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sexta-feira, março 13, 2015

Total War Rome - Destruição de Cartago

– (...) O que você faria depois de eles se renderem?
– Não cometeria o erro cometido em Cartago sessenta anos atrás. Eu arrasaria Numância completamente. Dividiria seu território igualmente entre cada oppidum ao redor, para fazer amizade com aqueles que antes foram nossos inimigos. Pelo mesmo motivo, levaria os filhos dos guerreiros sobreviventes a Roma, não para humilhá-los, mas para exibi-los em minhas procissões triunfais como os adversários nobres e dignos que são. E os educaria como oficiais romanos, como Gulussa e Hipólita, e os colocaria encarregados de uma força celtibera auxiliar para lutar por Roma enquanto avançamos ao norte pelas montanhas em território gaulês, que é para onde eu iria depois de conquistá-los. O legado do cerco de Numância não seria o triunfo vazio de um inimigo tão derrotado que jamais poderia se reerguer, mas a celebração de um inimigo transformado em um combatente por Roma.

*          *          *

A série de romances Total War: Rome é uma iniciativa louvável. A partir do sucesso do game de estratégia de mesmo nome, esses livros surgem como uma oportunidade valiosa para suscitar em alguns jovens o interesse pela História em geral, e pela Antiguidade em particular. Tudo bem, não em muitos: basta uma rápida espiada em qualquer fórum de games do gênero na internet para constatar que a grande maioria dos gamers (claro que com honrosas exceções) é formada por pessoas comuns, pouquíssimo intelectualizadas (muitas mal sabem escrever) e sem o menor interesse em saber o que foi que inspirou a criação do jogo com o qual se divertem. Mas vamos ser francos: um único adolescente do século XXI que venha a se fascinar com a vida e as realizações de romanos ou gregos já pode ser considerado uma façanha, e um serviço prestado ao mundo moderno. O lucro que os criadores do jogo e dos romances tiverem obtido ou venham a obter no processo, pode ser considerado uma recompensa merecida.

Destruição de Cartago é o primeiro volume da série, e, como o título indica, trata da Terceira e última Guerra Púnica, que durou de 149 a 146 a.C., e ao final da qual Roma, por fim, aniquilou o mais perigoso e persistente inimigo que já enfrentara até então. Cartago, cidade de origem fenícia situada no norte da África, em território da atual Tunísia, dominou durante séculos as rotas comerciais no Mediterrâneo, acumulando com isso enorme riqueza e poder, tornando-se a maior potência da época – o que fatalmente a colocaria numa posição de rivalidade em relação a Roma, quando esta última começou a tentar expandir seu poder e influência para além da Península Itálica.

A história narrada em Destruição de Cartago é a de Cipião, o Jovem, cujo nome completo era Públio Cornélio Cipião Emiliano, neto por adoção de Públio Cornélio Cipião, conhecido como Cipião, o Africano, um dos mais celebrados generais romanos, sempre lembrado por ter derrotado o temido Aníbal na batalha de Zama, em 202 a.C., o que deu a vitória a Roma na Segunda Guerra Púnica. Justamente por sentir que Cartago jamais deixaria de ser uma ameaça às ambições e possivelmente à própria existência de Roma, Cipião, o Africano, pretendia destruir totalmente a cidade, mas não teve autorização do Senado romano para isso. Cartago, derrotada, foi gradualmente reconstruindo suas forças ao longo das décadas seguintes, e, em meados do século II a.C., havia-se tornado mais rica que nunca, apesar de haver perdido suas colônias na Espanha, na Sicília e em grande parte do norte da África, tomadas por Roma durante a guerra. A origem da riqueza de Cartago era o comércio marítimo: fiéis a suas raízes fenícias, os cartagineses eram hábeis marinheiros e ainda melhores como negociantes, capazes de encontrar oportunidades para obter lucro em praticamente qualquer situação. Compravam e vendiam qualquer coisa: vinho, azeite, minérios, cereais, tecidos, armas, gado, escravos.

Em Roma, por essa época, existiam partidos anti e pró-Cartago, e não é difícil imaginar que, em Cartago, também houvesse vozes anti e pró-Roma; é claro que, independentemente da política, havia comércio entre as duas cidades, e lobbies influentes que não queriam que os lucros que vinham daí cessassem. Por outro lado, havia muitos – tanto romanos quanto cartagineses – que não viam possibilidade de convivência pacífica entre ambas a longo prazo: o Mediterrâneo simplesmente não era grande o bastante para isso. No Senado de Roma, a voz mais forte a favor da guerra total era a de Marco Pórcio Catão (234-149 a.C.), que passaria à História como Catão, o Censor. Veterano da Segunda Guerra Púnica, ele defendia a aniquilação completa do inimigo; não viveu o suficiente para ver seu desejo realizado, mas o bordão que criou, e que sempre pontuava seus enérgicos discursos no Senado, tornou-se uma palavra de ordem que continuaria a guiar os romanos na guerra, mesmo depois de sua morte: Carthago delenda est ('Cartago deve ser destruída').

É importante saber que Cipião, o Jovem, foi adotado não porque fosse órfão; entre os romanos, era considerado da máxima importância que nenhum homem morresse sem deixar ao menos um descendente masculino, pois as linhagens se perpetuavam somente pelo lado paterno, e evitar-lhes a extinção era uma preocupação constante de todos, por razões primeiro religiosas, e, mais tarde, também legais. Sendo assim, a lei e os costumes ofereciam essa alternativa: se um pai tivesse vários filhos homens, ele poderia, a seu critério, permitir que um deles fosse adotado por um amigo ou parente que não tivesse nenhum, e essa adoção podia ocorrer já na idade adulta, sem qualquer problema. Desnecessário dizer que não se devia adotar qualquer um: com esse gesto, você estava escolhendo quem herdaria todos os seus bens, e, muito mais importante que isso, a história e as glórias da sua família, bem como a responsabilidade, que nunca era leve, de continuar essa história com honra.

(Por uma questão de comodidade, daqui por diante, ao dizer "Cipião", estarei me referindo ao Jovem; quando quiser falar de seu avô adotivo, direi "Cipião Africano". É verdade que, depois de sua vitória sobre Cartago, Cipião também ganhou o direito de ser chamado Africano, o que aumenta ainda mais a confusão, mas o fato é que a nomenclatura usada pelos romanos exige, muitas vezes, que se estabeleçam convenções desse tipo, pois é muita gente com o mesmo nome ou com nomes parecidos.)

