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quinta-feira, janeiro 13, 2022

The Videssos Cycle, vol. I: The Misplaced Legion

Já não sou propriamente jovem, pois nasci na década de 70, e, sendo assim, tenho idade suficiente para me lembrar bem de como era frustrante ser um leitor voraz e apaixonado por fantasia e aventuras épicas no Brasil durante os anos 80 e início dos 90 (já comentei isso antes). Não havia interesse por parte dos editores nacionais em publicar esse tipo de material, e nem mesmo saber inglês resolvia o problema (não que eu já soubesse na época), pois não tínhamos a internet para fuçar em busca de raridades; então, quando líamos em algum lugar uma referência e a breve descrição de alguma obra fascinante e jamais publicada no país, geralmente só podíamos ficar imaginando e chupando o dedo. Algumas existiam em edições portuguesas, mas consegui-las era trabalhoso e caro – como ainda é, só que esses empecilhos, que hoje em dia não me detêm quando se trata de adquirir algo que realmente me interesse, eram intransponíveis para um mero estudante que dependia de mesada. As coisas começaram gradualmente a melhorar a partir de meados dos anos 90, quando saiu uma nova edição de O Senhor dos Anéis, que há muito estava fora de catálogo, e suas boas vendagens fizeram as editoras abrirem os olhos para o fato de que havia, sim, público para a literatura de fantasia no Brasil. De lá para cá, a coisa deslanchou, chegando ao ponto de eu me perguntar se a oferta de títulos desse tipo não se tornou um tanto excessiva… É claro que cada leitor é livre para escolher o que comprar e o que ler, porém a grande quantidade traz no meio muita coisa de baixa qualidade.

Agora que comprei um Kindle, os últimos limites caíram: dá para adquirir praticamente qualquer coisa, publicada em qualquer lugar, sem esbarrar em problemas como edições esgotadas ou a dificuldade logística de importar um livro físico que teria que vir do outro lado do mundo. Se o que você quer estiver no catálogo de e-books da Amazon (e, pelo menos até o momento, tudo em que consegui pensar estava lá), basta selecionar, digitar o número do seu cartão de crédito, e voilà: tão logo o pagamento seja confirmado, o livro estará disponível para ser lido por meio dessa maquineta milagrosa, ou no seu computador, se lhe for mais conveniente. Isso não significa que, de agora em diante, eu só pretenda comprar livros desse jeito: sou em essência um tradicionalista, e sempre continuarei apreciando o contato físico com o livro, o cheiro do papel e da tinta, o som das páginas virando, o prazer de organizar uma estante e depois olhar para ela com aquela satisfação que só os leitores apaixonados conhecem. Além disso, não quero que as livrarias tradicionais deixem de existir, então continuarei contribuindo com a minha parte para mantê-las abertas. Ainda assim, o Kindle é muito bem-vindo, por tornar acessíveis muitas obras que seria praticamente impossível conseguir de outra forma.

E uma das primeiras coisas que me lembrei de adquirir por esse novo meio foi o Ciclo de Videssos, do norte-americano Harry Turtledove (1949-). Fiquei sabendo da existência dessa saga graças ao GURPS Império Romano, um suplemento para o RPG GURPS (sigla de Generic Universal Roleplaying System), publicado no Brasil pela editora Devir, pelo menos, desde os anos 90. Muitos RPGistas não gostam do GURPS por causa de suas regras muito complexas e detalhistas, que, do ponto de vista deles, comprometem a agilidade e a fluidez do jogo, mas ele tem o grande mérito de permitir a criação de aventuras com praticamente qualquer ambientação imaginável, de fantasia medieval até faroeste e de horror gótico até espionagem moderna, sem que seja necessário aprender um novo conjunto de regras para cada cenário desses: basta aplicar as regras contidas no "módulo básico", combinadas às informações trazidas em qualquer um dos suplementos disponíveis. Nos Estados Unidos existem literalmente dezenas desses suplementos; no Brasil, a Devir publicou um punhado deles. Tive pouca experiência com RPG e nenhuma com o GURPS especificamente, mas comprei esse suplemento por estar recheado de informações sobre a Roma antiga que eram e são interessantes independentemente de seu eventual uso no jogo. Perto do final do livro, o autor C. J. Carella fornece uma série de sugestões para que os game masters que o estiverem lendo criem suas próprias aventuras, além de indicar várias obras de ficção que podem servir de inspiração. Uma delas era justamente o Ciclo de Videssos, que, como informava Carella, narra as peripécias de uma legião romana que, por efeitos de um acidente de magia, é transportada para um mundo paralelo onde a referida magia é comum – ou seja, um crossover tentador entre ficção histórica e fantasia. São ao todo quatro livros, que, na Amazon, estão disponíveis em dois volumes (pode-se falar em "volumes" quando se trata de livros virtuais?), o primeiro contendo The Misplaced Legion e An Emperor for the Legion, e o segundo, The Legion of Videssos e Swords of the Legion. Acabo de ler o primeiro livro, e ele é ainda mais empolgante do que eu imaginava!

Estamos na Gália, provavelmente um pouco antes do ano 50 a.C., durante a campanha romana, liderada por Júlio César, que terminaria com a conquista desse país e sua transformação em província de Roma. Sob o comando do tribuno Marco Emílio Escauro, um destacamento composto por três coortes é enviado numa missão de reconhecimento até o território da tribo Lexovii, na região do delta do Sena. Escauro é jovem, mas não parece tão cru quanto o tribuno Lúcio Túbero, da Trilogia das Águias, além de ser muito mais cordato e inteligente. Parece já estar em serviço há alguns anos e deve andar pelos seus vinte e poucos ou perto dos trinta; seu segundo em comando, o centurião Caio Filipo, gosta mais dele que de qualquer outro jovem oficial com quem tenha servido em sua longa carreira.

Escauro está um tanto apreensivo com sua missão: já tem experiência para saber que o número de homens que ele comanda (três coortes seriam algo entre 1500 e 1800 legionários) é plenamente suficiente para chamar a atenção dos gauleses, mas pode ser pouco para enfrentá-los no caso de um ataque. E o ataque vem: um caótico e inflamado exército gaulês com aproximadamente o dobro do número de homens do destacamento romano os cerca numa clareira em meio às densas florestas daquela região, e uma desesperada batalha tem início. Os gauleses, como se sabe, estavam longe de ter a mesma disciplina e habilidades táticas dos romanos (nenhum povo da época tinha), mas, ainda assim, eram oponentes temíveis. Já à noite, depois de horas de luta com muitas baixas de ambos os lados, o chefe gaulês se adianta e desafia o líder dos romanos para um combate singular. Marco não se considera nenhum herói, na verdade admite que está no exército basicamente para acumular um currículo que o ajude no futuro a alcançar suas ambições políticas (como, aliás, era o caso da maioria dos tribunos militares), mas também não é um covarde, e não recua diante do desafio.

Um detalhe que até aí parecia apenas pitoresco vai assumir agora uma importância imprevista. Marco Escauro vem de uma família originária de Mediolanum (a atual Milão), bem no norte da Itália, e parece que, em algum momento, seus ancestrais misturaram seu sangue ao de seus vizinhos gauleses, pois ele é alto e loiro, bem diferente do romano típico, de estatura mediana e cabelos escuros. E, devido a sua altura incomum, escolheu uma arma também incomum para um oficial romano: uma espada longa gaulesa, tirada de um druida que ele matou em combate algum tempo antes; essa arma é mais adequada ao comprimento de seu braço que um gládio, a espada curta que era padrão nas legiões. A espada tem uma série de sinais gravados em sua lâmina, que, considerando quem era seu proprietário anterior, sem dúvida possuem algum significado mágico para os celtas, mas isso não importa para Escauro… Até ele verificar que o chefe gaulês contra quem vai lutar também empunha uma espada com símbolos semelhantes.

Quando as duas espadas se encontram, algo inconcebível acontece. O choque das lâminas encantadas faz com que Escauro e todos os seus homens – e, junto com eles, o chefe gaulês, que se chama Viridovix – sejam subitamente arrebatados por uma gigantesca cúpula luminosa e transportados de forma instantânea através do tempo, espaço ou seja o que for, até um mundo diferente, onde logo descobrem estar nos domínios do Império de Videssos. O mundo em si parece ser uma versão alternativa da Terra; as estrelas vistas no céu e a configuração dos continentes são totalmente diferentes, mas os habitantes são seres humanos perfeitamente comuns (embora com línguas e culturas diferentes), e a vida animal e vegetal também é familiar.

Não demora a ficar evidente que não há a menor chance de voltarem para casa, e, diante disso, o pequeno exército romano (composto, naturalmente, por homens de várias nações) precisa encontrar um meio de vida naquele mundo. Conforme vão se inteirando de mais coisas, descobrem que Videssos enfrenta ameaças intermitentes de invasão, e por isso sempre tem necessidade de bons mercenários; os romanos, então, "vendem suas espadas", como se dizia na época, a Sua Majestade, Mavrikios Gavras, imperador dos videssianos. Não se trata apenas de uma forma de ganharem seu sustento material: o serviço mercenário é também a única possibilidade de que os videssianos lhes permitam continuar todos juntos como uma unidade militar, pois, de outra forma, nenhum governante com algum juízo permitiria a permanência de uma força armada estrangeira dentro de seu território. E, naquela situação, a união e o companheirismo são ainda mais importantes para Escauro e seus homens do que normalmente já são para qualquer exército romano, já que, para cada um deles, os outros são agora o único elo com seu próprio mundo.

A primeira coisa que se nota em The Misplaced Legion é que o autor possui um conhecimento profundo de História, o que se revela, primeiramente, em suas descrições do exército romano e de elementos culturais e sociais da época, que se refletem na visão de mundo e no modo de vida dos legionários; em segundo lugar, não é difícil ver que, para a criação do mundo fictício de Videssos, Turtledove usou como modelo direto o Império Bizantino – também conhecido como Império Romano do Oriente, que tinha sua capital em Constantinopla (que antes se chamava Bizâncio e hoje é Istambul) e continuou a existir por quase mil anos depois que o Império Romano do Ocidente caiu. De fato, o Império Bizantino manteve vivas muitas tradições romanas ao longo da Idade Média, mesmo tendo como língua oficial o grego, e não o latim. O autor não procurou esconder essa inspiração: a descrição da cidade de Videssos, capital do império de mesmo nome, é claramente a de Constantinopla, com o formato aproximado de um triângulo, tendo dois lados voltados para o mar e o terceiro protegido por poderosas muralhas; fica até mesmo à margem de um estreito que a população local chama de "Travessia do Gado", o que é a tradução literal do nome Bósforo. Uma breve análise do mapa do mundo mostra que ele foi inspirado, em linhas gerais, na Eurásia e norte da África, só que de maneira espelhada: os reinos civilizados ficam no leste, e o continente vasto e pouco explorado, no oeste.

