águias caíram nas mãos dos bárbaros. O episódio entraria para a história romana com o nome de Clades Variana (o 'Desastre de Varo'). Conta-se que, ao saber do acontecido, o imperador Augusto, então já um homem idoso, chorou, e que durante meses teve pesadelos, dos quais acordava gritando: "Vare, legiones redde!" ('Varo, devolva minhas legiões!')

Um dos muitos méritos de Águias em Guerra é que o autor não cai no simplismo tolo de eleger um lado como o "bem" e o outro como o "mal": alguns romanos podem ser arrogantes e prepotentes, mas também há os que são justos; os germânicos anseiam por recuperar sua liberdade (mesmo que seja para voltarem a viver como selvagens, lutando idiotamente uns contra os outros sem qualquer motivo real), e ninguém pode culpá-los por isso, mas também cometem atos bárbaros e brutais. Como eu disse, a indignação dos Usipeti ante os assassinatos perpetrados por Túbero é mais do que justa – mas não se pode dizer o mesmo da retaliação que praticam, saqueando várias vilas (habitadas por germanos como eles), assassinando e estuprando, até serem detidos, e por quem? Pelos romanos… Enfim, nesta história as coisas são bem mais complicadas que um mero confronto entre o bem e o mal: são mais parecidas com a realidade. Seguindo o mesmo espírito, as descrições das batalhas pouco têm de glorioso: são assustadoras e, não raro, repugnantes, como uma batalha de verdade. Também é uma realização notável do autor o fato de conseguir que o leitor experimente uma sensação de suspense enquanto acompanha os eventos, apesar de já saber qual será o resultado; isso é alcançado principalmente porque, a partir de certo momento, o fato de que a causa romana na Germânia está perdida é aceito por todos, e, daí em diante, o núcleo da história não é mais esse. Em face dessa realidade, cada personagem tem a reação que lhe cai melhor: Armínio e seus germanos comemoram, Varo suicida-se, Tulo se esforça de forma heroica para tirar dali com vida o maior número possível de seus homens – e a atitude deste último assegura-nos uma linha de ação eletrizante para seguirmos com a respiração suspensa até o final do livro.

Kane menciona que a ala ('asa', nome dado a uma unidade de cavalaria) que Armínio comanda é vinculada à Décima Sétima Legião, enquanto a coorte sob as ordens de Tulo pertence à Décima Oitava, mas tem o cuidado de só designar essas legiões pelos números, nada dizendo sobre seus nomes ou seus emblemas, e por uma razão muito boa: essas informações são desconhecidas. As duas, junto com a Décima Nona, tiveram um fim que foi considerado ignominioso, e, por isso, os cronistas da época e os das gerações seguintes parecem ter achado que quanto menos falassem sobre elas, melhor. Houve, mais tarde, uma série de expedições punitivas sob o comando do já citado Germânico, filho de Druso e sobrinho de Tibério, e as águias foram recuperadas, restaurando, ao menos em parte, o orgulho ultrajado de Roma, mas, mesmo assim, os números 17, 18 e 19 nunca voltaram a ser atribuídos a nenhuma outra legião. Também não houve reconquista definitiva dos territórios perdidos como resultado do Desastre de Varo; com isso, o Reno permaneceu como fronteira, e a Germânia romana limitou-se, daí em diante, a um pequeno território a oeste desse rio, incluindo partes das atuais Holanda e Bélgica, além da região alemã da Renânia, e tendo como principais cidades Maguntiacum (pronuncie Maguncíacum), hoje Mainz, e Augusta Treverorum, hoje Trier, onde ainda pode ser vista a imponente Porta Nigra ('Porta Negra'), edificação defensiva romana do século III.


Apesar da vitória obtida contra o exército mais poderoso do mundo, as ambições de Armínio de unir os germanos numa nação (da qual ele se faria rei) fracassaram por completo. As tribos só permaneceram lado a lado durante o tempo necessário para derrotar os romanos, retomando depois o seu costume ancestral de disputas territoriais, pilhagem mútua e guerras fratricidas; os primeiros progressos mais duradouros na direção de uma unificação da Germânia só seriam alcançados oito séculos depois, pelo franco Carlos Magno. Ainda assim, Armínio era um dos vultos históricos mais prezados pelos integrantes dos movimentos intelectuais e artísticos alemães que ganharam força a partir do fim do século XVIII, como o Sturm und Drang ('Tempestade e Ímpeto') e outros que o sucederam, todos marcados por um forte sentimento nacionalista, e que formariam o substrato cultural e filosófico para o surgimento do movimento Völkisch, que, por sua vez, teria como principal desdobramento a ascensão do nazismo. Entretanto, mesmo na Alemanha atual, Armínio possui status de herói, não obstante o fato de a vitória que o imortalizou ter sido alcançada por meio da mentira e da traição; talvez o pensamento por trás disso seja que invasores não merecem lealdade.

