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quinta-feira, janeiro 13, 2022

The Videssos Cycle, vol. I: The Misplaced Legion

Já não sou propriamente jovem, pois nasci na década de 70, e, sendo assim, tenho idade suficiente para me lembrar bem de como era frustrante ser um leitor voraz e apaixonado por fantasia e aventuras épicas no Brasil durante os anos 80 e início dos 90 (já comentei isso antes). Não havia interesse por parte dos editores nacionais em publicar esse tipo de material, e nem mesmo saber inglês resolvia o problema (não que eu já soubesse na época), pois não tínhamos a internet para fuçar em busca de raridades; então, quando líamos em algum lugar uma referência e a breve descrição de alguma obra fascinante e jamais publicada no país, geralmente só podíamos ficar imaginando e chupando o dedo. Algumas existiam em edições portuguesas, mas consegui-las era trabalhoso e caro – como ainda é, só que esses empecilhos, que hoje em dia não me detêm quando se trata de adquirir algo que realmente me interesse, eram intransponíveis para um mero estudante que dependia de mesada. As coisas começaram gradualmente a melhorar a partir de meados dos anos 90, quando saiu uma nova edição de O Senhor dos Anéis, que há muito estava fora de catálogo, e suas boas vendagens fizeram as editoras abrirem os olhos para o fato de que havia, sim, público para a literatura de fantasia no Brasil. De lá para cá, a coisa deslanchou, chegando ao ponto de eu me perguntar se a oferta de títulos desse tipo não se tornou um tanto excessiva… É claro que cada leitor é livre para escolher o que comprar e o que ler, porém a grande quantidade traz no meio muita coisa de baixa qualidade.

Agora que comprei um Kindle, os últimos limites caíram: dá para adquirir praticamente qualquer coisa, publicada em qualquer lugar, sem esbarrar em problemas como edições esgotadas ou a dificuldade logística de importar um livro físico que teria que vir do outro lado do mundo. Se o que você quer estiver no catálogo de e-books da Amazon (e, pelo menos até o momento, tudo em que consegui pensar estava lá), basta selecionar, digitar o número do seu cartão de crédito, e voilà: tão logo o pagamento seja confirmado, o livro estará disponível para ser lido por meio dessa maquineta milagrosa, ou no seu computador, se lhe for mais conveniente. Isso não significa que, de agora em diante, eu só pretenda comprar livros desse jeito: sou em essência um tradicionalista, e sempre continuarei apreciando o contato físico com o livro, o cheiro do papel e da tinta, o som das páginas virando, o prazer de organizar uma estante e depois olhar para ela com aquela satisfação que só os leitores apaixonados conhecem. Além disso, não quero que as livrarias tradicionais deixem de existir, então continuarei contribuindo com a minha parte para mantê-las abertas. Ainda assim, o Kindle é muito bem-vindo, por tornar acessíveis muitas obras que seria praticamente impossível conseguir de outra forma.

E uma das primeiras coisas que me lembrei de adquirir por esse novo meio foi o Ciclo de Videssos, do norte-americano Harry Turtledove (1949-). Fiquei sabendo da existência dessa saga graças ao GURPS Império Romano, um suplemento para o RPG GURPS (sigla de Generic Universal Roleplaying System), publicado no Brasil pela editora Devir, pelo menos, desde os anos 90. Muitos RPGistas não gostam do GURPS por causa de suas regras muito complexas e detalhistas, que, do ponto de vista deles, comprometem a agilidade e a fluidez do jogo, mas ele tem o grande mérito de permitir a criação de aventuras com praticamente qualquer ambientação imaginável, de fantasia medieval até faroeste e de horror gótico até espionagem moderna, sem que seja necessário aprender um novo conjunto de regras para cada cenário desses: basta aplicar as regras contidas no "módulo básico", combinadas às informações trazidas em qualquer um dos suplementos disponíveis. Nos Estados Unidos existem literalmente dezenas desses suplementos; no Brasil, a Devir publicou um punhado deles. Tive pouca experiência com RPG e nenhuma com o GURPS especificamente, mas comprei esse suplemento por estar recheado de informações sobre a Roma antiga que eram e são interessantes independentemente de seu eventual uso no jogo. Perto do final do livro, o autor C. J. Carella fornece uma série de sugestões para que os game masters que o estiverem lendo criem suas próprias aventuras, além de indicar várias obras de ficção que podem servir de inspiração. Uma delas era justamente o Ciclo de Videssos, que, como informava Carella, narra as peripécias de uma legião romana que, por efeitos de um acidente de magia, é transportada para um mundo paralelo onde a referida magia é comum – ou seja, um crossover tentador entre ficção histórica e fantasia. São ao todo quatro livros, que, na Amazon, estão disponíveis em dois volumes (pode-se falar em "volumes" quando se trata de livros virtuais?), o primeiro contendo The Misplaced Legion e An Emperor for the Legion, e o segundo, The Legion of Videssos e Swords of the Legion. Acabo de ler o primeiro livro, e ele é ainda mais empolgante do que eu imaginava!

