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domingo, setembro 10, 2017

Aléxandros: O Sonho de Olympias

Até que outro livro me leve a mudar de ideia, considero a trilogia Aléxandros como o melhor trabalho de Valerio Massimo Manfredi, pelo menos na parte que se refere ao entretenimento: por alguma razão, aqui os diálogos não sofrem daquela certa rigidez pouco natural, nem as cenas de ação, do andamento arrastado que prejudica partes de suas outras obras. Como resultado, a leitura flui tão fácil que, quando nos damos conta, já percorremos os três volumes quase como se fossem um.

Muito disso deve-se ao carisma da própria figura central da trilogia, um homem absolutamente único na História, por várias razões. Como já deve estar mais ou menos óbvio até para quem não sabe nada sobre a obra, o Aléxandros do título (com tônica no é e o x pronunciado ks) é ele mesmo: Alexandre III da Macedônia, que divide com um escasso punhado de outros vultos históricos a rara distinção de ser conhecido como "o Grande". Mas não se preocupem, pois ele só é chamado assim em alguns trechos onde o autor introduz breves falas em grego; durante o resto do tempo, é Alexandre mesmo.

Poderíamos dizer que Alexandre deve ter ganho em algum tipo de loteria por ocasião de seu nascimento, considerando a grandiosa combinação de circunstâncias que permitiu que ele se tornasse aquilo que foi. Não há a menor dúvida de que tinha um conjunto raro de qualidades: inteligência, coragem, carisma pessoal, empatia, talento para uma vasta e diversificada gama de atividades, e, não menos importante, uma energia aparentemente inesgotável. Em adição a tudo isso, nasceu de um pai e de uma mãe que, cada um por suas próprias razões, tinham o máximo interesse em proporcionar-lhe a melhor educação possível – e dispunham de amplos meios para tanto. Por fim, Alexandre nasceu no lugar certo e no momento (histórico) exato. Em resumo, ele tinha tudo para dar certo, mas isso não diminui nem um pouco seus méritos individuais em tudo o que realizou durante sua curta e extraordinária vida.

A relação dos macedônios com a Grécia, ao tempo do nascimento e infância de Alexandre, era semelhante à dos romanos cerca de um século e meio depois: uma admiração não correspondida de um lado, um desprezo mesclado de temor do outro. Havia um desejo generalizado, por parte da classe mais instruída da Macedônia (aí incluídas a nobreza e a realeza) de que o país se integrasse ao mundo helênico, beneficiando-se de seus avanços sociais e políticos e de sua cultura; já os gregos desprezavam seus vizinhos do norte, que tachavam de bárbaros, porque, embora fossem muito próximos deles – tinham a mesma origem étnica, a mesma religião, e uma língua muito parecida –, os macedônios eram um povo rústico e inculto, essencialmente pastores das montanhas. Não deixava de ser uma ingratidão, de certa forma, pois, se não houvesse a Macedônia, a Grécia estaria diretamente exposta aos ataques dos verdadeiros bárbaros – os povos eslavos de além dos Bálcãs –, e isso era a última coisa de que ela precisava, considerando que já penava para resistir às intermitentes tentativas de invasão por parte do Império Persa. O rei Filipe II (r. 359-336 a.C.), pai de Alexandre, via claramente a necessidade de promover essa integração, e as vantagens que isso traria ao seu reino, não só do ponto de vista cultural, mas também político e estratégico. Essa, para ele, era a parte mais importante de sua missão como rei; porém, e também à semelhança dos romanos, Filipe e sua gente tinham como lema que "admiração é admiração, guerra e poder à parte". Já que a Grécia não estava disposta a abraçar a Macedônia como país irmão, seria obrigada a respeitá-la pela sua força militar.


Injustamente relegado em muitas crônicas históricas ao papel secundário de "pai de Alexandre", Filipe foi um rei astuto, notável tanto por sua habilidade política quanto pelo talento militar. Subjugou ou forjou alianças com vários povos vizinhos, anexou as cidades gregas da costa do mar Adriático (entre outras) e reformou completamente o exército medíocre que herdara do pai, fazendo dele uma força bélica que não conheceria rival até o surgimento das legiões romanas. Filipe, na verdade, "não era" para ter sido rei, já que tinha dois irmãos mais velhos, que reinaram durante curtos períodos: Alexandre II (r. 370-368 a.C.) e Pérdicas III (r. 365-359 a.C.); o primeiro foi assassinado, e o outro morreu em combate. Com 14 anos de idade, o então príncipe Filipe foi entregue como refém a Tebas (a Tebas grega: não confundir com a cidade egípcia de mesmo nome), e por quatro anos viveu na casa de Epaminondas, o maior general daquela cidade, com quem muito aprendeu; mal imaginava o general que estava educando o futuro pai daquele que riscaria sua cidade do mapa. Mais tarde, de volta à pátria e já ocupando o trono, Filipe faria excelente uso do que aprendera em Tebas, mas a maioria dos historiadores está de acordo em que a maior contribuição que deu para fazer do exército macedônio o mais temido do mundo foi mérito exclusivamente seu: é a Filipe que se atribui a invenção da sarissa. Nerds de história militar, preparem-se para algo interessante. O resto de vocês talvez prefira pular os próximos dois parágrafos (risos).

O que Filipe fez, de certa forma, foi reinventar a falange, que vinha sendo a espinha dorsal dos exércitos gregos já fazia séculos. Substituiu a tradicional dórica, uma sólida lança com dois a três metros de comprimento, pela sarissa, que podia medir até o dobro disso (!), com um fuste feito de madeiras selecionadas, geralmente corniso, tratadas com cera de abelha para máxima resistência e uma certa maleabilidade. Numa mesma unidade, os soldados portavam lanças de comprimentos variados: os das fileiras da frente tinham as mais curtas, e o comprimento ia aumentando gradativamente em direção à retaguarda. Em vez de lutarem ombro a ombro numa formação compacta, criando uma parede de escudos, como fazia a falange tradicional, os soldados da infantaria pesada macedônia mantinham entre si um espaço suficiente para passarem as enormes lanças dos companheiros das fileiras de trás. Com isso, as cabeças das lanças de todas as fileiras podiam ser alinhadas, formando uma verdadeira barragem de pontas afiadas que tornava a falange macedônica praticamente invulnerável a ataques frontais. Seu ponto fraco eram os flancos, que Filipe tratou de guarnecer com tropas auxiliares de infantaria leve, arqueiros e fundibulários. Também faziam parte de sua máquina de guerra duas poderosas alas de cavalaria pesada: os Hetairoi ('Companheiros'), oriundos da nobreza macedônia, e os Tessalônicos, recrutados na região grega da Tessália, aliada da Macedônia e famosa como a terra dos melhores cavalos do mundo. Essas alas eram especialmente mortíferas por combinarem mobilidade com um tremendo poder de choque; Filipe dizia que a falange era uma bigorna, e a cavalaria, um martelo.