O pai natural de Cipião era o general Lúcio Emílio Paulo, que, já tendo dois outros filhos mais velhos, permitiu a seu amigo Públio Cornélio Cipião – filho de Cipião Africano – adotar o terceiro, que, a partir daí, passou a ter o mesmo nome que o pai e o avô adotivos, acrescido do Emiliano ao final, que servia para distingui-lo de ambos, além de lembrar que nascera da gens dos Emílios. Lúcio Emílio Paulo conduziu o exército romano à vitória na batalha de Pidna, em 168 a.C., que determinou a rendição da Macedônia e sua transformação em província romana. Aos olhos do mundo da época, essa vitória estabeleceu definitivamente Roma como uma potência, tendo o significado simbólico de extinguir de vez o que ainda restava do poder macedônico forjado por Filipe II e expandido por seu filho Alexandre, quase dois séculos antes. E foi em Pidna, segundo o autor David Gibbins, que o jovem Cipião, então com 17 anos, teve seu batismo de sangue, ao lado de seu fiel amigo Fábio Petrônio Segundo, da mesma idade e, também ele, filho de um veterano de Zama. Fábio é um personagem fictício, sob cujo ponto de vista o autor enfoca a maior parte dos acontecimentos ao longo do livro. Embora de origem humilde, sua bravura e a lealdade incondicional ao amigo de alta estirpe o levam a ascender na carreira militar, de modo que, por ocasião da batalha final contra Cartago, já ocupa o posto de primipilo (em latim, primipilus, 'primeira lança'), o centurião de mais alta patente numa coorte – o mais alto posto acessível a um homem que não fosse de nascimento ilustre no exército romano, até aquela época.

Por falar nisso, o livro está cheio de informações empolgantes para apaixonados por história militar (sei que são poucos, mas eu sou um deles e o blog é meu! – risos). Na época, as legiões ainda não eram o exército profissional que se tornariam mais tarde (a reforma de Mário ainda não havia acontecido): os cidadãos eram recrutados para uma campanha específica, conforme a necessidade, e, uma vez concluída esta, davam baixa, retornavam à vida civil, havendo a possibilidade de virem a ser convocados novamente. Porém, algumas coisas a respeito do exército romano já eram como continuariam a ser: disciplina e lealdade já eram as virtudes mais valorizadas. Um bom legionário não discutia uma ordem, e tinha muito mais medo de seu comandante que de qualquer inimigo, por boas razões: para eles, fugir do inimigo numa batalha era um péssimo negócio, pois significava apenas trocar uma morte que todos considerariam honrosa por outra que cobriria de vergonha o nome de sua família – que era, provavelmente, a coisa que um romano tradicional mais prezava na vida. Desertores não recebiam piedade alguma, e ainda deviam considerar-se afortunados quando a urgência dos tempos de guerra lhes garantia uma execução rápida, com um golpe de espada na nuca; sempre que havia tempo e viabilidade, a preferência era por transformar desertores em exemplos, submetendo-os a mortes mais dolorosas e humilhantes, como o fustuarium (o condenado era abatido a porretadas pelos próprios companheiros) ou até mesmo o damnatio ad bestias, a clássica – e aterradora – execução por feras famintas, que, além da execução em si, era também uma "curiosidade" a ser apresentada à população por ocasião de grandes eventos públicos (isso aparece no livro).


Destruição de Cartago aborda um problema com o qual Roma debateu-se durante gerações, como já sabe quem leu meus comentários sobre a série O Imperador, de Conn Iggulden: suas conquistas territoriais, seu poder militar e sua influência no cenário geopolítico da época haviam feito dela um império em tudo, exceto no nome – e na forma de administração e governo. Esse império continuava tentando reger-se como se fosse uma cidade-estado, e qualquer tentativa de inovação esbarrava no tradicionalismo empedernido que sempre foi uma característica do pensamento romano, pois os membros do Senado, em sua maioria, acreditavam sinceramente que o que havia funcionado para seus pais e avós, continuaria funcionando para seus filhos e netos. Para nós, hoje, parece natural aceitar o fato de que o mundo está sempre em transformação, mas, naquele tempo, isso não entrava na cabeça da maioria das pessoas – muitas vezes, nem mesmo das mais instruídas.

O escritor norte-americano James Freeman Clarke dizia que o político pensa na próxima eleição, e o estadista, na próxima geração. Infelizmente, não é de hoje que os "políticos" são muito mais comuns que os estadistas. Na Roma republicana, os governantes supremos eram dois cônsules, eleitos para mandatos de apenas um ano, o que causava certos problemas. Muitos cônsules não se interessavam em começar obras públicas que, embora de grande proveito para a cidade, não poderiam ser concluídas ainda em seu governo, simplesmente porque quem colheria as glórias seria quem calhasse de estar exercendo o consulado quando a obra fosse inaugurada. Pior: havia os que queriam a todo custo marcar seu ano de consulado com um triunfo, e, para conseguir isso, ordenavam ações militares em situações que poderiam ser resolvidas de forma diplomática, desperdiçando uma enormidade de recursos e de vidas. A propósito: hoje em dia, "triunfo" é geralmente entendido como um simples sinônimo de vitória, mas aqui, a palavra é usada com seu significado original; quem não souber o que era um triunfo romano pode descobrir clicando aqui.

O exército também sofria por outro motivo. Havia uma coisa chamada cursus honorum (latim para 'caminho da honra'), que vinha a ser a sequência de cargos que um romano de origens ilustres ocupava ao longo da carreira, incluindo tanto postos civis quanto militares. O próximo cargo que alguém iria ocupar dependia de indicações, que, em teoria, deveriam basear-se no desempenho que o sujeito tivesse mostrado nas funções anteriores – mas, é claro, às vezes as amizades e a troca de influências acabavam pesando mais que a competência. Por causa disso, uma legião que recebia um novo comandante só podia orar aos deuses para que ele tivesse boa cabeça para a guerra – pois, em casos de azar extremo, poderia tratar-se de alguém que, além de não ter capacidade alguma, fosse burro demais para dar ouvidos aos conselhos dos oficiais experientes sob seu comando.

Cipião é um romano à moda antiga no que se refere ao senso do dever e à retidão moral, mas, por outro lado, entende a necessidade de mudanças, tanto na organização do exército quanto no governo. Sua personalidade naturalmente franca e honesta faz com que ele se desanime quando, depois de participar de sua primeira campanha militar, na Macedônia, retorna a Roma para o triunfo de seu pai Emílio Paulo, e percebe todo o potencial para a intriga que existe nos meandros da política da capital. Isso é parte dos motivos que o levam a afastar-se da vida pública e, desgostoso, passar os anos seguintes no isolamento, caçando nas florestas montanhosas da Macedônia, acompanhado apenas pelo fiel Fábio.

