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terça-feira, julho 28, 2015

A Trilogia da Escuridão + The Strain

Quando um voo da Regis Airlines, procedente de Berlim, se prepara para pousar no aeroporto internacional John F. Kennedy, em Nova York, não parece haver razão alguma para imaginar que algo possa estar errado. A enorme aeronave toca o solo em segurança e no horário previsto. Porém, quando seus motores desligam, o mesmo acontece com todas as luzes a bordo, e, o que é pior, a tripulação deixa de responder às insistentes tentativas de comunicação por parte da torre de controle do aeroporto. E há os passageiros, que normalmente ficam num frenesi para desembarcar assim que o avião aterrissa, mas que, no presente caso, parecem estar muito quietos… Quietos demais para ser um bom sinal. A primeira coisa em que todos pensam, claro, é numa ação terrorista, possivelmente com uso de armas químicas ou biológicas. Para lidar com a possível presença de patógenos desconhecidos, é chamada a equipe do Centro de Controle de Doenças, liderada pelo Dr. Ephraim Goodweather, também coordenador do Projeto Canário, cuja função é manter vigilância constante contra ameaças de epidemias. Quando Ephraim ("Eph" para os amigos) e sua colega, a Dra. Nora Martinez, ambos pesadamente protegidos contra qualquer contágio, entram no avião para investigar, a cena que encontram é atordoante. Duzentas e seis pessoas, entre passageiros e tripulação, estão aparentemente mortas, sem sinal de violência, e, se houve infecção, o agente foi algo diferente de tudo o que os dois experientes epidemiologistas já viram. Com o tempo, quatro pessoas – três passageiros e o comandante – despertam, mas nenhuma delas consegue dizer o que aconteceu no voo, e nem mesmo acrescentar qualquer informação que lance alguma luz sobre a estranheza do caso.

A investigação conduzida pelas autoridades encarregadas do tráfego aéreo só encontra um objeto suspeito, ou, no mínimo, estranho a bordo do avião: uma enorme caixa retangular de madeira de lei, toda coberta de intrincadas figuras entalhadas representando morte e sofrimento. A caixa dá a ideia de um esquife, mas tem mais de dois metros e meio de comprimento, e, em vez de uma simples tampa, possui portas duplas, à maneira de um guarda-roupa, por assim dizer. Quando é aberta, descobre-se que possui um trinco pelo lado de dentro. No mais, a caixa contém apenas terra. O inacreditável é que ela não consta no manifesto de bagagem, o que não faz nenhum sentido: em tempos pós-Onze de Setembro, deveria ser impossível embarcar com carga não declarada em qualquer voo com destino aos Estados Unidos, e ainda mais um objeto desse tamanho. Eph deseja submeter a caixa a mais análises, assim como os corpos das vítimas e os quatro sobreviventes, que, nem é preciso dizer, deverão ficar sob rigorosa quarentena até segunda ordem – mas não consegue que nenhuma dessas providências seja tomada. A caixa desaparece misteriosamente, apesar de estar sendo mantida em área de acesso restrito, e um dos sobreviventes é uma advogada arrogante e (infelizmente) com "contatos importantes", que consegue que ela e os outros sejam liberados, solenemente passando por cima das normas de segurança médica. Quanto ao exame dos corpos, ele bem que começa a ser feito, mas os procedimentos são interrompidos de forma bizarra, quando os supostos mortos começam a levantar das mesas de autópsia e a atacar quem encontram pela frente, usando novos e horrendos órgãos que parecem ter desenvolvido durante o período de latência que foi confundido com morte.

O agente é, sem dúvida, um vírus, e, como todo vírus, tem um único objetivo na existência: infectar seres vivos, para obrigar suas células a funcionar como fábricas, produzindo o maior número possível de novos vírus. Isso mesmo: um vírus só existe para se replicar. Ele não faz mais nada. Não é capaz de mais nada. Sob esse aspecto, como dissemos, o vírus em questão é igual a qualquer outro… Em tudo o mais, porém, é horrivelmente único. Ele "reescreve" o código genético do organismo infectado, causando transformações físicas para tornar o hospedeiro mais útil aos "interesses" do vírus. Os órgãos internos secam e atrofiam, já que a maior parte das funções que realizavam não são mais necessárias à nova criatura. Na garganta, desenvolve-se uma espécie de tentáculo muscular, que fica recolhido, talvez enrolado quando em repouso, mas que, esticado, chega a medir até um metro e oitenta de comprimento, terminando num ferrão. A criatura usa o tentáculo como se fosse um chicote para subjugar a presa; feito isso, crava o ferrão para sugar o sangue – e quem é sugado fica infectado, de modo que o processo recomeça.

A última parte lembra algo? Não é mera coincidência. Há um homem em Nova York que conhece tanto as antigas lendas quanto a realidade por trás delas. Abraham Setrakian, um judeu de origem armênia, mas criado na Romênia, é proprietário de uma loja de penhores no Harlem, mas já foi professor de literatura e folclore eslavos na universidade de Viena, e teve seu primeiro contato com a praga vampírica mais de 60 anos antes, quando era prisioneiro dos alemães em Treblinka, na Polônia. Embora Treblinka fosse um campo de extermínio, Setrakian, como outros prisioneiros jovens e fortes, foi mantido vivo, em caráter temporário, para que o Terceiro Reich pudesse se beneficiar de sua força de trabalho. Foi graças a essa prorrogação de vida que ele teve a chance de aproveitar o caos que se abateu sobre o campo por ocasião de um ataque do exército russo, e escapar. Antes de sua fuga, contudo, o jovem Abraham testemunhou um horror ainda maior que as atrocidades dos nazistas, que faziam parte do cotidiano do lugar. Escondida nas sombras da noite, uma criatura misteriosa, dotada de força e velocidade impossíveis, esgueirava-se pelos barracões que serviam de alojamento aos prisioneiros, alimentando-se dos homens adormecidos, e, o que é pior, com a conivência do comandante do campo – Abraham tem certeza desse detalhe, pois foi ele quem construiu e entalhou a caixa, por ordem do comandante e para uma finalidade que não é difícil imaginar. O oficial nazista permitia a esse ser fartar-se do sangue dos prisioneiros – que seriam mortos de qualquer forma – e lhe oferecia abrigo, em troca… do quê? A busca da resposta para essa pergunta, do conhecimento da verdadeira natureza da criatura, e de uma maneira de destruí-la, viriam a tornar-se a razão da vida de Setrakian durante as décadas seguintes. Agora ele está velho e sofrendo do coração, mas, se seu vigor físico já não é igual ao de outros tempos, sua coragem continua a mesma, e sua mente está mais aguçada que nunca.