A descrição de outros povos desse mundo também remete ao Império Bizantino e sua época: a guarda imperial, por exemplo, é formada principalmente por bárbaros altos e loiros vindos do norte, os halogai (plural de haloga), numa clara alusão à Guarda Varangiana da Constantinopla histórica. "Varangianos" era como os bizantinos se referiam aos nórdicos de maneira geral, e durante muito tempo a maior ambição de todo aventureiro viking que deixava a Escandinávia em busca de glória e fortuna era juntar-se a essa guarda. "Haloga", por sinal, era o nome de uma antiga tribo da Noruega, e a região onde ela vivia é conhecida até hoje como Halogaland, ou, em português, Halogalândia. Há também povos nômades das planícies, cujos homens são famosos como exímios arqueiros e cavaleiros – a versão videssiana de hunos, tártaros etc. A ilha do Ducado de Namdalen, cuja população foi formada pela miscigenação de videssianos com invasores halogai, poderia corresponder, de forma um pouco mais livre, à Grã-Bretanha (que, é claro, pertenceu ao Império Romano do Ocidente, nunca tendo feito parte do Império Bizantino; por isso digo que essa seria uma adaptação mais livre).

De tudo isso, concluo que provavelmente a primeira ideia de Harry Turtledove foi que os romanos dos dias de César fossem transportados através do tempo até a Idade Média e vivessem suas aventuras no Império Bizantino histórico, mas, conforme amadurecia o livro, o autor deve ter pensado que incluir elementos mágicos e fantásticos deixaria a história ainda mais interessante, e que, se era para transformar o Império Bizantino numa terra de magia e monstros, era melhor afastar-se um pouco mais da historicidade e abraçar de vez a vocação de fantasia da saga, mantendo, ao mesmo tempo, as características interessantes da Constantinopla real. Um coquetel ousado, eu diria, mas que, pessoalmente, me agradou muito.

Num ponto Turtledove (certamente tendo seus motivos para tanto) distanciou deliberadamente Videssos do Império Bizantino: a religião. No nosso mundo, o Império Romano do Oriente era cristão, sendo que até o século XI submetia-se à autoridade do papa; nessa época ocorreu o cisma que resultou na separação entre a Igreja Católica Romana e a Igreja Ortodoxa, que predominou no oriente a partir de então. A religião majoritária em Videssos, à primeira vista, pode parecer semelhante ao cristianismo: o deus que eles adoram é Phos, identificado com o bem e com a luz, e por isso simbolizado pelo sol; seu adversário é Skotos, o senhor das trevas e mestre do mal, e acredita-se que os homens e mulheres que, neste mundo, servirem a Phos praticando o bem, serão recompensados com vida e felicidade eternas após a morte, enquanto os que se renderem às tentações de Skotos serão atormentados para sempre numa espécie de inferno gelado. A semelhança, porém, é apenas superficial, já que a fé videssiana parece atribuir a ambas as entidades o mesmo peso no universo, talvez o mesmo grau de poder; para os cristãos, Satã se opõe a Deus, mas de maneira nenhuma tem o mesmo poder que Ele. As crenças dos videssianos se assemelham muito, isso sim, ao zoroastrismo persa. Seja como for, alguns dos sacerdotes dessa religião possuem assombrosos poderes de cura, sendo capazes de fazer com que homens com ferimentos mortais se recuperem mediante uma simples imposição das mãos – uma habilidade que Górgidas, o médico grego que acompanha a tropa romana, encara com um misto de incredulidade, admiração e despeito.

Num banquete na corte, ao qual ele e seus principais oficiais são convidados, Escauro acidentalmente derrama vinho no manto de um embaixador estrangeiro, um certo Avshar, enviado de Yezd, um reino no ocidente dominado por adoradores de Skotos. A presença de Avshar como diplomata possibilita uma precária paz entre Yezd e Videssos, mas, ao mesmo tempo, constitui um insulto, como o próprio imperador observa, já que a inimizade de facto entre os dois reinos é conhecida por todos. Avshar, truculento, não só se recusa a aceitar as desculpas de Escauro pelo acidente banal com o vinho, como ainda o insulta e esmurra. Exige um duelo, que o romano vence, embora com extrema dificuldade e, em grande parte, graças à magia presente em sua espada, já que Avshar, além de um combatente formidável, é também feiticeiro. O tribuno poupa a vida do embaixador – decisão da qual se arrependerá mais tarde. Quando, dias depois, Escauro sofre uma tentativa de assassinato, e provas inequívocas indicam que Avshar foi o mandante, o imperador declara que, com esse ato, o bruxo de Yezd perdeu o direito à proteção assegurada aos diplomatas, e ordena sua prisão. Escauro e outros vão no encalço do vilão, só para descobrir que ele escapou, deixando atrás de si armadilhas mágicas que custam as  vidas de vários homens. Mavrikios, então, declara guerra a Yezd (algo que ele sabia que teria que fazer, mais dia menos dia) e dá início à tarefa de reunir um grande exército, incluindo tanto tropas videssianas nativas quanto mercenários vindos de quase todos os cantos do mundo conhecido… E, no caso dos romanos, de mais longe ainda. Por falar neles, Escauro e seus homens são, sem comparação, a melhor infantaria de que o imperador dispõe, e por isso terão um papel-chave nessa campanha.

Assim como fiz com A Legião do Tempo, escolhi The Misplaced Legion para praticar o meu hobby/exercício de traduzir, e foi uma experiência empolgante. O texto está coalhado de referências clássicas – História, mitologia, filosofia –, e mesmo eu, que, modéstia à parte, tenho um razoável conhecimento ao menos nos dois primeiros campos, aprendi um bocado. Embatuquei um pouco na hora de dar o título: traduzir literalmente o título original resultaria em algo como A Legião Deslocada, ou, pior ainda, A Legião Extraviada – ou seja, sem chance! Passei um tempo indeciso, mas acabei ficando com A Legião Perdida; é verdade que já existe um filme com o mesmo nome, que, por sinal, é baseado no livro A Águia da Nona, de Rosemary Sutcliff, que já comentei aqui no blog – mas esse não é o primeiro e com toda a certeza não será o último caso em que duas obras sem qualquer relação direta entre si levam o mesmo título.

Além de nos oferecer uma história emocionante sobre guerra, lealdade, poder e intrigas, The Misplaced Legion apresenta uma galeria de personagens aos quais é impossível não se afeiçoar, chegando a me lembrar (atenção, isto é só um pensamento subjetivo!) Jornada nas Estrelas nesse quesito. Se Escauro for o capitão Kirk, então Górgidas (claro!) é o Dr. McCoy. Só é difícil ver algum traço de semelhança entre o lógico e racional Sr. Spock e o alegre e sangue-quente Viridovix, que, sim, acaba se tornando um amigo próximo de Marco. O gaulês adora farra e vinho, anda sempre atrás de rabos-de-saia, e ama a loucura da batalha, o que faz dele o oposto de Escauro, que é um adepto da filosofia estoica, que recomenda comedimento em tudo (bebida e sexo especialmente), e além disso, como ele mesmo reflete em certo trecho, tem em relação à guerra a mesma atitude que a maioria dos romanos: "Lutar era algo para ser feito quando necessário, e concluído o mais depressa possível." E, mesmo com tantas diferenças, os dois tornam-se amigos, o que reflete algo que já se verificava durante a batalha do começo do livro, antes de irem parar em Videssos: eles eram inimigos por força das circunstâncias, mas nunca tiveram pessoalmente nada um contra o outro, e respeitavam-se mutuamente como oponentes valorosos. Transportados para um mundo estranho, a inimizade perdeu todo o sentido. Essa amizade entre ex-inimigos é interessante e plausível; acho apenas que esse tema deveria ter sido melhor desenvolvido, o autor poderia ter-lhe dedicado mais espaço e aprofundado mais. E, como estou falando dos personagens, seria uma imperdoável injustiça não dedicar algumas linhas a Caio Filipo, que lembra inevitavelmente aquele sargento veterano de tantos filmes de guerra (especialmente os um pouco mais antigos) que todos já vimos: ríspido, durão, mas no fundo com um coração de ouro, ele dedica uma lealdade a toda prova a seu tribuno, que, como dito antes, mostra-se digno disso, diferente de outros oficiais que o velho centurião já conheceu. Mais importante que tudo isso, Caio Filipo é o personagem que melhor representa o apego à disciplina que era o próprio coração pulsante do exército romano: seus soldados sabem que pouco importa que o mundo esteja ruindo em volta, o treinamento diário acontecerá do mesmo jeito, e nenhum desleixo com o equipamento será tolerado. Sem esquecer, ainda, que as frequentes trocas de farpas verbais entre ele e Viridovix são uma diversão à parte.

A descrição da sociedade de Videssos, bem como da adaptação dos romanos a ela, acrescenta mais uma camada de interesse à trama. Há um diálogo entre Escauro e Górgidas em que o médico, mais velho e realista, faz ver ao tribuno que, com o tempo, seus homens se esquecerão de Roma – não no sentido de não se lembrarem de suas origens, mas no de gradualmente, sem perceber, irem adotando os usos, costumes e modos de pensar de sua nova pátria. Essa ideia, a princípio, choca Marco, mas, conforme passa o tempo, e quanto mais ele reflete a respeito, percebe que é verdade. Umas poucas centenas de homens jogados em meio a um povo estranho, com uma língua e uma cultura diferentes, fatalmente acabarão sendo absorvidos; deixarão sua marca, certamente, mas muito tênue e pequena num império vasto e multicultural como o de Videssos. E, como o grupo de romanos que foi transportado para esse novo mundo trata-se de uma unidade militar, são todos homens, que, não demora muito, começam a tomar companheiras locais, tal como faziam os legionários que serviam nas províncias do próprio Império Romano. Seus filhos ainda serão meio-romanos, mas cada uma das gerações seguintes terá menos de romana, até chegar um momento em que a marca de Roma já mal seja perceptível. É assim que as coisas acontecem quando povos se misturam. O próprio Escauro se apaixona por Helvis, uma bela namdalenense, e a toma como companheira. E, a respeito da vida pessoal e familiar dos legionários, acredito que, tal como no caso da amizade entre ex-inimigos, também nesse ponto faltou aprofundamento – afinal, é provável que muitos dos soldados de Escauro tivessem mulheres e talvez famílias no mundo que deixaram para trás, e devem ter sofrido com sua perda antes de aceitarem o fato e tentarem reconstruir suas vidas em Videssos. Praticamente nenhuma palavra é dedicada a isso.