Ainda a respeito da falange, foram necessárias algumas outras adaptações, das quais a mais visível foi a redução do tamanho do escudo: uma sarissa era bastante pesada, com até cinco ou seis quilos, e precisava ser manejada com as duas mãos, o que tornava inviável ao soldado portar o enorme e pesado escudo hoplon; foi adotado um escudo um pouco menor (embora ainda muito maior que o da infantaria leve), o que tinha o seu custo em termos de proteção individual, mas isso era equilibrado pelo fato de que, na nova maneira de combater, havia boas probabilidades de que o soldado não precisasse engajar-se em luta corpo a corpo com o inimigo. É curioso notar que, como uma lança de seis metros de comprimento tinha uma inevitável tendência de apontar para baixo quando empunhada, as sarissas mais longas, as das fileiras de trás, eram providas de um contrapeso na extremidade do cabo, como mostrado na ilustração. Essa arma inovadora, combinada à tática da frente oblíqua (também chamada ordem oblíqua), aprendida com Epaminondas, deu a Filipe uma série de vitórias memoráveis, e Alexandre, mais tarde, também se mostrou um mestre na utilização desses dois trunfos. O sonho de Filipe (para cuja realização esse poderoso exército seria uma ferramenta importante) era criar uma liga reunindo todas as principais cidades-estado gregas, pondo fim à interminável história de conflitos entre elas, e então, à frente de uma força militar formada por macedônios e gregos, invadir a Ásia e desferir um golpe mortal direto no coração do Império Persa, aniquilando de uma vez por todas o inimigo que já ameaçava o mundo helênico há tanto tempo. Uma tal façanha, sem a menor dúvida, gravaria seu nome para sempre nas páginas da História.

Dos assuntos militares para os dinásticos… Olímpia (que Manfredi chama de Olympias), mãe de Alexandre, era uma princesa do Épiro, pequeno reino vizinho da Macedônia, pouco mais que uma cordilheira montanhosa à beira do mar Jônico. Foi a quarta esposa de Filipe (não, ele não tinha enviuvado três vezes: mantinha todas elas simultaneamente, para não falar em mais algumas concubinas), e esse foi um casamento político, é claro, embora tudo indique que o rei, ao menos durante algum tempo, tenha sido verdadeiramente apaixonado por ela, que era linda e tinha uma personalidade e tanto. É provável que em parte por isso, e em parte por ter dado a Filipe um filho homem, ela foi alçada à dignidade de rainha (que era diferente de simplesmente ser esposa do rei), o que, naturalmente, atraiu a inveja das outras, contra as quais Olímpia passou boa parte da vida se precavendo. Na verdade, uma das outras esposas de Filipe já tinha um filho, Arrideu, mas esse não era considerado um candidato viável ao trono por ser meio fraco da cabeça, o que teria sido sequela de uma doença. Houve boatos de que a tal "doença" teria sido resultado de um envenenamento ordenado por Olímpia, que não queria que o garoto viesse, no futuro, a competir pelo trono com seu querido Alexandre. Nada jamais foi provado, mas, à luz do que sabemos sobre a rainha, não parece que ela seria incapaz de algo assim, se fosse para defender os interesses do filho.

Seja como for, parece que, a partir do momento em que Alexandre nasceu, Filipe nunca vacilou em relação a quem seria seu sucessor. Um bom indicativo disso foi o tanto de dinheiro e esforço que investiu na educação dele. Seus estudos foram supervisionados, a princípio, por um certo Leônidas, parente da rainha, que, além de ensinar pessoalmente, selecionava os professores que instruiriam o príncipe em matérias específicas. Mas nenhum mestre foi tão marcante para Alexandre (e para o resto do mundo) quanto Aristóteles de Estagira (384-322 a.C.), responsável por sua educação dos 13 aos 16 anos. É claro que, na época, ninguém podia saber que Aristóteles passaria à História como um dos maiores filósofos que já viveram, mas ele já gozava de suficiente prestígio para que comprar seu passe não fosse barato – um investimento que Filipe fez sem hesitar, e parece que os ensinamentos do sábio lapidaram de forma única o já privilegiado intelecto de Alexandre.

Eita! Comecei este texto com o objetivo de comentar a trilogia de Valerio Massimo Manfredi, mas acabo de perceber que escorreguei para uma biografia resumida (ou nem tanto) do personagem. Vamos tentar voltar aos trilhos.

Bem, Manfredi não é nenhum grande vulto da literatura, e sabe disso. Não nos oferece momentos arrebatadores de drama, nem personagens profundos e multifacetados; sabe que não tem cacife para tanto, e não se sabota com tentativas pretensiosas de fazê-lo. Seu objetivo era que o leitor, ao terminar estes três volumes, tivesse uma razoável noção de como foi a vida de Alexandre, e que tivesse se divertido no processo – e ele conseguiu. Um de seus diferenciais em relação a outras "vidas de Alexandre" está no fato de dar certo destaque a alguns personagens que elas não mencionam muito, como o grupo de amigos de infância, todos eles filhos de nobres da Macedônia, que foram educados com ele, cresceram em sua companhia e vieram a ser seus generais. É muito curioso ler sobre aqueles garotos vivendo seus anos de molecagens despreocupadas e lembrar que pelo menos dois deles – Seleuco e Ptolomeu – dariam nome a dinastias!… Também fazia parte desse grupo ele: Heféstion, o companheiro mais chegado de Alexandre e, segundo muitos, seu amante, o que seria encarado com relativa tranquilidade entre os gregos, mas suscitaria reprovação na Macedônia. De todo modo, Manfredi opta por não colocar nenhuma ênfase particular na relação dos dois, provavelmente porque tinha outras coisas em mente para destacar em sua obra, e não quis desviar a atenção dos leitores criando polêmica desnecessária em torno da sexualidade do personagem. O suposto affair de Alexandre e Heféstion até é mencionado, mas de forma casual e nada conclusiva: um ou outro personagem comenta, como quem ouviu um boato, que "dizem que os dois são amantes" – e é tudo. Nas cenas em que eles efetivamente aparecem, nada sugere isso. Para Manfredi, Alexandre e Heféstion são grandes amigos, e isso basta.