Embora seja um folclorista por formação, Setrakian não negligenciou o que a ciência tinha a contribuir durante seus longos anos de pesquisas e investigações. Ele já sabe, por exemplo, que o que transforma seres humanos em vampiros é um vírus, não uma maldição ou qualquer outra coisa sobrenatural. Descobriu também que o vetor da praga é um pequeno verme, com menos de cinco centímetros de comprimento e espessura pouco maior que a de um fio de cabelo, e com uma habilidade extraordinária para perfurar a pele humana: se você tiver contato físico com um desses, em segundos ele estará na sua corrente sanguínea, e então, nada mais poderá ser feito para salvá-lo. O velho professor apurou, ainda, que a criatura que ele viu em Treblinka era um vampiro-mestre, algum tipo de consciência antiga e maligna, capaz de trocar de corpo ao longo do tempo – o que o faz praticamente imortal – e que controla o contágio do vírus para servir a seus próprios planos. Os vampiros comuns são seres apenas semi-inteligentes, capazes de pouca coisa além de ir atrás de sangue e espalhar a praga, mas o Mestre pode, quando assim deseja, transformar certos humanos escolhidos em uma classe superior de vampiros, mais espertos e poderosos, com capacidade de controlar seus instintos e lembrança total de suas vidas anteriores. Esses, ele reserva para serem seus servidores diretos.


Todo esse conhecimento acumulado por Setrakian, bem como sua impressionante coleção de armas e livros, irá mostrar-se de importância vital para o pequeno grupo dos que irão opor-se aos planos do Mestre a fim de tentar evitar um "apocalipse vampiro" de proporções mundiais. Desse grupo fazem parte Eph e Nora, que por meios tortuosos vêm a conhecer o professor e a somar forças com ele, já que, no fim das contas, todos têm o mesmo objetivo, embora discordem sobre quem recrutou quem para sua causa. Aos três, junta-se eventualmente um sujeito de nome Vasiliy Fet, um filho de imigrantes russos que trabalha para a secretaria municipal de saúde como exterminador de pragas, sendo os ratos sua especialidade. Graças a sua experiência profissional, Vasiliy é o primeiro a perceber que, sob certos aspectos, os vampiros agem de forma parecida à dos roedores. Além disso, ele pensa de forma fria, desprovida de sentimentalismo. Eph e Nora, ao menos no início, sentem uma compreensível hesitação em situações que exigem a eliminação física de vampiros, porque não conseguem deixar de pensar neles como os seres humanos que já foram, e pelos quais eles, como médicos, juraram zelar. Já para Vasiliy, a partir do momento em que alguém é infectado, passa a ser nada mais que um veículo disseminador de doença, assim como os ratos – e deve ser tratado tal como eles. Essa atitude, aprovada por Setrakian, causa horror e repulsa aos outros dois, o que abala a união do grupo ― e isso só pode ser bom para o Mestre… Porém, muitas reviravoltas ainda terão lugar antes do fim.

E, como se a situação já não fosse desesperadora o suficiente, existem outras forças e outros interesses em ação. Um tal Eldritch Palmer (haveria algum paralelo com Os Três Estigmas de Palmer Eldritch, de Philip K. Dick? Hum…), um dos homens mais ricos do mundo, está agindo em parceria com o Mestre. Para começar, foi graças a ele que o grande vampiro conseguiu transpor o oceano para chegar da Europa aos Estados Unidos ― pois, embora os vampiros desta história tenham muitas diferenças em relação aos vampiros clássicos, também possuem semelhanças, e uma delas é a incapacidade de atravessar água em movimento, a não ser com a ajuda de humanos; qual seria a explicação científica para isso, não se sabe (no terceiro volume é oferecida uma explicação mítica). Palmer é um homem poderoso em todos os sentidos, exceto o físico: sempre teve uma constituição débil e uma saúde frágil. Já tem certa idade, uma idade à qual um homem comum com os mesmos problemas dificilmente teria chegado; só conseguiu manter-se vivo graças ao fato de ter dinheiro para recorrer sempre aos mais modernos tratamentos médicos, e ainda não acha que tenha vivido o suficiente. Na verdade, ele almeja a imortalidade, que o Mestre já ofereceu a alguns humanos antes: Palmer quer ser transformado num daqueles vampiros superiores, com memória e inteligência, e assim seguir vivendo indefinidamente. Em troca, providenciou a viagem do Mestre (com pressões ou subornos às pessoas certas, conseguiu que a enorme caixa fosse embarcada naquele voo, sem registros e sem perguntas), e agora usa sua influência junto à imprensa numa maciça campanha de desinformação, para evitar que o público em geral fique sabendo o que realmente está acontecendo. Nisso, a incredulidade teimosa que é sempre a reação da maioria diante do insólito é uma grande aliada: a TV e os jornais falam em “tumultos”, "saques", uma onda de desaparecimentos, e todo tipo de perturbação da ordem, mas sem nunca revelar o que há por trás de todo esse caos. Boatos circulam, é claro, mas as pessoas preferem acreditar no que conhecem. Vampiros? Quem acreditaria nessa "bobagem"? A maior parte das pessoas vai sempre se obstinar em fechar os olhos à realidade, se ela for muito diferente daquilo que estão acostumadas a ver como "realidade".