Como dissemos, isso é parte dos motivos; há mais. Neste romance (que, não custa lembrar, é uma obra de ficção, tendo a história apenas como inspiração), Cipião é apaixonado por Júlia, a filha fictícia de um personagem real, Sexto Júlio César – houve vários homens com o mesmo nome; este, em particular, foi eleito cônsul em 157 a.C. Por causa de seus deveres para com a família e a República, Cipião abre mão de Júlia e ambos se casam com outras pessoas: ela, com um certo Metelo, dez anos mais velho e notório desafeto de Cipião; ele, com Cláudia Pulcra, por quem não tem qualquer afeição maior e com quem nunca chega a viver de forma conjugal. O ressentimento por ter sido obrigado a renunciar a seu amor soma-se ao fato de Cipião ser um soldado por natureza, não tendo a menor vontade de suportar anos de tédio exercendo cargos jurídicos ou administrativos, à espera do dia em que o cursus honorum talvez (só talvez) acabe levando-o a um posto de comando militar. Isso parece ainda menos provável considerando o período de paz que Roma vive após a derrota dos macedônios.

A esperada notícia de uma nova guerra em perspectiva é, por fim, trazida por Políbio (sim, o famoso historiador grego), amigo e mentor de Cipião, quando vai visitá-lo nas montanhas da Macedônia: os celtiberos, na Espanha, estão agitados, e, talvez insuflados por Cartago, parecem prestes a se rebelar contra o domínio romano. Note-se que os celtiberos, por muito tempo, haviam sido súditos de Cartago, pois a Espanha era possessão cartaginesa até ser tomada por Roma durante a Segunda Guerra Púnica, e que fizeram parte do exército que os romanos, sob o comando de Cipião Africano, enfrentaram naquele conflito. São guerreiros formidáveis, que Cipião respeita e sempre desejou transformar em aliados de Roma. A campanha contra os celtiberos, concluída com a tomada da cidade de Intercácia, surge como uma oportunidade de retomada da carreira militar de Cipião e como um aquecimento para a guerra final contra Cartago. Treze anos depois da derrocada desta última, Cipião voltaria à Espanha e lideraria a tomada de Numância, que marcou a sujeição definitiva dos celtiberos. No devido tempo, esse povo produziria não apenas excelentes legionários, como ele esperava, mas também estadistas, generais, e inclusive imperadores.

Citei há pouco um período de paz vivido por Roma depois da vitória sobre a Macedônia; deveria ter dito "período de aparente paz", pois, durante esses anos, está em andamento uma espécie de "guerra fria" entre Roma e Cartago. Os cartagineses reconstruíram sua poderosa marinha de guerra e agora têm dois portos separados, um deles totalmente dedicado às atividades bélicas, e erigiram altos molhes em volta de todo o complexo, para impedir a espionagem a partir de navios passando por sua costa. Roma cometeu um grave erro dando ao inimigo tempo para refazer suas forças.

Muitos historiadores atribuem a longa duração das duas primeiras Guerras Púnicas (a Primeira durou 23 anos, e a Segunda, 17), ao menos em parte, a uma espécie de equilíbrio: enquanto os cartagineses eram superiores no mar, os romanos levavam vantagem em terra firme. De fato, as legiões romanas de então, embora ainda não tivessem atingido o grau de excelência ao qual chegariam mais tarde, já eram muito mais disciplinadas e versáteis que qualquer outro exército que algum povo do ocidente pudesse pôr em campo naquela época. Já os cartagineses, devido a sua experiência na navegação comercial, conheciam o mar e sabiam conduzir um navio. Além disso, os romanos consideravam o serviço militar uma ocupação viril e valorosa, que conduzia o homem à honra e à glória; seu exército era uma força homogênea, formada essencialmente por cidadãos. Os cartagineses, por outro lado, não pareciam achar as artes da guerra algo particularmente honorável; tinham um exército que era um verdadeiro saco-de-gatos, composto de mercenários oriundos de quase todos os cantos do mundo conhecido. Praticamente só os oficiais eram cartagineses. A marinha, em compensação, contava com uma participação maior de cidadãos.

Na penúltima parte do livro, Fábio e Cipião vão a Cartago como espiões, disfarçados de mercadores, para descobrir o máximo possível sobre o poder militar inimigo. Isso já é às vésperas da guerra final, e o comandante supremo cartaginês de então é um homem chamado Asdrúbal, que se diz descendente do legendário Aníbal, contra quem Cipião Africano, o avô adotivo de Cipião, lutou na Segunda Guerra Púnica; de certa forma, a história parece prestes a se repetir. O que os dois espiões descobrem é aquilo que Cipião já imaginava: Cartago não poupou dinheiro nem trabalho para preparar-se para a guerra. A armada e o exército estão a postos, e até mesmo foi ressuscitada uma tradição de tempos antigos, a tropa de elite conhecida como o Batalhão Sagrado. Nada de mercenários nessa força: os soldados são todos jovens oriundos de famílias nobres cartaginesas, educados para serem guerreiros esforçados, quase fanáticos, que defenderão suas posições até a morte. O fato de esse batalhão estar pronto para entrar em ação revela algo mais: que os cartagineses estão se preparando para a guerra há muito tempo, pois esses rapazes, sem a menor dúvida, vêm sendo treinados desde a infância.


O desfecho da história é épico, sangrento e definitivo, não trazendo surpresas, exceto uma: pouco antes da batalha final em Cartago, Cipião conhece um jovem oficial de nome Gneu Metelo Júlio César, que, claro, é o filho de sua amada Júlia com seu velho rival Metelo – oficialmente, pelo menos. Cipião só precisa somar dois mais dois para perceber que o rapaz é, na verdade, seu próprio filho ("verdade" fictícia, é claro, pois Gneu não é personagem histórico). Naturalmente, o jovem Gneu irá sobreviver à batalha, fazer uma carreira honorável, e, um dia, tornar-se patriarca do ramo César da gens dos Júlios – o que implicaria que Caio Júlio César, que nasceria quase meio século depois, poderia ser seu neto ou bisneto, e, portanto, descendente genético, embora não nominal, de Cipião! Claro que tudo isso é pura liberdade criativa de David Gibbins, e, de qualquer forma, a ideia apresenta uma inconsistência fatal: como já vimos, as linhagens, entre os romanos, só se perpetuavam pelo lado paterno, de modo que um filho de Metelo e Júlia não levaria "Júlio César" no nome – teria o nome da família do pai, não da mãe.