Ben Kane é uma amostra de quanta coisa interessante se publica mundo afora e não chega às estantes das livrarias brasileiras; felizmente, a editora portuguesa Top Seller decidiu investir nele, e o resultado foi esta edição de alta qualidade. Para os olhos cansados de um leitor acostumado a se horrorizar com os absurdos gramáticos que pipocam das páginas dos livros ambientados na Antiguidade publicados no Brasil, o maior mérito consiste em algo que, para os portugueses, é normal: como eles comumente já usam o pronome tu no dia a dia, também sabem como conjugar os verbos nessa pessoa, uma "arte" que, aqui no Brasil, perdeu-se completamente; sendo assim, não têm necessidade de ficar tentando recriar nenhuma "linguagem de época", o que as edições brasileiras fazem, quase sempre, de forma tão tosca e artificial. Há sutilezas que só quem já leu muitos livros em português europeu (ou estudou essa variante da língua) percebe: o você também é empregado, mas, em Portugal, esse é um tratamento um pouco mais formal, usado com indivíduos com quem não se tem maior proximidade; nós, brasileiros, nunca nos damos conta disso, mas você é uma contração de vossa mercê, que era um tratamento bastante cerimonioso. Entre os dois, existiu a forma de transição vosmecê. E, é claro, há uma série de palavras e expressões que, para nós, não são usuais (por exemplo, não se diz que alguém levou uma surra, e sim que "tomou uma tareia"), mas nada que uma rápida pesquisa na internet não resolva, e ampliar o vocabulário é sempre bom. Sem contar que quem, como eu, cresceu lendo livros de aventuras importados de Portugal, já sente carinho por esse linguajar pitoresco, que embalou tantos momentos empolgantes de nossas vidas de leitores. O texto do livro está quase perfeito; curiosamente, por alguma razão que não imagino, "romanos" ora é escrito com letra maiúscula, ora minúscula, mas, fora isso, não encontrei mais que três ou quatro pequenos erros de digitação. Um detalhe na sinopse da contracapa entrega que, pelo visto, em Portugal, assim como aqui, esses textos "periféricos" costumam ser preparados por pessoas diferentes das responsáveis pelo livro propriamente dito, e que, muitas vezes, não entendem muito do assunto: a sinopse fala em "ano 9 a. C.", em vez de 9 d. C., como se lê no miolo do livro e é o correto. Mesmo com a diferença brutal de nível cultural médio que existe entre brasileiros e portugueses, parece que lá, como aqui, também há essa tendência ingênua de pensar que, se o assunto é a Antiguidade, então todas as datas precisam ser obrigatoriamente a. C. Mas não é uma falha banal como essa que vai pôr a perder a excelência do livro, em todos os sentidos.

Por fim, para quem, como eu, gosta de metal, deixo duas dicas de "trilhas sonoras" perfeitas para dar ainda mais sabor à leitura de Águias em Guerra. Ambas são da banda canadense Ex Deo, e uma, chamada Teutoburg (Ambush of Varus), como o título já entrega, é diretamente inspirada no episódio. Essa é do segundo álbum dos caras, Caligvla, lançado em 2012. A outra é Legio XIII, do primeiro álbum, Romulus, de 2009; essa não tem relação direta com a batalha da Floresta de Teutoburgo, mas, pelo menos para mim, embala perfeitamente qualquer história cheia de ação protagonizada por legionários romanos, especialmente seu solo de guitarra, um dos mais empolgantes que já ouvi.

quinta-feira, março 21, 2013

Eu, Claudius, Imperador

Em seu clássico Declínio e Queda do Império Romano, Edward Gibbon define a lista oficial dos imperadores romanos como uma coleção completa de exemplos, tanto do mais alto grau de virtude quanto dos piores vícios de que os seres humanos são capazes (mais uma vez, estou citando de memória: sei que a frase não é exatamente assim, por isso não a pus entre aspas). E qualquer pessoa que haja estudado a história de Roma, mesmo que por simples curiosidade e sem nenhuma pretensão acadêmica, como este que vos escreve, concordará sem reservas com o célebre historiador britânico. Não deve surpreender a ninguém, portanto, que essa extensa e rica galeria do melhor e do pior do ser humano seja uma das mais interessantes fontes de assunto para um autor quando ele deseja escrever uma biografia, e não há de ser por outro motivo que várias biografias de imperadores romanos ocupam um lugar de destaque na literatura universal. De cabeça, no momento, lembro-me de César, de Max Gallo; Juliano, de Gore Vidal; e do belíssimo Memórias de Adriano, de Marguerite Yourcenar – sem dúvida, um dos livros mais artisticamente escritos que conheço. E, nessa seleta lista, é preciso reservar um lugar para Eu, Claudius, Imperador (I, Claudius), originalmente publicado em 1934, de autoria de Robert Graves (1895-1985), intelectual britânico polivalente: além de romancista, foi poeta, ensaísta e historiador. Sua obra mais famosa é provavelmente A Deusa Branca, um erudito mergulho na religião e no folclore dos antigos celtas.

Vi que I, Claudius ganhou há pouco tempo uma nova edição brasileira, por uma editora diferente e provavelmente numa nova tradução, mas o exemplar que possuo é da edição de 1983 da Abril Cultural, que tem um detalhe interessante a mais para nós, gaúchos: embora publicada em São Paulo, por essa editora lá sediada, essa edição saiu sob licença da nossa tradicional e querida Livraria do Globo, de Porto Alegre (que possuía sua própria editora e foi a primeira a publicar o livro no Brasil), e usa a mesma tradução, feita por ninguém menos que o nosso "poeta estadual", Mário Quintana, que por muito tempo trabalhou para a Globo como tradutor de inglês e francês. Numa nota logo nas primeiras páginas, Quintana esclarece que o estranho sistema de nomenclatura adotado apenas procura ater-se ao que o autor utilizara no original: nomes de pessoas são grafados em suas formas clássicas latinas, ou o mais próximo possível disso – Claudius em vez de Cláudio, Tiberius em vez de Tibério, e assim por diante; já com os topônimos, um tanto bizarramente, ocorre o inverso: usa-se França ao invés de Gália, Alemanha no lugar de Germânia... Pessoalmente, não gosto disso, primeiro porque tira muito do "sabor de época", prejudicando a imersão do leitor na narrativa, e, segundo, porque me parece uma excessiva simplificação das coisas: as antigas províncias do Império Romano não são sinônimos das nações modernas a que deram origem. Pode-se estabelecer uma equivalência aproximada, porém as fronteiras nunca serão exatamente as mesmas, e, quanto à identidade étnica e cultural, então, nem se fala. A Gália de dois mil anos atrás não é a mesma coisa que a França de hoje, e, a meu ver, não deveria ser chamada assim. Outros "modernismos" de linguagem que eu preferiria que não existissem são os do âmbito militar: Graves chama as legiões de "regimentos", e utiliza patentes modernas como capitão, coronel e sargento, que, é claro, não são as mesmas que eram usadas no exército romano. Mas, como devem ter notado, preferi colocar os "senões" logo no começo, porque, feitas essas ressalvas, I, Claudius é um estupendo livro.