Harry Turtledove, como vim a saber, possui uma extensa obra que parece oscilar entre a ficção histórica, a fantasia e a ficção científica, e este meu primeiro contato direto com uma história sua deixou a impressão mais favorável possível, apesar das pequenas omissões (bem, nem tão pequenas assim) citadas acima. É realmente uma pena ser tão improvável que seu trabalho algum dia chegue às livrarias brasileiras, mas, como observei no início, agora está disponível aos que fizerem uso das novas tecnologias e dominarem a língua inglesa. E, embora eu ainda não conheça nenhum de seus outros livros, ao menos o Ciclo de Videssos, em minha opinião, pode ser plenamente recomendado.

quinta-feira, outubro 25, 2018

O Voo da Águia

O segundo volume da saga Águias do Império de Simon Scarrow começa praticamente onde o primeiro termina. O exército romano acaba de estabelecer sua primeira base de operações relativamente firme em solo britânico, tendo enfrentado para isso uma árdua batalha, e prepara-se para prosseguir com seu avanço de conquista. O general Aulo Pláucio e seus oficiais (entre eles Vespasiano, legado da Segunda Legião Augusta, e seu tribuno superior, Vitélio) sabem que precisam tomar a cidade de Camulodunum (trata-se da atual Colchester, e nesta tradução adota-se a versão aportuguesada "Camulodônia") antes que o mau tempo do outono e inverno tornem inviável a continuidade da campanha pelo restante do ano: a cidade é sede da aliança de tribos forjada por Carátaco, chefe dos catuvelaunos, para tentar resistir à invasão romana. Esse movimento tem dupla importância: tomando Camulodunum, os romanos quebrarão a espinha da aliança dos bretões e, além disso, darão uma de-monstração de força que poderá convencer várias tribos britânicas ainda neutras a apoiá-los. Se falharem e tiverem que esperar até a primavera seguinte, poderá ser tarde demais, pois Carátaco terá tempo de consolidar sua aliança e desferir um ataque fatal, tirando vantagem de sua superioridade numérica e melhor conhecimento do terreno. Só que tomar Camulodunum não será fácil: só para chegar até a cidade, as legiões precisarão atravessar dois rios, o Durobrivae (que, por alguma razão, Scarrow preferiu chamar pelo nome moderno, Meadway) e o Tamesis (Tâmisa), obstáculos naturais que Carátaco, sem dúvida, saberá usar a seu favor.

Nos bastidores da Segunda Augusta, a rivalidade velada entre Vespasiano e Vitélio está equilibrada, graças ao princípio da "destruição mútua assegurada": cada um conhece certos segredos que, se revelados, custariam a carreira e, provavelmente, também a vida do outro. Isso mantém os dois disputando um tenso jogo de xadrez no qual um só passo em falso pode ser fatal. Ambos estão destinados a serem imperadores – um deles por curto tempo e deixando uma memória ingrata, enquanto o outro se tornaria um dos mais notáveis a vestir a púrpura durante os 500 anos do período imperial romano. Porém, nessa época ainda não há como alguém saber disso.

Já entre os "meros mortais" que integram a legião, o jovem Quinto Licínio Cato, já com quase um ano de caserna, está, por fim, sentindo-se um legionário digno desse nome e, como optio, sua ajuda é valiosa para seu centurião, Lúcio Cornélio Macro, homem bravo e justo, mas um tanto bronco. Junto com a Nona, Décima Quarta e Vigésima legiões, a Segunda Augusta atravessa o Durobrivae em meio à feroz oposição dos bretões, resultando numa batalha sangrenta, na qual a Segunda, por estar com seu contingente reduzido, é utilizada como reserva… mas, para a aflição de Macro, Cato e seus companheiros, no momento em que eles são mais necessários e estão prontos para entrar em ação, a ordem de avançar não vem – e, desnecessário dizer, sem essa ordem eles não podem intervir, de modo que são obrigados a ficar olhando enquanto a Nona enfrenta a fúria dos bretões e sofre baixas pesadas. Chega a parecer que alguém no comando está sabotando a batalha, mas a Nona confirma a fama de unidade valente e durona que já então tinha, e ganha o dia, mesmo com tudo indo contra. A ordem para a Segunda avançar, quando finalmente vem, parece ter sido dada no último momento possível. Ainda assim, há luta suficiente para que Cato abata mais alguns inimigos e sofra um ferimento de certa gravidade.

As provações ainda estão longe de acabar. Na região pantanosa entre o Durobrivae e o Tamesis, a Segunda Legião, impossibilitada de se reagrupar, fica dividida em pequenas subunidades que se veem envolvidas numa série de escaramuças, nas quais os bretões, familiarizados com o terreno, levam vantagem. Num momento desesperado, em que a Sexta Centúria, já reduzida em número, parece na iminência de ser aniquilada, Macro ordena a Cato que tente salvar o restante da centúria enquanto ele próprio fica para trás, com um punhado de homens, para tentar atrasar o inimigo, num ato heroico e praticamente suicida. O jovem optio cumpre a missão, mas fica totalmente sem chão com a perda de seu centurião, que ele julga morto… Claro que não é spoiler dizer que Cato está enganado – todo mundo sabe que a série continua ainda por vários volumes e que, neles, Macro continua aparecendo, mas, durante alguns dias, não se tem notícias dele, o que automaticamente coloca Cato no comando interino, função na qual ele não se sente nada à vontade – e quem poderia culpá-lo, sendo ainda tão pouco experiente? De qualquer forma, Cato e os soldados, de comum acordo, determinados a vingar seu centurião, apresentam-se como voluntários para fazer parte da primeira leva de tropas que atravessará o Tamesis; essa primeira leva terá que segurar as coisas por ali até que a segunda chegue para ajudá-la, e mesmo os meros minutos que os transportes levarão para cruzar o rio de volta, embarcar a segunda leva e retornar podem ser tempo suficiente para que eles sejam massacrados. Essa parte é muito propícia a que Simon Scarrow dê mais uma demonstração de suas habilidades como narrador de batalhas. É interessante notar que esse tipo de batalha – um exército tentando atravessar um rio, fosse vadeando-o ou por meio de embarcações, enquanto o outro tentava impedi-lo – seria muito típico das guerras medievais, séculos mais tarde. As legiões romanas eram insuperáveis como infantaria pesada, mas, justamente por causa do peso de seu equipamento, sua mobilidade no campo de batalha era limitada; era mais vantajoso para elas esperar que o inimigo tomasse a iniciativa de atacar, mas, devido à própria natureza das batalhas travadas no Durobrivae e no Tamesis, desta vez viram-se forçadas a assumir postura ofensiva, o que teve seus custos em termos estratégicos e acarretou sérias baixas. A conquista da Britânia não sairia barata ao Império.


Uma vez assegurado o controle da travessia dos rios, o exército comandado por Pláucio está finalmente em condições de avançar para Camulodunum, mas não pode fazer isso de uma vez: o imperador Cláudio, determinado a tirar daquela campanha todo o proveito político que puder, faz questão de estar presente para posar de herói conquistador, embora, é claro, não vá tomar parte em batalha alguma – ele nunca teve saúde para ser soldado, e, além disso, nessa época já não é jovem, sem contar que não teria muito cabimento um imperador arriscar a vida dessa forma, considerando que sua morte repentina poderia facilmente lançar o Império no caos. Vespasiano reflete que, enquanto o exército romano permanece parado, esperando pela chegada do imperador, Carátaco está tendo tempo para se preparar, e diz consigo mesmo que "a vaidade de Cláudio podia matá-los a todos", mas, para crédito de Cláudio, a verdade é que não se trata de mera vaidade, e sim de uma maneira de consolidar-se no trono.

Por esse tempo, há em Roma um movimento semissecreto conhecido como "os Liberais", que tem por objetivo a restauração da República, e pretende alcançar isso sabotando tudo o que o imperador tente fazer, como a campanha da Britânia, por exemplo. Nesse caso, eles podem estar agindo de uma forma bastante direta: Macro, Cato e outros soldados na linha de frente começam a notar que muitos chumbos lançados pelos fundibulários britânicos e muitas espadas empunhadas por seus guerreiros são de fabricação romana. Se fosse numa escala menor, nada disso seria de se estranhar – os fundibulários poderiam estar simplesmente reaproveitando os chumbos lançados pelos romanos contra eles, e as espadas poderiam ser despojos de batalhas anteriores, mas a presença de tais itens na quantidade em que estão sendo encontrados só pode significar uma coisa: há romanos fornecendo armas aos bretões. A primeira e natural suspeita de Vespasiano é que algum comerciante romano, mais sensível à sede de lucro que ao patriotismo, esteja negociando com os bárbaros por baixo dos panos, mesmo correndo o risco de ser apanhado, caso no qual seria executado publicamente da forma mais dolorosa e vergonhosa possível – era assim que Roma lidava com traidores. Porém, a realidade parece ser ainda mais sinistra: há nisso o dedo dos Liberais, e, o pior de tudo, Vespasiano suspeita que sua própria esposa, Flávia, uma nobre dama romana com trânsito livre na corte imperial, esteja envolvida.

Quando Cláudio finalmente chega, traz consigo reforços substanciais sob a forma de tropas e máquinas de cerco, tudo isso muito bem-vindo pela força expedicionária romana, já combalida pelas batalhas. Traz também, curiosamente, alguns elefantes (!), muito mais para fazer vista que qualquer outra coisa: embora isso tenha sido tentado por mais de uma vez, não parece que tenha havido algum sucesso consistente em utilizar elefantes em combate de forma eficaz no exército romano, nem mesmo com a colaboração de mahouts (condutores) nativos da África, provavelmente cartagineses ou númidas – esses povos, antes de serem subjugados, haviam lutado contra os romanos, muitas vezes utilizando elefantes com resultados terríveis. Por outro lado, a simples visão dos paquidermes costumava valer por um golpe severo no moral do inimigo, que geralmente nunca tinha visto nem imaginado semelhantes "monstros". Para eles, os animais pareciam algo saído de um pesadelo.