Gibbins demonstra um vasto conhecimento da matéria que está abordando – ele é envolvido com arqueologia, tendo inclusive dirigido pesquisas nos sítios de Cartago –, mas não é propriamente um narrador formidável: seus personagens são todos muito parecidos na índole e no modo de pensar, sentir e agir. Em diversas partes ao longo do livro, são inseridos no texto pequenos "ensaios" sobre política e guerra sob a forma de diálogos, que, embora fascinantes, quebram o ritmo da história, e, às vezes, aparecem em momentos pouco críveis, como quando Cipião, ainda jovem, fica sabendo que um assassino acaba de ser despachado para eliminar Petreu, o velho centurião que foi seu mestre na academia – e, em vez de sair correndo para tentar salvar a vida do velho homem, lança-se a uma discussão que ocupa várias páginas, com Fábio e outro amigo, Ênio, sobre as intrigas que rolam pelas ruas de Roma e sobre a quem esse assassinato iria beneficiar. Só depois de o assunto estar bem debatido e esmiuçado é que os rapazes se põem em movimento!… Não acho isso lá muito realista.

A leitura de Destruição de Cartago é empolgante, mas não sei se seria a mais indicada para adolescentes que acabam de descobrir o mundo antigo por meio de um jogo de computador, e provavelmente ainda sabem pouco sobre ele. Algum grau de conhecimento prévio sobre a história de Roma, sua cultura e organização militar, se não for essencial, é certamente de grande ajuda. Porém, o livro tem um mérito especial: apresenta ao leitor, seja ele quem for, um vislumbre da essência original de Roma, uma cidade que, na época retratada, estava-se tornando cada vez mais poderosa, mas cujos habitantes (até então) ainda se pareciam muito com os da Roma dos primeiros tempos, uma Roma pequena e pobre, cuja riqueza repousava na bravura e nas virtudes de homens como Rômulo, Caio Cévola, Horácio Cocles, Marco Corvo, entre tantos outros. A essência de um povo severo, muitas vezes inflexível, para quem honra, dever e lealdade eram quase tudo o que tinha importância na vida, e os que não agiam de acordo com essa crença eram vistos como indignos de serem considerados verdadeiros romanos.

sexta-feira, janeiro 17, 2014

Spartacus - Deuses da Arena + Sangue e Areia

Comprei os DVDs da série Spartacus todos de uma tacada só – o box custava consideravelmente mais ba­rato que comprar as temporadas separadamente, de modo que decidi que valia a pena aprofundar um pouco mais a mão no bolso na hora, considerando a economia que isso representaria a médio prazo. A caixa traz as três temporadas oficiais (Sangue e Areia, Vingança e Guerra dos Condenados), mais a minissérie prequel Origens: Deuses da Arena. Esta última foi produzida depois de Sangue e Areia, mas, como é próprio das prequels, narra fatos que ocorreram antes. Conforme vim a saber, o ator principal, Andy Whitfield, acabava de gravar Sangue e Areia, que seria a primeira temporada da série (em 2009/2010) quando foi diagnosticado com câncer. Enquanto Whitfield se tratava, os produtores executivos Sam Raimi (Homem-Aranha, Arraste-me Para o Inferno, entre outros) e Rob Tapert, além do criador da série, Steven S. DeKnight, decidiram aproveitar a estrutura e o elenco já montados para filmar Deuses da Arena, que, mesmo que não tivesse mais nenhuma qualidade (mas tem, e como!), já mereceria reconhecimento só pelo fato de não sofrer do mal que aflige quase todas as prequels: aquela coleção de eventos obviamente criados só para moldar-se aos fatos posteriores já conhecidos pelo públi­co, e que o espectador, por mais boa vontade que tenha, não consegue deixar de achar que ficaram artificiais (quem assistiu às duas trilogias de Star Wars sabe do que estou falando). Em Deuses da Arena, tudo se ajusta com naturalidade, chegando a dar a sensação de que a minissérie era algo que havia sido escrito antes, que, por um ou outro motivo, não ha­via sido produzido, e que foi desengavetado quando a oportunidade surgiu.

Infelizmente, o tratamento de Andy Whitfield não deu o resultado esperado, e ele faleceu em 2011, aos 39 anos de idade. Para substituí-lo no papel de Spartacus, foi recrutado o ator Liam McIntyre, que é quem aparece em Vingança e Guerra dos Condenados. Já que eu estava com tudo nas mãos, decidi assistir na ordem cronológica. Neste post, falarei sobre Deuses da Arena e Sangue e Areia, que são as partes que assisti até o momento – além de me permitir dar um pouco de vazão ao meu gosto por escrever sobre História (ah, vocês já tinham percebido? risos).

E, creiam-me, trata-se de entretenimento de altíssimo nível. Pessoalmente, não costumo aguentar longos perío­dos diante de uma tela: não consigo assistir a mais de um filme de longa metragem num dia, ou mais que dois epi­sódios de um seriado em sequência (muito excepcionalmente, três). Isso dá uma medida do quanto Deu­ses da Arena me prendeu a atenção: assisti a seus seis episódios no curto intervalo de menos de 24 horas, entre uma noite de sexta e a tarde do sábado, salientando que cada episódio tem em torno de uma hora de duração – o normal para séries de ação ou drama é de pouco mais de 40 minutos. Uma experiência muito intensa, quase hipnótica, que até me animou a perdoar as imprecisões históricas que percebi. O visual é perfeito, de encher os olhos, e a série não esconde (na verdade, escancara) que sua principal influência para as cenas de ação épica foi o filme 300: tal como nele, as sequências de luta são cheias de paradinhas e alternam a todo momento entre a velocidade normal e o slow-motion. Na verdade, 300 não foi pioneiro no uso desses recursos, pois, afinal, Matrix veio antes... De todo jeito, o resultado são imagens para fazer qualquer fã de filmes épicos babar o colarinho. É surpreendente pensar que algo de tal nível não foi feito para o cinema, e sim para a TV. Tudo isso se aplica também a Sangue e Areia, cujos 13 episódios "devorei" durante os dois finais de semana seguintes.

Deuses da Arena e Sangue e Areia tratam basicamente de gladiadores, e, sendo assim, exibem muitas cenas de luta. Muito esforço parece ter sido investido em tornar essas cenas tão realistas quanto possível, sem poupar o público da visão chocante de mortes e ferimentos – mas apenas quando isso era cenicamente interessante: a produção também não teve qualquer pudor de mostrar alguns absurdos, sempre que achasse que renderiam cenas impactantes. Quando alguém é degolado ou decapitado, por exemplo, o jorro do sangue, impulsionado pelas batidas finais do coração, parece real (quero dizer, tal como eu ima­gino que seria, já que nunca vi e espero nem ver tal coisa ao vivo); por outro lado, há uma cena em que Spartacus decepa as duas pernas de um oponente, aparentemente sem fazer qualquer esforço, com a facilidade de quem corta um par de linguiças – na verdade, cortar um membro não é tão fácil assim: exige uma lâmina muito afiada e uma enorme força física. Para completar, até ser eliminado com um último golpe, o sujeito fica se arrastando pela arena sem que sangue algum saia dos tocos de suas pernas!...