Estamos na Gália, provavelmente um pouco antes do ano 50 a.C., durante a campanha romana, liderada por Júlio César, que terminaria com a conquista desse país e sua transformação em província de Roma. Sob o comando do tribuno Marco Emílio Escauro, um destacamento composto por três coortes é enviado numa missão de reconhecimento até o território da tribo Lexovii, na região do delta do Sena. Escauro é jovem, mas não parece tão cru quanto o tribuno Lúcio Túbero, da Trilogia das Águias, além de ser muito mais cordato e inteligente. Parece já estar em serviço há alguns anos e deve andar pelos seus vinte e poucos ou perto dos trinta; seu segundo em comando, o centurião Caio Filipo, gosta mais dele que de qualquer outro jovem oficial com quem tenha servido em sua longa carreira.

Escauro está um tanto apreensivo com sua missão: já tem experiência para saber que o número de homens que ele comanda (três coortes seriam algo entre 1500 e 1800 legionários) é plenamente suficiente para chamar a atenção dos gauleses, mas pode ser pouco para enfrentá-los no caso de um ataque. E o ataque vem: um caótico e inflamado exército gaulês com aproximadamente o dobro do número de homens do destacamento romano os cerca numa clareira em meio às densas florestas daquela região, e uma desesperada batalha tem início. Os gauleses, como se sabe, estavam longe de ter a mesma disciplina e habilidades táticas dos romanos (nenhum povo da época tinha), mas, ainda assim, eram oponentes temíveis. Já à noite, depois de horas de luta com muitas baixas de ambos os lados, o chefe gaulês se adianta e desafia o líder dos romanos para um combate singular. Marco não se considera nenhum herói, na verdade admite que está no exército basicamente para acumular um currículo que o ajude no futuro a alcançar suas ambições políticas (como, aliás, era o caso da maioria dos tribunos militares), mas também não é um covarde, e não recua diante do desafio.

Um detalhe que até aí parecia apenas pitoresco vai assumir agora uma importância imprevista. Marco Escauro vem de uma família originária de Mediolanum (a atual Milão), bem no norte da Itália, e parece que, em algum momento, seus ancestrais misturaram seu sangue ao de seus vizinhos gauleses, pois ele é alto e loiro, bem diferente do romano típico, de estatura mediana e cabelos escuros. E, devido a sua altura incomum, escolheu uma arma também incomum para um oficial romano: uma espada longa gaulesa, tirada de um druida que ele matou em combate algum tempo antes; essa arma é mais adequada ao comprimento de seu braço que um gládio, a espada curta que era padrão nas legiões. A espada tem uma série de sinais gravados em sua lâmina, que, considerando quem era seu proprietário anterior, sem dúvida possuem algum significado mágico para os celtas, mas isso não importa para Escauro… Até ele verificar que o chefe gaulês contra quem vai lutar também empunha uma espada com símbolos semelhantes.

Quando as duas espadas se encontram, algo inconcebível acontece. O choque das lâminas encantadas faz com que Escauro e todos os seus homens – e, junto com eles, o chefe gaulês, que se chama Viridovix – sejam subitamente arrebatados por uma gigantesca cúpula luminosa e transportados de forma instantânea através do tempo, espaço ou seja o que for, até um mundo diferente, onde logo descobrem estar nos domínios do Império de Videssos. O mundo em si parece ser uma versão alternativa da Terra; as estrelas vistas no céu e a configuração dos continentes são totalmente diferentes, mas os habitantes são seres humanos perfeitamente comuns (embora com línguas e culturas diferentes), e a vida animal e vegetal também é familiar.

Não demora a ficar evidente que não há a menor chance de voltarem para casa, e, diante disso, o pequeno exército romano (composto, naturalmente, por homens de várias nações) precisa encontrar um meio de vida naquele mundo. Conforme vão se inteirando de mais coisas, descobrem que Videssos enfrenta ameaças intermitentes de invasão, e por isso sempre tem necessidade de bons mercenários; os romanos, então, "vendem suas espadas", como se dizia na época, a Sua Majestade, Mavrikios Gavras, imperador dos videssianos. Não se trata apenas de uma forma de ganharem seu sustento material: o serviço mercenário é também a única possibilidade de que os videssianos lhes permitam continuar todos juntos como uma unidade militar, pois, de outra forma, nenhum governante com algum juízo permitiria a permanência de uma força armada estrangeira dentro de seu território. E, naquela situação, a união e o companheirismo são ainda mais importantes para Escauro e seus homens do que normalmente já são para qualquer exército romano, já que, para cada um deles, os outros são agora o único elo com seu próprio mundo.

A primeira coisa que se nota em The Misplaced Legion é que o autor possui um conhecimento profundo de História, o que se revela, primeiramente, em suas descrições do exército romano e de elementos culturais e sociais da época, que se refletem na visão de mundo e no modo de vida dos legionários; em segundo lugar, não é difícil ver que, para a criação do mundo fictício de Videssos, Turtledove usou como modelo direto o Império Bizantino – também conhecido como Império Romano do Oriente, que tinha sua capital em Constantinopla (que antes se chamava Bizâncio e hoje é Istambul) e continuou a existir por quase mil anos depois que o Império Romano do Ocidente caiu. De fato, o Império Bizantino manteve vivas muitas tradições romanas ao longo da Idade Média, mesmo tendo como língua oficial o grego, e não o latim. O autor não procurou esconder essa inspiração: a descrição da cidade de Videssos, capital do império de mesmo nome, é claramente a de Constantinopla, com o formato aproximado de um triângulo, tendo dois lados voltados para o mar e o terceiro protegido por poderosas muralhas; fica até mesmo à margem de um estreito que a população local chama de "Travessia do Gado", o que é a tradução literal do nome Bósforo. Uma breve análise do mapa do mundo mostra que ele foi inspirado, em linhas gerais, na Eurásia e norte da África, só que de maneira espelhada: os reinos civilizados ficam no leste, e o continente vasto e pouco explorado, no oeste.

