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quinta-feira, março 23, 2023

O Gênio do Crime

Devo meu primeiro contato com a obra de João Carlos Marinho (1935-2019) ao meu colega e amigo Fábio, que estudou comigo da quinta à oitava série, lá na segunda metade da década de 80, e isso aconteceu de um jeito muito legal. Sempre fui o "leitor da turma", talvez o único entre 30 e poucas crianças que realmente lia por prazer. Como o Fábio e eu já tínhamos essa camaradagem e conversávamos sobre tudo, eu naturalmente comentava com ele sobre as histórias que estava lendo ou havia lido, falava sobre como ler é legal, e, com o tempo, isso despertou sua curiosidade e fez com que ele também começasse a ler. Depois que terminamos o ensino fundamental eu o vi poucas vezes, e agora faz muitos anos que não tenho notícias dele; espero que tenha mantido o hábito, e, se assim for, posso somar isso ao pequeno rol das coisas boas que fiz na vida. Porém, na época tive uma recompensa mais imediata e mais concreta: uma vez mordido pelo bicho da leitura, o Fábio também começou a fuçar a biblioteca da escola, e eventualmente me dava dicas de coisas interessantes com as quais eu ainda não havia topado. Foi dessa forma que vim a conhecer pelo menos dois nomes-chave da recente literatura infanto-juvenil brasileira: Pedro Bandeira, com seu excelente A Droga da Obediência, que se tornaria o piloto da aclamada série Os Karas, e o próprio João Carlos (ou J. C.) Marinho, com O Gênio do Crime.

E O Gênio do Crime começa falando sobre uma coisa que marcou e ainda marca muitas infâncias: álbuns de figurinhas. É claro que eles existem até hoje, mas, embora possa ser só impressão minha, me parece que antigamente esse filão era bem mais explorado, talvez porque a molecada de décadas passadas não tivesse à disposição tantas opções de diversão quanto as crianças de hoje. Havia até editoras cuja principal área de atuação era a criação de álbuns. Eu mesmo nunca fui um dos maiores adeptos desse hobby, que me lembre tive dois álbuns durante toda a infância, um de bichos e outro dos personagens da Disney, mas lembro que todo ano saíam vários, a maioria com repercussão modesta, mas havia sempre um ou dois que viravam febre entre a garotada. Alguns álbuns eram destinados às crianças em geral, enquanto outros visavam claramente os meninos ou as meninas (hoje em dia não faltaria um imbecil lacrador para "problematizar" isso). Os álbuns de futebol, por exemplo, eram território dos meninos, e um deles (fictício, é claro) é o mote para esta aventura.

É preciso ter em mente que o livro foi publicado originalmente em 1969, antes da promulgação da lei 5.768, de 1971, que proibiu a realização de concursos com distribuição de prêmios vinculados a coleções de figurinhas. De fato, nos álbuns que eu tive, vinha impressa na contracapa a informação de que todas as figurinhas (que o texto chamava de "cromos") eram fabricadas e distribuídas em quantidades iguais, não havendo, portanto, "figurinhas difíceis", e também a de que o preenchimento do álbum não dava direito a quaisquer prêmios. No livro, um álbum de figurinhas de futebol se tornou mania entre os garotos, e, além da curtição de colecionar, há também um concurso que oferece a quem completar a coleção um conjunto de camisas do time favorito e uma bola oficial – coisas que os meninos da época, e desconfio que também muitos dos de hoje, matariam para ter. O garoto Edmundo, como todo mundo (hehehe) está fazendo de tudo para completar seu álbum, e já faz muito tempo que só lhe falta uma figurinha, a do jogador Rivelino, um dos craques mais admirados daquela época que também foi a de Pelé, Garrincha e outras lendas. É quando seu amigo Pituca vem com a informação de que há um cambista no centro de São Paulo que vende as figurinhas difíceis, naturalmente que por um valor muito superior ao de "mercado". Dessa forma Edmundo completa o álbum e, em companhia de Pituca, vai até a fábrica de figurinhas para reclamar seu prêmio – e encontra lá um ajuntamento de garotos que vieram com o mesmo objetivo, só que os prêmios não estão sendo entregues, o que gera tanta revolta que acaba num quebra-quebra. A fábrica está para ser incendiada pelos moleques enfurecidos, e a coisa só não chega a vias de fato graças à intervenção de Edmundo, que convence os outros a exigir os prêmios pelas vias legais.