Os detalhes do dia-a-dia num ludus (palavra latina para escola, também aplicada às escolas especiais para o treinamento de gladiadores) foram bem pesquisados e reproduzidos, mas, em contraste com tal realismo, notei deslizes quanto à parte técnica dos jogos. Na Roma antiga (e no mundo da época), cada gladiador pertencia a uma classe específica, de acordo com as armas e técnicas de luta que utilizava, e cada classe especializava-se em enfrentar uma ou, no máximo, duas outras; na série, cada lutador enfrenta oponentes dos mais diferentes tipos, o que é com­preensível: os realizadores devem ter optado por fazer essa concessão a fim de dar mais variedade e dina­mismo às cenas de combate, tanto no treinamento dos gladiadores quanto nas lutas para valer. Além dis­so, não me consta que houvesse classes de gladiadores lutando com enormes machados e até martelos (o que, considerando o peso dessas armas, os tornaria oponentes muito lentos, presas fáceis para um espa­dachim bem treinado, por exemplo), e menos ainda que as regras rígidas que regiam os combates na are­na permitissem que um único gladiador enfrentasse dois, três ou até quatro oponentes ao mesmo tempo. Os mesmos deslizes estão presentes em Gladiador, de Ridley Scott, que segue sendo um de meus filmes preferidos... Portanto, como diriam os espectadores numa arena romana, missio ('misericórdia'): sejamos in­dulgentes.

A história narrada gira em torno de Quinto Lêntulo Batiato (John Hannah, da trilogia A Múmia), um influente lanista (proprietário de ludus) da cidade de Cápua, no centro-sul da Itália, no último século antes de Cristo. Batiato representa a terceira geração de sua família a dedicar-se ao negócio dos gladiadores, mas nutre outras ambições, a maior delas a de ingressar na política, e um dia, quem sabe, chegar ao senado de Roma – o que, salvo em casos muito excepcionais, era a mais alta posição de poder a que um homem podia esperar chegar naqueles tempos. Em seus esforços para conseguir isso, ele conta com o auxílio de sua bela, astuta e inescrupulosa esposa, Lucrécia (Lucy "Xena" Lawless). Se nada mais de positivo puder ser dito sobre o casal, parece que os dois realmente se amam, numa época em que quase todos os casamentos eram arranjados. Lucrécia quer ver o marido conquistar poder e glória, e, para ajudá-lo, lança mão de todos os recursos ao seu alcance, lícitos ou não; Batiato, por sua vez, dá muito valor à inteligência da esposa e sempre se mostra feliz e agradecido pelo apoio dela. Não parece ter qualquer relevância o fato de ambos amiúde dedicarem-se a passatempos sexuais com seus escravos – ele às claras, exercendo suas prerrogativas de homem, ela mais discretamente, mas com igual entusiasmo. Aliás, nudez e sexo (nunca explícito, mas por vezes bastante "gráfico") fazem parte da série tanto quanto as lutas entre gladiadores, tentando retratar como era a vida numa época e numa cultura em que essas coisas não eram tabus.

(E, caso estejam se perguntando, a resposta é sim: em Spartacus, toda a geração masculina que cresceu assistindo a Xena: a Princesa Guerreira e imaginando Lucy Lawless nua tem a chance de finalmente realizar o sonho – risos.)

Quando Deuses da Arena começa, o grande anfiteatro de Cápua ainda está em obras, e as lutas acontecem numa acanhada arena improvisada, na qual os espectadores ficam tão próximos dos gladiadores, que arriscam ser atingidos por sangue espirrado, ou pior, por golpes perdidos (as duas coisas acontecem!). Batiato, que concorre com outros lanistas pela liderança no fornecimento de lutadores para os jogos, está particularmente interessado em assegurar a presença de seus homens nos eventos que marcarão a inauguração da nova arena. A melhor carta que tem na mão é o gaulês Gannicus (Dustin Clare), treinado em seu ludus e, segundo a opinião geral, o melhor gladiador de Cápua e região. Só que colocar lutadores na arena nos jogos importantes – com todo o dinheiro e prestígio que isso pode trazer – é um prêmio buscado por muitos, e disputado de modos bem mais escusos que pelo simples confronto honesto de habilidades de combate entre gladiadores oriundos dos diferentes ludi. Tráfico de influências, troca de favores, corrupção, intimidação, assassinato, nenhum desses expedientes é descartado por quem busca a proeminência nesse meio.

Para tentar ganhar as boas graças de Túlio, um figurão da cidade, Batiato compra por valor absurdo um escravo aparentemente comum pertencente a ele: outro gaulês, Crixus (Manu Bennett), que até então trabalhava carregando pedras na construção da arena, e por quem, a princípio, ninguém dá nada como gladiador. Só que ele se mostra tão determinado, que não demora a ganhar a marca da irmandade (um "B", de Batiato, gravado a ferro em seu antebraço), que distingue os gladiadores de verdade dos simples aspirantes, que ainda convivem com o pavor de serem vendidos para as minas – um destino muito pior que lutar na arena. A seguir, Crixus vai galgando posições até ser considerado o melhor murmillo da casa de Batiato, e depois, o melhor de toda Cápua – até já haver quem o considere capaz de ganhar o título de campeão da cidade, que atualmente pertence a Gannicus. Há entre os dois uma rivalidade pontuada de respeito: para Crixus, Gannicus é um grande gladiador; para Gannicus, Crixus é um novato que demonstra suficiente coragem e força de vontade para ser capaz de ameaçar-lhe a posição.

Obs.: O murmillo é a classe de gladiador que luta com um gládio (espada curta), e um escudo grande. O gládio era uma das armas mais comuns no mundo romano, usada também pelos legionários, e deu origem à própria palavra gladiador: parece que, no começo da história dos jogos, era a única arma permitida – a diversificação de estilos veio mais tarde. Gannicus é um dimachaearus, que usa duas espadas e uma técnica totalmente diferente, já que, como não porta escudo, as espadas precisam encarregar-se ao mesmo tempo do ataque e da defesa. Spartacus, por fim, começa como um thrax (trácio; casualmente, ele é nativo da Trácia, cujos guerreiros inspiraram essa classe de gladiador), usando a sica (espada curva) e um escudo menor que o do murmillo. Mais tarde, Batiato determina que ele passe a atuar como dimachaearus.