Cláudio (10 a.C.-54 d.C.) foi o quarto imperador de Roma sem contar Júlio César, e teve a chance de observar de perto os governos de seus três antecessores, já que era sobrinho-neto de Augusto, sobrinho de Tibério e tio de Calígula. A dinastia a que todos eles pertenciam – e que foi a primeira a governar o Império Romano – passaria à História com o nome de Julioclaudiana, por ter-se originado da união de duas famílias da velha aristocracia romana: os Júlios e os Cláudios. Essa, por assim dizer, aliança, teve início quando Lívia Drusa, avó do nosso Cláudio, tendo-se separado do primeiro marido, casou-se com Augusto. Nunca encontrei muita informação sobre Lívia em livros de História, mas Graves retrata-a como extremamente maquiavélica e inescrupulosa, com enorme influência sobre Augusto – ele próprio um homem essencialmente honesto e benevolente, embora tenha, por vezes, eliminado adversários de forma arbitrária, quando acreditava que isso visava a um bem maior. Lívia, por outro lado, manipula, chantageia e manda assassinar sempre que acha que deve, sem qualquer contemplação.

Não causa surpresa, portanto, que Tibério, filho do primeiro casamento de Lívia, tenha visto, ao longo da vida, desaparecerem de forma conveniente todos os outros sucessores imaginados por Augusto, que, dessa forma, foi mais ou menos forçado a indicá-lo, apesar de, pelo menos na versão de Graves, não gostar muito do enteado. Lívia e Augusto não tiveram filhos, e ele, de seu casamento anterior, tivera apenas uma filha, Júlia. Ainda levaria séculos para o Império tornar-se uma "monarquia eletiva" (a expressão é de Gibbon), sistema que daria muito mais certo; por enquanto, Augusto precisava encontrar um sucessor em sua própria família, e, na falta de filhos homens, aventou como possíveis candidatos diversos de seus sobrinhos e netos – que, como vimos, foram morrendo um a um. Ele precisou, então, contentar-se com Tibério.

Ninguém deve censurar-se se, por acaso, se perder por completo em meio à árvore genealógica dos Julioclaudianos, que é complicadíssima: eu mesmo, que não sou propriamente um iniciante em História romana, fiquei confuso algumas vezes. Houve tantos casamentos políticos e reviravoltas na disputa pelo poder durante as décadas que antecederam o nascimento de Cláudio, que os adversários mais notórios também eram, não raro, parentes ou contraparentes; só como um exemplo ilustrativo, o próprio Cláudio, ao mesmo tempo em que era sobrinho-neto de Augusto, era também neto de Marco Antônio, o maior rival daquele (pois, quando os dois ainda eram aliados, Antônio houvera desposado Otávia, irmã de Augusto). Para completar, o casamento, que, para os romanos dos séculos anteriores, era coisa muito séria, nessa época já podia ser desfeito com uma facilidade ridícula, de modo que os membros da aristocracia e da família imperial casavam-se em média quatro ou cinco vezes ao longo da vida, com todas as complicações adicionais que isso acrescenta à tal árvore. Por fim, é preciso assinalar que, aparentemente, todos os homens dentro de um mesmo ramo familiar tinham nomes muito parecidos, de modo que era costume cada um ser comumente identificado por um "pedaço" do nome. Enquanto Tibério chamava-se Tiberius Claudius Nero Cæsar, Cláudio chamava-se Tiberius Claudius Drusus Nero Germanicus, e tinha um irmão mais velho chamado Nero Claudius Drusus Germanicus, conhecido por Germânico. O pai de ambos (filho de Lívia, irmão de Tibério) ganhara postumamente o agnomen de "Germânico", como homenagem prestada pelo senado por sua notável participação em campanhas militares contra as tribos da Germânia, e, como acontecia nesses casos, o agnomen foi incorporado formalmente ao nome, sendo, inclusive, transmitido aos descendentes. E não, Germânico não era o Nero em quem vocês estão pensando, embora ainda vão ouvir falar nele antes do fim deste post. Ufa!