Sabe-se que as famílias reais não são como as outras famílias, e a de Alexandre é um bom exemplo. Como vimos, seu pai nunca se pejou de praticar a poligamia, o que os costumes macedônios toleravam; com isso ele criou, de certa forma, diversas famílias menores, cada uma formada por uma esposa ou amante e os respectivos filhos. Alexandre estava na "subfamília" de maior prestígio e privilégio, já que era o herdeiro presuntivo do trono e sua mãe tinha o status de rainha, que manteve mesmo depois que suas relações com Filipe já haviam esfriado até ao ponto de os dois só eventualmente se verem. Olímpia, por falar nisso, teve outra filha, Cleópatra, única irmã bilateral de Alexandre, que tinha tantos meios-irmãos. Não há relação direta entre essa Cleópatra e a famosa rainha do Egito de quase três séculos depois, mas a semelhança não é mera coincidência. Esse nome (grego) era bastante popular na Macedônia; quando Alexandre morreu, seu império foi dividido entre seus generais, cabendo a Ptolomeu o Egito, onde o amigo de infância de Alexandre recebeu o tradicional título de faraó, reinou até o final de sua vida e, de quebra, fundou a última dinastia a governar o país – dinastia essa que, por ser de origem grega, nunca foi plenamente aceita pelo povo egípcio. A Cleópatra "de César" foi a última de uma longa sucessão de rainhas e princesas com o mesmo nome, todas descendentes de Ptolomeu.

Apesar de viverem essa situação que, para nós, parece tão estranha, tudo indica que Alexandre e o pai tivessem uma relação próxima e afetuosa, pelo menos o tipo de afeto do qual o rude guerreiro Filipe era capaz. Amava o filho do seu jeito e tinha orgulho dele, enquanto Alexandre amava o pai com um amor pontuado pela admiração e – como muito bem sublinha Manfredi – pela vontade de competir. A meu ver, o Filipe de Manfredi é um tanto moderado demais no trato com o filho, se comparado ao que algumas biografias de Alexandre fazem crer: a impressão que se tem dessas biografias é a de que o Filipe histórico estava mais preocupado em tornar o rapaz forte que em deixar-lhe boas recordações. Exemplo disso é o célebre episódio do garanhão Bucéfalo. No primeiro volume da trilogia, O Sonho de Olympias, o caso é narrado da seguinte forma: Filipe havia mandado Alexandre para uma espécie de retiro num lugar chamado Mésia, para que ele pudesse dedicar-se a seus estudos com Aristóteles sem ser distraído pela agitação da vida em Pela, a capital da Macedônia. Ali o jovem passa cerca de três anos, apenas com esporádicas visitas à capital para ver os pais e a irmã. Ao decidir que é hora de trazer o filho de volta para casa, Filipe vai pessoalmente buscá-lo e leva-lhe um presente: um cavalo magnífico, mas selvagem, que ninguém consegue dominar. O rei, pacientemente, explica ao filho que ele precisará esperar que o animal seja domado antes de poder montá-lo. Na versão de Plutarco, seguida também por outros romances que retratam a vida de Alexandre, o caso todo ocorre de forma bastante dura e absolutamente não premeditada. Filônico, um criador de cavalos da Tessália, tinha ido a Pela negociar seus animais, e ofereceu o garanhão a Filipe por treze talentos, uma soma altíssima. O rei, impressionado com a estatura e a aparência imponente do animal, pensou em comprá-lo para seu próprio uso, mas desistiu depois que seus melhores cavaleiros tentaram domá-lo sem sucesso, e disse a Filônico para levá-lo embora. O jovem Alexandre, de 14 anos, encantado pelo cavalo assim que o viu, protestou, garantindo que podia domá-lo, o que lhe valeu uma reprimenda por parte do pai, que considerou isso uma intolerável demonstração de arrogância. O garoto insistiu e o rei acabou consentindo em deixá-lo tentar, mediante um acordo, ou, melhor dizendo, uma aposta: se Alexandre conseguisse domar Bucéfalo, Filipe o compraria para ele; caso contrário, o próprio príncipe teria que pagar o preço do animal – o que, é claro, estava totalmente fora da realidade. É óbvio que tudo o que Filipe esperava era que alguns tombos e uma pequena humilhação ensinassem a seu filho algo sobre humildade, mas ele não estava preparado para o que veria a seguir, nem o estavam Filônico, os cavaleiros macedônios, ou as dezenas de membros da corte que testemunharam o evento. Com suas capacidades de observação e análise muito bem treinadas pelas lições de Aristóteles, Alexandre percebeu que o cavalo se assustava com os movimentos de sua própria sombra; obrigou-o a virar a cabeça de frente para o sol e, a seguir, cavalgou-o e o fez galopar até a exaustão, quebrando-lhe toda a resistência. Ao ver o terrível Bucéfalo domado por aquele pirralho, conta-se que Filipe foi às lágrimas de orgulho e, abraçando fortemente o filho, disse uma frase que entraria para a História: "Meu filho, procura para ti outro reino! A Macedônia é pequena para um príncipe como tu!"

Daí em diante, Bucéfalo foi a montaria de Alexandre em todas as suas batalhas (das quais não perdeu uma só) durante quase 18 anos, e, quando morreu, seu nome batizou uma das novas cidades que ele fundou na Ásia. Uma das muitas lendas em torno de Alexandre diz que Bucéfalo teria nascido no mesmo dia que ele, mas isso, na certa, não passa de uma invenção poética. Primeiro, porque não era costume de ninguém na época registrar a data de nascimento de um cavalo, e segundo, porque, se fosse assim, Bucéfalo, ao ser domado por Alexandre, já estaria com 14 anos, idade madura para sua espécie, e seria muito pouco provável que um criador permitisse a algum de seus animais chegar indomado a essa altura da vida: caso a doma resultasse mesmo impossível, teria sido sacrificado bem antes. Tampouco teria utilidade como reprodutor, já que o mais provável era que gerasse potros tão intratáveis quanto ele próprio. Portanto, Bucéfalo devia ter uns quatro ou cinco anos – adulto, mas ainda jovem –, e foi uma grande sorte para ele ter encontrado o príncipe da Macedônia. Alexandre, que comandava pessoalmente sua cavalaria no campo de batalha, tinha outras montarias, mas fazia questão de montar Bucéfalo no início de cada batalha: para ele, além de um amigo, o cavalo era uma espécie de talismã.

E, embora tivesse, antes disso, liderado pequenas expedições militares contra certas tribos do norte que punham em perigo as fronteiras da Macedônia, a primeira grande batalha de Alexandre (montando Bucéfalo, naturalmente) foi aos 18 anos, em Queroneia (338 a.C.), onde compartilhou o comando com o pai, derrotando uma coalizão de atenienses e tebanos. Depois da vitória, Filipe optou por mostrar-se generoso para com os vencidos, estabelecendo condições moderadas para a paz e incumbindo Alexandre de liderar pessoalmente a comitiva que foi enviada a Atenas para levar as cinzas dos mortos da cidade, a fim de que tivessem um sepultamento digno. Daí em diante, Atenas mostrou-se mais cooperativa para com a Macedônia… Mas Tebas não, o que seu povo, mais tarde, viria a lamentar.