O melhor amigo de Gannicus é Enomaus (Peter Mensah, o emissário persa de 300), um gladiador mais velho, que vive desde criança na casa de Batiato. Foi adquirido no tempo em que o ludus ainda era dirigido pelo pai de Quinto, e praticamente cresceu junto com o atual chefe. Enomaus era o principal gladiador da casa até ser gravemente ferido, cerca de um ano antes, ao enfrentar Theokoles, conhecido como "a Sombra da Morte", provavelmente o gladiador mais temido da República (lembrem-se de que, nessa época, Roma ainda não era um império). O longo período que Enomaus teve que ficar longe da arena depois disso deu oportunidade à ascensão de Gannicus – um fato que não abalou a amizade dos dois –, mas, ao mesmo tempo, o ocorrido revestiu Enomaus de uma espécie de aura mística, pois diz-se que ele foi o único homem a sobreviver a uma luta com Theokoles. Só agora ele está plenamente recuperado, e anseia pelo dia de seu retorno à arena, para provar a Batiato, ao público e, principalmente, a si mesmo, que ainda é um grande gladiador. Porém, seu desejo não está destinado a realizar-se, pois, em vez disso, ele acaba sendo designado para o posto de doctore, um misto de professor e feitor, responsável pelo treinamento dos gladiadores e por supervisionar seu comportamento.




Por falar nisso, é interessante a ênfase que Deuses da Arena põe numa particularidade dos gladiadores: em sua maioria, eles eram escravos (havia gladiadores livres, mas esses eram exceções), e estavam entre os raros escravos a quem era permitido, e até estimulado, que mantivessem um certo tipo de orgulho. Muitos deles realmente sonhavam com a glória na arena, não só pela esperança de liberdade e talvez até de riqueza que isso poderia trazer, mas pela glória em si, e dedicavam lealdade a seu lanista. No que diz respeito a merecer uma tal lealdade, Batiato mostra-se um tanto ambivalente: em muitos momentos, até dá a impressão de ser um senhor justo, que dá valor às capacidades de seus escravos e ouve o que eles têm a dizer – mas, quando se trata de pavimentar seu caminho até o poder, não se detém diante de nada, e não hesita em submeter seus homens a qualquer tipo de situação, mesmo as mais humilhantes.

Passando de Deuses da Arena para Sangue e Areia, somos apresentados à figura central da série, Spartacus em pessoa. Muito pouco ou quase nada é sabido sobre o Spartacus histórico; Plutarco, assim como outros historiadores menos notórios, registrou que ele era provavelmente de origem trácia (a província romana da Trácia incluía partes das modernas Bulgária, Grécia e Turquia) e que serviu numa das chamadas auxiliae, tropas auxiliares do exército romano nas quais se alistavam não-cidadãos nativos dos países conquistados. E teria desertado de sua unidade, o que era um dos piores crimes previstos no código militar romano: um legionário desertor, se capturado, seria sumariamente executado, enquanto um membro das auxiliae culpado do mesmo delito seria condenado à escravidão – que foi o que aconteceu com Spartacus. Para compreender a diferença de status envolvida, basta lembrar que, para ser um legionário, você precisava ser cidadão romano por direito de nascimento, enquanto os soldados auxiliares somente ganhavam a cidadania (transmissível aos descendentes) ao final de seu tempo de serviço, que variou conforme a época – podia ser de 15 a 25 anos. Na série, a fim de criar empatia do público para com o herói, Steven S. DeKnight fez com que tanto o alistamento quanto a deserção de Spartacus ocorressem por motivações louváveis: ele aceita entrar para as tropas auxiliares não como uma opção de carreira, mas unicamente porque os romanos prometem que, juntos, expulsarão definitivamente os guetas (não faço ideia de que povo seja esse), inimigos dos trácios que ameaçam suas cidades. Já a deserção acontece quando seu comandante romano, quebrando a palavra dada, ordena que as legiões da Trácia (acompanhadas de suas auxiliae), marchem para o leste a fim de se unirem às forças que enfrentam a rebelião de Mitrídates, o que significaria deixar a própria Trácia à mercê dos guetas. Spartacus, então, foge para tentar salvar a vida de sua esposa, Sura (Erin Cummings, uma gata, por falar nisso). Porém, é claro, os dois são capturados e separados, e Spartacus acaba indo parar em Cápua. Toda essa parte, que fique claro, é fictícia: não se sabe nada sobre a vida de Spartacus antes de se tornar um gladiador, e é muito provável que, na realidade, sua deserção tenha ocorrido sob circunstâncias muito menos heroicas. Mas isto é ficção, não História, então vamos adiante.

Como dito antes, a pena para um soldado das auxiliae que desertasse era a escravidão; portanto, o mais provável é que o Spartacus histórico, ao ser capturado, tenha sido enviado a um mercado de escravos, e lá, devido a seu tamanho, força e experiência militar, naturalmente tenha sido comprado para ser treinado como gladiador. DeKnight, porém, quis que a entrada do herói no mundo das arenas acontecesse em grande estilo, então pôs em seu roteiro que ele foi condenado à morte (a fidelidade ao aspecto histórico não foi uma preocupação). Era comum, naqueles tempos, que as execuções públicas de criminosos condenados fossem realizadas na arena, antes de começarem os jogos propriamente ditos – e daí até alguém pensar num modo de tornar essas execuções mais "emocionantes", foi um pulo. Então, em vez de serem simplesmente conduzidos amarrados até o centro da arena e lá decapitados sem mais delongas, os criminosos maiores (em tamanho) e mais fortes passavam a receber uma arma e a ter que enfrentar gladiadores treinados, encarregados de sua execução. É claro que essas lutas costumavam ser muito curtas e que, de modo geral, pouca diferença faziam em relação a uma execução comum, a não ser por prolongarem o sofrimento do condenado, mas surpresas podiam acontecer. A possibilidade de um condenado realmente derrotar um gladiador era quase nula, mas, se ele lutasse bem e ganhasse a simpatia do público, este último podia clamar ao organizador dos jogos que lhe concedesse clemência; nesse caso, a sentença de morte podia ser comutada para a de escravidão – o que até poderia, sim, ser o passaporte para uma carreira bem-sucedida como gladiador e, quem sabe, um dia, para a liberdade. Isso podia realmente acontecer, e é a alternativa que DeKnight adota, mas, é claro, de modo extremamente hiperbólico, fazendo com que Spartacus, seminu e armado apenas com uma espada, derrote não um, mas quatro gladiadores totalmente equipados. Ele é, então, comprado por Batiato e vai parar no ludus deste, onde viverá muitas "aventuras sangrentas" (citação à fala do lanista Proximo, de Gladiador, devidamente creditada).