Germânico, aliás, foi, desde a infância e até sua morte, o melhor amigo e o ídolo de Cláudio, e talvez tenha sido mesmo um dos melhores homens de seu tempo: valente, austero embora generoso, inflexível no cumprimento do dever, e de um patriotismo a toda prova, personificava de modo exemplar as velhas virtudes romanas. Era adorado por seus legionários e respeitado por todos os cidadãos de bem de Roma. Segundo relatos da época, era, ainda, um homem bonito e de extraordinário vigor físico. Além de ter ocupado, sempre de forma irrepreensível, diversos cargos políticos de importância, foi um general brilhante, obtendo, tal como seu pai, expressivas vitórias na Germânia, inclusive recuperando as águias de duas das três legiões que, sob o comando de Publius Quinctilius Varus, haviam sido massacradas na desastrosa batalha da Floresta de Teutoburgo, no ano 9 (para entender a importância moral que a recuperação das águias tinha para o exército romano, deem uma olhada aqui). Por ocasião da morte de Augusto, em 14, as legiões da Germânia chegaram a aclamar Germânico como imperador, e, se ele o quisesse, poderia ter marchado sobre Roma e tomado o poder – o povo o receberia de braços abertos, já que era muito mais popular que seu tio Tibério. Porém, movido por aquele senso inflexível do dever de que eu falava há pouco, ele mesmo pôs fim às pretensões de seus soldados, submetendo-se a Tibério, o sucessor legítimo. Depois de saber tudo isso sobre Germânico, não há mais como discordar do velho provérbio romano que diz que maçãs estragadas podem nascer até dos melhores ramos: Calígula (sim, aquele) era seu filho. Germânico morreu na Ásia Menor em 19, com apenas 34 anos de idade, oficialmente de doença, embora as suspeitas de envenenamento nunca tenham sido provadas falsas.

Germânico e Cláudio: ver os dois irmãos lado a lado era como ver o dia e a noite. Cláudio era tímido, manco, gago e meio surdo, e, embora tivesse uma inteligência aguçada, seus parentes – com exceção, novamente, de Germânico, que o amava e fez tudo o que pôde por ele – tinham-no na conta de atrasado mental. O que, no cômputo final, pode ter sido uma sorte: Cláudio sobreviveu à onda de assassinatos que vitimou muitos de seus parentes, primeiro sob a batuta de Lívia, depois de Tibério (afinal, para que alguém se daria ao trabalho de eliminar aquele "retardado inofensivo"?). Desde a infância interessou-se por História, e dedicou-se a ela durante décadas, tendo aprendido com alguns mestres notáveis: pelo menos dois historiadores célebres, Tito Lívio e Asínio Pollio, aparecem como personagens no romance, embora eu não tenha certeza se Cláudio de fato os conheceu pessoalmente. Não é improvável, já que eles eram figuras de destaque na sociedade, e ele, membro da família imperial.

Enquanto Cláudio escreve seus livros de História e observa os acontecimentos de sua posição pouco gloriosa, mas relativamente segura, a política em Roma envereda por caminhos que teriam enfurecido Júlio e Augusto. Tibério fora em tempos um combatente corajoso e um general capaz, que, se por seu gênio rabugento não era exatamente estimado por seus legionários, ao menos contava com o respeito e a confiança deles, já que em muitas ocasiões demonstrara saber como conduzi-los à vitória. Tampouco fez má figura nos cargos políticos e administrativos que ocupou – e, de tudo isso, só se pode concluir que inteligência e talento não lhe faltavam. Ao subir ao trono, porém, ele converteu-se na prova viva da veracidade de outro velho aforismo: aquele que diz que, para conhecer o verdadeiro caráter de um homem, basta dar-lhe poder. O mau humor que o distinguia desde a infância demonstrou ser apenas a faceta mais visível de uma personalidade lúgubre, paranoica, rancorosa e invejosa, defeitos que a idade só viria agravar. Não hesitou em usar suas prerrogativas de imperador e influência junto ao Senado para vingar-se de antigos desafetos – coisa que seu pai adotivo Augusto classificava como "confissão pública de fraqueza, mesquinhez e covardia" –, e mais tarde patrocinou uma "caça às bruxas" estimulando a delação: qualquer um que houvesse (ou fosse suspeito de haver) falado contra o imperador ou "blasfemado" contra a memória de Augusto (a quem, por esse tempo, haviam deificado) poderia ser acusado, submetido a um simulacro de julgamento e, em pouquíssimo tempo, executado, caso em que seus bens eram confiscados, cabendo ao delator a quarta parte... Como seria de se esperar nessas condições, formou-se logo uma classe de delatores profissionais, e ninguém mais podia ter a certeza de continuar vivo até a semana seguinte. Como se não bastasse, Tibério era excessivamente supersticioso, mesmo para os padrões daquela época, quando todo mundo o era em algum grau: vivia cercado de magos, astrólogos, adivinhos e charlatães de toda espécie. A pessoa que quisesse livrar-se de outra tinha apenas que subornar um dos feiticeiros de Tibério para deixar cair no ouvido do imperador que fulano conspirava contra ele: era questão de dias que a cabeça do infeliz rolasse. Talvez o aspecto mais dramático de tudo isso fossem os suicídios. Muitos homens até então respeitados – cavaleiros e senadores idosos, veneráveis, com décadas de bons serviços prestados a Roma –, ao perceberem que não havia salvação, tiraram a vida com as próprias mãos, o que, para a cultura romana, era uma saída honrosa, preferível ao aviltamento de uma execução pública. Além disso, assim resguardavam os direitos de seus herdeiros, já que os bens que seriam confiscados com a execução não podiam sê-lo em caso de suicídio. Mas, em resumo, os últimos anos de Tibério foram um tempo de terror.

A parte bizarra é que, se é que um governante pode celebrizar-se por ter sido ao mesmo tempo um tirano sanguinário e um administrador sábio, foi isso o que Tibério fez. Manteve as boas práticas iniciadas por Augusto, lidou habilmente com a economia e com os conflitos nas fronteiras do Império, e nomeou governadores capazes para as províncias. O resultado foi que, enquanto a capital vivia a situação absurda já descrita, as províncias, e mesmo a maior parte da Itália, tinham dias de prosperidade, embora isso pouco ajudasse as vítimas de Tibério, e não servisse de consolo a seus parentes. Não admira que a notícia da morte do imperador, em 37, tenha sido recebida com festa nas ruas e grandes esperanças em seu sucessor. Pobre Roma: esse sucessor foi Calígula.