Dias depois, Edmundo recebe em casa a visita do dono da fábrica, seu Tomé, que lhe conta seu drama: há uma quadrilha de falsários fabricando réplicas perfeitas das figurinhas difíceis e vendendo-as por altos preços para a garotada. Com isso, a quantidade de álbuns cheios está atingindo patamares absurdos, e ele, na obrigação de dar os prêmios prometidos, está rapidamente se aproximando da falência. Seu Tomé viu, da janela de seu escritório, o início de tumulto na frente de sua fábrica, e viu também como Edmundo convenceu os outros a desistir do vandalismo e fazer as coisas dentro da lei. Impressionado com a coragem e a presença de espírito do garoto, o industrial vem pedir a ele que tente descobrir a fábrica clandestina, já que, como diz, figurinhas são coisa que pertence ao mundo das crianças, e um adulto investigando despertaria suspeitas. É claro que os pais de Edmundo vetam a ideia na hora, mas o garoto não resiste à tentação de uma aventura detetivesca batendo em sua porta, e decide ajudar mesmo sem o consentimento deles. Ao seu lado estão Pituca e o Bolacha, também conhecido como "o gordo". E o gordo… bem, é o gordo.


Quem começa a ler O Gênio do Crime tem a impressão de que Edmundo vai ser o herói, e é fato que, nas partes da aventura que envolvem ação, que exigem coragem e agilidade, ele é o membro da turma que se sobressai; o Bolacha, por outro lado, tem outra coisa: miolos. Pituca ajuda, mas é basicamente um papagaio-de-pirata na história, já que não é tão arrojado quanto Edmundo e muito menos tão esperto quanto o gordo.

Pois não é por acaso que a série de livros que cresceu a partir de O Gênio do Crime, e da qual Marinho deixou 13 volumes, não se chama As Aventuras da Turma do Edmundo, e sim As Aventuras da Turma do Gordo. Esse personagem sem nome, conhecido apenas pelos apelidos Bolacha, Bolachão ou "o gordo" (sem maiúscula) é o que realmente movimenta as tramas. Vendo com os olhos de hoje, é mais ou menos claro que, se ele fosse uma pessoa real, diríamos que sofre de um grau leve de autismo: distraído, volta e meia está com a cabeça longe, como num trecho impagável em que todos estão discutindo o caso em investigação, exceto o gordo, que está com o olhar parado e não abre a boca. Quando interpelado, nem ele parece saber direito no que estava pensando: "acho que era numa vaca que tem na fazenda do meu pai". Quando resolve raciocinar, porém, ele é brilhante, tanto que demonstra ser o único capaz de quebrar o sofisticado esquema de despistamento que o líder dos falsários (o tal gênio do crime do título) arquitetou para impedir a localização de sua fábrica clandestina a partir dos cambistas que vendem as figurinhas. Bolacha consegue deixar para trás até mesmo Mr. John Smith Peter Tony, renomado detetive escocês que também está envolvido na investigação.

O Gênio do Crime é o tipo de livro que, depois de ter lido na infância ou adolescência, você tem vontade de apresentar aos seus filhos (eu certamente teria essa vontade, caso tivesse filhos). Até a pontuação desleixada contribui para o estilo coloquial, e o resultado é tão bom que eu, sempre bastante chato quando se trata de correção de texto em livros, consegui fechar um olho para essa característica, de tão agradável que flui a leitura. Uma aventura para garotos, protagonizada por garotos, cheia de boas ideias e narrada com uma baita eficiência… Exigir ainda mais que isso deste pequeno livro seria muito injusto, mas o fato é que sim, ele oferece mais: um vislumbre de como era a infância em São Paulo na década de 60 – muito diferente da de hoje, e isso é fato em São Paulo como no resto do mundo. Destaque para o jogo conhecido como "abafa" ou "bafo", que consistia em colocar figurinhas no chão, com a face para baixo, e tentar virá-las com tapas; como as próprias figurinhas eram a aposta envolvida, esse era outro meio do qual os garotos dispunham para tentar conseguir as que faltavam em seus álbuns. Cheguei a ver isso quando eu ainda era bem pequeno, mas pouco depois, lá por meados da década de 80, as figurinhas passaram a ser autocolantes, o que foi prático para os colecionadores, mas também condenou o jogo de abafa ao gradual esquecimento, já que as novas figurinhas eram mais rígidas e pesadas, difíceis de virar. E a garotada de hoje, provavelmente, nem sabe que houve um tempo em que as figurinhas não eram autocolantes, tal como pensam que a TV já foi inventada com o controle remoto. O tempo passa mesmo, não tem jeito.