Como seria de se esperar, a vida no ludus é brutal, e um recruta recém-chegado precisa provar seu valor várias vezes e de diversas maneiras antes que os gladiadores veteranos se dignem sequer a lhe dirigir a palavra sem ser para insultar e provocar. Spartacus faz amizade com Varro, um cidadão romano reduzido à escravidão por dívidas de jogo, e constantemente se desentende com Crixus – é difícil dizer qual dos dois provoca o outro mais vezes. A princípio considerado por Batiato e por Enomaus como um animal indomável, o trácio vai aos poucos entrando nos eixos, quando o lanista lhe acena com a promessa de que poderá encontrar sua esposa e trazê-la para que os dois fiquem juntos e um dia obtenham sua liberdade. É essa esperança que ainda empurra Spartacus para a frente e o anima a sobreviver, mesmo quando isso parece impossível; porém, ele descobrirá que o talento de certos homens para a perfídia e a traição é maior do que poderia imaginar, e que apenas coragem e habilidade com a espada não podem defendê-lo contra esses males.

Um grande problema de filmes ou séries com ambientação histórica é que as pessoas que não pos­suem conhecimento prévio sobre o assunto (ou seja, a maioria do público) tendem a aceitar o que é mostrado como realidade, o que nem sempre é o caso... Aliás, na vasta maioria das vezes, não é. Só para dar um exemplo, há um gladiador chamado Barca, de quem se diz que é nativo de Cartago (que a dublagem chama de "Cártago"... Não pela primeira vez, dói ver a falta de cultura dos tradutores que andam por aí), e que, quando "os cártagos" (Arrrgh...) foram derrotados pelos romanos, milhares deles morreram nas arenas, sendo Barca um dos poucos que sobreviveram. Acontece que os romanos destruíram Cartago ao vencerem a Terceira Guerra Púnica, em 146 a.C. (detalhes aqui), mais de 70 anos antes da revolta de Spartacus... Isso dá uma ideia do grau de preocupação com a História que norteou os responsáveis pela série. O próprio Rob Tapert, num dos extras (aqueles a que ninguém assiste) incluídos no último disco de Sangue e Areia, diz que perguntou a Steven S. DeKnight o quanto ele sabia sobre História e, ao ouvir em resposta "muito pouco", respondeu: "Ótimo, pois não ligo a mínima para isso". Creio que isso diz tudo. Então, a quem estiver me lendo sem ter ainda visto a série e tenha planos de fazer isso, reitero que é entretenimento de primeira classe – mas só. No máximo vinte por cento do que você vai ver é História, e o restante é ficção. Se isso estiver bem claro e presente na mente durante todo o tempo, Deuses da Arena e Sangue e Areia podem ser recomendados com entusiasmo a qualquer fã de épicos da Antiguidade. Embora tenha sido feita para a TV, a série nada fica a dever às melhores produções desse tipo feitas para o cinema desde 2000, quando Ridley Scott e seu Gladiador resgataram o gênero do limbo onde se encontrava havia décadas.

quarta-feira, outubro 22, 2008

Pinceladas clássicas

Houve tempos em que a cultura geral era vista como um dos componentes mais importantes da bagagem de conhecimento de uma pessoa. Não fazia diferença se você estivesse estudando para ser um advogado, médico, engenheiro, administrador... Era considerado indispensável ter algum conhecimento de História, literatura, mitologia e campos afins, porque não era concebível que uma pessoa que se pretendia instruída não soubesse ao menos o básico sobre as raízes culturais de nossa civilização e suas grandes realizações. Isso foi antes da era da especialização, cujos amargos frutos a atual geração está colhendo: a sociedade incentiva cada um a se aperfeiçoar em sua própria profissão e ignorar o resto do universo. Não estou dizendo que a especialização seja ruim em si mesma, mas ela pode estimular a fragmentação do conhecimento - e esta, sim, é uma praga em todos os sentidos, um poderoso agente perpetuador da ignorância.

No tempo em que um pouco de conhecimento clássico era considerado parte essencial do cabedal de qualquer pessoa que tivesse atingido um determinado grau de instrução, expressões como estas abaixo eram usadas, não largamente, mas com uma certa freqüência, em situações as mais diversas: um discurso numa festa, uma defesa judicial, um artigo que se enviava para a página de "opinião do leitor" num jornal... As pessoas podiam usá-las porque tinham cultura para tanto, e também porque podiam ter confiança de que seus ouvintes ou leitores as compreenderiam. Hoje, com exceção de um punhado das mais populares ("força hercúlea", "presente de grego", "agradar a gregos e troianos"), essas figuras de linguagem estão em extinção, o que eu acho realmente uma pena - elas deixavam mais interessantes uma série de situações cotidianas. Como um exercício agradável, fiz um pequeno apanhado de algumas delas, com a explicitação de seus significados. Ordenei-as numa seqüência temporal dos eventos que deram origem a cada uma, dos mais antigos para os mais recentes.

1. O leito de Procusto: Damastes era um salteador de estrada que aterrorizava os arredores da cidade grega de Elêusis. Entediado de apenas roubar e matar, igual a todos os outros bandidos, ele inventou uma variação: quando um viajante lhe caía vivo nas mãos, era amarrado ao seu leito de ferro e "adaptado" ao tamanho deste: os mais altos tinham um pedaço das pernas cortado, enquanto os mais baixos eram violentamente esticados com cordas até ficarem do comprimento do leito. Isso valeu a Damastes o apelido de Procusto ("o Estirador"). Essa revoltante diversão terminou com a chegada do herói Teseu, que deu um fim ao bandido infligindo-lhe o mesmo tratamento que ele dera a tantos infelizes. Em lembrança a essa lenda, a expressão "leito de Procusto" designa algum padrão rígido e arbitrário no qual todos são forçados a se enquadrar.

2. O pomo da discórdia: Conta-se que, por ocasião do casamento do herói Peleu e da nereida Tétis (que viriam a ser os pais do célebre Aquiles), todos os deuses haviam sido convidados, exceto Éris, a Discórdia, que foi deixada fora da lista justamente para evitar brigas na festa. Não adiantou: despeitada por não ter sido convidada, Éris apareceu na festa, jogou uma maçã ("pomo") de ouro entre as deusas, e desapareceu, sem dizer uma palavra. No pomo estava gravada uma frase: "À mais bela". Foi o suficiente. Imediatamente três das principais deusas começaram a reclamar o prêmio: Hera, esposa do deus supremo, Zeus; Atena, filha de Zeus e deusa da sabedoria; e Afrodite, também filha de Zeus, deusa do amor. O papel de juiz coube ao pastor Páris, na verdade filho de Príamo, rei de Tróia, que deu a vitória a Afrodite - mas não fazia muita diferença, pois, qualquer das três que escolhesse, ele ganharia a inimizade mortal das outras duas, como de fato aconteceu. A expressão "pomo da discórdia" pode significar qualquer coisa, concreta ou abstrata, que cause disputas acirradas. Uma observação: essa história, como se viu, apresenta Páris já adulto numa época em que Aquiles ainda não havia nascido, enquanto outros episódios da saga da Guerra de Tróia sugerem que a diferença de idade entre os dois não era maior do que alguns anos. Discrepâncias cronológicas são comuns em ciclos lendários, já que eles aglutinam uma série de histórias que, na origem, eram independentes umas das outras.