É, não tem jeito: escrever sobre um assunto que se adora é praticamente garantia de "viajar" longe. Eu ia mencionar Bucéfalo de passagem, só para ilustrar o que estava dizendo sobre a forma como o rei Filipe encarava a educação do filho, e vejam só onde vim parar… Pretendia fazer um único post sobre a trilogia, mas vejo que isso vai ser impossível, então este fica sendo apenas sobre o primeiro volume, e mais tarde decido se faço outro sobre os volumes dois e três, ou se cada um deles terá que ter o seu próprio.

Além dos amigos de infância de Alexandre, outro personagem que ganhou destaque na trilogia de Manfredi (pois, em outras obras, só aparece de forma menos que periférica) foi seu tio e xará, Alexandre, rei do Épiro. Ainda um menino quando Olímpia, sua irmã mais velha, casou-se com Filipe, Alexandre viveu anos na corte de Pela, sob a proteção do cunhado, para evitar que fosse assassinado por qualquer dos nobres conspiradores que na época se digladiavam pelo trono do Épiro. Quando completou 20 anos, voltou à terra natal e, graças à ajuda de Filipe, conseguiu recuperar o trono de seus ancestrais. Cerca de cinco anos depois disso, Filipe tomou mais uma esposa, Eurídice, que tinha a idade de sua filha Cleópatra e era filha (ou sobrinha; as fontes divergem) de Átalo, um de seus generais. Uma esposa a mais ou a menos teria feito pouca diferença, não fosse por um acontecimento infeliz: na festa do casamento, Átalo, já embriagado, decidiu fazer um brinde aos noivos, rogando aos deuses que de sua união nascesse um "herdeiro legítimo" para o trono da Macedônia. Isso, é claro, equivalia a chamar Alexandre de bastardo, e o príncipe não deixou por menos: confrontou Átalo exigindo que engolisse suas palavras, e, ao não ser obedecido, atirou sua taça na cara do general. Filipe, furioso e também embriagado, desembainhou a espada e investiu contra o filho, que o esperava empunhando a sua, e talvez a coisa tivesse degenerado numa luta de verdade entre os dois, com consequências imprevisíveis, se o rei não tivesse falseado o pé e caído. Alexandre fez um comentário sarcástico sobre reis que querem invadir a Ásia, mas não conseguem nem atravessar um salão de festa, e rapidamente retirou-se; conhecia o pai e sabia que, naquele momento, Filipe seria mesmo capaz de mandar matá-lo, ainda que mais tarde morresse de remorso. Alexandre e Olímpia fugiram às pressas de Pela e refugiaram-se na corte do irmão dela, mas ali tinham pouco sossego: a cada poucos dias chegava um mensageiro de Filipe com uma carta exigindo que Alexandre retornasse a Pela e se desculpasse formalmente por seu comportamento, o que, com seu orgulho, ele jamais faria. A situação ficou ruim para Alexandre do Épiro, que, nessa briga, dava razão ao sobrinho, mas, por outro lado, devia seu trono ao cunhado. Diante disso, Alexandre, acompanhado apenas pelo fiel Heféstion, deixou o Épiro e partiu para a Ilíria (mais ou menos equivalente às atuais Sérvia, Croácia e Montenegro), na época uma terra de tribos bárbaras, algumas das quais ele já havia enfrentado e vencido em batalha à frente do exército do pai, isso nos seus 16, 17 anos; agora tinha 19 e uma reputação que o precedia. Não se sabe que aventuras Alexandre viveu durante o meio ano que duraram suas andanças pela Ilíria, e Manfredi trata o assunto com breves pinceladas; tenho para mim que só esses meses já dariam assunto para um livro.

Quaisquer que tivessem sido as ofensas trocadas, Filipe amava o filho, e, o que era mais, sabia que a participação dele seria essencial em sua planejada campanha contra os persas. Os dois eram muito orgulhosos, e não está claro quem tomou a iniciativa ou cedeu um pouco para possibilitar a reconciliação, mas esta aconteceu afinal em 336 a.C., pouco antes de o exílio de Alexandre completar um ano (Manfredi atribui o fato à esperteza de Eumênio, amigo de Alexandre e secretário-chefe de Filipe). Alexandre retornou e fez as pazes com o pai, mas parece que o relacionamento dos dois nunca voltou a ser como antes… Bem, na verdade não houve tempo para isso, mas é melhor não nos anteciparmos.

A rainha Olímpia havia permanecido na corte do Épiro quando Alexandre partiu para a Ilíria, e lá continuou quando ele retornou a Pela. Considerando-se desonrada por Filipe, ela tentou convencer o irmão a declarar guerra à Macedônia – o que Alexandre do Épiro precisaria ser, no mínimo, doido de pedra para fazer. Ele tinha um bom exército, sim (por sinal, organizado segundo o modelo macedônio, já que o treinamento fora cortesia de Filipe), mas a simples superioridade numérica do oponente decidiria esse conflito em questão de semanas, se tanto – isso para nem mencionar que Alexandre do Épiro era um jovem guerreiro esforçado, mas Filipe era um general tarimbado cujas vitórias contavam-se às dezenas. Assim, a única resposta que Olímpia teve a suas pressões foi um categórico "nem pensar". Mesmo assim, Filipe julgou conveniente fortalecer os laços com o cunhado fazendo dele também seu genro, e ofereceu-lhe a mão da princesa Cleópatra. A jovem, educada desde a infância para resignar-se à ideia de um casamento político, que o pai decidiria sem pedir sua opinião, deve ter-se considerado com sorte no final das contas: Alexandre do Épiro era belo, gentil, inteligente e valente, e, apesar de serem tio e sobrinha, a diferença de idade entre os dois não passava de seis ou sete anos. O casamento foi preparado em Pela, com toda a grandiosidade possível, pois Filipe não perderia mais essa oportunidade de impressionar seus novos aliados gregos. O que ele não esperava era ser assassinado pouco depois da cerimônia, e antes do começo dos festejos, por um membro de sua própria guarda pessoal, um tal Pausânias. Sabia-se que esse guarda tinha queixas contra Filipe, que o havia humilhado em público durante uma de suas crises etílicas; depois, arrependido, tentou compensá-lo com presentes e honrarias, mas sem nunca desculpar-se de fato (é claro). Só que, por mais que Pausânias tivesse mágoas pessoais de seu senhor, é sempre difícil acreditar que o assassinato de um rei ocorra sem nenhuma motivação política por trás. Na lista de suspeitos de serem os mandantes figuraram desde Dario III Codomano, rei da Pérsia, que sabia dos planos de Filipe para atacá-lo, até Olímpia e o próprio Alexandre, que poderiam ter agido juntos ou separados, mas ambos no interesse de evitar que Filipe nomeasse como sucessor o pequeno Carano, seu filho com Eurídice (correndo o risco de ser ingênuo, eu prefiro acreditar que Alexandre não fosse capaz de tal coisa; Olímpia são outros quinhentos). A ordem poderia ter partido, ainda, de alguma das cidades gregas que, muito a contragosto e principalmente por medo, haviam aderido à "liga pan-helênica" que Filipe forjara e da qual se fizera líder. Porém, Pausânias, o único que poderia (mediante a "persuasão adequada") fornecer alguma informação a respeito, foi morto pelos outros guardas logo depois de consumar seu ato, e a verdade sobre os motivos do assassinato de Filipe morreu com ele.

