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domingo, maio 29, 2016

Os Livros da Selva

Já havia algumas edições, tanto brasileiras quanto portuguesas, intituladas O Livro da Selva, circulando por aí antes, que incluíam apenas o conteúdo do primeiro The Jungle Book, publicado originalmente em 1894, e uma única edição, da Companhia das Letras (dentro de sua coleção traduzida dos famosos Clássicos Penguin) que trazia os dois (The Second Jungle Book é de 1895), mas, mais uma vez, temos que agradecer, mesmo que um tanto a contragosto, a Hollywood pelo retorno às livrarias, em grande estilo, de uma obra e de um autor que todo mundo deveria ter a chance de conhecer. No embalo do novo filme Mogli, o Menino-Lobo, a editora Zahar lança esta nova edição, chamada Os Livros da Selva (notem o plural!) e com o subtítulo Contos de Mowgli e Outras Histórias. Trata-se de uma tradução nova e, de modo geral, OK (com algumas falhas), mas confesso que teria ficado muito feliz se, ao abrir o livro, tivesse reencontrado a velha tradução de Monteiro Lobato, a primeira que tivemos publicada no Brasil, e que li quando criança.

Rudyard Kipling, o criador de Mowgli e de tantos outros personagens memoráveis, foi, em tudo, um autor inglês, mas nutriu durante toda a vida um grande amor e interesse pela Índia, então colônia britânica, e terra de seu nascimento. Começou no jornalismo, profissão que exerceu durante a maior parte da vida, mas sem nunca deixar de encontrar tempo para a literatura. Além de contos de aventuras como os que encontramos n'Os Livros da Selva, também escreveu romances e poemas – um dos quais, If ('Se'), é, sem a menor dúvida, um dos mais reproduzidos de todos os tempos (todo mundo já o recebeu por e-mail pelo menos uma vez, nem sempre com o nome do autor corretamente creditado). Ganhou o Prêmio Nobel de Literatura em 1907, tornando-se o primeiro autor de língua inglesa a receber tal distinção. Embora muitos o acusem de ter sido uma voz do imperialismo britânico – e, por sinal, uma das mais influentes –, Kipling recusou os títulos de Cavaleiro e de Poeta Laureado do Império Britânico, duas das maiores honrarias que podem ser oferecidas a um cidadão inglês; provavelmente, porque não queria ter que ficar se preocupando com o que poderia ou não dizer em suas obras, uma vez que os tivesse aceito.

Kipling esteve no Brasil em 1927, escrevendo uma série de crônicas especiais para o jornal londrino The Morning Post, dando ênfase às atividades da firma inglesa São Paulo Railway e ao dia a dia de centenas de cidadãos britânicos que trabalhavam para ela em solo brasileiro. A Railway cuidava da operação e da manutenção das estradas de ferro que conectavam o interior do estado de São Paulo ao porto de Santos, um caminho que era vital para o transporte do café, na época o principal produto de exportação do Brasil. Para servir de posto de controle e também de acomodação para seus funcionários, a companhia criou a vila de Paranapiacaba, hoje um distrito do município paulista de Santo André. Ao chegar lá, Kipling (como todos os ingleses que vieram antes) deve ter-se surpreendido com a sensação de estar praticamente em casa, pois, além da típica arquitetura britânica, o próprio clima do lugar – frio, úmido e nevoento – faz pensar na velha Inglaterra. Paranapiacaba, aliás, parece ter mudado muito pouco nos últimos noventa ou cem anos, e recomendo-a como destino para um passeio muito curioso. Em especial, não se pode deixar de visitar o "Castelo", um casarão situado bem no topo de um morro, de onde se avista toda a vila. Era a residência do engenheiro-chefe, então é provável que Kipling tenha-se hospedado ali. Quanto às crônicas, foram publicadas no The Morning Post, durante os meses de novembro e dezembro de 1927, e hoje estão disponíveis em livro, com o título Crônicas do Brasil.