A descrição de outros povos desse mundo também remete ao Império Bizantino e sua época: a guarda imperial, por exemplo, é formada principalmente por bárbaros altos e loiros vindos do norte, os halogai (plural de haloga), numa clara alusão à Guarda Varangiana da Constantinopla histórica. "Varangianos" era como os bizantinos se referiam aos nórdicos de maneira geral, e durante muito tempo a maior ambição de todo aventureiro viking que deixava a Escandinávia em busca de glória e fortuna era juntar-se a essa guarda. "Haloga", por sinal, era o nome de uma antiga tribo da Noruega, e a região onde ela vivia é conhecida até hoje como Halogaland, ou, em português, Halogalândia. Há também povos nômades das planícies, cujos homens são famosos como exímios arqueiros e cavaleiros – a versão videssiana de hunos, tártaros etc. A ilha do Ducado de Namdalen, cuja população foi formada pela miscigenação de videssianos com invasores halogai, poderia corresponder, de forma um pouco mais livre, à Grã-Bretanha (que, é claro, pertenceu ao Império Romano do Ocidente, nunca tendo feito parte do Império Bizantino; por isso digo que essa seria uma adaptação mais livre).

De tudo isso, concluo que provavelmente a primeira ideia de Harry Turtledove foi que os romanos dos dias de César fossem transportados através do tempo até a Idade Média e vivessem suas aventuras no Império Bizantino histórico, mas, conforme amadurecia o livro, o autor deve ter pensado que incluir elementos mágicos e fantásticos deixaria a história ainda mais interessante, e que, se era para transformar o Império Bizantino numa terra de magia e monstros, era melhor afastar-se um pouco mais da historicidade e abraçar de vez a vocação de fantasia da saga, mantendo, ao mesmo tempo, as características interessantes da Constantinopla real. Um coquetel ousado, eu diria, mas que, pessoalmente, me agradou muito.

Num ponto Turtledove (certamente tendo seus motivos para tanto) distanciou deliberadamente Videssos do Império Bizantino: a religião. No nosso mundo, o Império Romano do Oriente era cristão, sendo que até o século XI submetia-se à autoridade do papa; nessa época ocorreu o cisma que resultou na separação entre a Igreja Católica Romana e a Igreja Ortodoxa, que predominou no oriente a partir de então. A religião majoritária em Videssos, à primeira vista, pode parecer semelhante ao cristianismo: o deus que eles adoram é Phos, identificado com o bem e com a luz, e por isso simbolizado pelo sol; seu adversário é Skotos, o senhor das trevas e mestre do mal, e acredita-se que os homens e mulheres que, neste mundo, servirem a Phos praticando o bem, serão recompensados com vida e felicidade eternas após a morte, enquanto os que se renderem às tentações de Skotos serão atormentados para sempre numa espécie de inferno gelado. A semelhança, porém, é apenas superficial, já que a fé videssiana parece atribuir a ambas as entidades o mesmo peso no universo, talvez o mesmo grau de poder; para os cristãos, Satã se opõe a Deus, mas de maneira nenhuma tem o mesmo poder que Ele. As crenças dos videssianos se assemelham muito, isso sim, ao zoroastrismo persa. Seja como for, alguns dos sacerdotes dessa religião possuem assombrosos poderes de cura, sendo capazes de fazer com que homens com ferimentos mortais se recuperem mediante uma simples imposição das mãos – uma habilidade que Górgidas, o médico grego que acompanha a tropa romana, encara com um misto de incredulidade, admiração e despeito.

Num banquete na corte, ao qual ele e seus principais oficiais são convidados, Escauro acidentalmente derrama vinho no manto de um embaixador estrangeiro, um certo Avshar, enviado de Yezd, um reino no ocidente dominado por adoradores de Skotos. A presença de Avshar como diplomata possibilita uma precária paz entre Yezd e Videssos, mas, ao mesmo tempo, constitui um insulto, como o próprio imperador observa, já que a inimizade de facto entre os dois reinos é conhecida por todos. Avshar, truculento, não só se recusa a aceitar as desculpas de Escauro pelo acidente banal com o vinho, como ainda o insulta e esmurra. Exige um duelo, que o romano vence, embora com extrema dificuldade e, em grande parte, graças à magia presente em sua espada, já que Avshar, além de um combatente formidável, é também feiticeiro. O tribuno poupa a vida do embaixador – decisão da qual se arrependerá mais tarde. Quando, dias depois, Escauro sofre uma tentativa de assassinato, e provas inequívocas indicam que Avshar foi o mandante, o imperador declara que, com esse ato, o bruxo de Yezd perdeu o direito à proteção assegurada aos diplomatas, e ordena sua prisão. Escauro e outros vão no encalço do vilão, só para descobrir que ele escapou, deixando atrás de si armadilhas mágicas que custam as  vidas de vários homens. Mavrikios, então, declara guerra a Yezd (algo que ele sabia que teria que fazer, mais dia menos dia) e dá início à tarefa de reunir um grande exército, incluindo tanto tropas videssianas nativas quanto mercenários vindos de quase todos os cantos do mundo conhecido… E, no caso dos romanos, de mais longe ainda. Por falar neles, Escauro e seus homens são, sem comparação, a melhor infantaria de que o imperador dispõe, e por isso terão um papel-chave nessa campanha.