Para concluir, como de costume, um pouco de informação prática. O exemplar que tenho (comprado em sebo, como boa parte da minha biblioteca) é da edição do Círculo do Livro, que inclui também O Caneco de Prata, uma "aventura surrealista" na definição do autor, que trata de um campeonato de futebol entre escolas, narrado de forma… bem… surrealista, enquanto paralelamente também explora a paixão do gordo por Berenice, uma menina que ele conheceu em O Gênio do Crime. Curiosamente, como vocês talvez consigam distinguir na imagem do início deste post, e por razões que desconheço, essa edição do Círculo do Livro grafou o nome do autor como João Carlos Marinho Silva, embora ele sempre tenha assinado suas obras como apenas João Carlos Marinho – e fica ainda mais difícil de entender se levarmos em consideração que seu nome completo era João Carlos Marinho Homem de Mello, sem "Silva" nenhum. Todas as Aventuras da Turma do Gordo estão disponíveis em volumes individuais pela editora Global, que também oferece um box contendo a "saga" completa. Se vocês estiverem procurando por bons livros para dar de presente às crianças ou pré-adolescentes das suas famílias, ou simplesmente quiserem revisitar suas próprias infâncias por algumas horas, essa é uma ótima pedida.

sexta-feira, novembro 21, 2014

Em Nome do Mal

Devo começar confessando que romance policial nunca ocupou um lugar no "top four" de meus gêneros preferidos de leitura, que, embora eu nunca tenha pensado muito a respeito, é provavelmente formado por fantasia, ficção científica, ficção histórica e horror, não necessariamente nessa ordem (eu não saberia em que ordem colocá-los, na verdade) e pelos crossovers possíveis entre esses gêneros. Quanto à ficção policial, devo ter lido no máximo dois ou três livros desse tipo na vida; não sei por que, mas o gênero nunca me empolgou de verdade. Mesmo em se tratando de um autor de que gosto, como Sir Arthur Conan Doyle, merecidamente considerado um gigante da ficção policial por ter criado Sherlock Holmes, foi a seus contos de terror que dediquei atenção de forma preferencial. Tenho duas das aventuras de Holmes na minha estante, esperando a vez – mas o fato de já estarem esperando há um bom tempo, enquanto vários outros livros foram lidos assim que chegaram, deve ter algum significado.

Sendo assim, é preciso procurar uma explicação para o fato de que Em Nome do Mal, de autoria do (para mim) desconhecido escocês James Oswald, tenha me atraído. Provavelmente foi porque a capa e o título apontavam mais para uma obra de terror do que policial, e porque, ao pegá-lo e fazer aquele reconhecimento básico que todo leitor sabe como é (contracapa, orelhas, seguidas de uma folheada aleatória e da leitura de pequenos trechos em qualquer lugar onde os olhos batam), a impressão foi a de que o que encontraria seria um crossover entre os dois gêneros, o que de fato é o caso... De certa forma. A ideia soou interessante e um tanto inusitada, pois, embora vários escritores consagrados de literatura policial também tenham se aventurado em histórias sobrenaturais (e vice-versa: não esqueçamos Edgar Allan Poe!), mesmo esses parecem considerar os dois tipos de histórias como compartimentos estanques dentro de sua obra. Talvez isso aconteça porque a ficção policial, como gira em torno de investigação, apele muito à lógica e à razão, enquanto o terror, para funcionar, depende do estímulo a algumas das emoções mais básicas do ser humano. De todo modo, desde que se saiba fazer isso bem, é uma mistura que pode perfeitamente render coisas boas.