Embora sua obra seja muito maior que isso, não há dúvida de que é por ter criado Mowgli, o menino-lobo, que Kipling é mais famoso. As aventuras do personagem divertem e empolgam hoje tal como o faziam no século XIX, e fizeram parte do imaginário e até da educação de várias gerações, em grande parte por serem adotadas pelo escotismo internacional como uma espécie de guia e fonte de inspiração para meninos e meninas de sete a onze anos, os "lobinhos". É fácil ver por que: essas histórias ensinam (sem deixar demasiado óbvio que estão ensinando) lições sobre amizade, disciplina, respeito aos mestres e às instituições, amor à família, e sobre como a inteligência pode triunfar sobre a força bruta. Para a criação de Mowgli, Kipling parece ter tomado como base histórias que ouviu na Índia durante sua infância e juventude, histórias essas que merecem um olhar atento, e que ele complementou com a própria imaginação.

Histórias de crianças órfãs ou abandonadas, acolhidas por animais selvagens, são contadas desde a Antiguidade (lembram-se de Rômulo e Remo?); por alguma razão, para cada história dessas envolvendo outros tipos de animais, há pelo menos umas dez sobre lobos, e a Índia é, de longe, o país com o maior número de casos relatados. Talvez isso tenha a ver com seu clima quente, já que, em lugares como a Rússia ou o Canadá, uma criança vivendo entre animais dificilmente sobreviveria ao primeiro inverno na floresta, de modo que sua história ficaria sem ser conhecida. Kipling, com certeza, ouviu falar muito no assunto, e encontrou aí a ideia de que precisava para criar um personagem por meio do qual poderia narrar diversas aventuras ambientadas nas misteriosas selvas de sua terra natal.

Quando Shere Khan, o tigre, ataca um acampamento nas montanhas de Seeonee, na região central da Índia, os humanos que lá estavam se dispersam, fugindo cada qual para um lado. Um menino – um bebê que há pouco começou a andar – vai parar na toca de uma família de lobos, onde Shere Khan acaba por localizá-lo, mas não pode entrar por ser muito grande. A mãe-loba, por nome Raksha ('a Demônia'), declara ao tigre que o "filhote" agora pertence a ela e, mais, profetiza que, quando ele crescer, irá caçar Shere Khan e matá-lo. O tigre se retira furioso, e ninguém ignora que, daí em diante, matar o menino vai tornar-se uma obsessão para ele. Algum tempo depois, o casal de lobos leva o bebê, ao qual deram o nome de Mowgli, ao conselho da alcateia, junto com seus próprios filhotes, para que seja apresentado à sociedade dos lobos. O chefe da alcateia, Akela (pronuncie Ákela) é um líder forte e justo, rígido no cumprimento da lei, mas não incapaz de ter misericórdia. Duas vozes, além das dos pais adotivos, se elevam a favor do filhote de homem. A primeira é a de Baloo, o urso-pardo, que há muito desempenha as funções de professor dos filhotes da alcateia, ensinandolhes a Lei da Selva; a outra é a de Bagheera, a pantera negra, um dos predadores mais temidos e respeitados da região. Embora não tendo direito a falar no conselho da alcateia, Bagheera oferece um preço pela vida do menino: um touro que acaba de matar. O arranjo é aceito e Mowgli fica vivendo com seus novos pais e irmãos. Durante os anos seguintes, sua vida entre os lobos é feliz e despreocupada; Shere Khan mudou seus campos de caça para outra região, e Mowgli vai sendo educado e instruído não só por Baloo, mas também por Bagheera e Akela, além, é claro, dos próprios pais. Naturalmente, os filhotes de Pai Lobo e Mãe Loba crescem muito mais depressa que ele, mas, conforme eles vão ficando adultos e seguindo sua vida na alcateia, novas ninhadas nascem, de modo que o garoto nunca fica sem irmãos. Ele se considera um lobo tal como os outros, mas, com exceção dos jovens da alcateia, tão ingênuos quanto ele, ninguém mais cultiva tal ilusão. Baloo se orgulha da inteligência de seu discípulo, mas não deixa de notar que, enquanto os lobinhos só precisam ouvir uma lição uma vez para que ela fique em suas mentes para toda a vida, no caso de Mowgli o aprendizado tem uma tendência a entrar por um ouvido e sair pelo outro. Coisas de homem. Apesar disso, o garoto tem facilidade para aprender e, infelizmente, sabe disso, o que acaba por torná-lo orgulhoso e excessivamente autoconfiante – dois defeitos que só a experiência o ensinará a corrigir, como a história A Caçada de Kaa ilustra bem.