"Ora", pensaram por certo os romanos, "ele é filho de Germânico. Não pode ser tão diferente dele, pode?" Podia. Seu nome, aliás, era Caius Julius Cæsar Augustus Germanicus. Por conta da carreira do pai, passou boa parte da infância em acampamentos militares, principalmente na Germânia; os soldados o adoravam e consideravam uma espécie de mascote. Certa vez, num desses acampamentos, alguém, por brincadeira, fez para ele um par de sandálias como as usadas pelos legionários, adaptadas ao tamanho de seus pés infantis, e Caio gostou tanto que, daí por diante, recusava-se a calçar qualquer outra coisa. Em latim, esse tipo de sandália chama-se caliga, no diminutivo caligula; o apelido com que o jovem imperador ficaria tristemente célebre significa, portanto, "sandalinhas".

Se Tibério era paranoico, Calígula era um doido varrido. Se sempre o foi ou se o desarranjo mental deveu-se às sequelas de uma misteriosa "febre cerebral" que o acometeu meses depois de assumir o Império, historiadores discutem até hoje; em todo caso, a primeira impressão que ele deu foi de que seria um governante benévolo. Chamou exilados de volta e limpou os nomes de muitos dos que haviam sido condenados por traição durante o governo de Tibério, devolvendo às famílias os bens confiscados. E, é claro, não deixou de oferecer os espetáculos populares de praxe. O primeiro sinal visível de que o imperador não estava batendo bem (e que, coincidência ou não, manifestou-se logo após haver convalescido da tal febre) foi perder todo o senso de medida em relação a esses eventos: passou a promover festivais que duravam semanas, depois meses, com corridas de quadrigas e combates de gladiadores todos os dias, a população obrigada a comparecer. Daí em diante, as coisas só pioraram. Calígula esbanjava dinheiro de tal maneira que o tesouro, que Tibério deixara abarrotado, ficou pela metade em questão de meses. Obrigou um governador de província a separar-se da mulher para que ele, Calígula, pudesse casar com ela. Conduziu um exército ao litoral norte da Gália e ordenou um ataque contra o mar, alegando que Netuno o teria desafiado. Tentou nomear seu cavalo cônsul. Ao oficiar um sacrifício durante uma festa religiosa, bateu com o martelo cerimonial no sacerdote em vez de no animal que estava no altar. Todo imperador, inevitavelmente, tem seus aduladores, mas, em se tratando de Calígula, até puxar-lhe o saco era perigoso, pois seu comportamento era totalmente imprevisível: num dia podia cumular um "amigo" de honrarias e ricos presentes, para no dia seguinte mandar matá-lo sem o menor motivo. Tudo isso para não mencionar as supostas relações incestuosas com todas as suas três irmãs. Hoje em dia, estudiosos recomendam dar um desconto para algumas dessas histórias; parte das insanidades atribuídas a Calígula pode ser intriga da oposição, já que a maioria das informações que temos sobre seu governo foi escrita por seus inimigos. Em todo caso, parece ser fato que havia um bocado de gente que o odiava. Acabou assassinado, no ano 41, aos 29 anos de idade, por uma Guarda Pretoriana já farta de seus desmandos. Isso deixou o "pobre tio Claudius", como Calígula o chamava, como único membro masculino adulto sobrevivente da família imperial, de modo que as forças que haviam eliminado o imperador fizeram o óbvio: puseram-no no trono para que servisse de fantoche. Mas ele não seria um fantoche – longe disso.


Durante os quatro anos que seu terrível sobrinho permanecera no poder, Cláudio, sabiamente, esforçara-se por reforçar a imagem de débil mental que já tinha diante da corte graças a sua avó Lívia, que jamais escondera de ninguém seu desprezo pelo neto. Exagerara a gagueira e portara-se como um perfeito idiota em toda situação ridícula em que Calígula propositalmente o colocava. Embora haja exercido algumas funções políticas durante o principado do sobrinho – que, provavelmente, indicava-o mais por zombaria que por algum outro motivo –, somente ao chegar ao trono ele teve oportunidade de mostrar do que realmente era capaz.

O fato é que Cláudio, de idiota, nunca teve nada. Durante os 13 anos seguintes, provou ser mais digno de vestir a púrpura imperial do que outros que nela pareceram mais majestosos, antes e depois dele. Soube mostrar-se prudente, sagaz e, quando necessário, implacável. Foi durante seu principado, por exemplo, que a Bretanha foi verdadeiramente conquistada, pois a invasão liderada por Júlio César um século antes só tivera valor publicitário, não consolidando o domínio romano sobre a ilha. Cláudio também ampliou e melhorou a malha de estradas pelo Império, assegurou alguns direitos aos não-cidadãos (isto é, escravos, libertos e estrangeiros) e permitiu que os nativos das províncias tivessem seus representantes no Senado. Tomou, ainda, medidas contra a corrupção nos órgãos do governo e para agilizar as decisões da justiça. Isso tudo fez dele um imperador querido pelo povo, que até relevava algumas excentricidades suas, como na ocasião em que baixou um édito autorizando a todos a livre, hã... flatulência em qualquer lugar e momento (incluindo banquetes oficiais e cerimônias solenes), depois que ouviu de seu médico que ficar prendendo os gases fazia mal à saúde.