Edimburgo, Escócia. Recém-promovido a inspetor, o policial Anthony McLean sofre a aflição de uma perda pessoal quando sua avó, que o criou desde a morte de seus pais quando ele tinha quatro anos de idade, entra em coma, com pouca chance de se recuperar. Ainda afetado por esse acontecimento, McLean se depara com uma série de assassinatos excepcionalmente cruéis, e de suicídios ocorridos em condições estranhas. Todos esses casos parecem não ter relação alguma entre si, mas, ao mesmo tempo, mostram semelhanças que o cérebro investigativo do inspetor se recusa a admitir que sejam meras coincidências. As vítimas são todas homens idosos e ricos, membros respeitados da sociedade de Edimburgo, e todos eles tiveram o tórax aberto, retalhado, sendo que cada um teve um órgão diferente cortado e colocado em sua boca (credo). O detalhe desconcertante é que, logo depois de cada assassinato, houve um suicídio, de alguém aparentemente sem nenhuma conexão com a vítima – e, apesar disso, sempre aparecem evidências inegáveis apontando que o suicida foi o assassino. Mais perturbador ainda: se cada assassino se matou logo em seguida, e a polícia não divulgou detalhes das mortes, como é possível que todos os crimes tenham sido cometidos de modo idêntico, parecendo seguir um mesmo modus operandi, como se fosse um ritual?

As estranhezas não param por aí. Uma velha mansão que pertenceu a uma rica e poderosa família no começo do século XX está sendo reformada quando a derrubada de uma parede em suas fundações revela uma câmara oculta, e, dentro dela, um espetáculo macabro: o corpo mumificado de uma jovem assassinada há cerca de 60 anos. Suas mãos e pés estão pregados ao piso de madeira, há uma espécie de círculo mágico traçado à sua volta, e vários órgãos foram retirados e conservados dentro de vidros, que, por sua vez, foram dispostos ao redor, seguindo um padrão. Isso tudo torna óbvio que ela foi morta em algum tipo de cerimônia demoníaca. Como se trata de um crime praticado há tantas décadas, de modo que os responsáveis muito provavelmente já estão mortos, McLean não pode dedicar muito tempo a tentar elucidá-lo, pois seus superiores preferem, e com razão, que ele se foque nos crimes atuais, cujo mentor ainda pode estar à solta, mesmo que os executores diretos tenham se matado. Só que tudo o que ele vai descobrindo sobre esses outros casos parece levá-lo de volta ao da garota morta, como se, de uma forma sinistra que ele ainda não consegue determinar, todas as mortes estivessem interligadas. E, embora muitos dos elementos que ele vai descobrindo sejam seus velhos conhecidos devido a seus anos de experiência como detetive de polícia, há outros que parecem não ter explicação... Pelo menos, nenhuma explicação natural. Dessa forma, uma das coisas que conferem interesse ao livro é a chance que o leitor tem de ver uma mente essencialmente analítica e racional – a mente de um detetive – tentando processar fatos que, embora reais, só parecem fazer sentido caso ele admita um fundamento sobrenatural para eles, o que, por uma questão de princípios, recusa-se a fazer... até ser obrigado pelas circunstâncias.

Quem for ler Em Nome do Mal esperando uma grande dosagem de terror sobrenatural na fórmula talvez se decepcione: embora esse elemento seja uma parte fundamental no todo da história, ele mostra muito pouco a sua cara ao longo dela. Se eu próprio, de maneira geral, não me decepcionei, foi porque descobri no livro outras boas qualidades para compensar aquilo que eu procurava e não encontrei. A principal delas é sem dúvida a narrativa envolvente, que vai conduzindo o leitor de capítulo em capítulo, e o desafio de ir juntando as peças e, quem sabe, matar as charadas antes que o detetive o faça – isso me aconteceu umas duas vezes durante a leitura, e confesso que me peguei bem satisfeito ao ver que minhas teorias se confirmavam. Suponho que esse exercício mental seja uma das coisas que fazem os verdadeiros fãs de literatura policial gostarem tanto do gênero, e bem que fiquei com vontade de praticá-lo mais. O que achei frustrante foi o final, muito repentino e "fácil", se considerarmos as expectativas que o livro leva o leitor a criar.

