quarta-feira, agosto 24, 2016

O Filho do Açougueiro

É sempre uma satisfação descobrir um novo autor promissor no campo da literatura de imaginação, e de modo especial se ele for brasileiro. Ainda melhor quando se trata de um coestaduano nosso, e é o caso aqui: Christian David, gaúcho de Porto Alegre, é um dos organizadores da Odisseia de Literatura Fantástica, que, ao lado do Fantaspoa (para os "estrangeiros": Festival de Cinema Fantástico de Porto Alegre), é um dos eventos que, durante alguns dias por ano, sacodem a poeira da rotina na vida dos amantes de ficção científica, fantasia e terror da capital gaúcha. E, quando me refiro a David como um "novo autor", quero meramente dizer que é novo para mim, ou quase isso: já tinha encontrado um ou dois de seus contos em coletâneas que não cheguei a comentar, mas este é o primeiro livro dele em "carreira solo" no qual tenho a oportunidade de pôr as mãos e os olhos. A publicação é de 2013, e quase todas as histórias já haviam aparecido antes em outros lugares, o que significa que o cara já deve estar em atividade há um tempo considerável.

As pessoas que leem meus textos às vezes me perguntam por que não escrevo um livro, já que (dizem elas, e até me atrevo a acreditar que não estejam de todo erradas) escrevo tão bem. Ocorre que, embora o leigo em literatura geralmente não saiba disso, escrever bem é apenas metade do negócio, ou talvez ainda menos. Sei que tenho bom domínio do idioma, bom vocabulário e, mais importante, gosto de escrever – mas a capacidade que algumas pessoas têm de criar narrativas com início, meio, fim e tudo o mais que uma boa história precisa ter, é coisa que sempre me intrigou, causou admiração, assombro e uma ponta de inveja. Sejamos francos: um iceberg de inveja, embora seja uma inveja boa, se é que isso existe. Poderíamos usar a música como comparação: qualquer pessoa que estude e pratique pode aprender a tocar razoavelmente um instrumento; algumas têm uma facilidade inata que pode fazer com que seu estudo e prática as leve a tocar muito bem; mas compor, isto é, criar músicas novas, isso é totalmente outra coisa. É uma capacidade que você simplesmente tem ou não tem. O mesmo acontece com o dom de inventar histórias, e não pensem que já não tentei, e bastante: por vezes a coisa pareceu estar indo bem, mas sempre chegava uma hora em que, por mais que quebrasse a cabeça, não sabia como continuar. Retomando a metáfora musical, o que faço neste blog é improvisar em cima de melodias alheias; considero-me um hábil instrumentista da literatura, mas sempre terei a frustração de não ser um compositor.

Christian David é um compositor. Um contador de histórias, que é o que todo escritor que se preza deveria querer e se esforçar para ser antes de mais nada. Seus contos têm aquela característica sem nome e impossível de definir, que mantém um leitor lendo, e seus temas exemplificam o quão longe a imaginação humana pode chegar, uma vez que a libertemos das amarras da preocupação com o "verossímil". Alguns contos são coisas curtas e bizarras, com aquela rara qualidade de um texto que atinge o leitor como se fosse um cruzado de direita desferido por um campeão peso-pesado, e, para mostrar logo de saída a que veio, O Filho do Açougueiro já começa com um destes, intitulado O Mercador de Cabeças, que consegue o feito de, em suas pouquíssimas linhas, criar uma expectativa no leitor e em seguida subvertê-la por completo com uma reviravolta brutal, exigindo uma pausa para recuperar o fôlego antes de passar para a próxima história. E a próxima é Aproveite o Dia, conto de terror ambientado no Velho Oeste, sobre um pistoleiro errante que chega a uma cidade quase vazia onde ainda funciona um saloon… Um saloon que tem como proprietária uma feiticeira vodu, onde as coisas não são como parecem, e, à semelhança do que acontecia com o Hades, reino dos mortos na mitologia grega, se você provar qualquer alimento lá dentro, não conseguirá mais sair. Crossovers entre gêneros que aparentemente não têm nada em comum (terror e faroeste?) produzem um efeito muito bacana quando dão certo, mas exigem bastante habilidade de quem se meta a tentar. David conseguiu.