Escrevi acima que os vampiros da Trilogia da Escuridão têm diferenças e também semelhanças com os vampiros clássicos. Pois outra semelhança, além da questão da água corrente, é a velha crença segundo a qual um vampiro recém-transformado irá atrás, em primeiro lugar, de seus familiares e amigos – daqueles que ele amou em vida. Essa crença, infelizmente, é verdadeira. Ao longo do primeiro volume, Noturno, enquanto o mundo ainda mantém uma certa aparência de normalidade, acompanhamos a disputa entre Eph Goodweather e sua ex-esposa, Kelly, pela guarda do filho de onze anos, Zack. Isso pode parecer apenas um recurso para fazer de Eph um personagem mais complexo, dando-lhe background e mais humanidade, mas vira algo bem diferente a partir do momento em que Kelly é infectada pelo vírus. Em sua nova existência como vampira, ela não vai descansar enquanto não infectar também o garoto para poder tê-lo novamente junto dela, de modo que a disputa que antes acontecia nos tribunais irá continuar, só que de uma maneira bem mais selvagem e assustadora.

Puxa, comentar livros muito ricos é difícil! Conforme vou escrevendo, vão surgindo mais e mais pontos interessantes que não parece certo deixar de mencionar. Um deles acaba de me ocorrer por causa dessa comparação entre os vampiros de que estamos falando aqui e os vampiros clássicos. Mas, afinal, que raios é um "vampiro clássico"? Suponho que podemos defini-los como sendo os vampiros criados por autores vitorianos como Bram Stoker, John William Polidori, Joseph Sheridan Le Fanu, esse pessoal, e os que vieram depois, diretamente influenciados por eles, tanto na literatura quanto no cinema. Porém, o vampiro em si é mais antigo que isso, e, em sua origem, muito menos glamouroso. Para falar a verdade, nas lendas da Europa oriental, que datam, no mínimo, do fim da Idade Média (e muito provavelmente de bem antes), os vampiros são descritos como seres repelentes, tão dignos de pena quanto de temor, com uma aparência hedionda – às vezes cadavérica, outras com traços animais –, que andavam nus ou cobertos de trapos imundos, escondiam-se em túmulos enlameados e tinham pouca ou nenhuma inteligência. Que diferença entre isso e as representações de vampiros na cultura popular do século XXI, não?… O que a Trilogia da Escuridão faz, de certa forma, é apontar para as origens, ao mostrar a face mais bestial e menos sedutora do vampirismo. Ao mesmo tempo, a existência de exemplares "superiores", como os escolhidos do Mestre, pode ser vista como a possível origem das noções a respeito de vampiros mais inteligentes e sofisticados, como os Lordes Ruthven, as Carmillas e os Dráculas dos vitorianos.


Os fãs do cineasta mexicano Guillermo del Toro ficaram surpresos com a notícia de sua estreia como escritor, e, quando se soube que seria em parceria com o veterano Chuck Hogan, foi inevitável a dúvida: será que esse não vai ser mais um daqueles casos em que um dos autores faz o trabalho, enquanto o outro entra com o nome famoso? Porém, quem leu convenceu-se do contrário: Hogan provavelmente foi o responsável por dar forma ao texto, mas o estilo de Del Toro está por toda parte; a própria ideia geral deve ter sido dele. E, se a estreia do cara na literatura surpreendeu, o fato de a obra resultante ser adaptada para a tela já era de se esperar – só que a tela em questão acabou sendo a da TV em vez da do cinema, seu campo costumeiro de atuação. O que nos leva ao próximo tópico…

Na TV

The Strain (algo como "linhagem, descendência") era o título original da Trilogia da Escuridão, e foi mantido na série de TV baseada nela. A produção é do canal FX, e a primeira temporada, exibida nos Estados Unidos em 2014, já está disponível entre nós em DVD. A segunda está indo ao ar este ano em terras gringas, e a terceira está confirmada para 2016; uma temporada para cada volume da trilogia. Quando a série chegou ao Brasil, foi exibida e lançada em DVD com o título em inglês mesmo, que provavelmente foi considerado mais chamativo – algo bem típico do nosso país, embora eu não possa dizer que aprovo.

Quem lê um livro e gosta muito costuma ficar contrariado quando assiste à versão audiovisual e constata que muita coisa foi alterada – mas será que faz sentido ter essa reação quando o próprio autor esteve envolvido na produção? Quando as mudanças feitas foram decididas ou, pelo menos, aprovadas por ele? É o que se verifica aqui: Del Toro e Hogan criaram a série, baseada, naturalmente, em seus próprios livros, e assinam a produção executiva; além disso, Del Toro dirigiu o episódio-piloto, verdadeiro longa-metragem com mais de 70 minutos de duração, muito mais que os outros episódios, que têm em torno de 40 minutos cada. Num dos extras encontrados nos DVDs da primeira temporada, ele diz que uma das coisas legais nas alterações feitas é que, dessa forma, a série reserva surpresas até mesmo para quem leu os livros. Eu acrescentaria que, para os autores, essa produção deve ter representado uma oportunidade rara: a de "passar a limpo" uma obra depois de já publicada! Quem escreve fatalmente conhece a experiência e a sensação: você está trabalhando num texto (seja um post para um blog ou uma trilogia de romances, tanto faz) e, depois de muito quebrar a cabeça, por fim consegue lhe dar uma forma final que o deixa satisfeito – naquele momento. Porém, é inevitável que, ao reler o resultado mais tarde, você ache que poderia ter ficado melhor, caso tivesse feito isto ou aquilo de forma diferente. Até onde sei, a história da literatura registra raros casos de livros que tenham sido "mexidos" de forma significativa (ao menos por seus próprios autores) depois de publicados. Hoje em dia, entretanto, novas mídias abrem possibilidades novas, e, graças a isso, Del Toro e Hogan puderam reinventar o que consideraram "reinventável" em sua saga, sem atormentar seus leitores com diferentes versões dos livros.