Coroado aos 20 anos de idade assim como acontecera com seu tio, Alexandre teve como primeiro desafio na condição de rei reafirmar (por quaisquer meios possíveis) a lealdade ou ao menos a cooperação dos gregos, a fim de garantir alguma segurança e estabilidade quando partisse para a Ásia. Até mesmo a Tessália, tradicional aliada da Macedônia, vivia dias agitados, mas o jovem rei conseguiu acalmar os ânimos sem necessidade de luta. Fez o mesmo com Atenas e outras cidades; já Tebas, onde seu pai aprendera muito do que lhe ensinou, estava em negociações com o rei Dario, que prometia fornecer armas e dinheiro se os tebanos liderassem um movimento na Grécia para resistir à "tirania macedônica". A cidade não recuou de sua postura de desafio, e Alexandre, que, via de regra, era clemente com os vencidos, julgou necessário abrir uma exceção: ordenou que Tebas fosse arrasada (na verdade, como ele era um amante das artes, mandou poupar a casa onde vivera o poeta Píndaro). Quem sobreviveu teve por destino o mercado de escravos. Não foi uma vitória fácil, pois os tebanos eram guerreiros notáveis, mas serviu a seu objetivo, de modo que foi uma Grécia em relativa paz e tranquilidade que o exército macedônio (reforçado por algumas tropas gregas) deixou atrás de si ao fazer a travessia para a Ásia. O primeiro volume da trilogia termina aqui, mas não posso finalizar sem mais um comentário: achei emocionante ver o paralelo entre a aventura de Alexandre da Macedônia rumo ao oriente e a de Alexandre do Épiro rumo ao ocidente, pois, meses mais tarde, o tio e cunhado do jovem rei partiu para a Itália a fim de atender ao pedido de ajuda dos colonos gregos em Taranto, ameaçados por algumas das várias tribos independentes e belicosas que então habitavam a Península Itálica. Alexandre do Épiro, inclusive, faria uma aliança com Roma, na época uma potência em crescimento, ainda muito longe de tornar-se aquilo que a menção de seu nome desperta em nossa imaginação hoje em dia. Essa aventura empolgante não era mencionada nem sequer de passagem em nenhuma das outras versões da vida de Alexandre da Macedônia que li, e olhe que foram várias. Concluo que Alexandre do Épiro teve azar em ser tio de seu sobrinho, pois, por mais que ele tenha feito coisas extraordinárias, a sombra do outro Alexandre o encobriu por completo. Dificilmente alguém escreverá um livro ou fará um filme sobre ele, o que é mesmo uma pena.

Pois é… Acabei resumindo o livro todo, erro que antigamente eu volta e meia cometia nos meus posts, mas que tenho, em geral, conseguido evitar nos últimos tempos. O problema é que, por alguma razão, fica bem mais difícil evitar isso quando os acontecimentos sobre os quais estou escrevendo são históricos. Paciência: gostei pra caramba de escrever este texto, gostei de como ficou, e agora já me afeiçoei demais a ele para conseguir mudá-lo muito – quem gosta de escrever conhece a sensação: um texto, de certa maneira, é como se fosse um filho. Felizmente, como este é apenas o primeiro volume, acho que não dei grandes spoilers, mesmo que haja alguém no planeta com algum interesse no mundo helênico (ao menos o suficiente para desejar ler esta trilogia) e que já não saiba, em linhas gerais, como a história de Alexandre continua e como ela termina. Enfim: quem já leu Aléxandros me compreende, e quem ainda não leu deveria fazer isso o quanto antes.

domingo, abril 29, 2007

300



Logo que ele estreou, algumas semanas atrás, corri ao cinema para ver o novo filme sobre a batalha das Termópilas, sobre o qual até quem não tem especial inclinação por épicos da Antigüidade andava curioso – imagine-se então como eu estava. E, para começar com a impressão geral que tive, posso dizer que 300 não me decepcionou, embora também não seja exatamente o que eu estava esperando.

Antes de mais nada, é preciso deixar claro que, apesar de inspirado num acontecimento histórico real – e extremamente importante –, e de o roteiro seguir os fatos nos pontos principais, 300 é uma fantasia, o que fica evidenciado por uma série de elementos que claramente pertencem ao universo da imaginação: criaturas semi-humanas, como um homem-fera que os Imortais persas atiçam contra os espartanos; um inusitado "rinoceronte de guerra" (elefantes de guerra, tudo bem, realmente existiam e o exército persa os tinha, embora não haja registro de terem sido usados nessa batalha, mas o rinoceronte nem mesmo é suficientemente inteligente para ser domado ou treinado), e por aí vai. E como não mencionar o rei Xerxes, interpretado pelo brasileiro Rodrigo Santoro, que, graças ao milagre dos efeitos visuais, aparece em cena com três metros de altura? Talvez seja melhor dizer que o filme é uma trama histórica temperada com elementos de fantasia, e tudo arquitetado com extrema competência. O elenco corresponde às exigências da história e a sombria fotografia em sépia ajuda a configurar o clima de "armagedom". O que realmente não gostei foi da anêmica e desnecessária trama paralela protagonizada pela rainha Gorgo (Lena Headey), esposa do rei Leônidas (Gerard Butler), que serve apenas para causar irritantes quebras de ritmo e de clima, a cada vez que a ação é transferida do local da batalha para a cidade de Esparta. Mas algo do tipo já era previsível, considerando a completa impossibilidade de Hollywood produzir um filme de grandes proporções sem colocar um romance, ainda que periférico, na trama. A culpa não cabe a Headey, que, além de bonita, é boa atriz.