Sua vida pessoal/conjugal foi mais problemática. Antes de tornar-se imperador, Cláudio já passara por dois ou três casamentos (as fontes divergem), todos arranjados, é claro, e nenhum deles feliz. Por ocasião de sua ascensão ao trono, estava casado com Valéria Messalina, a quem, pelo menos na versão de Graves, ter-se-ia unido por sugestão de Calígula, e que seria uma parenta distante de ambos. Cláudio estava apaixonado por ela, que tinha apenas 15 anos (ele já estava nos seus 50) e era belíssima; ela não partilhava o sentimento, mas deu-lhe uma filha, Cláudia Otávia, e um filho, que levou o nome de Britânico em homenagem à conquista do pai. Com o tempo, a imperatriz revelou-se uma grande libertina (ao ponto de "messalina" ter virado substantivo comum em várias línguas, com o significado de mulher devassa ou imoral), que, não contente em ser infiel ao marido, conspirava constantemente contra ele com seus vários amantes. Cláudio acabou ordenando sua execução, juntamente com o amante da vez, Caio Sílio, em 48.

Seu último casamento foi com sua sobrinha Agripina, irmã de Calígula e digna herdeira de sua bisavó Lívia: primeiro conseguiu, por meios que não sabemos, que Cláudio adotasse seu filho Lúcio Domício e o nomeasse seu herdeiro, preterindo Britânico; depois, para garantir, deu um fim no rapaz (em 55). Não poucos biógrafos de Cláudio, aliás, também atribuem a ela a morte do próprio imperador, um ano antes da do filho, embora seja verdade que ele já estava com 64 anos – idade considerável para os padrões da época – e que sua saúde jamais fora das melhores. A propósito: Lúcio Domício, ao ser adotado por Cláudio, passou a chamar-se Nero Claudius Cæsar Augustus Germanicus, e a ser chamado comumente de Nero. Sim, O Nero – eu disse que ele ainda apareceria antes do fim do post...

Na verdade, I, Claudius, apesar do título que recebeu na tradução, não chega a mostrar o protagonista como imperador: termina com o assassinato de Calígula e a coroação de Cláudio. A continuação da história está em Claudius the God and his Wife Messalina (Claudius, o Deus, e Messalina), também publicado no Brasil pela Globo. Recomendo ambos a todos os apaixonados pela Antiguidade clássica como eu, pois, de uma forma muito agradável de acompanhar, narram uma vida que vale a pena conhecer – e da qual há algumas lições a tirar.

sábado, fevereiro 12, 2011

O Imperador - Os Deuses da Guerra

E eis, finalmente, a conclusão da grandiosa série O Imperador! Mais uma vez, Conn Iggulden tomou certas liberdades em prol de seus objetivos literários, o que não tira o valor de sua obra como uma maneira envolvente e agradável de adquirir conhecimento histórico: bastará uma consulta a qualquer biografia resumida de Júlio César para que um leitor de habilidade mediana consiga acertar as coisas e ficar com uma noção muito boa de como foi a vida de um dos homens mais extraordinários que já pisaram neste planeta.

César, à frente de cinco legiões que o idolatram, acaba de transformar a rica e rebelde Gália na mais nova província romana, quando recebe a notícia de que o velho Crasso, que costumava ser o fiel da balança no delicado equilíbrio de poder entre ele e Pompeu, acaba de morrer. Pompeu, algum tempo antes, foi investido pelo Senado com o poder de ditador, a fim de que pudesse combater o crime organizado e salvar Roma do caos que ameaçava tragá-la - o que, é preciso reconhecer, fez com muita competência. Só que, passado o perigo, recusou-se a largar o osso, e é ainda na qualidade de ditador que ele envia a César a ordem de deixar suas legiões na Gália e retornar a Roma sozinho. E César, é claro, sabe que fazer isso significaria morte certa, de modo que decide desafiar a autoridade de Pompeu e marchar para o sul com a maior parte de seu exército, deixando na Gália apenas um número suficiente de homens para que a paz seja mantida. Há um episódio que Iggulden não narra, mas é um dos mais famosos da trajetória de César: ao chegar às margens do riacho conhecido como Rubicão, e ciente de que atravessá-lo levando o exército será considerado por Pompeu como um ato de guerra civil, César atravessou, declarando: "Alea jacta est" ('A sorte está lançada').

Guerra civil. Eis uma coisa que vai contra tudo o que fez Roma grande. Os gregos poderiam ter-se antecipado aos romanos e se tornado os senhores de um império que dominaria o mundo conhecido durante séculos (Alexandre, ao morrer, deixou tudo pronto para isso), se não fosse pelo fato de gostarem tanto de lutar uns contra os outros e por sua incapacidade de se unirem em torno de objetivos comuns. Os romanos levaram a melhor justamente porque se mostraram capazes disso - e, com o tempo, também estenderiam o mesmo sentimento aos não-romanos, fazendo de vários outros povos parte tão vital do Império quanto eles próprios. César sabia muito bem da primeira parte, e provavelmente era um dos poucos homens de sua época que também anteviam a segunda, e mesmo assim encarou a guerra civil; pode tê-lo feito por ambição pessoal ou por acreditar sinceramente que podia dar a Roma um futuro que Pompeu não podia, mas o mais provável é que tenha sido por um misto das duas coisas. De todo modo, voltando ao livro, ele marcha sobre Roma com suas legiões; Pompeu, inferiorizado em número de homens, foge para a Grécia, acompanhado pela maioria dos senadores, e assume o comando das legiões lá estacionadas, o que o coloca em vantagem numérica. Feito isso, espera pelo ataque de César, que, sem a menor dúvida, virá.