(A título de curiosidade, os elefantes de Cláudio, embora parecendo enormes aos olhos dos bretões e mesmo da maioria dos romanos, provavelmente não eram tão grandes quanto nós, modernos, os imaginaríamos, pois quase certamente pertenciam a uma subespécie hoje extinta, a Loxodonta africana pharaoensis, que habitava o vale do Nilo e outras partes do norte da África e era menor que as outras duas subespécies de elefantes africanos, que ainda existem e que, por habitarem a África subsaariana, eram exóticas para os povos da bacia do Mediterrâneo na Antiguidade. Essa subespécie menor era a mesma dos elefantes de guerra empregados por Cartago nas Guerras Púnicas.)

Bem… Quando escrevi meus comentários sobre A Águia do Império, primeiro volume desta série, deixei registrado meu estranhamento quanto ao detalhe de que Cláudio tivesse ordenado a Vespasiano que investisse o adolescente Cato no posto de centurião – ordem essa totalmente disparatada e que, se cumprida, seria certeza de desastre para a centúria em questão e, numa batalha, poderia até afetar toda a coorte, num efeito dominó. Acontece que o Cláudio aqui retratado (pois, neste volume, ele aparece) seria perfeitamente capaz de ordenar isso. Scarrow pinta-o como um tolo completo, talvez até levemente retardado – um papel que Cláudio representava quando julgava necessário, mas que não correspondia a sua personalidade real. É ponto pacífico entre os historiadores que ele foi um governante competente, que tomou decisões sábias na administração e na justiça do Império e era estimado pelo povo, além de ter sido um intelectual de capacidades não desprezíveis, autor de vários livros de História considerados notáveis pelos acadêmicos das gerações seguintes, mas que, infelizmente, não foram preservados até nossos dias. Aqui, porém, Cláudio é retratado como um pateta vaidoso, completamente manipulado por seu homem de confiança, o liberto Narciso, e, enquanto permanece na frente de combate, por vezes dá pitacos absurdos, obrigando o general Pláucio a verdadeiros contorcionismos de retórica para salvar seu exército sem afrontar o imperador. Fiquei até as últimas páginas na expectativa de ver Cláudio, talvez em particular com Pláucio ou com Vespasiano, tirar a máscara de abobado e começar a falar com autoridade e firmeza (mesmo que continuasse a gaguejar!), mostrando-se como realmente era, mas isso não aconteceu.

Outro ponto discutível que encontrei foi numa passagem em que Cato (no exercício de suas funções administrativas na centúria) e Macro estão conversando sobre um soldado que precisou ter uma perna amputada devido a um ferimento gravíssimo em combate e que, por conta disso, seria mandado para casa tão logo recebesse alta do hospital de campanha. Não estou encontrando o trecho agora para me certificar dos detalhes (livro físico também tem suas desvantagens), mas, pelo que minha memória reteve, Macro relembra os veteranos aleijados que ele via nas ruas de Roma quando jovem, levando vidas miseráveis e dependendo da caridade alheia para sobreviver; então, para poupar seu legionário ferido desse destino, promove uma coleta entre os companheiros para que ele tenha o capital inicial para abrir um negócio, talvez fabricando calçados ou alguma outra atividade que possa exercer sentado. A questão é: todas as fontes históricas que já consultei a respeito das legiões romanas (e acreditem, foram muitas, ao longo de mais de 30 anos) são unânimes em afirmar que um legionário inválido não ficava entregue à própria sorte. Havia o aerarium militare, talvez o primeiro sistema de previdência institucionalizado e regulamentado da História, que era custeado em parte por um desconto compulsório sobre os soldos dos legionários na ativa, em parte por outras verbas provenientes de impostos e destinadas pelo governo imperial. Esse sistema garantia uma renda aos soldados inválidos ou às famílias dos que morressem. Dependendo de seu nível de educação e da qualificação profissional que possuísse, um legionário que ficasse incapacitado para lutar podia, também, ser remanejado para funções administrativas ou de apoio dentro do próprio exército ou em diferentes órgãos públicos.

Como parece ser característico da série Águias do Império, em O Voo da Águia encontramos a alternância entre partes que tratam do cotidiano dos legionários (incluindo as batalhas, é claro) e outras que envolvem política, intriga e suspense. Neste volume, há uma conspiração em andamento para assassinar Cláudio, e, como no livro anterior, Macro e Cato vão ver-se envolvidos na trama, resultando numa situação em que nenhum dos dois gostaria de estar metido, mas na qual terão que mobilizar toda a sua coragem para tentar salvar a vida do imperador. Suponho que procurar equilibrar os dois aspectos dentro da narrativa seja a aposta de Simon Scarrow para evitar que qualquer um deles se torne cansativo, e devo dizer que, na minha opinião, funciona. Suas histórias são interessantes, intensas e satisfazem plenamente o leitor interessado na Antiguidade romana. Seguirei lendo e recomendando.

quinta-feira, agosto 23, 2018

A Águia do Império

Desmontando do seu cavalo, Vespasiano desapertou a fivela no seu ombro e deixou que o seu manto de legado caísse ao chão. Um oficial de dia entregou-lhe um escudo e Vespasiano passou a mão esquerda pela correia, agarrou firmemente no suporte de ferro e desembainhou a espada curta de cabo de marfim. Endireitou-se numa postura rígida e forçou o seu caminho por entre os soldados até alcançar o centro da frente de combate. Se este era o dia destinado à sua morte, então morreria como lhe ditavam os seus antepassados e o respeito pela tradição romana: com a face virada para o inimigo e a espada na mão.

*          *          *

Trinta e três anos se passaram desde a batalha da Floresta de Teutoburgo, e vinte e poucos desde as subsequentes represálias romanas contra as tribos da Germânia. O ano é 42 d.C., o segundo do governo do imperador Cláudio, e o Reno continua a servir de fronteira entre a província romana da Germânia Menor (formada pelas atuais regiões alemãs da Baixa Saxônia, Renânia, Renânia do Norte e Hesse, mais a Holanda e as regiões francesas da Alsácia e Lorena) e a Germânia Maior, que permanecia sob o controle das tribos nativas e abrangia todo o restante do atual território alemão, além de partes da Áustria, Polônia, República Tcheca e outros países. Como fronteiras bárbaras nunca são regiões seguras, e os germanos são um povo particularmente violento, Roma mantém um olho vigilante e fortes defesas a postos contra possíveis ataques.

É nas margens do Reno que se localiza a fortaleza que serve de base à Legio II Augusta, ou Segunda Legião Augusta, uma das mais afamadas e temidas unidades do exército romano. Por esse tempo, seu comandante é o legado Tito Flávio Vespasiano, mais tarde general e depois imperador. Entre os oficiais sob seu comando está Lúcio Cornélio Macro, que foi recentemente promovido ao posto de centurião, e ainda está se adaptando ao seu novo status e responsabilidades quando se depara com uma situação inusitada. No meio de um contingente de novos recrutas vem um certo Quinto Licínio Cato, um adolescente acostumado aos livros e aparentemente sem nenhum pendor para a vida de soldado. Cato (outra forma de Catão, o que poderia sugerir que o rapaz talvez tenha algum parentesco com esse célebre clã de políticos e oradores) tem uma história curiosa. Seu pai era um escravo no palácio imperial, mas não um escravo qualquer; por alguma razão misteriosa, gozava de alta consideração por parte de mais de um imperador, tendo ganho a liberdade como presente de Tibério – mas, infelizmente para o jovem Cato, isso aconteceu pouco depois de seu nascimento: o filho de um liberto era cidadão romano de pleno direito, já o filho de um escravo era escravo também, e a subsequente libertação de seu pai não alterava esse fato. O rapaz cresceu como escravo no palácio, mas aparentemente Tibério pretendia utilizá-lo em alguma função especializada, pois providenciou para que ele recebesse uma educação primorosa. Só que Tibério morreu e, depois do curto porém terrível interlúdio que foi o principado de Calígula, Cláudio chegou ao trono. No dia em que se conhecem, Macro e Cato têm o diálogo do qual retirei este trecho:

– (Meu pai) era um escravo, senhor. – A vergonha por o dizer era evidente, mesmo perante um homem como Macro. – Antes de ser libertado por Tibério. Eu nasci pouco antes.

– Que azar. (...) Presumo que tenhas sido liberto pouco depois. O teu pai comprou-te?

– Não o deixaram, senhor. Não sei por quê, mas Tibério não o permitiu. O meu pai morreu alguns meses atrás. No seu testamento pedia que me libertassem na condição de que continuasse a servir o império. O imperador Cláudio aceitou, desde que me alistasse no exército, e por isso estou aqui.

A história de Cato é incomum do início ao fim, mas o detalhe mais surpreendente (na verdade, absurdo) vem agora: em seu alforje, o novato traz uma carta do próprio Cláudio, dirigida pessoalmente ao legado Vespasiano. A carta está lacrada e seu portador desconhece o conteúdo. Quando é entregue e aberta, descobre-se que Cláudio ordena a Vespasiano que Cato seja não só incorporado à Segunda Legião, mas investido no posto de centurião (!). Talvez a minha noção a respeito de Cláudio seja demasiado favorável por ser baseada principalmente no livro de Robert Graves, mas acho difícil crer que ele desse tal ordem; embora, por conta de seus vários problemas de saúde, ele nunca tivesse estado no exército, era um historiador, e, enquanto tal, precisava ter um razoável conhecimento (ainda que apenas teórico) sobre assuntos militares, certamente mais que o suficiente para saber que a patente de centurião é para soldados experientes, que já provaram repetidamente no campo de batalha tanto seu valor como combatentes quanto sua capacidade de liderança. Colocar o elmo com a crista transversa na cabeça de um recruta que ainda não sabe nem segurar uma espada seria condenar 80 homens à morte quase certa na primeira batalha. É impossível cumprir a ordem do imperador – mas, por ser uma ordem do imperador, também é impossível simplesmente ignorá-la, de modo que Vespasiano decide pelo meio-termo: como Macro, casualmente, acaba de perder o seu optio (pronuncia-se ópcio; assim se chamava o oficial que atuava como lugar-tenente de um centurião), o legado promove Cato a esse posto e ordena ao estupefato centurião que o treine para desempenhar as respectivas funções. O título original do livro era Under the Eagle, ou seja, 'Sob a Águia', referindo-se à águia dourada que era a mais importante insígnia de toda legião, um símbolo de sua honra, que todo legionário tinha o dever de guardar com a própria vida (mais detalhes sobre isso aqui). "Marchar sob a águia" era uma forma poética de dizer "juntar-se ou pertencer a uma legião", de modo que o título refere-se ao ingresso do jovem Cato na vida militar. As aventuras dele e de Macro, iniciadas com este volume, renderiam uma longa e bem-sucedida série.