Nos papéis principais da série estão David Bradley (que interpreta Abraham Setrakian na atualidade, sendo substituído por Jim Watson nas cenas da juventude do personagem), Corey Stoll (Eph Goodweather), Mia Maestro (Nora Martinez), Kevin Durand (Vasiliy Fet), Jonathan Hyde (Eldritch Palmer) e Robin Atkin Downes (o Mestre). E, a meu ver, duas das mais importantes mudanças ocorridas na transição das páginas para a tela são representadas por dois personagens que não fazem parte dessa lista de "principais". Um deles já existia nos livros, embora só aparecesse no segundo volume e tivesse relativamente pouca importância: é Thomas Eichhorst, que comandava o campo de Treblinka quando Setrakian era prisioneiro lá. Convertido em vampiro, Eichhorst continua vivo (se é que ser vampiro é estar vivo) e em plena atividade no século XXI. Na série, o personagem aumentou muito em importância, aparecendo, e bastante, desde o início da primeira temporada. No presente, serve ao Mestre, sendo o contato entre ele e Palmer; no passado, é uma figura-chave durante os flashbacks ambientados nos dias da Segunda Guerra, que, por sinal, foram muito ampliados em relação ao que havia nos livros. Para completar, Eichhorst é magnificamente interpretado por Richard Sammel, que, além de atuar bem, tem até a aparência perfeita para "ser" um oficial nazista.


A outra personagem a que me referi é a hacker Dutch Velders; essa foi criada para a série. Ela começa do lado errado: Palmer a contrata para derrubar os principais servidores de internet da América do Norte, a fim de dificultar as comunicações e reduzir as chances de que se forme alguma resistência organizada contra a propagação da praga vampírica. Dutch, que nada sabe sobre o vírus e seus efeitos, executa a sabotagem acreditando estar "apenas" servindo a alguma trapaça corporativa; quando conhece o grupo de heróis e compreende o que ajudou a fazer, ela muda de lado e torna-se uma aliada valiosa para Setrakian e companhia – além de atrair o interesse de Vasiliy, um sujeito, até então, bem pouco romântico. Dutch é interpretada por Ruta Gedmintas, que, por causa desse nome incomum e de sua beleza exótica, cheguei a pensar que viesse de algum país improvável, mas não: a gata é inglesa (sua personagem também é, apesar do apelido de Dutch, 'Holandesa'), nascida na histórica Canterbury, e já participou de outras produções de destaque, como The Tudors, que, infelizmente, ainda não conheço. A inclusão de Dutch na trama parece atender às rápidas mudanças no mundo da mídia e das comunicações: o primeiro volume da Trilogia foi publicado em 2009, mas começou a ser bolado alguns anos antes, por volta de 2005. Nessa época, a internet já era parte integrante da vida de pessoas e nações, mas as comunicações ainda não eram totalmente dependentes dela, como hoje, de modo que Hogan e Del Toro provavelmente não pensaram que Palmer e o Mestre teriam que fazer algo com a rede para que seu plano funcionasse. Já em 2014, esse seria necessariamente um ponto essencial da coisa toda, e é aí que entra Dutch. São os autores reinventando sua criação, como escrevi acima.

Acho curioso, ainda, assinalar um detalhe sobre Nora. Nos livros, nada é dito sobre sua nacionalidade, mas, como seu nome e biotipo indicam origem hispânica, o leitor é levado a deduzir que ela pode ser mexicana, ou hispano-americana mesmo. Na série, é revelado que ela nasceu na Argentina e lá viveu sua infância, presumivelmente durante os anos 70 e início dos 80, ainda sofrendo os efeitos de uma das mais cruéis ditaduras que a América Latina, infelizmente tão experiente com esse tipo de coisa, já conheceu. Em um ou dois diálogos com Eph, Nora traça breves comparações entre tirania e vampirismo, baseadas no que viu e sentiu em seu país de origem quando era criança. Aí tem o dedo de Del Toro, que, sendo mexicano e admirado mundo afora, está em boa posição para lembrar ao público dos Estados Unidos que o resto do mundo existe e tem seus próprios problemas ― algo que os ianques têm extrema facilidade em esquecer. Além disso, o cara parece considerar questão de honra mostrar a dura realidade da vida de pessoas comuns sob regimes ditatoriais, como deve ter notado quem viu O Labirinto do Fauno.

A Trilogia da Escuridão e The Strain, a série de TV, são algo um pouco diferente das coisas que os fãs de Guillermo del Toro estão acostumados a receber dele, mas não menos fascinante ou empolgante. Ambas as obras misturam com eficiência drama, suspense, terror e ficção científica, e acorrentam o leitor/espectador de forma implacável, levando-o a querer mais e mais, até chegar ao desfecho da coisa toda. Prevejo que quem assistir à primeira temporada da série vai querer ler os livros, nem que seja só por não aguentar esperar mais dois anos pelo final da história. E essa é uma leitura que recomendo com entusiasmo!

quinta-feira, setembro 25, 2014

Inverno do Mundo

Foi longa a espera pelo segundo volume da trilogia O Século, e, mesmo depois de o livro ser lançado, motivos diversos (leia-se: tempo escasso e livros que estavam na fila há muito tempo) fizeram com que eu demorasse a pegá-lo de fato, mas, uma vez que peguei, a leitura progrediu com uma velocidade que me surpreendeu, pois nunca fui um leitor rápido. A prosa de Ken Follett realmente transporta o leitor, e, se este for, além disso, um interessado em História, aí sim é que a "viagem" está garantida.