César toma posse de Roma sem derramar uma gota de sangue - o povo o recebe alegremente e o elege cônsul pela segunda vez, além de eleger um novo Senado, o que automaticamente coloca fora da lei a ditadura de Pompeu: para a maioria do povo da capital, César é seu governante legítimo. Mas ocorre algo desagradável: quando César indica Marco Antônio para o segundo posto de cônsul (eram sempre dois), Brutus fica indignado, considerando que Júlio deveria partilhar o poder com ele. Na verdade, como César explica a Marco Antônio (um tanto tarde demais: deveria ter explicado a Brutus, antes de fazer a indicação), não se trata de chutar ninguém para escanteio, mas simplesmente de distribuir as funções de acordo com os talentos de cada um. Marco Antônio é o homem certo para governar Roma enquanto César vai à Grécia haver-se com Pompeu - e Brutus, como o general formidável que é, será uma peça essencial para alcançar a vitória. Ou melhor, seria.

Brutus, cansado de dedicar a vida a serviço de um líder que ele acha que nunca vai reconhecer seu verdadeiro valor, decide ir para a Grécia e colocar-se sob as ordens de Pompeu - mas, naturalmente, é recebido com desconfiança, pois todos conhecem sua fama e sabem que sempre foi um dos partidários mais leais de César; por tudo o que Pompeu e seu lugar-tenente, Labieno, sabem, poderia ser um espião. E aqui está mais uma liberdade do autor: Brutus torna-se amante de Júlia, filha de César e esposa de Pompeu, que está na Grécia com ele, já tem um filho crescido e acaba engravidando do segundo - que pode muito bem ser de Brutus. Na verdade, nessa época Pompeu já estava casado com outra mulher, pois Júlia morreu no parto do primeiro filho, quando César ainda estava na Gália. É mera licença artística e, de certa forma, justiça poética, como se Brutus tivesse pensado: "Júlio 'pegou' minha mãe, então por que não posso 'pegar' a filha dele?"

O quanto Brutus era estimado por César fica evidente no fato de que sua deserção para o lado de Pompeu é histórica, como também o é o perdão oferecido por seu antigo comandante. Certo, César deu anistia a todos os que lutaram contra ele na guerra civil, mas uma coisa é perdoar soldados que estavam do outro lado desde o início, cumprindo seu dever para com seu comandante legítimo, e outra bem diferente perdoar um traidor. Nas legiões, a pena para a traição sempre foi a morte, e César não era o tipo de homem que tivesse por costume abrir exceções para favorecer amigos. O autor desenha a personalidade de Brutus de uma maneira bastante complexa e, pode-se dizer, humana, e, como tal, cheia de contradições. Ele é essencialmente um homem decente, mas não consegue esconder de si mesmo que as motivações que o levam a participar do assassinato de seu velho amigo não são somente patrióticas: ao zelo pela manutenção da República soma-se, sim, uma boa dose de inveja.

Iggulden vai empilhando gradualmente os motivos que levariam à vitória final de César na guerra civil, apesar de estar enfrentando um general quase tão astuto quanto ele próprio, mais velho e experiente, e com a vantagem dos números (Pompeu comandava onze legiões, cerca de 55 mil soldados, contra as sete de César, 35 mil; praticamente dois terços de todo o exército romano estavam envolvidos). O que acaba ditando o resultado parece ser o fato de que, enquanto Pompeu hesita, César toma decisões rápidas. Também pesa o uso ardiloso da propaganda: muitos dos legionários sob o comando de Pompeu são de opinião que César é mesmo o legítimo governante de Roma e de que Pompeu deveria submeter-se a ele. Deserções ocorrem e são punidas com brutalidade exemplar, o que vai minando mais e mais a confiança e a lealdade dos soldados de Pompeu, já insatisfeitos por estarem lutando contra compatriotas.

A guerra civil tem seu lance final quando, derrotado em Farsália (outras fontes dão Farsalos), Pompeu foge para o litoral, de onde embarca para o Egito - e é ao partir em sua perseguição que César, sem saber, está rumando para a última grande aventura de sua vida, aquela sobre a qual mais livros foram escritos e mais filmes rodados. Talvez tenha sido justamente por isso que Conn Iggulden optou por narrar essa parte da história de uma maneira tão resumida: fiquei surpreso ao perceber que já lera dois terços do livro sem que César houvesse posto os pés no Egito ainda. E dou-lhe razão: a vida de César foi de tal modo intensa e atarefada, que, a menos que o autor quisesse chegar a um quinto e, quiçá, a um sexto volume, era necessário ser enxuto em alguma parte. Melhor que fosse essa parte, já que não faltam opções a quem quiser conhecê-la em mais detalhes: basta ler uma biografia de Cleópatra - existem várias, algumas delas muito boas. Pela mesma razão, embora eu mesmo pudesse tecer diversos comentários sobre a relação do grande general e cônsul romano com a jovem rainha do Egito - relação que foi um retrato fiel do papel que suas respectivas civilizações representavam no mundo da época -, prefiro deixar isso para outra ocasião, pois trata-se de tema que merece mais do que umas poucas palavras. Em vez disso, meus dedos estavam coçando para escrever sobre as consequências dramáticas da traição de Brutus (o que já fiz) e sobre o perfil de Otaviano. Vamos a isso...