300, o filme, baseou-se diretamente numa graphic novel – para os não familiarizados com esse termo, trata-se de um "romance gráfico" (numa tradução bem literal, mas não muito acurada), ou seja, um livro em quadrinhos, de autoria de Frank Miller, um nome coroado nesse meio, embora, de momento, eu só me lembre de seu trabalho na Marvel, com o super-herói cego Demolidor. Na adolescência, eu gostava tanto de quadrinhos quanto de livros, já nos últimos anos tenho andado desligado desse universo. Gostaria muito de ler essa graphic novel em particular, espero que agora, aproveitando o embalo do filme, seja relançada. Para ver como é curioso o processo de realimentação que a arte sofre através dos tempos, Miller foi inspirado, para fazer a graphic novel, por um outro filme sobre o mesmo assunto, Os Trezentos de Esparta (1962), baseado diretamente no relato do historiador grego Heródoto (484-425 a.C.).

E sobre o que é tudo isso, afinal de contas? Bem... O evento central é a batalha das Termópilas, ocorrida no desfiladeiro de mesmo nome no verão de 480 a.C., na qual uma força de cerca de 4000 gregos, tendo como ponta-de-lança uma elite de 300 espartanos, enfrentou o exército invasor de Xerxes, rei da Pérsia – um exército de dimensões inconcebíveis para a época, cujo número exato é até hoje alvo de controvérsia, mas certamente não menos de 200 mil soldados; há autores que falam em um ou dois milhões. Embora não tenha sido o primeiro nem o último enfrentamento entre gregos e persas, essa batalha revestiu-se de um significado especial para os gregos daí em diante; Alexandre, ao aniquilar o Império Persa um século e meio depois, dedicou sua vitória aos Trezentos, como uma vingança tardia. E o que teve essa batalha de tão especial?... É uma longa História (com H maiúsculo, mesmo).

A noção que a maioria das pessoas tem a respeito da Grécia é a de uma civilização sábia, totalmente voltada para a razão, a ciência, a arte e a beleza, que nos legou uma herança inestimável de filosofia, monumentos deslumbrantes, uma mitologia fascinante e conceitos sem os quais não é possível imaginar o mundo moderno. E tudo isso é verdade, de modo que a noção não é errônea – é meramente incompleta. A civilização grega tinha um outro lado, talvez não tão belo, mas que da mesma forma fazia parte do que ela era. 300, assim como o episódio histórico que lhe deu origem, mostra um pouco desse outro lado.

A Grécia antiga nunca foi uma nação unificada. Estava dividida em inúmeras cidades-estado, que, apesar de compartilharem a mesma língua, origem étnica e base cultural, eram politicamente independentes umas das outras, e, não raro, rivais entre si. Enquanto outras cidades gregas eram famosas por sua arte, filosofia, ciência, e por seus avançados sistemas políticos, havia uma que era um Estado eminentemente militarista: Esparta.


A partir das reformas realizadas por um certo Licurgo por volta de 700 a.C., tudo na sociedade espartana passou a ser feito em função da guerra. Os meninos nascidos de pais livres eram separados das famílias aos oito anos de idade e ficavam sob a responsabilidade do Estado, sendo submetidos a um duríssimo treinamento que se prolongava até os 21 anos e fazia deles guerreiros praticamente imbatíveis. Como hoplitas (assim chamados por causa do hoplon, grande e pesado escudo circular), integravam as falanges, certamente as mais disciplinadas e bem treinadas unidades militares da Antiguidade até então, e que, como tais, não seriam superadas até o advento das legiões romanas, séculos mais tarde. Nelas, os guerreiros lutavam em linha, lado a lado, cada um protegido em parte pelo próprio escudo, em parte pelo do companheiro à direita; combatendo assim, eram muito poderosos, mas bastava que se abrisse uma brecha na linha para levar toda a tropa ao desastre. Em resumo: se um fraquejasse, punha todos os companheiros em risco. Os soldados espartanos precisavam confiar totalmente uns nos outros. Quanto aos outros gregos, lutavam de forma parecida, mas, ao contrário dos espartanos, não tinham a vantagem de serem treinados para isso durante toda a vida. E eis aí um aspecto não tão glorioso da civilização grega: os espartanos cidadãos só podiam dedicar-se de corpo e alma ao treinamento militar porque o trabalho que mantinha a cidade funcionando era todo feito por escravos (ninguém deve supor que isso queira dizer que nas outras cidades gregas não havia escravidão; de maneira nenhuma!).

Como é fácil imaginar, o ressurgimento da ameaça persa nos anos imediatamente anteriores a 480 a.C. inspirou os gregos divididos a porem de lado suas rivalidades e unirem forças, mas, mesmo assim, naquele verão, a Grécia ainda não estava preparada para enfrentar o invasor. A menos que fosse encontrada uma maneira de atrasar os persas por tempo suficiente para que os exércitos de todas as cidades gregas pudessem se reunir, não haveria como evitar que o país fosse conquistado e passasse a ser mais uma província do vasto Império Persa, que já se estendia do Egito à Índia. Leônidas, rei de Esparta, ouvira uma profecia que dizia que ou sua cidade cairia, ou perderia um rei. Preparou então uma expedição, reunindo trezentos de seus melhores soldados, e certificando-se de que todos tivessem filhos vivos do sexo masculino, para que suas linhagens não fossem extintas  pois sabia que nenhum deles voltaria vivo dessa missão. Nem ele, Leônidas, tampouco.

O lugar chamado Termópilas, ao norte da Grécia, só era conhecido até então por ser um inocente balneário, procurado por pessoas de todo o país por causa de suas fontes de águas termais  aliás, foi daí que lhe veio o nome: Thermopylae, em grego, quer dizer 'Portões Quentes'  no filme, os atores se referem ao lugar como the Hot Gates, versão perfeita e fiel para o inglês; não me perguntem por que a pessoa responsável pelas legendas decidiu traduzir (?) Hot Gates por 'Boca do Inferno'. Leônidas escolheu esse lugar para fazer frente ao inimigo devido à existência de um desfiladeiro estreito que anularia a vantagem numérica dos persas: não importava quantos eles fossem, apenas algumas centenas poderiam entrar de cada vez. Ali os quatro mil gregos lutaram praticamente sem descanso, durante sete dias, contra sucessivas levas de atacantes, matando até suas armas se desmancharem em suas mãos  segundo a narrativa de Heródoto. Talvez tivessem resistido ainda mais tempo, não fosse por um morador da região que, subornado pelos persas, mostrou-lhes uma trilha íngreme pelas montanhas, através da qual parte do exército persa flanqueou os espartanos, que assim ficaram cercados. Quando isso aconteceu, os aliados gregos se retiraram, com a aprovação de Leônidas, que, com os que ainda restavam de seus Trezentos, permaneceu no local, sem ceder uma polegada de terreno, até serem exterminados até o último homem.