Diferente de Queda de Gigantes, no qual era difícil apontar um único personagem central, Inverno do Mun­do tem como protagonista Lloyd Williams, filho da ex-criada, depois jornalista, militante socialista e deputa­da Ethel Williams e (embora não saiba) do conde Edward Fitzherbert. Lloyd pensa que seu pai biológico morreu na Grande Guerra (que era como a Primeira Guerra Mundial era conhecida então), e, no que lhe con­cerne, o único pai que conhece, e a quem adora, é Bernie Leckwith, também um militante socialista, com quem Ethel se casou quando ele era pequeno. Lloyd vive no East End, a parte proletária de Londres, com a mãe, o pa­drasto e a meia-irmã, Millie. Porém, a história começa de fato em Berlim, onde Walter Von Ulrich e Maud Fitzherbert (agora Maud Von Ulrich) vi­vem com seus filhos pré-adolescentes, Erik e Carla. O ano é 1933, e o NSDAP (Nationalsozialistische Deutsche Ar­beiterpartei)  o Partido Nacional-Socialista dos Traba­lhadores Alemães, popularmente conhecido como Par­tido Nazista – está ganhando poder e apoio popular num ritmo assusta­dor. Assustador, claro, para gente como Walter, Maud e seus amigos, que valorizam a paz e a demo­cracia e sabem até onde uma ideologia ex­tremista como a dos nazistas pode levar uma nação. Já para grande parte da população da Alemanha, os na­zistas são os heróis que devolveram ao país uma aparên­cia de ordem, elimi­nando o desemprego e pondo fim ao caos econômico que se seguiu à derrota na Grande Guerra. Adolf Hitler, re­cém-nomeado chanceler, e seus correligionários, agora têm em mira outra ambição: a aprovação da Lei Ple­nipotenciária, que dará ao Partido o poder de baixar novas leis e decretos sem precisar da aprovação do Rei­chstag, o Parlamento alemão. E estão em meio a uma furiosa campanha para isso quando Ethel chega a Ber­lim, acompanhada do filho Lloyd, de 18 anos, a convite de sua grande amiga Maud, para proferir uma sé­rie de palestras e colher dados para um livro que está escrevendo, e que espera que sirva para alertar a po­pulação dos outros países europeus contra a perigosa sedução do nazifascismo.

Essa primeira parte do livro pinta um quadro atordoante do que era a sociedade alemã naqueles dias, quando os membros do Partido Nazista podiam fazer o que quisessem, enquanto os não-membros eram praticamente párias. A SS – Schutzstaffel ('Tropa de Proteção', uma organização paramilitar ligada ao Partido) tinha os mes­mos poderes que a polícia regular, poderes esses dos quais muitos de seus integrantes abusavam cons­tantemente, prendendo, espancando e às vezes matando qualquer um de quem não gostassem. Quem ousas­se con­testá-los tornava-se um "inimigo do Estado", e sua vida, a partir daí, não valia mais nada.

Aos fatores políticos, sociais e econômicos, estava-se juntando na época uma série de noções "científicas" de­rivadas de uma interpretação distorcida da teoria de Darwin. Agremiações como a Sociedade Thule e outras menos famosas postulavam a superioridade da "raça ariana", à qual pertenciam os alemães "puros", e prega­vam que essa raça tinha tanto o direito quanto o dever de proteger-se da "contaminação" trazida pela misci­genação com outras – sendo que alguns grupos étnicos eram bem mais execrados que outros. O sentimento antissemita já existia entre os alemães (como, de resto, entre outros povos) há séculos, e sua origem não é fá­cil de rastrear; existem aí componentes históricos, religiosos e de outros tipos. Como a Sociedade Thule tinha estreitas ligações com o NSDAP – ou, melhor dizendo, o NSDAP foi mais ou menos apropriado pela Thule, passando a atuar como seu braço político –, não deve surpreender a ninguém que o Partido tenha-se aprovei­tado da antipatia que muitos alemães já nutriam contra os judeus e açulado a opinião pública contra eles, usando-os como bode expiatório para todo o sofrimento que a Alemanha tinha enfrentado desde a derrota em 1918. Hitler, brilhante orador que era, e apoiado por uma gigantesca máquina de propaganda, convenceu a opinião pública alemã de que a coalizão de nações que havia vencido a Grande Guerra era controlada por uma conspiração judaica que visava destruir a Alemanha. Além disso, conseguiu que os alemães partilhassem de seu sonho megalomaníaco de uma "Grande Alemanha", que, além do povo alemão propriamente dito, en­globaria as populações de língua e etnia germânicas espalhadas por vários países da Europa. Para isso, a Alemanha precisava do que os intelectuais nazistas chamavam de Lebensraum ('espaço vital'), o que, segundo a propaganda oficial, justificava a invasão de países vizinhos – outra ideia que Hitler e a mídia a seu serviço conseguiram que a maior parte da população alemã comprasse.


Com a ascensão dos nazistas ao poder, o significado de "democracia" virou uma simples lembrança na Ale­manha. Quem ainda não tem muito conhecimento da matéria pode ficar confuso com o fato de que uma ideo­logia de extrema direita como a do NSDAP pudesse se intitular Nacional-Socialismo; acontece que os nazis­tas atribuíam à palavra "socialismo" um significado totalmente diferente do que conhecemos. Para eles, esse termo queria dizer que a sociedade – Estado, nação, coletividade – devia ter prioridade absoluta, enquanto os direitos e interesses dos indivíduos ficavam em segundo plano, ou nem isso. Enfim, o "socialismo" de Hi­tler e seus companheiros era, no fim das contas, uma das formas daquilo que passaria à História com o nome de totalitarismo. E totalitarismo, como se sabe, pode ser de direita ou de esquerda, tanto faz – e nunca resultou em bem para as pessoas comuns.