Como citei de passagem no comentário de A Morte dos Reis, Iggulden optou por criar uma proximidade maior entre Júlio César e Otaviano - que, aliás, só passaria a ser chamado assim depois de sua adoção por César: seu nome original era Caio Otávio Turino; com a adoção, passou a chamar-se Caio Júlio César Otaviano, ou seja, o nome igual ao do pai adotivo, acrescido do "Otaviano" para distinguir os dois e lembrar que, por nascimento, ele pertencera à família dos Otávios. Porém, por comodidade, continuarei a chamá-lo de Otaviano.

Historicamente, Otaviano era neto de uma das irmãs mais velhas de César, nasceu em 63 a.C., quando o próprio César estava com cerca de 37 anos de idade e começava a ficar famoso, e estava na adolescência - um jovem extremamente inteligente e promissor - quando o tio-avô, não tendo (até então) tido nenhum filho homem, decidiu adotá-lo. Estava com 18 anos quando César foi assassinado, empenhou-se ferozmente em caçar e punir seus assassinos, e foi um dos principais personagens no cenário político dos anos seguintes, acabando, em 27 a.C., por sagrar-se imperador, com o nome de César Augusto. Aliás, foi o primeiro imperador de Roma.

Conn Iggulden quis que Otaviano fosse um dos companheiros de César durante seus longos anos de campanhas militares, e, para tanto, começou por alterar o grau de parentesco e a diferença de idade: o sobrinho-neto transformou-se em um primo apenas alguns anos mais jovem. Além disso, o perfil do personagem também mudou: na série, Otaviano é um perfeito guerreiro romano, um espadachim excepcional, treinado por Rênio e Brutus. Comanda uma legião e, a partir da deserção de Brutus, também se torna o líder dos extraordinarii, a cavalaria de César. O verdadeiro Otaviano não era guerreiro de forma alguma: apenas tangenciou o serviço militar e talvez nunca tenha participado diretamente de uma batalha - eis um ponto em que não puxou a seu destemido tio-avô, que nunca deixou de lutar ao lado de seus soldados. O que não quer dizer que fosse um covarde: como diz Cômodo no filme Gladiador, existem diferentes formas de coragem. E de passagem, é sempre bom lembrar que Otaviano não se notabilizou entre os imperadores apenas por ter sido o primeiro: esteve entre os quatro ou cinco melhores durante os 500 anos nos quais Roma teve imperadores.

Tive a impressão de que os últimos dias de César foram narrados de uma maneira simplificada, como se o autor não quisesse se estender muito mais - o que é compreensível, ao fim de uma história de mais de 1600 páginas. Depois de ajudar Cleópatra a tomar o poder, César vive um caso de amor com ela; tudo indica que ela o tenha seduzido por interesse, mas depois acabado apaixonada de verdade. É Cleópatra quem dá a César o único filho homem que ele terá. É histórico que César levou-a a Roma ao voltar, talvez pretendendo divorciar-se de sua esposa, Calpúrnia, e oficializar o enlace, o que uniria os dois impérios, mas não viveu o suficiente para isso. O episódio em que Marco Antônio tenta colocar uma coroa na cabeça de César aparece aqui de modo muito diferente do que eu conhecia, e as motivações por trás dele, muito diferentes das que eu imaginava. Na narrativa de Iggulden, o próprio César pede a Antônio que venha com a coroa no momento de seu triunfo, e tira-a da cabeça desapontado quando percebe que o povo não gostou nem um pouco da ideia (sempre a velha prevenção contra reis e realezas, passada de pai para filho entre os romanos desde os tempos do domínio etrusco). Sempre acreditei, e ainda acho mais provável, que a ideia tivesse sido de Marco Antônio e outros, e que César houvesse se recusado a ser coroado justamente porque sabia que isso criaria antipatia entre a população e daria munição a seus opositores, que já adoravam compará-lo aos antigos e tirânicos reis etruscos, derrubados pela rebelião que instaurou a República.

Quanto ao assassinato, esse narra-se em poucas páginas, chegando a parecer estranho que seja uma passagem tão breve a pôr fim a uma história tão longa, o que imagino que esteja certo: quem ouviu a notícia deve ter experimentado uma sensação de absurdo. Como podia um homem que fizera tantas coisas grandiosas, durante tanto tempo, desaparecer assim, de uma hora para outra? Quando generais romanos eram homenageados com triunfos, um sacerdote os acompanhava na carruagem que os levava, com a tarefa de dizer-lhe a intervalos regulares: "Lembra-te de que és mortal". César foi lembrado desse fato da maneira mais implacável possível: apesar de tudo o que fora e fizera, não podia haver dúvida de que continuava a ser mortal, pois não escapou à ação do caos inerente que rege a existência humana - depois de sobreviver a tantas batalhas, foi morto por pessoas em quem confiava, num lugar que deveria ser seguro.

Sei que já disse ou dei a entender isso várias vezes durante os últimos meses, mas não é possível concluir sem dizê-lo de novo: O Imperador é uma grande e maravilhosa série, que recomendo sem restrições a quem, como eu, ama o mundo antigo greco-romano, ou simplesmente gosta de biografias bem escritas... além de não se intimidar com leituras extensas! Conn Iggulden finaliza a nota histórica deste último volume dizendo que "nos próximos anos posso ter de escrever uma história do que ocorreu depois do assassinato". E sem dúvida deveria fazê-lo: a vida de César deu início a um grande ciclo, que sua morte não encerrou. Personagens como Otaviano, Brutus, Marco Antônio, Cleópatra e muitos outros ainda realizariam muitos feitos dignos de serem narrados e teriam papéis fundamentais no nascimento do mais duradouro e influente império que o mundo ocidental já viu.