Assim como fiz com A Legião do Tempo, escolhi The Misplaced Legion para praticar o meu hobby/exercício de traduzir, e foi uma experiência empolgante. O texto está coalhado de referências clássicas – História, mitologia, filosofia –, e mesmo eu, que, modéstia à parte, tenho um razoável conhecimento ao menos nos dois primeiros campos, aprendi um bocado. Embatuquei um pouco na hora de dar o título: traduzir literalmente o título original resultaria em algo como A Legião Deslocada, ou, pior ainda, A Legião Extraviada – ou seja, sem chance! Passei um tempo indeciso, mas acabei ficando com A Legião Perdida; é verdade que já existe um filme com o mesmo nome, que, por sinal, é baseado no livro A Águia da Nona, de Rosemary Sutcliff, que já comentei aqui no blog – mas esse não é o primeiro e com toda a certeza não será o último caso em que duas obras sem qualquer relação direta entre si levam o mesmo título.

Além de nos oferecer uma história emocionante sobre guerra, lealdade, poder e intrigas, The Misplaced Legion apresenta uma galeria de personagens aos quais é impossível não se afeiçoar, chegando a me lembrar (atenção, isto é só um pensamento subjetivo!) Jornada nas Estrelas nesse quesito. Se Escauro for o capitão Kirk, então Górgidas (claro!) é o Dr. McCoy. Só é difícil ver algum traço de semelhança entre o lógico e racional Sr. Spock e o alegre e sangue-quente Viridovix, que, sim, acaba se tornando um amigo próximo de Marco. O gaulês adora farra e vinho, anda sempre atrás de rabos-de-saia, e ama a loucura da batalha, o que faz dele o oposto de Escauro, que é um adepto da filosofia estoica, que recomenda comedimento em tudo (bebida e sexo especialmente), e além disso, como ele mesmo reflete em certo trecho, tem em relação à guerra a mesma atitude que a maioria dos romanos: "Lutar era algo para ser feito quando necessário, e concluído o mais depressa possível." E, mesmo com tantas diferenças, os dois tornam-se amigos, o que reflete algo que já se verificava durante a batalha do começo do livro, antes de irem parar em Videssos: eles eram inimigos por força das circunstâncias, mas nunca tiveram pessoalmente nada um contra o outro, e respeitavam-se mutuamente como oponentes valorosos. Transportados para um mundo estranho, a inimizade perdeu todo o sentido. Essa amizade entre ex-inimigos é interessante e plausível; acho apenas que esse tema deveria ter sido melhor desenvolvido, o autor poderia ter-lhe dedicado mais espaço e aprofundado mais. E, como estou falando dos personagens, seria uma imperdoável injustiça não dedicar algumas linhas a Caio Filipo, que lembra inevitavelmente aquele sargento veterano de tantos filmes de guerra (especialmente os um pouco mais antigos) que todos já vimos: ríspido, durão, mas no fundo com um coração de ouro, ele dedica uma lealdade a toda prova a seu tribuno, que, como dito antes, mostra-se digno disso, diferente de outros oficiais que o velho centurião já conheceu. Mais importante que tudo isso, Caio Filipo é o personagem que melhor representa o apego à disciplina que era o próprio coração pulsante do exército romano: seus soldados sabem que pouco importa que o mundo esteja ruindo em volta, o treinamento diário acontecerá do mesmo jeito, e nenhum desleixo com o equipamento será tolerado. Sem esquecer, ainda, que as frequentes trocas de farpas verbais entre ele e Viridovix são uma diversão à parte.

A descrição da sociedade de Videssos, bem como da adaptação dos romanos a ela, acrescenta mais uma camada de interesse à trama. Há um diálogo entre Escauro e Górgidas em que o médico, mais velho e realista, faz ver ao tribuno que, com o tempo, seus homens se esquecerão de Roma – não no sentido de não se lembrarem de suas origens, mas no de gradualmente, sem perceber, irem adotando os usos, costumes e modos de pensar de sua nova pátria. Essa ideia, a princípio, choca Marco, mas, conforme passa o tempo, e quanto mais ele reflete a respeito, percebe que é verdade. Umas poucas centenas de homens jogados em meio a um povo estranho, com uma língua e uma cultura diferentes, fatalmente acabarão sendo absorvidos; deixarão sua marca, certamente, mas muito tênue e pequena num império vasto e multicultural como o de Videssos. E, como o grupo de romanos que foi transportado para esse novo mundo trata-se de uma unidade militar, são todos homens, que, não demora muito, começam a tomar companheiras locais, tal como faziam os legionários que serviam nas províncias do próprio Império Romano. Seus filhos ainda serão meio-romanos, mas cada uma das gerações seguintes terá menos de romana, até chegar um momento em que a marca de Roma já mal seja perceptível. É assim que as coisas acontecem quando povos se misturam. O próprio Escauro se apaixona por Helvis, uma bela namdalenense, e a toma como companheira. E, a respeito da vida pessoal e familiar dos legionários, acredito que, tal como no caso da amizade entre ex-inimigos, também nesse ponto faltou aprofundamento – afinal, é provável que muitos dos soldados de Escauro tivessem mulheres e talvez famílias no mundo que deixaram para trás, e devem ter sofrido com sua perda antes de aceitarem o fato e tentarem reconstruir suas vidas em Videssos. Praticamente nenhuma palavra é dedicada a isso.