É mais ou menos o que Lloyd Williams descobre ao alistar-se como voluntário para lutar na Guerra Civil Es­panhola (1936-1939), conflito que historiadores consideram um dentre vários "prelúdios" que antecederam a Segunda Guerra Mundial propriamente dita. Essa guerra estourou, basicamente, porque a Espanha, na época dando seus primeiros passos como país republicano, havia eleito um governo de esquerda, o que os fascistas do país não aceitaram. O conflito, então, envolvia as tropas leais ao governo socialista, de um lado, e rebeldes de direita do outro. Na prática, foi uma "guerra por procuração", pois, enquanto a Alemanha nazista de Hitler e a Itália fascista de Mussolini forneciam armas, suprimentos e treinamento aos rebeldes, a União Soviética fazia o mesmo pelas tropas do governo. Enquanto durou a guerra, muitos voluntários vindos de vários países se apresentaram – "lutar na Espanha" foi muito romantizado, era visto como o ato supremo de idealismo por muitos jovens, e outros nem tão jovens assim, que viviam o sonho do socialismo. Só para dar um exemplo, um desses voluntários foi o inglês Eric Arthur Blair, mais tarde imortalizado com o nome de George Orwell, que retratou a guerra em Homage to Catalonia (publicado no Brasil como Lutando na Espanha), um de seus livros mais aclamados.

Na Espanha, Lloyd não demora muito a perceber que a realidade da guerra é muito diferente daquilo que sua jovem cabeça idealista imaginava. Como se não bastasse o terror dos sangrentos combates, ele é defrontado com a irracionalidade da máquina bolchevique: os soviéticos, de cujo apoio ele e seus companheiros dependem, estão acorrentados a uma burocracia estatal que é um verdadeiro monstro. O ditador Josef Stalin é vis­to como uma espécie de deus, cegamente obedecido em qualquer circunstância, mesmo que todos estejam vendo que suas decisões são erros desastrosos. Pessoas sem preparo são colocadas em cargos importantes, unicamente por sua lealdade a Stalin e ao Partido Comunista. Todos são obrigados a prender-se a uma infinidade de regras inflexíveis, das quais não é permitido desviar-se um milí­metro sequer, não importa que isso custe vidas humanas. Ao menor sinal de qualquer comportamento não ortodoxo, a pessoa passa a estar na mira da NKVD, a temida polícia política russa, que, é claro, estende seus tentáculos a qualquer lugar onde os interesses da União Soviética estejam em jogo, como era o caso da Espa­nha naqueles dias. E estar na mira da NKVD significa, na melhor das hipóteses, ter toda a vida minuciosa­mente investigada e seus segredos mais íntimos irem parar numa pasta de arquivo; na pior, significa tortura e morte. Isso faz nosso herói com­preender que nenhum tipo de extremismo irá criar um mundo melhor, e o leva a concluir que o comunismo deve ser combatido com o mesmo afinco que o nazismo. Isso irá influenci­á-lo mais tarde, quando, a exemplo da mãe, torna-se deputado na Inglaterra, alinhado com os socialistas mode­rados.

Também é na Espanha que Lloyd conhece o tenente Vladimir "Volodya" Peshkov, um jovem oficial do Exérci­to Vermelho que, como ele, chama de pai alguém que não é seu pai biológico – mas, diferente de Lloyd, Vo­lodya não sabe disso: acredita ser mesmo filho de Grigori Peshkov, agora um importante general, que foi quem o criou. Na verdade, Volodya é o filho que Lev, irmão de Grigori, deixou na barriga da namorada ao sair às pressas da Rússia, no já distante ano de 1914, fugindo da polícia. Grigori casou-se com Katerina, a mãe de Volodya, e os dois têm uma filha, Anya. Lev, por sua vez, radicou-se nos Estados Unidos, onde casou-se com Olga Vyalov, filha de um gângster russo, e, graças a sua muita astúcia e poucos escrúpulos, ampliou e diversificou os negócios herdados do sogro; agora, é muito mais rico e muito mais temido do que o velho Josef Vyalov alguma vez foi. Com Olga, Lev teve uma filha, a linda Daisy, agora uma socialite cabeça-oca; com uma de suas amantes, teve um filho, Greg, um rapaz ambicioso, que admira o pai, de quem herdou a astúcia. Cir­culando em meio à alta sociedade da cidade de Buffalo, no estado de Nova York, Daisy e Greg convivem com muitos outros jovens de famílias influentes, entre eles os irmãos Woody e Chuck, filhos do agora senador Gus Dewar. Enquanto Woody sem­pre quis seguir os passos do pai na política, Chuck deseja entrar para a Mari­nha.

Só por esse parágrafo, já deve ter dado para sentir o impressionante entrelaçamento de vidas e destinos cria­do por Ken Follett. Caramba, chega a ser difícil dar uma breve ideia geral do enredo do livro, pois falar de um personagem me obriga a falar de outro, e assim vai! É verdade que Follett, por vezes, recorre a coincidências improváveis, estilo Jane Eyre, mas, ainda assim, não dá para não admirar a engenhosidade com que ele ar­quiteta toda essa trama, conseguindo fazer com que haja sempre um personagem no lugar certo e na hora certa para lhe permitir abordar um acontecimento histórico importante. O que achei discutível, em contra­partida, foi a op­ção do autor por aumentar o número de páginas dedicadas aos dilemas pessoais (geralmente amorosos) dos personagens, em relação ao volume anterior. Compreendo que, para que se tenha uma obra de ficção históri­ca, é preciso ter personagens vivendo o momento dos acontecimentos apresentados, e que, para que haja per­sonagens, tem que haver também um background e problemas particulares para cada um deles – só fiquei um pouco decepcionado ao ver que namoros, casamentos e desilusões acabaram ocupando tanto espaço, que vários eventos importantes ou significativos da guerra, ou ligados a ela, ficaram sem ao me­nos uma menção. Posso citar, entre outros exemplos, a Noite dos Cristais, em 09 de novembro de 1938, tal­vez o primeiro regis­tro de uso de violência em caráter oficial e em grande escala, pelo governo nazista, contra os judeus; a Guerra de Inverno, entre o final de 1939 e o início de 1940, entre União Soviética e Finlândia – é interessante lemb­rar que os soviéticos só puderam dar-se ao luxo de travar essa guerra porque ainda estava em vigor o pacto de não-agressão com a Alemanha; ou o heroico episódio do Levante de Varsóvia, em 1944, no qual civis polo­neses, armados com o que puderam encontrar, lutaram nas ruas contra o bem-treinado e bem-equipado exército alemão a fim de tentar libertar sua cidade da ocupação nazista. Follett silencia total­mente sobre tudo isso – e deve haver muito mais, pois não tenho a pretensão de conhecer tudo sobre a guerra.