Porém, esse tempo feliz, como sempre acontece, chega ao fim. Shere Khan retorna a Seeonee, e Akela, já velho, vê sua liderança se enfraquecer dia a dia conforme o tigre, traiçoeiro, vai-se fazendo "amigo" de muitos dos jovens lobos, engambelando-os com palavras lisonjeiras e comprando-os com os restos das presas que mata – uma desonra por si só, já que caçar o próprio alimento é um dos mais importantes pilares sobre os quais repousa o orgulho de qualquer lobo que se preze. Se mais alguém tiver visto nisso algum tipo de crítica social, que bom: é sinal de que eu não devo estar louco, afinal de contas. Aliás, mais de um estudioso mais abalizado que eu já manifestou a opinião de que parte do segredo da longevidade da obra de Kipling está nos diferentes níveis de leitura possíveis: uma criança pode ler a coisa toda como simples histórias de aventura, e, ao relê-la anos ou décadas mais tarde, perceber que há símbolos a serem interpretados, e que, onde se fala em animais, o autor pode estar retratando comportamentos humanos.

O resultado do relaxamento da disciplina é o que seria de se esperar: a alcateia se esfacela, dividida por rivalidades sem sentido e com cada lobo caçando e vagueando como bem entende, muitos deles caindo em armadilhas ou adotando modos de vida que os envergonham. Diante disso, o grupo dos que mais se importam com Mowgli chega a uma conclusão: não podem protegê-lo sempre e em toda parte, e todos sabem que basta um pequeno descuido para que Shere Khan cumpra sua vingança há tanto tempo esperada. A solução é mandá-lo de volta para os homens, e o menino, agora quase adolescente, muito a contragosto, dirige-se para a aldeia mais próxima, aquela onde seus pais biológicos possivelmente ainda vivem. Isso, de certa forma, representa o início do conflito que define a própria existência de Mowgli: nascido dos homens, mas criado entre os animais, ele não pertence de fato a nenhum dos dois mundos, e a sombra desse destino vai persegui-lo até a última de suas aventuras a ser narrada nestes livros.

Já li comentários sobre a obra de Kipling criticando-o por retratar animais comportando-se de maneiras descaradamente humanas – uma crítica, a meu ver, sem sentido; é óbvio que o autor nunca teve a intenção de descrever o comportamento das criaturas selvagens com rigor científico, ou que cabimento teria colocar Baloo como mestre dos filhotes da alcateia? Ursos e lobos são rivais naturais, que competem por território e caça em todos os ecossistemas onde convivem, seja na gelada Sibéria ou na Índia tropical. O que Kipling fazia era uma espécie de fábula, com ação empolgante e personagens inesquecíveis. Mesmo assim, ele frisa de forma insistente a diferença essencial e irremediável entre Mowgli e seus irmãos selvagens: cada animal da selva, seja lobo, urso, pantera, tigre, elefante ou outro qualquer, age sempre de acordo com sua natureza, e pode-se ter a certeza de que sempre farão isso, porque não há outro caminho possível para eles; são seres retos e sem contradições, que nunca enfrentam dúvidas sobre o que fazer diante de determinada situação. Mowgli é diferente, porque, por mais que tente esquecer o fato, é homem – e ele bem que tenta, muitas vezes, especialmente depois de ter tido contato com os humanos e ver o quanto eles podem ser tolos, cruéis e ilógicos; porém, por ser homem, ele é incomparavelmente mais complexo que qualquer animal, e, consequentemente, contraditório, e isso é algo sobre o qual não tem poder. Costuma ofender-se quando o chamam de homem, mas não hesita em recorrer a uma certa autoridade natural que sua condição humana lhe confere até mesmo sobre aqueles com quem aprendeu tudo, como Bagheera e Baloo. Não há animal na selva que consiga encará-lo sem desviar o olhar, e a combinação do "ser homem" com o conhecimento profundo da vida selvagem, dos costumes e da língua de cada espécie, acaba por fazer dele o senhor absoluto da selva e de todos os que nela habitam – o que não impede que sofra momentos de incerteza e insegurança. Sua ambivalência em relação à humanidade fica mais evidente na história O Avanço da Selva, na qual, já se acostumando a seu papel de senhor, ele decide que a aldeia não deve continuar a existir, e consegue a ajuda de diferentes animais, passando a destruir sistematicamente as colheitas e danificar as construções, até que o povo seja obrigado a ir embora e a selva retome o lugar – mas faz tudo isso sem matar ninguém.