3. O calcanhar de Aquiles: Esta é outra daquelas expressões de origem clássica que deverão sobreviver, pois é de uso tão comum que acaba por se auto-alimentar: muita gente a conhece e usa, mesmo sem saber quem foi Aquiles. Como vimos, o tal cara era filho de Peleu, rei da Tessália e famoso herói, e da ninfa marinha Tétis. Conta-se que esta última, desejando fazer o filho imortal, mergulhou o bebê no rio Estige, o que o tornou invulnerável - com exceção do fatídico calcanhar, por onde a mãe o estava segurando e que, por isso, não foi tocado pela água milagrosa. Adulto, Aquiles veio a ser o maior guerreiro grego e fez de seu nome uma lenda durante a Guerra de Tróia. Eventualmente, ele se apaixonou por Polixena, uma das filhas do rei Príamo, e, para poder desposá-la, ofereceu-se para usar sua influência entre os gregos para conseguir que se estabelecessem negociações de paz. Então, durante uma reunião de negociação (0u, segundo outros, já em seu casamento), Aquiles foi ferido no calcanhar, seu único ponto vulnerável, por uma flecha envenenada atirada por Páris - que era covarde, mas ótimo arqueiro - e morreu. Claro que isso pôs fim às esperanças de paz: a guerra foi retomada e, ao fim de mais um ano, Tróia caiu. "Calcanhar de Aquiles", como a história deixa óbvio, significa, simplesmente, um ponto fraco em alguém ou alguma coisa. O curioso nisso tudo é que o detalhe da invulnerabilidade de Aquiles é criação de algum poeta anônimo em um período já relativamente tardio da História grega, pois é em vão que se procurará por qualquer menção a ela na Ilíada de Homero. O Aquiles de Homero usa uma armadura (quase um canto inteiro do poema é dedicado a narrar sua forjadura pelo deus Hefestos) e chega a sofrer um ligeiro ferimento em combate.

4. A teia de Penélope: Alguns anos após chegar a notícia de que a Guerra de Tróia havia acabado, Ulisses (ou Odisseu), rei da ilha grega de Ítaca, ainda não havia retornado à sua terra, nem havia qualquer notícia sobre seu paradeiro. Muitos já o davam como morto, acreditando que tivesse perecido no mar durante a viagem de volta. A rainha Penélope, porém, mantinha a esperança de ver o marido retornar, e por isso recusava obstinadamente as propostas de casamento que recebia de diversos nobres da ilha - todos de olho no trono. Conforme o tempo passava, a pressão para que escolhesse um novo marido aumentou, e a rainha arquitetou uma artimanha: anunciou que faria sua escolha depois que terminasse de tecer a mortalha de seu sogro, Laertes (será que era normal, naquela época, tecer mortalhas para pessoas vivas?). E, para ganhar mais tempo, ela desmanchava à noite a parte tecida durante o dia. Uma "teia de Penélope", então, é aquele trabalho que está sempre sendo feito, mas nunca é concluído.

5. Vitória de Pirro: Pirro do Épiro foi coroado rei da Macedônia em 287 a.C. Além de ter sobre os ombros o pesado encargo de governar um reino e comandar um exército que ainda sonhavam com a figura semidivina de Alexandre, ele também teve de se preocupar com a ameaça representada por certa cidade italiana que, até então pouco importante, estava agora procurando se impor como uma nova potência na bacia do Mediterrâneo: Roma. Bom estrategista e contando com uma arma secreta - elefantes de guerra e arqueiros treinados para atirar do alto do lombo dos paquidermes -, Pirro venceu os romanos por duas vezes no campo de batalha. Porém, mesmo na derrota, as destemidas legiões romanas nunca deixavam de mostrar ao inimigo de que matéria eram feitas: essas vitórias custaram tantas baixas, que o rei teria declarado: "Mais uma vitória como essas duas, e nós, os vencedores, é que teremos que oferecer nossa rendição aos vencidos!" Daí surgiu a expressão "vitória de Pirro", que significa uma vitória obtida a um custo excessivamente alto, ao ponto de não valer a pena.

6. Paz cartaginesa: Outros, além de Pirro do Épiro, desafiaram Roma quando esta ainda era uma potência "emergente", como diríamos hoje. Destes, a mais digna de nota, e a que mais perto chegou de obter a vitória, foi sem dúvida Cartago, cidade de origem fenícia situada no norte da África, e que, já independente de qualquer obrigação para com os reinos fenícios do leste, enriqueceu muito graças ao comércio marítimo no Mediterrâneo. Roma e Cartago eram, portanto, duas cidades poderosas, procurando ampliar suas esferas de influência numa mesma região. O resultado não surpreendeu: as duas entraram em choque, e não foi uma vez só. As assim chamadas Guerras Púnicas duraram de 264 a 241, de 218 a 201 e de 149 a 146 a.C. Do ponto de vista militar, os romanos, formidáveis num combate de infantaria, eram medíocres como marinheiros - já com os cartagineses, a recíproca era verdadeira. Isso criava um certo equilíbrio que pode explicar a longa duração das duas primeiras guerras. No entanto, e apesar de Cartago ter produzido dois dos mais brilhantes generais da Antigüidade - Amílcar Barca na Primeira Guerra Púnica, e seu filho, Aníbal, na Segunda - ambas terminaram com vitórias romanas. E, fosse pela falta de outro comandante do mesmo calibre, ou porque Roma evoluíra muito em matéria militar no período após a Segunda Guerra Púnica, o fato é que a Terceira foi breve e decisiva. No verão de 146 a.C., os romanos finalmente tomaram Cartago. Todos os homens foram mortos; mulheres e crianças, escravizadas. Os vencedores foram metódicos em se certificar de que nenhuma pedra ficasse sobre outra na cidade, e depois espalharam sal sobre os destroços e em volta deles, para que nem capim crescesse mais ali. Brutal? Sem dúvida, mas, se Cartago tivesse saído vitoriosa, Roma teria tido o mesmo destino. A verdade é que ambos os lados sofreram o diabo nessas guerras, e qualquer um que vencesse no final iria querer ter a certeza de ter-se livrado do outro de uma vez por todas. Desse sangrento episódio ficou a expressão "paz cartaginesa", que significa a paz obtida mediante a completa aniquilação do inimigo.