Por outro lado, o autor merece aplausos por não perpetuar aquela visão simplista que pinta a Segunda Guerra Mundial como uma luta entre o "bem" e o "mal", e por desconstruir alguns mitos hollywoodianos sobre ela. Alguns poderão achar chocante saber que a Alemanha, no início, limitava seus ataques aéreos à Inglater­ra a alvos militares, e que, quando começou a lançar bombas sobre áreas residenciais, foi como re­presália, pois os ingleses fizeram isso primeiro nas cidades alemãs. E essa tática fazia parte de uma estraté­gia cruel: como um personagem do livro explica a outro, a Inglaterra fazia pouco progresso na guerra ao bombardear indústrias na Alemanha, pois os alemães simplesmente as reconstruíam. Surtia muito mais efeito bombarde­ar os bairros onde se concentravam as moradias da classe operária, já que os trabalhadores mortos não podi­am ser substituídos com a mesma rapidez que prédios ou máquinas. Aterrador.

Se formos falar em mitos hollywoodianos sobre a Segunda Guerra Mundial, não há como negar que o maior deles diz respeito à relevância geral da participação norte-americana no conflito. Quem assiste aos filmes que andam por aí fica com a impressão de que os ianques foram a força vital que possibilitou a vitória dos Alia­dos, e de que os outros foram meros coadjuvantes. Por estranho que pareça em face do que foi dito poucos parágrafos acima, a realidade é que, se hoje não vivemos num mundo moldado pela ideologia nazifascista, devemos isso aos comunistas: entre os Aliados, a União Soviética foi, de longe, o país que mais fez pela vitó­ria, e também o que mais sofreu com a guerra. Há sempre dois lados na moeda, porém: os soviéticos eram combatentes corajosos, mas, ao invadirem a Alemanha, semearam o terror entre a população local com estu­pros e saques – e o pior, eram estimulados a isso pela propaganda oficial soviética, que os incitava a se "vingar" pelo que os alemães tinham feito à Rússia, como se as pessoas comuns da Alemanha fossem culpa­das. Ken Follett mostra essa realidade também.

Tirando o excesso de romance, como dito acima, Inverno do Mundo é uma digna continuação para a trilogia O Século, iniciada de forma tão magistral com Queda de Gigantes. Fico imaginando como será o próximo e último volume, A Eternidade por Um Fio, que, segundo as informações, tratará da Guerra Fria – um desdob­ramento natural da corrida armamentista entre Estados Unidos e União Soviética, cujo início é mostrado em Inverno do Mundo. Talvez esse terceiro livro não seja tão emocionante quanto os dois primeiros, já que pro­vavelmente não envolve combates propriamente ditos, mas tem tudo para ser tenso e cheio de intriga. Vamos aguardar.

sexta-feira, julho 06, 2012

O Fortim

Estamos no ano de 1941, em plena Segunda Guerra Mundial – que ainda não era chamada assim, é claro. Por enquanto, tratava-se de uma guerra europeia, na qual os Estados Unidos ainda não haviam tomado partido; o pacto de não agressão entre Alemanha e União Soviética estava por um fio, mas ainda vigorava, e os alemães venciam uma batalha atrás da outra, parecendo ter chances reais e concretas de ganhar a guerra num prazo relativamente curto. Nesse cenário, o alto comando do exército alemão decide prevenir uma pouco provável ofensiva russa, em caso de quebra do tratado (o que aconteceria ainda naquele ano, mas por iniciativa alemã), e envia um destacamento para o Passo Dinu, um desfiladeiro nos Alpes da Transilvânia, a fim de guardar o acesso aos campos petrolíferos do interior da Romênia. A tropa recebe ordem de ocupar um fortim do século XV, que domina todo o desfiladeiro e constitui uma posição defensiva ideal.

O comandante desse destacamento é o capitão Klaus Woermann, veterano da Primeira Guerra Mundial, um homem que sempre se orgulhou de fazer parte do Exército alemão, e que não vê com bons olhos a ditadura de Hitler nem a ideologia do Partido Nazista em si. Como muitos soldados de sua geração, Woermann desejou essa nova guerra, que imaginava como uma revanche contra os Aliados, que não se contentaram em derrotar a Alemanha na guerra anterior, mas também a submeteram a todo tipo de humilhação, obrigando-a a concordar com tratados de paz obviamente injustos e sobrecarregando-a com exigências de indenizações impossíveis, o que instaurou o caos na economia e na sociedade alemãs. Para sua decepção, porém, quando a Alemanha tornou a se erguer, não foi em busca de uma justa reparação de sua honra como nação, e sim impulsionada por um movimento político cuja cartilha estava baseada em ódio étnico e nos projetos pessoais megalômanos de um pequeno grupo. Para piorar, parece a Woermann que ele é o único em seu destacamento a compreender isso: os soldados e suboficiais sob seu comando são, em sua maioria, jovens no início da casa dos 20 anos, recém-egressos da Juventude Hitlerista (da qual todo adolescente alemão tinha obrigatoriamente que participar), onde suas mentes ainda em formação foram submetidas a uma cuidadosa lavagem cerebral a fim de que considerassem a visão nazista como a única visão possível. Woermann, portanto, representa todos aqueles soldados que desejavam lutar pelos direitos de sua nação, mas percebem agora, amargurados, que estão sendo usados como instrumentos de um regime insano.