Harry Turtledove, como vim a saber, possui uma extensa obra que parece oscilar entre a ficção histórica, a fantasia e a ficção científica, e este meu primeiro contato direto com uma história sua deixou a impressão mais favorável possível, apesar das pequenas omissões (bem, nem tão pequenas assim) citadas acima. É realmente uma pena ser tão improvável que seu trabalho algum dia chegue às livrarias brasileiras, mas, como observei no início, agora está disponível aos que fizerem uso das novas tecnologias e dominarem a língua inglesa. E, embora eu ainda não conheça nenhum de seus outros livros, ao menos o Ciclo de Videssos, em minha opinião, pode ser plenamente recomendado.

domingo, agosto 11, 2013

Jogador n.º 1

Na primeira metade da década de 2040, as coisas não estão nada legais para a maior parte da humanidade. Nenhuma catástrofe apocalíptica aconteceu, mas crises econômicas mundiais, recessão, desemprego em massa e recursos naturais escasseando - além das consequências sociais previsíveis disso tudo, como o aumento da criminalidade e do número de pessoas dependendo totalmente do auxílio do governo para sobreviver - encarregam-se de fazer a vida bem difícil.

Para escapar da realidade sombria, a maioria das pessoas nessa época recorre a ilusões virtuais, que, a propósito, chegaram a um grau espantoso de aperfeiçoamento, embora a ideia continue a ser a mesma de algo que já existe nos dias de hoje, os MMORPGs (Massive Mul­tiplayer Online Roleplaying Games, algo como "Jogos Online de Interpretação de Papéis para Múltiplos Jogadores"); esses jogos têm uma história longa, que começa com os RPGs tradicionais, criados nos Estados Unidos na década de 70 e populares até hoje. Muitos de meus leitores devem conhecer RPG, mas outros podem não estar familiarizados com esse tipo de entretenimento, de modo que imagino que uma breve apresentação seja útil para os fins deste post. Vamos a isso.

RPG é a sigla de Roleplaying Game, isto é, jogo de interpretação de papéis. Ainda que muitos praticantes gostem de incrementar a diversão mediante o uso de maquetes, miniaturas e outros acessórios, nada é realmente necessário para jogá-los a não ser o livro de regras, lápis, papel, dados e imaginação. Um dos participantes, denominado mestre do jogo, tem a função de contar a história aos outros, que, por sua vez, controlam, cada um, um personagem. O mestre descreve para os jogadores os lugares que seus personagens percorrem, controla outros personagens com os quais eles venham a interagir (esses são conhecidos, no jargão do jogo, como NPCs, sigla de non-player characters, personagens não-jogadores) e verifica, de acordo com as regras e conforme os resultados dos lançamentos de dados, quais as chances de sucesso de cada ação empreendida pelo grupo. Ao final, os atos de cada um dos aventureiros terão contribuído para o êxito ou o fracasso da missão. Embora possa intimidar um pouco os iniciantes devido à complexidade dos sistemas de regras com os quais é preciso se familiarizar, depois que se pega o jeito, esse é um dos hobbies mais empolgantes já inventados. O lendário Dungeons & Dragons - o primeiro RPG a ser lançado comercialmente, em 1974 - tinha temática de fantasia medieval, inspirada na obra de Tolkien, e vários dos que o seguiram iam na mesma linha, mas, com o tempo, outras possibilidades foram sendo exploradas, de modo que hoje existem RPGs de faroeste, ficção científic­a, terror, espionagem, artes marciais, comédia, e do que mais vocês imaginarem.

Mais tarde, com o progressivo aperfeiçoamento dos computadores, a ideia migrou para dentro deles: era o RPG eletrônico, que proporcionou aos aficionados um novo tipo de experiência. Porém, havia uma desvantagem: o que se ganhava em realismo graças ao ambiente gráfico e aos efeitos sonoros, perdia-se em liberdade de ação. Enquanto nos RPGs tradicionais, ou "de mesa", os jogadores, ao verem-se diante de um perigo ou de um enigma, podiam tentar qualquer solução na qual conseguissem pensar (desde que o mestre permitisse), num RPG de computador, tudo o que o jogador podia fazer era escolher dentre um punhado de possibilidades de ação - somente aquelas previstas pelo criador do jogo. Por isso, muitos são da opinião que esses não devem ser considerados RPGs de verdade, mas apenas jogos de aventura, já que não oferecem ao jogador a oportunidade de realmente interpretar um papel.