Esta nova edição d'Os Livros da Selva traz as histórias na ordem em que aparecem nas publicações originais, diferentemente da edição que li na infância, que apresentava primeiro todas as aventuras de Mowgli, e depois as outras histórias. Isso nos permite observar que o primeiro The Jungle Book incluía apenas três histórias sobre o menino-lobo, e quatro com outros temas; provavelmente o fato de Mowgli ter-se tornado seu personagem mais querido levou Kipling a dar-lhe maior destaque no The Second Jungle Book, no qual, de oito histórias, cinco o têm como protagonista. Também é importante notar que as aventuras de Mowgli estão numa ordem cronológica aproximada, mas não rigorosa: a primeira, Os Irmãos de Mowgli, fala de sua adoção pelos lobos e, depois, de sua primeira ida para os homens, aquela da qual ele voltaria; a última, A Corrida da Primavera (que, na tradução de Lobato, chamava-se A Embriaguez da Primavera; o título original era The Spring Running, que permite diferentes interpretações, mais ou menos literais) é sobre sua ida definitiva. Por outro lado, A Caçada de Kaa, por exemplo, fica em algum lugar entre o início e o fim de Os Irmãos de Mowgli, sendo uma das inúmeras aventuras que o autor "pula", dizendo ao leitor que ele deve "simplesmente imaginar a vida magnífica que Mowgli teve entre os lobos, pois se isso fosse escrito preencheria uma infinidade de livros". Como apêndice, temos ainda Dentro do Rukh, publicada em 1893, a primeira história na qual Mowgli aparece – só que, nela, ele já é adulto e deixou a selva (apesar de ainda parecer muito ligado a ela), de modo que seria na verdade a última por ordem cronológica.

Não se pode negar que as aventuras de Mowgli são a parte mais apetitosa de Os Livros da Selva, mas estão longe de ser a única coisa interessante. No primeiro The Jungle Book, temos A Foca Branca, uma das duas únicas histórias não ambientadas na Índia. Embora Kipling se refira aos animais ali apresentados pelo nome de "focas", trata-se claramente de leões-marinhos, como as notas de rodapé da nova edição esclarecem. A foca branca do título é Kotick, um jovem macho nascido nas praias do mar de Bering, que, inconformado com o assassinato de milhares de seu povo a cada ano por caçadores de peles, decide dedicar a vida a procurar por um lugar onde as "focas" possam viver em paz, e o relato de suas viagens pelos quatro cantos dos oceanos é algo digno de acompanhar – e tanto mais admirável por sabermos que esses incríveis mamíferos marinhos são mesmo capazes de tais deslocamentos, nadando por milhares de quilômetros e passando meses a fio sem tocar terra firme. Temos também Rikki-tikki-tavi, sobre a inimizade mortal entre mangustos e serpentes. Servos de Sua Majestade é uma fábula que tem como personagens diferentes animais do exército indo-britânico: cavalos, camelos, mulas, bois de tração, elefantes e outros, todos conversando entre si, e que nos leva à conclusão de que cada um "luta" conforme sua natureza e suas capacidades, o que não significa que um tenha mais valor que outro. E, ainda no primeiro The Jungle Book, encontramos o que talvez seja a melhor história sem Mowgli de ambos os livros: Toomai dos Elefantes, sobre a vida dos homens que trabalhavam com os referidos paquidermes na Índia, na época da ocupação britânica. Um desses homens é o Grande Toomai, filho e neto de famosos mahouts (tratadores e condutores de elefantes), que alcançou um cargo bem remunerado e de certo prestígio a serviço do governo britânico na Índia, e, naturalmente, espera que seu filho, o Pequeno Toomai, siga seus passos... Só que o menino de dez anos gosta é da vida na selva, e sonha em tornar-se um dos homens que se dedicam a capturar e domar elefantes selvagens, o que, na opinião do pai, seria um retrocesso de vida.