Cato passa por maus pedaços durante seu período de adaptação à vida na legião. Acostumado a manejar penas e papiros, e a lidar com a obra dos grandes expoentes da literatura e da filosofia, ele está agora entre homens rudes, na maioria analfabetos ou quase isso, que não fazem ideia de quem foram Platão ou Virgílio e tendem a avaliar o valor de um homem pela força de seu braço e por sua capacidade de suportar esforços e sofrimentos sem se queixar… Bem, pelo menos sem se queixar muito. Nas legiões, como em qualquer exército, forjavam-se grandes amizades, pois talvez nenhuma outra experiência crie um elo tão forte entre um grupo de homens quanto a de enfrentar a morte juntos – mas, é claro, também havia valentões, e, para esses, o novato magrelo e tímido, optio ou não, é presa fácil. Cato, entretanto, acaba demonstrando ser feito de um material mais resistente do que parecia a princípio. Não fica a dever nada em força de vontade a nenhum de seus companheiros e mostra-se mais astuto que a maioria, ainda que por vezes seja traído por sua ingenuidade adolescente. Durante uma insurreição numa aldeia germânica perto da fortaleza da Augusta, salva a vida de Macro – e, como o centurião sai do episódio com um ferimento grave, que vai exigir tempo para sua recuperação, o fardo de comandar a centúria durante os meses seguintes cai sobre os ombros do jovem optio. Como se isso não fosse o suficiente para mantê-lo ocupado, Cato ainda assume a tarefa de ensinar a seu comandante os segredos das letras: Macro é quase analfabeto, um segredo que ele guarda a sete chaves, já que, caso se tornasse conhecido, ele seria rebaixado de posto – esperava-se que os centuriões soubessem ler e escrever, pois, além do comando em si, tinham responsabilidades administrativas. Com a ajuda de Cato, Macro espera conseguir alfabetizar-se o suficiente e a tempo, antes que algum de seus superiores descubra a verdade.

Como dissemos, o ano desses eventos é o segundo do principado de Cláudio, que ocupou o trono após o assassinato de seu sobrinho, Calígula, e logo nos primeiros tempos de seu governo precisou lidar com uma tentativa de golpe de estado orquestrada por Escriboniano, um legado da Dalmácia. O fato de Cláudio ter vencido a rebelião surpreendeu a muitos, já que ele sempre tivera fama de débil mental e tinha sido colocado no trono para ser um mero fantoche – mas acabou demonstrando inesperada capacidade. Ainda assim, sua posição ainda não era muito firme nos dias em que está ambientada esta história, e Cláudio precisava realizar feitos relevantes para ganhar o respeito da população em Roma e, tão ou mais importante que isso, do exército. Essa necessidade foi um dos principais fatores a determinar a invasão da Britânia, que aconteceu no ano 43, e a narrativa de Simon Scarrow segue a História à risca nesse ponto. Júlio César havia tentado por duas vezes, quase um século antes, sendo bem-sucedido na segunda, mas tal invasão tivera por objetivos principalmente punir os bretões por terem apoiado os gauleses contra Roma durante as Guerras Gálicas e aumentar o prestígio pessoal de César, e não resultou num domínio efetivo de Roma sobre as Ilhas Britânicas; durante esse intervalo de 90 e poucos anos, houve relações diplomáticas intermitentes entre os romanos e as tribos locais. Como sempre acontecia, algumas dessas tribos haviam-se aliado voluntariamente a Roma, atraídas pelas vantagens econômicas, sociais e políticas que isso oferecia, enquanto outras prezavam por sua independência e certamente oporiam uma obstinada resistência. A verdadeira conquista da Britânia, aquela que faria dela, em definitivo, uma província romana, aconteceu sob o governo de Cláudio… e, entre as legiões destacadas para compor a força de invasão, estava a Segunda Augusta. Assim, em A Águia do Império temos oportunidade de acompanhar Macro, Cato e seus companheiros na longa marcha desde as margens do Reno até as praias do norte da Gália, de onde partirá a frota invasora. Porém, a dura jornada e os tensos momentos de combate não são tudo na trama: há também fartas doses de intriga, na qual nossos heróis são enredados de forma alheia à sua vontade. Um dos tribunos da Augusta, na verdade o mais graduado deles, é um certo Vitélio, um aristocrata ambicioso que, nos anos seguintes, cultivaria estreitas relações com a casa imperial, ganhando as boas graças da imperatriz Agripina e, mais tarde, fazendo parte do círculo íntimo do filho dela – o ególatra e amalucado Nero, enteado de Cláudio, que ocuparia o trono depois dele. Com a morte de Nero, em 68, Roma mergulharia no período conturbado que ficaria conhecido como o "Ano dos Quatro Imperadores", durante o qual sucederam-se no trono Galba (que durou seis meses), Oto (três) e Vitélio (oito), cujo desastroso principado terminaria com uma revolta na qual ele seria apedrejado pelo povo e sucedido por Vespasiano, que restauraria a ordem e faria um governo próspero de dez anos; foi o primeiro imperador de uma nova dinastia, a dos Flávios. Entre outras coisas, Vespasiano iniciou a construção do grande Anfiteatro Flaviano, hoje mais conhecido como Coliseu, que seria concluída por seu filho e sucessor, Tito. Por falar nisso, Tito também aparece neste livro, ainda quase uma criança de colo, muito vivo e travesso.

Portanto, Vespasiano, no seu posto de legado da Segunda Augusta, tem Vitélio como seu subordinado imediato, e, sob a superfície de disciplina militar impecável e de relacionamento cortês em nível pessoal, os dois estão bem cientes, já nessa época, de que são rivais – mas, como reflete Vespasiano, ninguém sabe o dia de amanhã, e esse velho ditado é ainda mais verdadeiro quando se trata de política: mais tarde os dois poderão estar em lados opostos de uma disputa feroz, ou pode ser que acabem precisando se aliar. Ainda não há como saber, e, por isso, ele precisa ser muito cuidadoso em seu trato com o jovem oficial. Para deixar tudo ainda mais complicado, o imperador Cláudio envia seu braço-direito, um tal Narciso, para supervisionar a invasão, além de tratar de outros assuntos mais secretos. Narciso é um bocado arrogante, o que se torna ainda pior aos olhos de um homem como Vespasiano pelo fato de tratar-se de um liberto, isto é, um ex-escravo, que não tinha o direito de colocar-se no mesmo nível que um cidadão romano – mas Narciso sabe que sua condição de enviado imperial lhe confere certas prerrogativas, e por isso toma atitudes que, em mais de um momento, deixam o legado fulo… mas sem condições de fazer nada a respeito. O que eu não compreendi foi por que Cláudio não concedeu cidadania a Narciso, pois esse era um poder que o imperador tinha, e que ele exerceu para com o humilde jovem Cato, que, afinal, também é um liberto, e não poderia tornar-se um legionário sem antes ser cidadão. Ou talvez Cláudio tivesse, sim, concedido cidadania a Narciso, mas mesmo assim o estigma social permanecesse… mas, neste caso, seria uma boa ideia deixar isso explícito em algum momento.

O pano de fundo histórico é fascinante, mas o que realmente cativa o leitor é o primeiro encontro de Macro e Cato, destinados a ainda passarem por muita coisa juntos. Embora a sinopse da contracapa (nesta edição da Saída de Emergência) descreva Macro como "o mais experiente e destemido de todos os centuriões", dentro do livro o personagem não é assim: como eu disse acima, Macro tornou-se centurião há pouco tempo – possui experiência como soldado, mas é novo no "negócio" de ser um oficial. É um homem duro e corajoso, sem dúvida, mas não especialmente esperto (como ele mesmo reconhece numa passagem) e por vezes tem momentos de indecisão e insegurança. Cato, por outro lado, mesmo inexperiente e, no começo, totalmente cru quando o assunto é a vida militar, tem uma mente afiada e sua ajuda é valiosa. A complementaridade entre os dois se estabelece naturalmente, junto com uma amizade que combina a relação de mestre e discípulo (com os dois se alternando nesses papéis), admiração mútua e uma certa afeição de pai e filho "postiços". Perto do final do livro, quando a legião enfrenta os bretões, toda a coragem de Cato vem à tona, ao mesmo tempo que ele se sente, pela primeira vez, verdadeiramente parte da Augusta. Se o leitor ainda conservava alguma dúvida de que o rapaz tem dentro de si aquilo que faz de alguém um legionário, ela é dirimida nesse ponto.

A Águia do Império é uma leitura empolgante para fãs de ficção histórica como eu – e de modo especial para os fascinados pelas legiões. Está, facilmente, no mesmo nível que a Trilogia das Águias, de Ben Kane. Aliás, o autor, Simon Scarrow, parece ter muito em comum com Kane além do tema sobre o qual gosta de escrever: ambos nasceram na África (Kane no Quênia, Scarrow na Nigéria), mas possuem cidadania britânica e vivem hoje na Inglaterra. Como este é apenas o primeiro volume da série, a tendência é que os próximos sejam ainda mais interessantes. Pretendo conferir em breve, e sem dúvida trarei os volumes seguintes para o blog, logo que os tenha lido.

sábado, dezembro 09, 2017

Águias na Tempestade

Águias na Tempestade conclui a Trilogia das Águias de Ben Kane, cujos outros dois volumes já foram objeto de comentários aqui no blog (ver aqui e aqui), e que me proporcionou três sucessivos e deliciosos mergulhos no mundo do primeiro século da Era Cristã, e, mais especificamente, nas histórias por trás dos reveses sofridos pelos romanos na Germânia, que determinaram a cessação de sua expansão pelas terras a leste do Reno. Isso fez com que o rio continuasse, pelos séculos que se seguiram, a ser, na prática, a fronteira entre a área de influência de Roma e as terras que permaneciam sob o controle das tribos bárbaras; em termos modernos, isso significa que a maior parte do que é hoje a Alemanha nunca foi de fato incorporada ao Império, o que se refletiria em sua história, tanto no campo cultural quanto político. Novamente, Kane nos oferece uma narrativa empolgante girando em torno de Armínio, o chefe germânico que já foi um oficial do exército romano, e de Lúcio Comênio Tulo, centurião veterano que viveu altos e baixos (alguns deles muito baixos) durante os últimos anos servindo na Germânia.