O próximo conto é o que dá título ao livro, e o personagem que dá título ao conto é Guilherme, um pré-adolescente que vive em algum país indeterminado, em algum momento da Idade Média – ou em algum mundo fantástico inspirado nela, se levarmos em consideração a participação dos míticos trolls na história. O uso de nomes em português parece ser estratégico: o protagonista chama-se Guilherme, seus irmãos são Pedro, João e assim por diante, mas isso pode ser visto como mera consequência do fato de a história estar sendo contada em português. Ela talvez se desenrole na Inglaterra, onde os nomes originais dos personagens seriam William, Peter e John, ou na França, onde seriam Guillaume, Pierre e Jean, ou na Alemanha, e nesse caso eles se chamariam Wilhelm, Peter e Johann… Em qualquer dos casos, os nomes podem ser aportuguesados, tornando-se exatamente os que são usados na narrativa – um recurso engenhoso para manter a indefinição em relação ao local. Guilherme é o sexto dos sete filhos do açougueiro de um vilarejo qualquer desse reino medieval indeterminado. Ter uma perna defeituosa, como ele tem, seria uma coisa ruim em qualquer situação; pior num lugar e num ambiente cultural onde o valor de uma pessoa é medido pela sua capacidade para o trabalho braçal (que, apesar do nome, também costuma exigir boas pernas), e pior ainda numa família que já tem cinco filhos fortes e saudáveis. Por causa de tudo isso, os pais o veem como pouco mais que outra boca para alimentar, uma da qual eles se livrariam se pudessem. O fato de ele ser, de longe, muito mais inteligente que qualquer de seus irmãos não tem relevância para ninguém… Até o dia em que os trolls invadem o vilarejo e nenhum braço forte pode mais assegurar a sobrevivência da família – mas talvez um cérebro ágil possa.

A seguir, temos Arena, uma ficção científica num futuro distópico, depois de uma tal "quinta grande guerra", que deixou de herança resíduos radioativos que alteraram o código genético da população sobrevivente, dando nascimento tanto a criaturas bizarras e assustadoras quanto a seres de aparência humana normal, mas dotados de poderes especiais – poderes esses que podem se manifestar em qualquer fase da vida e cuja exata natureza não se pode prever até que eles efetivamente apareçam. Alguns indícios, em especial a menção à lenda do Curupira como fazendo parte dos "mitos antigos da região", apontam que os eventos narrados ocorrem no Brasil, ou, pelo menos, onde nosso país costumava ficar. A protagonista adolescente, Alena, filha da governadora das "Cidades Irmãs", recebe da mãe a missão de localizar seu tio (ou seja, o irmão da governadora), um homem cuja mutação se manifestou sob a forma de um tamanho e força absurdos, e que optou por viver como um eremita na região selvagem que cerca as Cidades. Agora, Andrélia (esse o nome da governadora) precisa da ajuda do irmão para manter-se no poder, já que três governantes regionais a desafiaram para uma disputa que será resolvida na arena (daí o título do conto), com um embate entre seus campeões. A história tem um quê de Jogos Vorazes, não por causa da parte do combate, que é muito diferente do que encontramos na obra de Suzanne Collins, mas pelo clima pós-apocalíptico mesmo. E, mais uma vez, esperem o inesperado.

Mencionar o Curupira me faz lembrar: o folclore brasileiro surge novamente em O Procedimento Z, embora de uma forma que dificilmente imaginaríamos. Curupiras, iaras e outros seres míticos da nossa cultura popular possuem, na verdade, uma civilização multirracial e altamente desenvolvida, que utiliza harmonicamente a magia e a tecnologia. Essa civilização existe oculta em cidades subterrâneas localizadas debaixo das matas, e seus integrantes se empenham muito em manter-se incógnitos aos habitantes da superfície (quer dizer, nós), mas, como algum contato ou avistamento ocasional é inevitável, eles espalharam as lendas, que os apresentam de uma maneira mais simples e como se fossem meras criações da imaginação popular. A mais prestigiosa agência policial e de inteligência do mundo subterrâneo é a Superintendência de Apoio ao Combate ao Crime Intermundos (a sigla é SACCI *gargalhadas*), cujos agentes usam uniforme preto com um capacete vermelho (*mais gargalhadas* Isso é GENIAL!). Aproveitando o ensejo, o conto presta uma merecida homenagem a Monteiro Lobato.

E o livro tem mais a oferecer: A Dona do Sorriso parece uma paráfrase em prosa (prosa poética, note-se) de um poema de Mário Quintana sobre a morte; Última Memória revisita as histórias de lobisomens, mostrando como um ponto de vista diferente pode dar uma cara nova mesmo a um conceito já tão conhecido. Dívida tem elementos sobrenaturais, que, por sinal, são a chave do enredo, mas cativa mais pelo retrato doloroso que traça da vida e dos sofrimentos de um adolescente nerd. Prometeus resgata uma história da mitologia grega (que já mencionei certa vez) e a usa para abordar um tema terrivelmente atual: os interesses econômicos por trás da indústria médica, que podem estar motivando decisões comerciais que causam a perda de milhares de vidas humanas, quando salvá-las seria possível – mas não seria lucrativo. Os personagens principais são os doutores Maurício Prometeus e Fernando Áquila (em algumas versões do mito grego, é de fato uma águia, e não um abutre, a ave que devora o fígado do titã acorrentado). A história tem um efeito geral horripilante, para o qual a citação mitológica e a abordagem contemporânea são meros ingredientes.