No segundo The Jungle Book, temos O Milagre de Purun Bhagat, uma história diferente, com pouca ação, mas também interessante a seu modo, que trata de um homem originário de uma das famílias mais conceituadas da casta dos brâmanes, a mais alta da Índia, e que vem a ser um alto funcionário do governo, com excelentes conexões tanto em Délhi e Bombaim quanto na própria Inglaterra, o que lhe garantiria uma vida de poder e riqueza... Só que ele decide abandonar tudo para tornar-se um homem santo errante, passando a percorrer a pé as estradas poeirentas do interior da Índia e a viver da caridade dos que encontra.

A outra história não ambientada na Índia, como referi ao falar sobre A Foca Branca, também está em The Second Jungle Book; é Quiquern, uma aventura esquimó fortemente marcada pela estranha e macabra mitologia desse povo. Os Agentes Funerários narra a Revolta dos Sipaios, de 1857, através das memórias de um velho crocodilo que conta suas histórias a um marabu e um chacal; o réptil interpreta as reviravoltas da sociedade dos humanos de acordo com a quantidade de cadáveres que encontra boiando no rio, e que lhe poupam o trabalho de caçar. Trata-se de uma fábula também, projetando um pouco do pior da humanidade (prepotência, vaidade, servilismo, covardia) sobre as figuras dos três animais. O título parece enigmático à primeira vista, mas torna-se claro quando o leitor se dá conta de que os personagens são dois animais necrófagos por excelência (o chacal e o marabu) e um que parece bem adaptado a essa vida (o crocodilo).

O Livro da Selva chegou às telas pela primeira vez em 1942, com direção de Zoltán Korda e o ator indiano Sabu Dastagir no papel de Mowgli, mas essa produção é pouco lembrada hoje em dia; a versão mais famosa é, sem dúvida, o longa-metragem de animação da Disney, lançado em 1967, cujo roteiro, entretanto, tinha pouco a ver com as histórias originais de Mowgli escritas por Rudyard Kipling. A nova versão, também da Disney, que acaba de ser lançada, responsável pelo hype que possibilitou o surgimento desta nova edição, combina atores reais (na verdade, praticamente só o garoto Neel Sethi) com animais criados por computação gráfica; é visualmente magnífico, mas tem praticamente o mesmo roteiro que o desenho animado, deixando de fora quase todas as partes mais significativas e emocionantes das aventuras de Mowgli e pintando os personagens Baloo e Kaa, a serpente, de formas totalmente deturpadas: Baloo, que, nos livros, é um mestre austero, virou um urso bonachão e boa-vida; Kaa, que salva a vida de Mowgli na história A Caçada de Kaa e, daí por diante, torna-se sua amiga e mestra, assim como Baloo e Bagheera, nos filmes da Disney só está interessada em comer o garoto (o filme de 1942 era mais justo com ela). Para não dizer que o novo filme não traz nenhuma melhoria em relação ao desenho, ele mostra um dos momentos mais interessantes das histórias, a Trégua da Água, que tem início quando a Pedra da Paz emerge das águas do rio, o que só acontece em tempos de grande seca; enquanto essa pedra estiver exposta, é proibido aos animais carnívoros caçar junto ao rio, porque "beber é mais importante que comer". Em condições normais, os bebedouros estão entre os melhores lugares para um predador espreitar sua presa; enquanto dura a trégua, Bagheera, Shere Khan e os lobos bebem lado a lado com cervos e antílopes. Lei é Lei!