O passo seguinte na evolução dos jogos resolveu essa limitação - e agora chegamos aos MMORPGs. Neles, o jogador pode escolher entre dedicar-se às missões que são propostas, ou simplesmente explorar o mundo do jogo - sempre um mundo grande e cheio de surpresas, onde seu avatar (personagem) pode interagir não apenas com NPCs, mas também com os personagens de outros jogadores de qualquer lugar do planeta, todos conectados via internet. Tal como já acontecia nos RPGs tradicionais, cada inimigo derrotado, cada objetivo alcançado, é recompensado com certo número de pontos de experiência; quando o avatar acumula os pontos necessários, ele sobe de nível, tornando-se mais poderoso, capaz de encarar desafios maiores. De resto, há bem pouca coisa que não seja possível fazer nesses jogos (se é que ainda dá para chamá-los de jogos!). Pode-se forjar alianças, começar guerras ou finalizá-las, servir como mercenário a quem pagar mais, caçar perigosas criaturas míticas para obter reagentes mágicos raros que possam ser vendidos a magos... As possibilidades não têm fim. E, como outra coisa que também não tem fim é a criatividade do ser humano - especialmente quando há lucro a tirar disso -, algumas pessoas já inventaram maneiras de "trabalhar" dentro de jogos, e estão até ganhando a vida assim. O jeito mais comum é criar avatares em série, jogar com eles até que atinjam um determinado nível, e então vendê-los a jogadores impacientes e endinheirados, que já querem começar com avatares de alto nível e não se importam de pagar por isso, mas li em algum lugar a história extraordinária de um sujeito que teria formado um exército, comprado máquinas de cerco, sitiado um castelo, e o tomado - e vendido. Essa última parte não aconteceu dentro do jogo: foi uma transação real, mesmo que mediada pela internet. O comprador pagou com dinheiro de verdade pelo privilégio de ser senhor de um castelo feito de pixels.

Hum... Vejo que a "breve apresentação" que pretendia fazer não ficou tão breve assim, e, além disso, o autor de qualquer manual de estilo adotado nas redações de bons jornais e revistas mundo afora iria querer me matar por já começar o texto com uma longa digressão, mas asseguro que tudo o que escrevi será importante para o leitor se situar no universo de Jogador n.º 1; em especial a parte do castelo, que ilustra o quanto a distinção entre real e virtual pode tornar-se imprecisa - e isso já nos dias de hoje, que dirá daqui a algumas décadas.

Alguns anos antes do início da história narrada no livro, foi lançado o OASIS (Ontologically Anthropocentric Sensory Imersive Simulation, ou Simulação Imersiva Sensorial Ontologicamente Antropocêntrica), que, num primeiro momento, pretendia "apenas" redefinir o conceito dos MMORPGs, mas seu principal idealizador, James Halliday - considerado o maior designer de games de todos os tempos - sabia desde o início que seria muito mais do que isso. Com o tempo, o OASIS foi crescendo; grande parte do planeta Terra e de tudo o que nele existe foi incluída na simulação, de modo que as pessoas agora podem viajar para qualquer lugar, a negócios ou turismo, sem sair de casa. O que vem a calhar, já que a crise de combustíveis e o perigo de bandidos nas estradas fizeram das viagens no mundo real uma coisa bem complicada. O fato de ter passado do status de um "simples" jogo ao de uma realidade paralela na qual uma grande parcela da humanidade gasta a maior parte do tempo que permanece acordada - estudando, trabalhando e divertindo-se - representa uma façanha formidável, mas é apenas o começo das possibilidades do OASIS. A mesmíssima simulação que grupos da terceira idade podem usar para fazer tranquilas excursões a qualquer destino turístico tradicional, também oferece o suficiente para encher os sonhos de várias encarnações de qualquer aventureiro:

A GSS também havia pré-licenciado mundos virtuais de seus competidores, por isso o conteúdo que já tinha sido criado para os jogos, como Everquest e World of Warcraft, foi repassado ao OASIS, e cópias de Norrath e Azeroth foram incluídas no catálogo crescente de planetas OASIS. Outros mundos virtuais logo copiaram isso, desde o Metaverse ao Matrix. O universo Firef­ly ficava anco­rado em um setor adjacente ao da galáxia do Star Wars, com uma detalhada recriação do universo Star Trek no setor adjacente a ele. Os usuários podiam se transportar de um lado a outro em seus mundos fictícios favoritos. Terra-média. Vulcano. Pern. Arrakis. Magrathea. Discworld, Mid-World, Riverworld, Ringworld. Mundos dentro de mundos.

Pelas barbas de Júlio Verne! Conseguem imaginar isso?... Até para o mais centrado dos usuários seria difícil ter vontade de voltar para o mundo real - particularmente se o mundo real estivesse mesmo do jeito como Ernest Cline o descreve.

A GSS (Gregarious Simulation Systems), aí mencionada, é a empresa fundada por Halliday e seu sócio e melhor amigo, Ogden Morrow. Graças, principalmente, ao OASIS, essa empresa tornou-se uma gigante no setor de softwares de entretenimento, fazendo de ambos multibilionários. Entretanto, enquanto Morrow é o mais sociável e comercial dos dois, com talento para relações públicas, Halliday é a imagem do nerd genial, mas introvertido, levada ao extremo. Quando a longa parceria chega a um fim inopinado devido a certos "desentendimentos" que nenhum dos dois explica, Morrow deixa a GSS para abrir sua própria empresa; Halliday passa a viver recluso, ocupado sabe-se lá com que criações mirabolantes e secretas.