Um ano depois dos eventos narrados em O Resgate das Águias, Armínio continua lutando com o mesmo problema de sempre: seus compatriotas germanos estão demasiado ligados a seu modo de vida tradicional para serem capazes de pensar e agir como um só povo. Cada chefe só pensa nos interesses de sua própria tribo e desconfia das outras – e, principalmente, desconfia dos outros chefes. Também as opiniões a respeito dele, Armínio, estão longe de formar um consenso. Alguns chefes o veem com bons olhos por causa da vitória à qual conduziu os germanos na floresta de Teutoburgo, seis anos antes, mas outros acham (e não sem razão) que ele pretende muito mais que apenas manter sua pátria fora dos domínios de Roma: Armínio ambiciona tornar-se um líder supremo, uma espécie de rei, pretensão que soa ofensiva aos ouvidos daquele povo tribal, para quem a ideia de fazer parte de um Estado centralizado não parece muito diferente da de escravidão. O contra-ataque romano do ano anterior, com a recuperação de uma das águias tomadas em Teutoburgo, foi um claro sinal de que é perigoso para as tribos dar a vitória como certa e achar que podem relaxar (ou, como diriam seus inimigos, "adormecer sobre os louros"), e Armínio, mais uma vez, se esforça para conseguir que todos se unam. Para isso, ele não lança mão somente de expedientes honestos; há momentos em que julga necessário manipular, e o faz por quaisquer meios ao seu alcance, seja bajulando ou intimidando. Assassinato também não é uma solução que ele se recuse a utilizar, quando se trata de tirar do caminho alguém que esteja se mostrando um obstáculo particularmente difícil. Há também o drama pessoal do qual Armínio ainda não se recobrou por completo: o rapto de sua esposa grávida, por volta da mesma época da revanche dos romanos. Ele sabe que ela deve estar viva e sendo bem tratada, que deve ter dado à luz o filho do casal e estar criando-o num cativeiro, confortável talvez, mas que nem por isso deixa de ser um cativeiro, sabe-se lá em que lugar dos vastos domínios de Roma – mas saber que a mulher e o filho estão vivos só oferece um consolo limitado, já que ele provavelmente nunca mais os verá.

Tulo, enquanto isso, vive uma fase que, embora dura e trabalhosa como nunca deixava de ser a vida de um legionário, está-lhe trazendo satisfação pessoal. Deve estar agora com seus 50 anos, ou quase isso, e, embora a ideia de reformar-se pareça cada vez mais tentadora, nota-se que ele só sentirá que seu dever foi cumprido quando a águia da Décima Oitava (sua antiga legião, uma das três aniquiladas por Armínio e seu exército na floresta de Teutoburgo) for recuperada. Depois de anos de constrangimentos por causa do que aconteceu em Teutoburgo, e de ter sido rebaixado de posto graças à influência do odioso jovem legado Túbero, ele merecidamente caiu nas boas graças de Germânico, sobrinho e filho adotivo do imperador Tibério, governador militar e general em comando das legiões da Germânia, e, no começo deste novo livro, é novamente promovido, passando a comandar a Segunda Centúria da Primeira Coorte da Quinta Legião (uma legião tinha dez coortes, e a autoridade e prestígio de um oficial eram inversamente proporcionais ao número da coorte na qual ele servia: um centurião da Primeira Coorte estava bem mais alto que um da Sexta, por exemplo). Em Teutoburgo, Tulo salvou uma menina germânica órfã a quem acabou adotando, mas, por não ser possível a um velho soldado solteirão tomar conta de uma criança, confiou-a aos cuidados de Sirona, madura e atraente viúva gaulesa, proprietária de uma taberna na vila próxima ao forte onde ele serve. Tulo sempre arrastou uma asa por essa dama, e agora o sentimento parece estar transbordando, levando-o a tomar atitudes (um tanto atabalhoadas) das quais, tempos atrás, nem teria se julgado capaz, o que rende uma ou duas passagens bastante divertidas.

Ocorre então que, certa tarde, Tulo, de folga, está justamente no joalheiro da vila, tentando escolher um presente para sua crush, como diríamos hoje, quando, através da porta da loja, vê passar na rua seu general, Germânico, acompanhado apenas de uns poucos guardas pretorianos que lhe servem de guarda-costas, rumo a sua loja de vinhos favorita – e, logo atrás, um grupo de guerreiros germanos armados. Com risco da própria vida, Tulo consegue salvar seu comandante, e já não pela primeira vez, mas fica abalado e preocupado ao reconhecer entre os assassinos um homem de nome Degmar, da tribo dos Marsi, cuja vida ele salvou tempos antes, e que, durante um curto período, foi seu escravo. Como ele escapa (é o único do grupo que consegue), as perguntas ficam sem respostas, e a apreensão gerada pelo incidente ainda está com Tulo quando, meses depois, o exército formado por oito legiões, mais tropas auxiliares, atravessa o Reno para uma nova investida contra os germanos.


E creiam, se a narração da batalha de Idistaviso (também referida como batalha do rio Visurgis, embora Ben Kane designe o rio por seu nome moderno, Weser) presente nos capítulos XX a XXIII não for a melhor narração de batalha que já li em romances históricos, está, pelo menos, no "Top 3". O modo como Kane conta sobre o desenrolar dos acontecimentos permite-nos ver com nitidez a diferença entre os estilos de combate de romanos e germanos, ainda que Armínio aproveite alguma coisa do que aprendeu no tempo em que servia a Roma – não pode usar tudo o que aprendeu, pois, para isso, precisaria de um tipo de soldado do qual não dispõe. Embora odeie os romanos do fundo da alma, ele sente uma admiração relutante e pontuada de inveja pela coragem disciplinada que eles demonstram no campo de batalha – um tipo de disciplina que seus guerreiros germânicos teriam que nascer de novo umas três vezes para conseguir. "Disciplina, era sempre a merda da disciplina deles que vencia", reflete enquanto tenta não se deixar levar pelo desespero quando a batalha começa a tomar um inconfundível ar de derrota. Mesmo quando isso não é formulado em palavras, é fácil imaginar que Armínio devia ficar pensando frequentemente sobre as "misérias" que poderia fazer contra o Império se seus seguidores fossem como os legionários. Um general romano não precisava perder um tempo muitas vezes precioso nem sabotar a própria autoridade persuadindo repetidamente os oficiais sob seu comando de que seria "melhor para todos" se fizessem o que ele dizia, ou, caso isso falhasse, recorrendo à bajulação e a promessas de recompensa. Bastava-lhe dar uma ordem, e não era preciso repeti-la.

Não é meramente como se os germanos não tivessem a capacidade para alcançar o mesmo grau de disciplina que os romanos: acontece que eles nem mesmo querem isso. A simples ideia soa-lhes revoltante. Isso fica bem ilustrado numa passagem em que Armínio repreende alguns guerreiros por fazerem algo sem sua autorização, e o mais idoso do grupo lhe retruca: "Toma lá isto para a tua autorização. – O velho guerreiro fez um gesto obsceno. – Segundo a última informação que tive, eras o chefe da tribo dos Queruscos, não eras nem rei nem centurião romano, e eu era um homem livre, não um escravo ou a merda de um legionário." Para a mentalidade dos germanos, a obediência pronta, sem discussão que um soldado romano prestava ao seu superior era uma coisa abjeta, indigna de um homem. O fato de ser precisamente essa disciplina o que dava aos romanos a capacidade de superá-los no campo de batalha não lhes entrava na cabeça.

Também conforme aquilo que já nos acostumamos a esperar dele nos dois primeiros volumes da saga, Ben Kane aproveita os ganchos da história para apresentar mais detalhes sobre as legiões e sobre como era a vida de seus integrantes – e mesmo quem, como eu, está longe de ser estranho ao assunto, sempre aprende mais alguma coisa. A "bola da vez" (bem, uma delas) são os pretorianos e sua relação com os legionários "comuns": há um trecho especialmente interessante e que chega a ser engraçado, em que Tulo, precisando falar com urgência a Germânico numa hora tardia, tem sua entrada barrada por um par de guardas emproados e acaba perdendo a paciência, dizendo umas tantas coisas que, sem dúvida, muitos legionários gostariam de dizer. Bem, para começo de conversa, quem eram os pretorianos? Na origem, o prætorium, ou pretório, era a casa (numa base permanente) ou tenda (num acampamento) onde o comandante de uma força militar se alojava e de onde exercia suas funções, tais como expedir ordens e receber os relatórios dos oficiais. Durante sua longa campanha na Gália, Júlio César decidiu criar uma guarda especial para sua segurança, e que seria composta por homens escolhidos, legionários experientes, de absoluta lealdade e sólida reputação por atos de valor. Por proteger o pretório e seu mais ilustre ocupante, essa força especial ganhou o nome de Guarda Pretoriana, e viria a tornar-se uma instituição tradicional no exército romano, diretamente responsável pela segurança do imperador e de sua família (certo, o próprio César nunca foi formalmente entronizado, mas, com exceção do título, foi imperador em tudo o mais). Durante o tempo de César, a Guarda existiu de maneira informal; seu sobrinho-neto, filho adotivo e sucessor, Augusto – o primeiro a usar o título de imperador – foi quem a institucionalizou e regulou. Tibério, enteado e sucessor de Augusto, e que era o imperador na época em que está ambientado o livro, fez construir um imponente quartel-general para a Guarda Pretoriana, que, por falar nisso, era a única força militar à qual era permitido estacionar na zona urbana de Roma. Em reconhecimento a esse gesto, a Guarda adotou como emblema um escorpião, o signo zodiacal de Tibério. Os pretorianos distinguiam-se dos demais legionários pelas túnicas escuras e pelos escudos, que eram ovalados, como os dos exércitos da época da República, em vez de retangulares.

Se a Guarda Pretoriana tivesse continuado a ser o que foi pensada para ser, é provável que não se houvesse instalado a antipatia com que homens como Tulo e seus soldados a encaravam; afinal, os pretorianos deveriam ser a elite do exército, deveriam ser exclusivamente heróis das legiões, dignos da admiração de todos. Deveriam. Só que ser um pretoriano era uma posição cobiçável, já que o soldo era duas vezes maior que o dos legionários regulares, o tempo de serviço era mais curto, e havia uma série de privilégios, para não falar no fato de que, salvo na eventualidade de algum membro da família imperial decidir ir para o campo de batalha, era pouco provável que viesse a ser preciso efetivamente lutar (os pretorianos que acompanham Germânico, por exemplo, não têm uma vida tão tranquila). E, como costuma acontecer em se tratando de posições cobiçáveis, uns e outros não demoraram muito a encontrar "formas alternativas" de ter acesso a uma vaga na Guarda, para quem tivesse uma família influente e/ou bastante prata disponível. Como resultado, na opinião de Tulo, pelo menos uma grande parte da Guarda Pretoriana em seus dias é composta de jovens bundões em armaduras reluzentes que se julgam superiores aos outros legionários, mas que, se estivessem em sua centúria, sentiriam o peso de sua vitis (vara de videira que os centuriões portavam) até virarem homens de verdade.