Para finalizar, uma nota de rodapé sobre as imagens: a edição da Zahar traz algumas ilustrações das primeiras edições de ambos os The Jungle Book, feitas por ninguém menos que John Lockwood Kipling, pai do autor – mas, embora eu ache isso formidável, optei por não reproduzi-las aqui, porque foi impossível resistir à tentação de usar as ilustrações da edição francesa, que são do grande Pierre Joubert, tal como a capa da mesma edição, que também estou incluindo.

terça-feira, fevereiro 19, 2013

Rhóor, o Invencível

Ah, ser um leitor pré-adolescente, cheio de inocência, mas já muito consciente de todo o bem que os livros podiam fazer a quem lhes dedicasse um pouco de tempo e atenção… E, ao mesmo tempo, não estar (ainda) preocupado com coisas "sérias" como adquirir cultura, de modo que encarava o ato de ler exatamente do modo como toda criança deveria encará-lo: como uma grande e inesgotável brincadeira, melhor que qualquer outra - embora já estivesse, sim, construindo minha cultura, sem saber, enquanto acreditava que tudo o que estava fazendo era me divertir. Para completar, tinha a sorte de não depender apenas da biblioteca da escola e dos livros que existiam em casa: ao lado do condomínio onde morava na época, ficava uma unidade do SESI (Serviço Social da Indústria), onde havia, entre muitas outras coisas, uma biblioteca, não muito grande, mas recheada de itens empolgantes para um garoto-leitor com o meu perfil.

Foi lá que vi pela primeira vez a coleção Safári, publicada em Portugal durante os anos 70, pela editora Verbo, mediante acordo com a francesa Alsatia. Tratava-se de romances de aventuras com temas e estilos variados, todos escritos por nomes consagrados da literatura juvenil na França. Ao longo do ano que se seguiu a essa descoberta, li vários dos títulos da coleção, e todos os que li me ficaram na memória: O Passageiro da Noite, de Jean-Paul Benoit, com seu clima de mistério e heroísmo em meio à paisagem majestosa dos Alpes franceses; as aventuras de escotismo O Bando dos Ayacks e O Castelo dos Vendavais, ambas escritas por Jean-Louis Foncine e transbordantes de otimismo e fé no poder transformador da juventude (ah, como devia ser bom viver numa época e num lugar onde era possível acreditar nisso); e a ficção científica Nascido no Espaço, de Geoffrey X. Passover (também francês, apesar do pseudônimo). Com exceção deste último, todos eram abrilhantados pela arte do legendário Pierre Joubert, um ilustrador tão querido na época, que chegava a ser citado pelos próprios personagens de O Castelo dos Vendavais.

Não obstante, o primeiro volume da coleção que li foi a aventura pré-histórica Rhóor, o Invencível, por um certo Michel Grimaud, sobre quem eu nada sabia até o dia de hoje: quando garoto, só a obra em si é que me interessava, de modo que não me preocupava com informações sobre o autor - e, mesmo que assim não fosse, pouco teria podido fazer, já que o livro nada dizia sobre o tal Grimaud, e na época não havia Google nem Wikipédia. Hoje, então, ao me sentar para escrever este post, lembrei de lançar mão dessas maravilhas modernas, e descobri, não sem surpresa, que "Michel Grimaud" era o pseudônimo coletivo de um casal de escritores: Jean-Louis Fraysse (1946-2011) e Marcelle Perriod (1937-2011), e que eles possuem uma obra extensa, tanto no campo da literatura para adultos quanto para jovens, sendo, ainda, uma referência da ficção científica em seu país. Além de tudo, eis dois afortunados seres humanos: encontrar um amor e uma parceria criativa ao mesmo tempo é felicidade reservada a poucos.

Mas creio que já é hora de começar a falar do livro!

A história aqui narrada faz lembrar a do Êxodo, pois, como no segundo livro da Bíblia, há um povo em busca de uma terra prometida. Os Rhóors são uma das tribos de caçadores-coletores que tentam sobreviver numa Europa selvagem, que ainda esperaria dezenas de milênios para ser apresentada às primeiras civilizações. Anos antes do início dos acontecimentos relatados no romance, transformações climáticas, do tipo que era comum naqueles tempos pós-Era Glacial, causaram mudanças ecológicas que privaram a tribo das fontes de sustento de que estava acostumada a depender, nas terras que até então habitava, obrigando-a a vagar por regiões inóspitas, dominadas por povos nem sempre amistosos, em busca de um lugar onde possam viver e, quem sabe, reencontrar a antiga prosperidade. Seu chefe, Rhóor, o Vesgo, decide tomar sobre si o ônus da busca, e parte, acompanhado apenas pela própria família, enquanto a tribo espera, lutando contra a fome, o frio e diversos tipos de perigos. Eventualmente, a busca alcança êxito: em paragens muito distantes, Rhóor descobre uma região ampla e verdejante, com clima ameno e caça abundante, e ainda não reclamada por nenhuma outra tribo. O líder, então, incumbe o filho mais velho de fazer o longo caminho de volta e guiar seu povo até a nova pátria.