Não vou entrar, aqui, em especulações sobre que tipo de determinação sobre-humana pode ter levado todos esses homens a sacrificarem deliberadamente suas vidas numa batalha que desde o início era impossível de ser vencida. Digamos apenas que cada um ali esforçou-se ao máximo por vender a sua vida tão caro quanto possível, e, de fato, calculou-se que cada espartano não tombou sem levar consigo pelo menos vinte persas, ainda que, diante da vastidão do exército inimigo, isso representasse umas poucas folhas arrancadas de uma floresta. O mais importante, portanto, não foi o número de inimigos eliminados, mas os preciosos sete dias que a batalha durou, e que permitiram que o restante do exército espartano, bem como os exércitos das outras cidades gregas, ocupassem posições estratégicas e, durante os meses seguintes, infligissem aos persas um revés após outro, até derrotá-los definitivamente na batalha de Plateia, obrigando-os a abandonar o plano de conquistar a Grécia. A batalha das Termópilas foi um daqueles momentos que podemos considerar verdadeiras "encruzilhadas" na História, pois, se o desfecho tivesse sido outro, tudo o que veio depois poderia ter sido diferente. Se os persas tivessem conquistado a Grécia, coisas como democracia ou o conceito de liberdade individual só nasceriam séculos ou milênios depois  ou, talvez, nunca. É raro, mas há momentos na História em que verdadeiramente o destino de uma civilização inteira repousa nas mãos de um punhado de homens; esse foi um deles, e a civilização a que me refiro não é apenas a Grécia, mas todo o Ocidente. Paradoxalmente, Esparta, a menos democrática das cidades gregas, impediu que a democracia morresse no berço e tornou possível o nascimento das sociedades modernas – que podem não ser perfeitas, mas sem a menor dúvida seriam muito piores sem os legados que a Grécia nos deixou.

Lembrar dessa batalha sempre me faz voltar àquela questão: vale a pena morrer pela liberdade? Acho que a resposta que se espera receber de qualquer pessoa que preze a dignidade humana só pode ser que sim, que, em se tratando da liberdade  a nossa e a dos outros, e a das gerações futuras , nenhum sacrifício é grande demais. Só que a pergunta talvez precise ser reformulada: será que continua valendo a pena, quando você sabe que a maioria das pessoas pelas quais você estará dando sua vida para que elas tenham liberdade, não fará nada que preste com ela?... Se refletirmos mais um pouco nessa direção, acho que acabaremos concluindo que cada um de nós, hoje, tem uma dívida pessoal para com aqueles bravos soldados mortos há quase 2500 anos, e que a única maneira de saldar essa dívida é procurando fazer de nossas vidas a coisa mais digna, útil e interessante que pudermos.

domingo, janeiro 23, 2005

Alexandre


Ontem, sábado, fui ao cinema ver Alexandre, de Oliver Stone. Suponho que devamos agradecer a Ridley Scott e a seu excelente Gladiador pelo fato de os filmes épicos (um gênero que, poucos anos atrás, qualquer um teria dito que estava morto) terem voltado com força total, o que eu, pessoalmente, considero um acontecimento muito feliz, embora, claro, a qualidade dessas produções varie, de modo que tivemos desde os ótimos Gladiador e Rei Arthur até aberrações como Troia... Mas vamos ao que interessa.

A primeira coisa que ficou evidente após os primeiros 30 ou 40 minutos assistindo a Alexandre foi que ele dificilmente irá se tornar um campeão de bilheteria, pois não tem os ingredientes que tornam um filme palatável para o grande público: durante a exibição, várias pessoas se levantaram e foram embora. Trata-se de um filme bastante pesado, intenso (o espectador comum dirá simplesmente que é chato), e, para completar, a impressão que tive foi de que quem já não conhecesse previamente ao menos as linhas gerais da trajetória do rei da Macedônia dificilmente entenderia muito bem o que a tela estava mostrando. É óbvio que houve pesquisa séria, e, historicamente, o filme é bastante acurado, o que foi um alívio constatar, pois assim, mesmo que ele não acrescente muito, pelo menos não fará ninguém sair do cinema com noções absurdas. Sabe-se que Alexandre tinha como seu principal herói Aquiles, de quem se acreditava descendente, e confesso que eu estava com fortes receios de que o Alexandre de Colin Farrell se mostrasse digno do Aquiles de Brad Pitt, mas, graças aos "deuses", não foi o que se viu – não graças ao desempenho de Farrell, que não se mostra à altura do papel, mas, de todo jeito, se Alexandre não é um filme brilhante, também não decepciona.

Uma coisa que se deve elogiar é o fato de o filme ter captado com eficiência alguns detalhes sutis mas importantes a respeito do personagem, particularmente seu relacionamento complicado com seus pais e a educação esmerada que recebeu. Pessoalmente, eu gostaria de ter visto o momento em que, ao receber a notícia de mais uma vitória militar de seu pai, o rei Filipe, Alexandre, ainda menino, ter-se-ia voltado para seus companheiros e lamentado: "Meu pai vai conquistar tudo, meninos, e não deixará para nós nenhum feito grandioso!" O que geralmente chama a atenção das pessoas nesse caso é a ambição demonstrada pelo jovem príncipe; a mim, o que mais impressiona é o fato de ele não ter dito "para mim", e sim "para nós", mostrando seu desejo de que seus companheiros de brinquedos de então viessem a ser, no futuro, seus seguidores nos grandes feitos que esperava realizar, pois estava perfeitamente ciente de que, sozinho, nada conseguiria fazer. É essa a maneira de pensar de um verdadeiro líder.

Comentei que o filme mostra a educação cuidadosa dada ao jovem Alexandre, mas aí existe um senão: em certo momento, seu mestre, Aristóteles (interpretado por um envelhecido Christopher Plummer) declara que "apesar de pertencerem a uma raça inferior, os persas governam quatro quintos do mundo conhecido". "Raça inferior"?! Depois dessa, fiquei antevendo a hora em que o velho sábio de Estagira iria bater os calcanhares e gritar heil Hitler! Não vou tentar exibir conhecimentos que não tenho, pois ainda não li as obras de Aristóteles e não sei se uma afirmação dessas encontraria respaldo nelas, mas, à luz de tudo o que sei sobre o pensamento greco-romano, ela é muito estranha. Para os romanos, pelo menos, racismo era um conceito alienígena – e, como eles herdaram boa parte de suas crenças e convicções dos gregos... Não quero dizer com isso que o modo de pensar deles pudesse ser considerado politicamente correto nos dias de hoje; embora não classificassem os seres humanos em superiores e inferiores pela raça, os romanos praticavam o culturalismo, que, para olhos modernos, é quase tão condenável quanto o racismo: a superioridade, para eles, não estava na cor da pele ou dos olhos, mas na educação que a pessoa recebesse. Um homem podia ser negro retinto e ter nascido numa palhoça em qualquer savana empoeirada da África: desde que tivesse uma boa educação clássica e aprendesse a portar-se como um verdadeiro "cidadão", nenhum romano esclarecido se recusaria a tratá-lo como um igual. É verdade, porém, que isso pode dever-se ao fato de os romanos terem tido muito mais contato com povos e culturas exóticas que os gregos, sendo levados pela necessidade a se tornarem mais tolerantes. Agradeço se alguém que me ler puder enviar informações a respeito.