De toda a trilogia, Águias na Tempestade é, mais do que provavelmente, o volume com a mais farta quota de sangrentas cenas de batalha; eu ainda não tinha visto Tulo e seus homens causarem tamanha devastação entre as fileiras inimigas, e é digno de admiração o modo como Ben Kane consegue levar um trecho de até duas, três páginas narrando isso, sem que em momento algum a coisa pareça repetitiva ou desnecessária. As baixas do lado romano também não são poucas, ao menos quando Armínio, cuja capacidade estratégica não é desprezível, consegue forçar as legiões a lutar em terrenos e condições que tornam muito difícil colocar em prática as táticas e manobras engenhosas que os soldados romanos treinavam exaustivamente até serem capazes de executá-las de olhos fechados e com a precisão de um relógio – o que, em grande parte, era o segredo de suas vitórias contra inimigos fortes e corajosos, mas desorganizados, como era o caso dos guerreiros germanos. Como nos dois livros anteriores, não há aqui mocinhos nem bandidos, ou, pelo menos, ninguém é alguma dessas coisas o tempo todo: de ambos os lados são praticadas atrocidades e também atos heroicos. A guerra é sempre um negócio brutal e terrível, e talvez não haja nada como ela para trazer à tona o melhor e o pior que existe no homem.

Não é possível concluir o texto sem dizer uma ou duas palavras a respeito de Nero Cláudio Druso Germânico (filho), ou apenas Germânico, personagem histórico real aqui retratado. Em Eu, Claudius, Imperador, o autor Robert Graves pintou-o sob a ótica de seu irmão menor, Cláudio, que o idolatrava, talvez, mais que ao próprio pai, a quem quase não conheceu (Nero Cláudio Druso Germânico pai, normalmente referido como Druso, faleceu em 9 a.C., quando Cláudio tinha cerca de um ano de idade). Antônia, mãe dos dois, punha todo o seu orgulho e esperanças no filho mais velho, dedicando apenas desprezo ao pequeno Cláudio, a quem considerava um retardado inútil; da família, só Germânico gostava de Cláudio, e fez por ele tudo o que pôde. Não admira, portanto, que Graves, ao tentar escrever como o próprio Cláudio escreveria, tenha feito de Germânico a representação mais favorável possível. Já em Águias na Tempestade, a ótica é outra: Ben Kane baseou-se principalmente nos relatos dos historiadores Tácito e Dio Cássio; esse é Germânico em ação na guerra, conduzindo-se, muitas vezes, de modo implacável. Nas campanhas dos anos 15 a 17, as tribos que se haviam aliado a Armínio em Teutoburgo foram derrotadas, e várias delas, quase exterminadas, mas isso não foi seguido por uma ocupação massiva do território, e nem mesmo por um esforço sistemático no sentido de restabelecer a próspera província romano-germânica que estava tomando forma antes de Armínio orquestrar sua revolta; o principal motor dessas campanhas foi o fato de que o massacre na floresta de Teutoburgo não podia ser deixado sem resposta, por pelo menos duas razões. Primeiro, se o Império não revidasse, isso poderia assanhar as tribos do leste do Reno e levá-las a achar que a vitória uma vez obtida poderia ser reprisada, e, com isso, a margem oeste do rio passaria a sofrer com seus ataques. Segundo, as águias das legiões esmagadas em Teutoburgo continuavam em poder dos bárbaros, e, enquanto não fossem recuperadas, isso permaneceria como uma ferida aberta no moral de todo o exército. Uma vez concretizada a represália, os romanos retiraram-se; o imperador Tibério e o senado concordaram que as terras além do Reno exigiriam demasiado esforço para sua conquista, e não ofereciam em troca nada que não pudesse ser obtido mais facilmente em outros sítios. Portanto, pode-se dizer que o objetivo de Armínio e seus seguidores, de manter a maior parte da Germânia independente do Império Romano, foi alcançado, mesmo que o saldo final do confronto tenha sido de derrota para eles. Quanto a Germânico, só podemos ficar imaginando que grande imperador ele poderia ter sido (era filho adotivo de Tibério, e, portanto, o próximo na linha de sucessão) se não fosse por sua morte prematura, em 19, sem ter completado 34 anos. De qualquer forma, o principado de Tibério seria bem longo: ele governaria até sua morte no ano 37, e, não mais dispondo de Germânico para sucedê-lo, indicou o filho dele, Caio Júlio César Augusto Germânico… mais conhecido como Calígula. Um pouco mais sobre esses dois imperadores pode ser encontrado em meu post sobre o livro de Robert Graves, cujo link está logo acima neste parágrafo.

Ben Kane, sem dúvida e sem favorecimento algum, é um dos mais notáveis escritores atualmente em atividade a se dedicarem à ficção histórica, e estou grato por ter tido a oportunidade de ler a Trilogia das Águias, que me rendeu algumas horas de uma leitura muito intensa e agradável. Não tenham preguiça de ler na íntegra a nota do autor ao final do livro: há partes que são repetidas das notas dos dois primeiros volumes, mas outras não são e tratam de coisas que vale a pena saber. Certo, parece que Kane não quis dar-se ao trabalho de garantir que a nota ficasse tão bem escrita quanto o resto do livro, pois o texto é um tanto bagunçado, com vários assuntos jogados aparentemente a esmo num único parágrafo. Há indicações empolgantes de museus e sítios arqueológicos romanos que podem ser visitados na Alemanha – espero conseguir um dia – e uma pá de curiosidades. Kane assegura que a ronda noturna de Germânico pelo acampamento, disfarçado, para conferir como anda o moral de seus soldados (que eu poderia jurar ter sido inspirada numa cena da peça Henrique V, de Shakespeare!) é histórica, embora, no livro, tenha levado o toque ficcional de fazê-lo acompanhar por Tulo. E, fazendo uma brincadeira com seus leitores, o autor desafia: "Há duas homenagens ao filme Gladiador no livro – veja se as descobre". Uma delas eu encontrei facilmente, e embora, é claro, ainda não tivesse lido a nota, pensei comigo que não podia ser coincidência: o início de uma conversa entre Tulo e seu optio, Marco Fenestela, no capítulo XXXII, é idêntico ao diálogo do general Maximus com seu ajudante de ordens, Quintus, logo antes da primeira batalha no filme de Ridley Scott. "As pessoas deviam saber quando são conquistadas." "Você saberia, Quintus? Eu saberia?" (A propósito, o optio, que se pronuncia "ópcio", era o segundo oficial mais graduado numa centúria, auxiliar direto do centurião e, quando necessário, seu substituto.) Quanto à outra homenagem, creio que a achei também, mas, se for o que eu penso, é bem menos explícita que a primeira, e, de qualquer modo, não posso dizer aqui do que se trata, pois envolve um spoiler. Por fim, preciso confessar que estou, de certa forma, contente de que esses livros tenham sido publicados em Portugal. Adquiri-los é trabalhoso, demoram a chegar e custam caro, mas tenho calafrios só de imaginar o que noventa e nove por cento dos tradutores brasileiros de hoje em dia teriam feito com os textos de Kane, naquelas horrendas tentativas de "linguagem de época".


sexta-feira, abril 14, 2017

O Resgate das Águias

Cinco anos se passaram desde a traição de Armínio, que levou três legiões romanas à destruição na floresta de Teutoburgo. Como ele esperava que acontecesse, Roma não fez novas tentativas de estabelecer bases permanentes na margem oriental do Reno, mas fortaleceu suas posições na margem ocidental e, com toda a certeza, não se esqueceu da humilhação sofrida. Armínio esperava por isso também, e, embora ele próprio não possa transpor o rio – se o fizesse, seria um homem morto, em menos tempo do que leva dizê-lo –, não deixou de enviar regularmente espiões, que percorrem as ruas das cidades romanas da Germânia, ouvem a conversa dos legionários nas tabernas, e coisas assim. Graças a isso, ele sabe dos planos do imperador Augusto de tentar retomar o território perdido e punir exemplarmente as tribos que se rebelaram, e está fazendo seus próprios planos para que a "Germânia Livre" esteja preparada quando esse dia chegar, o que agora parece estar muito perto. Nesse período de cinco anos, Armínio tem levado a vida normal de um homem das tribos na Germânia, muito diferente da do oficial romano que ele já foi. Sucedeu ao pai como chefe da tribo dos Cherusci e casou-se com a bela Tusnelda, filha de Segestes – um chefe tribal leal a Roma, que inclusive tentou, inutilmente, alertar o governador Varo sobre a traição planejada por Armínio; como é fácil imaginar, o convívio entre genro e sogro não é dos mais tranquilos. As articulações de Armínio para ampliar seu poder até tornar-se uma espécie de rei (coisa que os germanos, divididos em tribos, nunca tiveram) ainda não deram frutos, mas ele não tem pressa.

Corre o ano 14 d. C. e Augusto ainda é o imperador, mas é agora um homem bastante idoso, tendo governado por mais de 40 anos. Como não tem filhos homens, nomeou como herdeiro o enteado, Tibério, que, também sem descendência masculina, por sua vez adotou o sobrinho Nero Cláudio Druso Germânico, filho de seu falecido irmão de mesmo nome. Germânico, portanto, já era o segundo na linha de sucessão ao trono quando assumiu o cargo de governador da Germânia, terra onde seu pai alcançou glória no campo de batalha e fez jus ao agnomen que lhe legou, embora seja mais correto dizer que o que ele realmente assumiu foi o governo da pequena parte da Germânia que Roma ainda controlava. Sua posse ocorreu no ano 13, mas O Resgate das Águias começa com um prólogo ambientado em 12, quando foi celebrado em Roma um triunfo em honra de Tibério, por suas vitórias na Ilíria. É aí que vamos reencontrar Lúcio Comênio Tulo, o protagonista de Águias em Guerra.