O jovem de 17 anos tem o mesmo nome que sua tribo e seu pai. Já é um caçador experiente, muito hábil no manejo do arco - arma que representa um trunfo para os Rhóors na competição pela sobrevivência, já que as outras tribos não a conhecem -, e sua velocidade e destreza valeram-lhe o cognome de O Ágil. Além desses talentos, ele confia, para o sucesso de sua arriscada missão, na ajuda de uma aliada muito especial: Táa, uma fêmea de lobo-tigre (um sinônimo hoje em desuso para guepardo ou cheetah), pois, nessa época em que alguns grupos humanos estavam apenas começando a domesticar cães para caça, guarda e companhia, outra peculiaridade dos Rhóors é a de preferirem os guepardos para essas funções. Juntos, os dois amigos deverão percorrer milhares de quilômetros, atravessando planícies desoladas, montanhas e florestas, precavendo-se contra animais perigosos, tribos hostis e, sim, contra o meio-termo entre as duas coisas: assustadores homens-fera, remanescentes de estágios mais primitivos da evolução humana, que ainda perambulam pelo planeta, também eles lutando para sobreviver - uma luta que, fatalmente, teria vencedores e perdedores.

Rhóor, o Invencível, por sinal, retrata uma era em que todas as ambições da humanidade resumiam-se ao simples feito de sobreviver: riqueza, poder e outras tentações que obcecariam gerações futuras, mal eram concebidas pela mente do homem pré-histórico. A cada amanhecer, esse homem renovava sua determinação de mobilizar todas as forças que pudesse, com o único objetivo de manter-se vivo, a si e aos que dele dependiam, até o pôr-do-sol, e, se o conseguisse, isso era a melhor coisa que poderia esperar (sem contar que ficar vivo entre o pôr e o nascer do sol podia ser ainda mais difícil). Todo o tempo, energia e inteligência que os seres humanos possuíssem tinham que ser direcionados a essa única finalidade, apenas para que houvesse uma chance. Sabendo que as condições eram essas, podemos, a princípio, achar estranha a informação de que também foi nessa época que surgiram a música, a dança, as artes plásticas, a literatura, as competições atléticas, e diversas outras atividades nas quais estamos acostumados a pensar como sendo de lazer, desporto ou enriquecimento cultural - "luxos" que o homem só pode se permitir depois que a bendita sobrevivência já está assegurada. Porém, existe uma explicação bastante simples para essa aparente contradição.

Não fiquem demasiado surpresos se digo que a literatura nasceu na pré-história: por mais curioso que isso pareça, ela é muitíssimo mais antiga que a invenção da escrita. Pessoas que se sentavam à volta de uma fogueira à noite e contavam histórias, já estavam fazendo literatura, embora com objetivos a princípio muito pragmáticos: as histórias serviam para que os caçadores trocassem informações úteis entre si e as transmitissem aos membros mais jovens da tribo, que, a seu tempo, também seriam caçadores. O mesmo se dava com as outras atividades: cantos e danças destinavam-se a agradar aos espíritos da natureza (a primeira noção que o homem teve a respeito da divindade) para ganhar suas boas graças, a fim de que propiciassem boas caçadas e protegessem o povo contra doenças e desastres; desafios de corrida, lutas, arremesso de pesos e assim por diante, eram para aprimorar força e habilidade para a caça e o combate. É claro que, com o tempo, as tribos foram desenvolvendo o gosto por tais coisas, descobrindo o prazer que existia em ouvir boas histórias, em assistir a uma dança ou a uma competição, ou em delas participar, e também foi ficando evidente que algumas pessoas tinham um talento acima da média para alguma dessas atividades, e com isso foram começando a granjear popularidade e admiração - e é graças a isso que hoje temos Homero, Shakespeare, Beethoven, os Jogos Olímpicos, e outras riquezas inestimáveis que fazem parte de uma herança cultural que pertence a toda a humanidade; porém, o importante para nós, no momento, é compreender que as artes, em suas origens, tinham uma função prática, e, como tudo o que se fazia naquela época, eram um esforço a mais na luta constante pela sobrevivência. Isso incluía, naturalmente, as artes plásticas, como Rhóor, o Invencível, nos mostra de maneira interessante.