Em Nome do Mal é o primeiro volume de uma série, mas é também uma narrativa "fechada", com início, meio e fim, de modo que ninguém precisa ficar com receio de lê-lo e depois ter que esperar talvez anos pela continuidade de uma história que o autor deixou "pendurada" num momento-chave. McLean soluciona o seu caso, mas seu próprio passado nebuloso, sobre o qual o autor, nessa primeira aventura, dá apenas pistas, leva-nos a ter vontade de continuar a acompanhá-lo. Posso dizer que, apesar do final pouco satisfatório, o livro não faz feio aos olhos de um não-fã de ficção policial, e que, se as próximas histórias do inspetor McLean seguirem nesse passo, James Oswald pode ter ganho um leitor assíduo.

terça-feira, fevereiro 28, 2012

A Assombrosa Viagem de Pompônio Flato

Eu não conhecia o escritor espanhol Eduardo Mendoza até questão de dias atrás. Então, enquanto esperava por um voo no aeroporto de Porto Alegre, entrei na livraria LaSelva e, na caixa de "oportunidades", encontrei este livro por menos de dez reais. Comprei-o; ao desembarcar no meu destino poucas horas depois, já tinha lido metade dele, pois é uma leitura fácil sem ser rasa, que prende a atenção e, de quebra, divertidíssima. O livro encaixa-se com perfeição na curiosa definição que aparece na sinopse da contracapa: "cruzamento de romance histórico, romance policial, hagiografia e paródia de todos esses gêneros".

Pompônio Flato (nenhum prêmio por identificar o trocadilho do último nome) é um filósofo e erudito romano do primeiro século de nossa era, que, levado por suas pesquisas de história natural, viaja até os confins da Palestina em busca de uma fonte cujas águas teriam a propriedade de aumentar a sabedoria de quem as bebe. Depois de provar a água de diversas fontes sem nada conseguir além de um persistente desarranjo intestinal, acaba perdido no deserto, sem montaria, sem dinheiro e praticamente só com a roupa do corpo. É socorrido por um grupo de mercadores árabes, que o levam em sua companhia até cruzarem com a comitiva de um magistrado romano, Ápio Pulcro, que se dirige a uma cidadezinha da Galileia a fim de administrar justiça num caso de assassinato. Pompônio então se junta a Pulcro, que promete conseguir-lhe meios de voltar a Roma assim que tiver resolvido o assunto. E, sem ter planejado isso, o nosso filósofo acaba chegando à tal cidadezinha, denominada Nazaré.

O caso em questão é a respeito do assassinato de um certo Epulão, o homem mais rico da cidade, que foi encontrado morto em sua biblioteca, com a porta e a janela fechadas e sem que nenhuma fechadura tivesse sido forçada. A arma do crime, encontrada no local, foi um formão para madeira, o que faz com que as acusações recaiam sobre o carpinteiro que estava fazendo um serviço para o morto e em razão disso tinha acesso ao interior de sua casa. O nome do carpinteiro: José.

As autoridades judaicas locais já decidiram que José é culpado e o condenaram à morte, mas tal sentença não pode ser aplicada sem ser antes referendada por uma autoridade romana. Ápio Pulcro, entediado e ansioso por partir, dá logo o seu aval e fica marcada a execução para o entardecer do dia seguinte. Entretanto, Pompônio é procurado pelo filho do condenado, um menino muito esperto e ao mesmo tempo adoravelmente ingênuo, Jesus, que lhe oferece parte das economias do pai para que sirva ao mesmo tempo de detetive e advogado de defesa, a fim de descobrir o verdadeiro assassino e provar a inocência do carpinteiro. Separado de seus recursos e sem nada para fazer enquanto espera a hora de voltar para casa, o filósofo aceita.

Assim tem início uma parceria insólita e que dá origem a situações ora interessantes, ora muito engraçadas. Pompônio tem como instrumentos sua mente lógica de filósofo e a habilidade oratória que lhe permite extrair de vários habitantes da cidade as informações de que necessita; o menino Jesus, por seu turno, possui o conhecimento do terreno e dos costumes locais. Os dois interagem com vários personagens já conhecidos de quem leu os Evangelhos e com outros que é fácil imaginar que poderiam ter vivido naquela época e região: operários, comerciantes, sacerdotes, prostitutas, soldados, mendigos. Um destes últimos é Lázaro, o leproso (não confundir com o amigo de Jesus que seria ressuscitado por ele: os judeus possuíam poucos nomes próprios, de modo que a maioria das pessoas tinha inúmeros homônimos), que, junto com o rico Epulão, mais tarde se tornaria personagem de uma parábola de Jesus. No decorrer das investigações, Pompônio vai ensinando a Jesus um pouco da filosofia e da mitologia greco-romanas - e, para sua surpresa, também aprendendo algumas coisas com o menino. Como ocorre numa boa trama policial, a história vai se desenrolando como um tapete no ritmo das pistas encontradas, pistas essas que vão se encadeando até conduzir a um final clássico para o gênero - ou seja, inesperado.