Sempre digo que altos e baixos são normais em livros de contos, e aqui não é diferente, mas os baixos não são nada de abissal, por assim dizer. Rinaldo é um conto de vampirismo sem nada de muito especial (eu, pelo menos, não encontrei), mas que cumpre seu propósito de entreter. Esporte Primitivo tem uma bela e sinistra premissa inicial: uma invasão alienígena totalmente diferente das convencionais, que consiste, pelo menos inicialmente, em tomar posse da mente dos seres humanos, assumindo, em consequência, o controle sobre as funções do corpo; pena que termine num anticlímax, com uma resolução, na minha opinião, bastante ingênua. Entretanto, o autor facilmente se recupera dessa pequena derrapada: mais e melhores histórias se seguem. Em Tocaia, um veterano caçador se põe à espreita do legendário chupacabras, que será (pensa ele) a coroação de sua carreira, caso consiga juntar a cabeça empalhada do monstro às tantas de feras de todos os tipos que já adornam as paredes de sua casa – mas, para não fugir ao hábito de Christian David, o desfecho será muito diferente do que o personagem espera, para não falar do leitor. Xavier e o Lobisomem reconta um importante capítulo da história do Brasil acrescentando tempero sobrenatural.

As últimas histórias são como que um retorno à realidade, pois não envolvem elementos sobrenaturais, nem de ficção científica, mas enfocam a dita realidade através do olhar e, principalmente, dos sentimentos dos personagens; ou seja, podem tratar da realidade, mas o fazem por meio de uma visão subjetiva, e todas são histórias dolorosas, cada uma de uma maneira diferente. O Esgrimista tem como protagonista um delegado de polícia, homem amargo, endurecido por tudo o que viu e passou em longos anos dedicados à profissão, e por uma vida que não foi nada fácil, mesmo antes de entrar para o serviço da lei. Eis então que, numa dessas brincadeiras que o destino nos arma, ele vê chegar algemado à sua delegacia o mais cruel dos bullies que o perseguiam em sua adolescência, justamente aquele que o "presenteou" com a cicatriz que ele agora leva no rosto. As décadas passadas desde então transformaram o garotão rico, atlético e popular (que achava tão divertido atormentar um pobre nerd) num farrapo de ser humano, arruinado pelo vício do álcool e, agora, acusado do assassinato da própria esposa. Diante disso, o que fazer? Vingar-se? Perdoar? Simplesmente agir com justiça? Não é uma decisão fácil. Na vida, geralmente sabemos qual a coisa certa a fazer numa determinada situação, mas nem sempre temos forças para fazê-la.

O penúltimo conto, Minha Alma nas Mãos de Manoela, talvez seja o que apresenta o tratamento literário mais hábil. Como dito, não tem qualquer traço fantástico ou sobrenatural: é um drama sobre amor, remorso e, eu ousaria dizer, sobre poder. Não poder no sentido político, mas o poder que as pessoas sempre acabam exercendo sobre o destino umas das outras, na intrincada teia das relações humanas. O personagem narrador (que nunca diz o próprio nome) é um médico renomado, especialista de fama internacional em cirurgia das mãos. Sua vida pessoal também parece tranquila e satisfatória, com um casamento sólido e uma filha, Manoela, uma jovem linda e com um talento notável para a música. Porém, por mais que o mundo o veja como um homem realizado e bem-sucedido, o personagem terá que tomar decisões – como médico e como pai – que poderão assombrá-lo para sempre.

Não cheguei a falar de todas as histórias: resenhar um livro de contos e tentar comentar todos eles, quase sempre acaba ficando cansativo até para quem escreve, quanto mais para quem lê, então procuro evitar, mas aqui tentei citar os que considerei mais relevantes, o que acabou fazendo com que tocasse na maioria deles. O Filho do Açougueiro faz valer magnificamente o valor desembolsado, proporcionando várias horas de deliciosa imersão em um leque de universos imaginários, na companhia de personagens muito humanos e verdadeiros. Christian David merece que todo fã brasileiro (ou não) de fantasia, ficção científica e terror observe com atenção o desenrolar de sua carreira.