Ocorre que o artista pré-histórico que dedicava longas horas de trabalho a pintar figuras de animais nas paredes da caverna onde sua tribo vivia, muito provavelmente não o fazia movido por um simples desejo de morar num lugar mais bonito. Antropólogos acreditam que essas imagens tivessem finalidades mágicas: desenhar um animal, da maneira mais vívida e acurada possível, era considerado uma forma de capturar-lhe o espírito, reduzindo suas defesas e tornando-o mais fácil de abater. Isso explica, inclusive, por que a figura humana aparece tão raramente na arte rupestre, e, quando aparece, é de forma tosca, num contraste gritante com as minuciosas e coloridas representações de bisões, cavalos, cervos e outros animais de caça. Saber pintar, portanto, significava ter poder. O jovem Rhóor aprende essa arte com um ancião de uma tribo que encontra durante suas andanças. Mais tarde, é feito prisioneiro por outra tribo não tão amigável, liderada por Bisão Furioso, um gigante embrutecido em quem esse nome cai perfeitamente. A tribo de Bisão Furioso especializou-se em viver de rapina, chegando ao ponto de depender mais, para sua sobrevivência, de saques e extorsões do que da própria caça. Aprisionado entre eles, e com pouca perspectiva de escapar vivo, Rhóor propõe trocar sua liberdade pelo segredo do poder das imagens - mas antes, terá que convencer os salteadores de que a magia funciona.

Mesmo sem disporem de embasamento científico comparável, por exemplo, ao de uma Jean M. Auel, Fraysse e Perriod escreveram uma saga pré-histórica cativante e eficiente, capaz de apresentar ao leitor jovem um painel convincente (ainda que um tanto romantizado) do mundo da época. Todos os pontos principais que uma pessoa precisa saber para adquirir a compreensão do que foi a pré-história são abordados: o fato de que, durante a maior parte de sua existência, o homem adaptou-se aos ritmos e regras da natureza para sobreviver, vendo-se como parte dela, não como seu dono; os graus diversos de desenvolvimento técnico e cultural observáveis entre as diferentes tribos (já que o progresso humano não se deu de maneira simultânea e uniforme em toda parte); a importância essencial que tiveram a cooperação e a solidariedade para impedir que a humanidade fosse extinta no confronto desigual com o meio ambiente hostil; e, é claro, a já citada luta incessante pela sobrevivência. O ponto mais discutível que encontrei foi a questão do arco: é verdade que em lugar algum do livro é explicitado o período exato em que a história estaria ambientada, mas, se for o que as evidências parecem apontar - até alguns milênios depois do fim da última Era Glacial -, então o arco é um anacronismo, pois só seria inventado bem mais tarde. Também não parece muito plausível que ele fosse a "arma secreta" de uma única tribo, e encarado com assombro por todas as outras, como se fosse algo além de sua compreensão, quase uma habilidade sobrenatural. É claro que fabricar e manejar um arco não são coisas fáceis, exigem uma série de conhecimentos e muita, muita prática, mas, ainda assim, trata-se de uma arma conceitualmente simples: mesmo para uma pessoa que não o conhecesse, bastaria observar alguém utilizando-o para compreender o princípio e poder tentar imitar. As primeiras tentativas, fatalmente, seriam desastrosas, mas nada que persistência e paciência não resolvessem. E pronto: o "monopólio Rhóor do arco" estaria quebrado. Se a intenção (muito natural) dos autores era que a tribo do herói possuísse um diferencial em relação às outras, essa foi uma escolha um tanto ingênua. Porém, isso não tira os méritos de Rhóor, o Invencível, que continua sendo diversão de primeira.

Em tempo: a capa e as duas ilustrações do livro que aqui reproduzo são de Pierre Joubert, só para dar a meus leitores uma pequena amostra do trabalho desse admirável artista.