A história é contada em primeira pessoa, sob a forma de uma carta que Pompônio redige a um amigo, um tal Fábio, e a linguagem é bem a que se esperaria de um filósofo romano, o que resulta fazer de A Assombrosa Viagem... uma leitura deliciosa para quem possui um bom vocabulário, mas talvez impraticável para quem não preenche esse requisito. Mendoza explora com habilidade as personalidades que os personagens bíblicos poderiam ter tido - personalidades plausíveis com base no que sabemos sobre eles: quando Maria, mãe de Jesus, conversa com Pompônio, humildemente declara-se uma "mulher ignorante" (que no livro está grafado "ingnorante", num dos mais pavorosos erros de digitação/revisão que já vi), mas seu próprio discurso desmente isso, pois ela demonstra uma visão aguçada e inteligente da sociedade de seu país e mostra-se desejosa de que seu filho aprenda as coisas de que necessitará para viver no "mundo lá fora", razão pela qual vê com bons olhos o laço afetivo e a relação de mestre e discípulo que se formaram entre o menino e o filósofo, a despeito de este último ser pagão, fato que, aos olhos da maioria dos judeus da época, anularia por si só qualquer boa qualidade que ele pudesse ter.

Sempre sob o filtro da ironia e do bom humor, o livro também enfoca a diferença essencial que havia entre os judeus e os demais povos que faziam parte do Império Romano: um zelo religioso muitas vezes intransigente, que se sobrepunha a qualquer ditame lógico ou constatação prática. Explicando mais claramente: logo que um país era conquistado, seus habitantes naturalmente tomavam-se de um ódio apaixonado contra Roma e tudo o que dela viesse - mas algum tempo depois, se não eles próprios, seus filhos e netos aprendiam a ver as vantagens de fazer parte do Império, o que, via de regra, significava uma vida mais segura e farta do que antes, além de boas estradas, banhos públicos, planejamento urbano, incremento da economia e da cultura, e um sistema de justiça diferente da tradicional "lei do mais forte", que era a única lei que a maioria desses povos conhecia até então. Para muita gente, esses benefícios concretos pesavam mais que uma noção abstrata como a de liberdade, de modo que acabavam passando a cooperar voluntariamente com os romanos; decorrendo mais tempo, a própria separação entre conquistadores e conquistados tornava-se indistinta, e gradualmente ocorria uma miscigenação étnica e cultural, que está na origem de não poucos povos modernos. Já com os judeus, ou ao menos com certos setores de sua sociedade, isso não acontecia. Para esses, religião e política não apenas estavam estreitamente ligados: eram, na prática, uma coisa só, de modo que, para eles, era ao mesmo tempo uma questão de virtude e de patriotismo manterem-se impermeáveis a qualquer influência cultural e avessos a qualquer tipo de cooperação ou tolerância.

Há pouco a reclamar de Mendoza no quesito de conhecimentos históricos e bíblicos, mas não deixei de notar uma séria distorção temporal: primeiro Ápio Pulcro conta a Pompônio ter sido partidário de Júlio César, mas que, depois da morte deste, teria passado para a facção de Brutus e Cássio para lutar contra Otávio (depois imperador com o nome de Augusto, e que era quem governava o Império no tempo da narrativa); mais tarde, um soldado de nome Quadrato declara haver lutado sob as ordens de Pompeu, contra César, na batalha de Farsália. Ora, se Jesus era então um menino, e se as Metamorfoses de Ovídio haviam sido publicadas recentemente (Pompônio menciona esse livro), então já deveriam ter passado mais de 50 anos desde a morte de Júlio César. Claro, pode ser tudo bravata de um soldado pouco instruído e sem-noção, o que, aliás, estaria plenamente de acordo com o estilo irônico do livro. Por outro lado, deixou-me um tanto desconfortável o fato de o tempo dos verbos ficar variando a toda hora do presente para o pretérito e vice-versa - coisa que costumo apontar como uma falha de redação quando alguém me pede um parecer sobre algum texto. Mas não é nada que não dê para relevar, e quem ler o livro irá sem dúvida divertir-se muito.