A história de Jogador n.° 1 começa em 2041, com a morte de Halliday. Solteiro e sem parentes vivos, ele deixa um desafio gravado em vídeo, além de devidamente registrado em seu testamento - um desafio aberto a todos os usuários do OASIS: sua fortuna pertencerá ao primeiro que desvend­ar três enigmas e sair vitorioso das três provas às quais eles conduzem. As pistas que levam aos enigmas, Halliday escondeu em algum lugar do OASIS, e não é preciso dizer que "procurar agulha em palheiro" é uma expressão fraca para dar ideia da dificuldade da busca que os candidatos a seus herdeiros têm pela frente. A notícia deixa o mundo em polvorosa. Imediatamente forma-se a classe dos caça-ovos, que é como se auto-intitulam os aventureiros que assumidamente têm como principal objetivo de suas explorações no OASIS vencer o desafio de Halliday (o nome é uma alusão à tradicional brincadeira norte-americana de esconder os ovos de chocolate em algum lugar da casa na manhã de Páscoa e fazer com que as crianças os procurem). Há caça-ovos que se reúnem em clãs, enquanto outros preferem agir sozinhos. A única pista para começar a busca é o vídeo do convite/desafio, e este está repleto de citações da cultura pop dos anos 1980, década em que Halliday viveu sua adolescência, e pela qual foi apaixonado até o fim da vida. Parece óbvio que quem pretenda vencer terá de possuir um vasto conhecimento sobre todo e qualquer assunto que pudesse atrair um jovem nerd oitentista. Isso provoca uma súbita e arrasadora revivescência do interesse por tudo o que venha da época: livros de ficção científica, fantasia e terror, filmes, desenhos animados, séries de TV, músicas, quadrinhos, RPGs e, de modo especial, os videogames primitivos de então, tudo entra na mira dos caça-ovos e passa a ser objeto de estudo minucioso, pois ninguém sabe onde pode estar oculta alguma dica valiosa para os que buscam o grande prêmio. E muitos, para sua própria surpresa, acabam compartilhando sinceramente a paixão de Halliday por isso tudo.


Entre outros milhões de caça-ovos está Wade Watts, um jovem órfão e pobre de 18 anos que vive com uma tia megera numa pilha de trailers (um novo tipo de favela) em Oklahoma. Wade está terminando o ensino médio numa escola pública dentro do OASIS, e, entre o tempo das aulas e o que dedica à caça, ele raramente está offline. Quando está, costuma percorrer lixões tecnológicos em busca de velhos computadores e consoles do OASIS descartados, que conserta e vende. É dentro da simulação que a vida do rapaz realmente acontece, longe das implicâncias da tia e dos demais detalhes de seu negro cotidiano. É verdade que, mesmo lá, sua pobreza ainda o persegue: "embora acessar o OASIS seja grátis, viajar dentro dele não é", de modo que, sem créditos para comprar uma espaçonave ou pagar as taxas de teletransporte, Wade (ou melhor, Parzival, nome que deu a seu avatar por gostar da semelhança entre a busca ao "ovo" de Halliday e a Demanda do Santo Graal) permanece confinado em Ludus, o planeta-escola, sem ter como ir a algum lugar mais perigoso onde encontre inimigos para derrotar a fim de ganhar mais créditos ou pontos de experiência que levem seu personagem a subir de nível. Pior ainda: é terrivelmente frustrante para Wade saber que, mesmo que ele seja mais esperto, mais criativo e mais bem informado que muitos outros caça-ovos, suas chances reais na competição são mínimas, já que o único local onde pode procurar de fato é Ludus, e é claro que Halliday jamais teria escondido uma pista exatamente ali… Ou isso é o que todos pensam.

Justamente em Ludus, Wade encontra a primeira das três chaves que abrem os três portões que levam ao grande prêmio; ele é simplesmente a primeira pessoa a fazer qualquer progresso real nos cinco anos que já dura o concurso, e isso o coloca em evidência: há uma coisa chamada "o Placar" que permite a todos os usuários do OASIS ver quem conseguiu marcar pontos na competição. Ou seja, a partir do momento em que alguém obtém algum sucesso na busca, torna-se automaticamente uma celebridade, e Wade não tarda a descobrir que isso tem aspectos positivos e negativos: por um lado, sua notoriedade lhe rende contratos de patrocínio que lhe permitem escapar da pobreza e investir em equipamentos melhores; por outro, acaba com qualquer possibilidade de prosseguir sua busca na paz do anonimato. De agora em diante, cada movimento seu estará na mira de milhões.

Como seria previsível em se tratando de alguém que só "vive" de fato por meio da imersão virtual, o melhor amigo de Wade/Parzival é alguém que ele nunca encontrou pessoalmente e cuja identidade real não conhece, um certo Aech (pronuncie "Êitch", como o nome da letra H em inglês). Aech também é um caça-ovo, paralelamente a sua carreira de sucesso como combatente em jogos de arena televisionados - tudo dentro do OASIS, é claro. Os dois partilham a obsessão pelo concurso de Halliday e, consequentemente, pela cultura pop dos anos 1980, bem como o ódio pelos "Seis", nome pejorativo pelo qual os caça-ovos chamam os funcionários da IOI (Innovative Online Industries), uma megacorporação de tecnologia e internet que, desde o início do concurso, tem dedicado o grosso de seus esforços a vencê-lo, o que colocaria a empresa no controle da GSS, tornando-a, na prática, dona do OASIS - o pior pesadelo não só dos caça-ovos, mas de todos os usuários que prezam o caráter livre da simulação. Na opinião de Wade, a vitória da IOI transformaria o OASIS, de uma utopia virtual de acesso gratuito, dentro da qual os usuários desfrutam de liberdade, num parque temático elitista só para quem pudesse pagar. Desnecessário dizer que se trata de uma competição desleal: a IOI dispõe de recursos econômicos quase infinitos, de modo que pode empregar milhares de agentes controlando avatares de alto nível, equipados com a última palavra em armas, veículos e itens mágicos, e orientados por pesquisadores em tempo integral das "coisas de Halliday" - isto é, enquanto o caça-ovo comum precisa conciliar pesquisa e buscas, além de arriscar o pescoço (bem, o pescoço virtual de seu avatar) enfrentando todo tipo de perigo OASIS afora, os agentes da IOI podem dar-se ao luxo de dividir tarefas: os que se dedicam às buscas não precisam se preocupar com pesquisa, e, caso encontrem um enigma que não consigam resolver, basta chamar a base e pedir um especialista. Isso tudo faz com que cada caça-ovo deseje ardentemente que, se não ele, seja um competidor honrado a vencer o concurso - jamais aqueles malditos trapaceiros da IOI.