Apesar de seu comportamento heroico durante a malfadada batalha da floresta de Teutoburgo (se é que dá para chamar aquilo de batalha), Tulo, como a maioria dos sobreviventes, caiu em desgraça. No caso dele, isso se deu, principalmente, devido às maquinações de seu desafeto Lúcio Túbero, que também sobreviveu, mas, ao contrário dele, ficou bem na "foto", ocupando agora, aos 22 anos, o posto de legado, comandante de uma legião. Túbero conseguiu que Tulo fosse rebaixado de posto: anteriormente primus pilus de uma coorte, ele é agora um centurião comum, tendo sido realocado na Quinta Legião, junto com os soldados que conseguiu salvar. Muitos de seus novos colegas oficiais o respeitam, mas alguns – em especial os centuriões de patentes superiores à sua – gostam de fazê-lo alvo de chacota porque, de toda uma coorte, só conseguiu salvar 15 homens… Sendo que, se eles soubessem quais eram as condições em Teutoburgo, perceberiam que até mesmo isso foi um feito admirável.

(Para os raros mas obstinados nerds de história militar: a Quinta Legião aí referida é a própria Legio V Alaudae, 'Quinta Legião das Cotovias', em tradução literal. Formada por Júlio César na Gália, em 52 a. C., ela ganhou esse nome por causa dos penachos em estilo gaulês que os soldados usavam nos elmos nos primeiros tempos, e que lembravam o penacho do pássaro. Já seu emblema, um elefante, foi ganho após a batalha de Tapsos, em 46 a. C., na qual a Quinta enfrentou com sucesso uma carga de elefantes de guerra númidas. Não deve ser confundida com a Legio V Macedonica.)

Os historiadores registraram que os romanos que foram capturados vivos pelos germanos na floresta de Teutoburgo, e posteriormente libertados em troca de resgate, ficaram marcados pela desonra, e foram proibidos pelo imperador, sob pena de morte, de pisar na Itália durante o resto de suas vidas. Para seus objetivos literários, o autor Ben Kane estendeu a mesma proibição a todos os sobreviventes de Teutoburgo, mesmo aqueles (poucos) que escaparam sem terem sido capturados, como Tulo e seus homens. Portanto, ele e seu segundo em comando, Marco Fenestela, estão correndo um enorme risco quando decidem ir a Roma assistir ao triunfo – provavelmente o mais grandioso espetáculo que um cidadão romano da época podia esperar ver ao longo de sua vida, algo que, visto na infância, ainda era lembrado e contado na velhice. Esperam não ser reconhecidos por ninguém, mas Germânico, com outros generais, está acompanhando Tibério em seu triunfo…

Um dos motivos para que Germânico seja adorado por seus soldados é sua capacidade de olhar para cada um deles como indivíduo, não como um simples número que engrossa suas tropas, e parece que tal fama é merecida, pois, de seu lugar na procissão triunfal, ele avista Tulo, com quem se encontrou na Germânia anos antes – e o reconhece, mesmo em trajes civis e no meio de uma multidão de espectadores. O mais importante, porém, é que Germânico não o denuncia como "deveria" fazer. Numa conversa que os dois têm mais tarde, ele elogia Tulo pelo que fez em Teutoburgo e diz que precisará de homens como ele para concretizar seu plano de vingar o massacre e recuperar as águias perdidas da Décima Sétima, Décima Oitava e Décima Nona legiões, que caíram nas mãos dos germanos e devem agora estar ornamentando como troféus os salões de diferentes chefes tribais. Para Tulo, que só vive pela esperança de ter a chance de fazer justamente isso, a fim de restaurar sua honra, essa promessa é um presente dos deuses.

E é assim que, dois anos depois, Tulo e Fenestela, assim como o restante dos soldados da Quinta e das outras três legiões locais, estão esperando pela chegada de Germânico. Quando ele por fim chega, entretanto, não pode dedicar-se imediatamente ao plano de punir os germanos e recuperar as águias, tendo primeiro que lidar com uma insurreição entre suas próprias tropas: parte dos soldados estão insatisfeitos por não terem seus soldos reajustados há muitos anos, e pelo fato de alguns deles já terem passado há muito do prazo regular para se reformarem, e mesmo assim não serem dispensados. A coisa já passou do estágio dos protestos verbais: os revoltosos tomaram o controle dos acampamentos e assassinaram vários oficiais contra os quais tinham queixas já antigas – e, é claro, seja qual for o desfecho das negociações, os homens que fizeram isso não podem ser deixados impunes. Isso coloca Tulo, junto com outros oficiais e soldados que se mantiveram leais, numa das situações mais repulsivas que um legionário romano poderia imaginar: a de receber a ordem de matar um camarada. Essa insurreição é histórica, e é mencionada também em Eu, Claudius, Imperador, de Robert Graves, mas aparece com bem mais detalhes aqui, provavelmente porque O Resgate das Águias é narrado sob o ponto de vista de um oficial das legiões da Germânia, que está lá e vê tudo acontecer, enquanto, no livro de Graves, o narrador é Cláudio, irmão de Germânico – um intelectual que mora em Roma, de modo que só sabe do caso através de informações de segunda ou terceira mão. Aquele movimentado ano 14 é marcado, ainda, pela morte de Augusto, sucedido por Tibério, com Germânico precisando esfriar o ânimo de suas legiões, que querem que ele derrube o tio e se faça, ele próprio, imperador.

Superadas todas essas turbulências, Germânico decide aproveitar o desusado bom tempo daquele outono para atravessar o Reno com suas quatro legiões, reforçadas por tropas auxiliares gaulesas e germânicas (das poucas tribos germanas ainda leais a Roma, claro está) e cair sobre um punhado de aldeias habitadas pela tribo dos Marsi, uma das que se juntaram ao exército de Armínio cinco anos antes. Quando as legiões romanas atacavam com ordens para riscar do mapa uma cidade ou aldeia, o procedimento padrão era matar todos os homens; mulheres e crianças normalmente eram poupadas, mesmo que fosse só para passarem o resto da vida como escravas. Desta vez, porém, as ordens são mais duras ainda: ninguém deve sobreviver – ninguém mesmo. A ideia é que fique absolutamente claro que não haverá misericórdia para os que se aliaram a Armínio. A narração do ataque aos Marsi é tanto mais perturbadora por se parecer muito com a do ataque dos Usipeti às aldeias sob proteção romana no livro Águias em Guerra: o leitor fica se perguntando onde foi parar a distinção entre barbárie e civilização, que os romanos pareciam prezar tanto. A verdade é que, como dizia Conan numa história que li certa vez, a guerra nunca é civilizada. É claro que, para Tulo, assim como para qualquer homem decente, a necessidade de chacinar mulheres e crianças é encarada com repugnância… Só que, como em qualquer grupo numeroso, não se pode esperar que todos no exército sejam decentes, de modo que é muito difícil impedir que estupros e outras crueldades desnecessárias aconteçam.

Seja como for, o "recado" é entendido por Armínio, que não perde tempo em, mais uma vez, chamar às armas as tribos germânicas, encorajando-as a deixar temporariamente de lado as rixas que têm umas com as outras para enfrentarem juntas o contra-ataque romano. Para se prepararem, os germanos dispõem do restante do outono, bem como do inverno de 14-15, já que, depois dessa investida rápida contra os Marsi, que estavam mais próximos, os romanos só poderão dar sequência à campanha na primavera.

O que o chefe dos Cherusci não esperava era receber um golpe tão doloroso: uma expedição furtiva liderada por Tulo e por seu próprio irmão, Flavo (que era um dos germanos leais a Roma) consegue penetrar em sua aldeia durante sua ausência, resgatar Segestes, que ele estava mantendo prisioneiro, e, o pior de tudo, raptar Tusnelda, grávida de seu primeiro filho. Por algum tempo, chega a parecer que os romanos vão conseguir exatamente o que esperavam com isso: desestabilizar o chefe germano, levá-lo a agir de forma precipitada e fazer alguma bobagem, mas, depois de se entregar a uma fase de desespero e bebedeira, Armínio se recupera o suficiente para retomar o complicado trabalho de coordenar as tribos para que ajam juntas contra o inimigo. Daí para diante, os capítulos se revezam entre os esforços de Armínio com esse objetivo e a narração da campanha romana, sob o ponto de vista de Tulo. As partes que narram as reuniões de Armínio com outros chefes evidenciam bem aquilo que foi, historicamente falando, a única coisa que o impediu de causar danos ainda maiores ao Império Romano: o zelo quase paranoico com que cada tribo germânica fazia questão de manter sua independência em relação a todas as demais, e a consequente fragilidade de qualquer aliança entre elas. Armínio sabe que é o mais preparado de todos os chefes, porque viveu entre os romanos, foi treinado para ser um oficial do exército imperial, aprendeu suas táticas e seu modo de pensar, mas os outros não gostam nem um pouco de sua tendência a querer mandar em tudo e a agir como se fosse o único ali com capacidade para liderar um exército contra os romanos, embora o seja. Suas ambições reais não passam despercebidas aos olhos de alguns mais perspicazes, que não perdem a oportunidade de lembrá-lo de que, ali, ele é apenas o que seus inimigos romanos chamariam em latim de primus inter pares ('primeiro entre iguais'), e, mesmo isso, somente em caráter provisório. A lealdade de cada chefe nunca pode ser tida como certa, e precisa ser ganha repetidamente, mais vezes por meio de bajulação que de boas ideias ou liderança inspiradora, o que leva Armínio a ter inveja dos generais romanos, que têm assegurada por juramento a obediência de seus soldados e oficiais, sendo que qualquer insubordinação é considerada traição.

O Resgate das Águias não fica devendo nada a Águias em Guerra nos quesitos tensão, ação, atmosfera, reconstituição histórica ou personagens convincentes, provando ser uma sequência perfeitamente condigna para seu antecessor. A Trilogia das Águias de Ben Kane é um prato cheio (e apetitoso!) para os fãs da Antiguidade, mais especificamente do Império Romano, e, mais especificamente ainda, das legiões. Há poucos livros tão bons em fazer você se sentir como se estivesse marchando por um território hostil, com uma cangalha de madeira sobre os ombros contendo 30 quilos de equipamento, um elmo fazendo correr suor pelo seu rosto, e a consciência de estar sendo observado por hordas de bárbaros desgrenhados escondidos no mato, que o matarão com o maior prazer na primeira oportunidade que tiverem. As legiões me fascinam, sem dúvida, mas só como objeto de estudo: não lamento nadinha o fato de não ter feito parte de uma!… Era uma vida dura e brutal. O século XXI tem muitos defeitos, mas também tem vantagens suficientes para que eu prefira estar aqui, confortavelmente instalado na minha poltrona, e apenas ler sobre as façanhas e as provações daqueles bravos soldados. Sendo assim, que bom que temos Ben Kane! Ave atque vale.