Voltando a falar do filme, achei o elenco bem irregular. Anthony Hopkins, no papel de Ptolomeu, está, como sempre, impecável, mas aparece pouco. Colin Farrell, como Alexandre, parece perdido e desnorteado durante a maior parte do tempo. Angelina Jolie está belíssima e, por que não dizê-lo, venenosa interpretando a ardente e manipuladora rainha Olímpia, mãe de Alexandre, enquanto Val Kilmer encarnou perfeitamente o pai, Felipe, que, apesar de ter sido um bom rei, hábil general e um dos homens mais astutos de sua época, nunca deixou de ser um tipo grosseiro – um "bárbaro", como não se cansava de dizer o célebre orador ateniense Demóstenes, seu inimigo jurado. E Jared Leto, como Heféstion, é pouco mais que uma figura decorativa, apesar da óbvia pretensão do diretor de criar polêmica em torno da discutida relação entre Alexandre e esse seu companheiro de infância: seriam eles amigos fraternos ou "algo mais"? Oliver Stone aposta no "algo mais", o que é, no mínimo, uma iniciativa corajosa.

O filme também mostra o que, segundo os historiadores antigos, causou a perdição de Alexandre: as concessões cada vez maiores que começou a fazer aos costumes orientais com que foi tendo contato ao longo de suas conquistas – concessões essas que dizem respeito tanto a sua vida pessoal quanto ao modo de agir como monarca e comandante militar. Inicialmente um homem comedido em tudo, acostumado desde a infância a uma alimentação frugal, à vida ao ar livre e ao desconforto (a despeito de seu berço real), acabou adotando um modo de vida dissoluto, varando noites e mais noites em orgias e bebendo quantidades enormes de vinho, o que acabaria minando sua saúde e causando sua morte antes de completar 33 anos. Já no relacionamento com seus seguidores, o discurso do general Clito pouco antes de ser assassinado pelo rei num acesso de cólera (essa cena é histórica) traduz perfeitamente o descontentamento que foi crescendo entre os guerreiros de Alexandre: "Lembro-me do tempo em que conversávamos olho no olho, como homens! Agora temos que implorar a funcionários estrangeiros para ter uma palavra com nosso próprio rei!" De fato, Alexandre, que começara sendo tão amado por seus soldados exatamente porque eles sentiam que ele era, antes de mais nada, um deles, passou a distanciar-se cada vez mais de seus homens, exigindo, inclusive, que todos o saudassem com o tradicional ato da prosternação. Para os persas e outros asiáticos, isso era uma simples regra de etiqueta, perfeitamente natural na presença da realeza; já para macedônios e gregos, acostumados a tratar em pé de igualdade com seus líderes, ajoelhar-se diante de um homem, rei ou não, era visto como uma grave indignidade.

Apesar dos defeitos que tem, e dos quais o maior é o próprio Colin Farrell, o filme de Stone, visualmente, beira a perfeição – a cena em que Alexandre enfrenta um elefante de guerra nas florestas da Índia vai ficar impressa em minha mente até o fim dos meus dias, e o predomínio dos tons vermelhos nas tomadas seguintes parece dizer que, depois de tão terrível batalha, tudo parecia, aos olhos de Alexandre, estar envolto numa névoa de sangue. Também merece ser destacada a parte que mostra o esforço desesperado de Alexandre e seus comandantes para evitar que os soldados entrassem em pânico diante de uma carga de elefantes – monstros gigantescos e aterradores, dos quais, no máximo, tinham ouvido falar. Porém, de acordo com os historiadores, não foi essa a primeira vez que o exército de Alexandre enfrentou elefantes, pois o exército persa que já tinham enfrentado e vencido por mais de uma vez também os utilizava.

Detalhe curioso: junto ao leito de morte de Heféstion, tentando animar o amigo moribundo, Alexandre fala das conquistas que projeta para o futuro: depois de conquistar a Ásia, ele almeja a Europa (e quem pode dizer que não o teria conseguido, caso tivesse vivido mais vinte ou trinta anos?). Refere-se à Sicília e aos romanos, a quem considera bons lutadores, mas que tem certeza de poder conquistar. Naquela época, dificilmente alguém poderia imaginar que, um século e meio depois, seriam os descendentes dos mesmos romanos a quem Alexandre sonhava subjugar (e que, na época dele, não passavam de uma tribo bárbara) que conquistariam a Macedônia. A batalha de Pidna, em 168 a. C., pôs fim à Terceira Guerra Macedônica e também à própria Macedônia como reino e Estado independente, tornando-a, na prática, uma província romana. Seu último rei, Perseu (nada a ver com o herói mítico de mesmo nome) foi levado para Roma como prisioneiro e apresentado em correntes no desfile triunfal de seus inimigos vitoriosos.

Houve dois pontos, aliás, que, muito caros a Alexandre, seriam mais tarde retomados pelos romanos. O primeiro foi o sonho de um império universal, que reunisse toda a humanidade (do mundo conhecido na época, claro está) sob um único governo, o que asseguraria uma paz sólida e duradoura; Alexandre não chegou a consegui-lo, já que seu império se desfez quase imediatamente após sua morte. Os romanos chegariam mais perto desse objetivo. O outro ponto era a importância de ter um exército não apenas aguerrido, mas disciplinado e bem treinado: tanto Alexandre quanto os generais de Roma mostrariam, de forma inequívoca, que um exército poderia vencer, mesmo em inferioridade numérica, desde que fosse capaz de atuar como um grupo coeso, reagindo aos comandos como um único organismo e seguindo um plano de batalha engenhoso.

Para terminar meu comentário sobre o filme especificamente, posso dizer que ele pode ser uma experiência interessante para quem já leu sobre Alexandre e conhece sua história - mas quem não a conhece, não é através desse filme que irá conhecer. Há muitos bons livros sobre o personagem; mesmo que vocês não sejam aficionados por livros de História propriamente ditos, há uma ampla variedade de romances, alguns deles fascinantes, que apresentam a vida do jovem conquistador com maior ou menor grau de precisão histórica. Sugiro ler vários deles e confrontá-los com alguma biografia resumida de Alexandre, para ter uma noção de onde um ou outro autor permitiu-se alguma licença poética.