(Aliás, não tenho a menor dúvida de que essa sigla, IOI, é uma alusão à famigerada Sala 101 de 1984; parafraseando C. S. Lewis, eu poderia dizer que Ernest Cline "leu os livros que realmente importam".)


Jogador n.º 1 trata, sim, das aventuras da busca épica de Wade/Parzival no universo de possibilidades infinitas do OASIS, mas também da patética vida real do rapaz, primeiro em meio à pobreza e a um deprimente simulacro de família em companhia de sua abominável tia, o que contribui para acostumá-lo a esconder-se da realidade o máximo possível, e, mais tarde, levando essa tendência aos extremos, passando a viver sozinho e enfurnado num apartamento minúsculo, sem pôr o nariz para fora da porta durante meses a fio, sem ver um rosto ou ouvir uma voz humana, interagindo com o mundo unicamente por meio do OASIS. Durante a maior parte do tempo, ele diz que "prefere assim, muito obrigado", mas por vezes reflete, deprimido, que "acabou com sua própria vida". Não é por acaso que, sem nunca ter tido uma namorada - e, segundo ele próprio, sendo incapaz de conversar com uma garota no mundo real -, ele vive sua primeira paixão ao conhecer Art3mis (sim, com o algarismo 3 no lugar do e, mas pronuncie Ártemis mesmo), uma bela, destemida e fascinante caça-ovo… Naturalmente que o "bela" e o "fascinante" referem-se a seu avatar, pois não há como saber quem pode estar controlando-o: é impossível não rir quando Wade pondera, meio exasperado, meio achando graça de si mesmo, que, por tudo o que se sabe, a garota por quem ele está apaixonado pode muito bem ser na verdade "um sujeito gordo, de meia-idade, careca e com pelos nas costas chamado Chuck".

Ao mesmo tempo em que lida com o futuro e com tecnologias mirabolantes, o livro está repleto de nostalgia, manifestada por meio de infinitas citações da cultura pop do final do século XX - filmes, séries de TV, livros, quadrinhos, música, videogames. Reconheci muitas coisas e deixei de reconhecer muitas outras. Desde clássicos como Blade Runner ou De Volta Para o Futuro até coisas totalmente obscuras (e que satisfação a de um nerd como este que vos escreve ao reconhecer uma referência obscura, sabendo que pouca gente a identificaria!), Ernest Cline demonstra um conhecimento absurdo desse universo, o que me leva a dizer que Jogador n.º 1 é um livro que tem tudo para tornar-se, ele próprio, um clássico instantâneo no mundo nerd. Também é preciso dar o devido crédito ao tradutor e/ou ao preparador de originais, que evidentemente fizeram um esforço hercúleo para localizar todas as referências às inúmeras obras citadas, e verificar qual o título que cada uma delas recebeu no Brasil. Pode ser fácil linkar War Games com Jogos de Guerra (filme de 1983, dirigido por John Badham), mas os casos em que o título nacional é a tradução direta do original são exceções: a menos que você mesmo seja um fã (e um fã muito bem informado) do diretor John Hughes, terá que escarafunchar para descobrir que Weird Science virou Mulher Nota 1000 ao ser exibido nestas paragens. Nesse quesito, os responsáveis pela edição brasileira de Jogador n.º 1 fizeram um belo e completo trabalho, com algumas falhas perdoáveis aqui e ali. Pena que, ao lado de todo esse cuidado, surjam alguns erros tolos na tradução de palavras e expressões comuns. E, para mostrar que ninguém está livre de tropeçar, o próprio autor parece meio incerto a respeito das características físicas do avatar de Art3mis, que ora é descrito como tendo olhos azuis, ora castanhos, às vezes com cabelos curtos, outras com cabelos longos, e não é crível que Wade, que é o narrador da história, se confundisse com essas coisas: para um cara apaixonado, até o mais ínfimo detalhe a respeito de sua musa assume uma importância gigantesca. Experiência própria.

Jogador n.º 1 é um "virador de página" de primeiríssima categoria: eu, que nunca fui um leitor veloz, só precisei de uma semana para percorrer de cabo a rabo suas 462 páginas, pois, depois que você começa, só para se for realmente obrigado. E, como o autor mesmo revela em seus comentários ao fim do livro, já estão em andamento os trâmites para transformá-lo em filme, o que me deixa curioso, mas também com uma certa pena de saber, desde já, que será impossível transpor para a tela toda a riqueza do texto original. Não fiquem esperando pelo filme: leiam!!!