Tudo isso se revolve na cabeça do capitão Woermann enquanto ele e seus homens ocupam o fortim, preparando-se para no mínimo alguns meses de serviço de vigilância contra um ataque que dificilmente virá. Entretanto, suas expectativas de que esse serviço vá ser tranquilo e até tedioso não podiam estar mais equivocadas.

O fortim, curiosamente, não está ligado a qualquer acontecimento histórico conhecido; geração após geração, uma família da aldeia vizinha dedica-se à sua manutenção, tendo seus salários pagos por um fundo anônimo num banco estrangeiro; graças a isso, a estrutura se manteve como nova durante os últimos cinco séculos. Muitos dos blocos de pedra que formam suas paredes internas estão ornados com cruzes metálicas em forma de T, feitas de bronze e níquel – "quase como ouro e prata". Ninguém sabe o porquê disso, mas um dos soldados de Woermann tem a mirabolante teoria de que o fortim teria sido construído por ordem de um papa para esconder um tesouro – um tesouro que ele acredita que ainda pode estar por ali. Numa canhestra tentativa de encontrar o suposto tesouro, o soldado Lutz acaba abrindo uma câmara oculta no subsolo da fortaleza. Logo depois, seus companheiros o encontram morto – decapitado. Por mais louca que pareça tal ideia, tudo indica que, ao abrir a tal câmara, Lutz libertou algo que estava cativo há séculos.

A partir daí, a cada noite um soldado vai sendo morto, cada corpo encontrado com a garganta estraçalhada, embora mais nenhum chegue a ter a cabeça arrancada. Depois de tentar de tudo para apanhar o assassino, sem sucesso, Woermann, sem alternativa, telegrafa ao Alto Comando solicitando permissão para mudar de local. Em vez disso, recebe a ajuda que menos desejaria no mundo: é enviado um destacamento da SS (Schutzstaffel, 'Tropa de Proteção' – a força paramilitar a serviço do Partido Nazista), composto pelos temíveis Einsatzkommandos de uniformes negros – temíveis não por serem combatentes notáveis, mas por sua especialização em massacrar civis desarmados. Esses homens representam tudo o que Woermann mais despreza na "nova Alemanha", e, para tornar sua miséria completa, quem vem no comando dos reforços é um antigo desafeto seu, o major Erich Kaempffer, que, como Woermann não ignora, tampouco gosta dele, além de temê-lo pelo que pode revelar sobre seu passado: Woermann foi a única testemunha de um ato de covardia de Kaempffer, décadas atrás, quando ambos eram recrutas adolescentes durante a Primeira Guerra.

O major Kaempffer tem certeza de que as mortes são causadas simplesmente pelas atividades de algum grupo de guerrilheiros nacionalistas romenos, e as providências que toma estão de acordo com tal convicção – todas consistindo de atos de brutalidade contra a população da aldeia, à guisa de represália. Como isso não faz pararem as mortes, Kaempffer lança mão de uma informação que obteve sob tortura do estalajadeiro local: o maior especialista vivo na história da região, e quem mais tempo passou estudando o misterioso fortim, é um professor da Universidade de Bucareste chamado Theodor Cuza. O oficial manda buscá-lo, e o professor, gravemente doente, vem acompanhado de sua filha, Magda, que lhe serve de secretária e enfermeira. O irônico nisso tudo é que o homem em quem o empedernido nazista Kaempffer se vê obrigado a depositar todas as suas esperanças é precisamente um... judeu! O que nem os alemães, nem o professor Cuza, nem o povo da aldeia imaginam, é que, no outro extremo do continente, nas praias de Portugal, um misterioso homem de cabelos vermelhos sentiu um inexplicável instinto dar o alerta quando a câmara secreta do fortim foi aberta, e agora dirige-se apressadamente ao Passo Dinu a fim de realizar uma missão de vida ou morte, que está fora do alcance das forças de qualquer pessoa que não ele...

O Fortim é um achado surpreendente, um livro extraordinário de um autor que, se produzisse em maior quantidade, poderia ter vindo a ser tão grande quanto um Stephen King! Infelizmente para nós, leitores, o norte-americano Francis Paul Wilson optou por manter a medicina como profissão e ter a literatura como atividade paralela. O Ciclo do Inimigo, iniciado com este romance, inclui cinco outros, sendo que o último, Nightworld, ainda aguarda tradução para o português. Wilson demonstra ser um mestre da narrativa tensa e do clima sombrio, e só não afirmo que o livro nos oferece isso do início ao fim, por causa das anticlimáticas partes românticas protagonizadas por Magda e pelo tal estranho ruivo – não sei se outros leitores terão sentido da mesma forma, mas essas partes me deixaram sempre impaciente, ansioso para que a narrativa voltasse logo ao horror no fortim. Mas não é esse pequeno percalço que torna o livro menos recomendável, ainda mais porque, para além de sua maestria no horror, Wilson ainda demonstra um sólido conhecimento histórico, que aparece na ambientação da narrativa durante a Segunda Guerra – até onde pude perceber, impecável.

Ah: não podia deixar de destacar que, nos agradecimentos do início do livro, Wilson reconhece sua dívida para com Robert E. Howard, H. P.  Lovecraft e Clark Ashton Smith. Tal é a admiração de Wilson por Lovecraft, que ele adere à tradição, já honrada por tantos mestres do horror, de homenagear o autor introduzindo o Necronomicon em sua história, embora só se refira a ele como Al-Azif, que, segundo Lovecraft, seria o título original em árabe. Uma homenagem que, realizada num romance de tal qualidade, sem dúvida deixaria Lovecraft satisfeito.

sábado, março 07, 2009

Alexandre Nevsky

Hoje, finalmente, consegui ver um filme sobre o qual andava curioso há anos. Datado de 1938 e dirigido por Sergei Eisenstein – um dos poucos cineastas da União Soviética a terem feito alguma fama no ocidente, ainda que não toda a que teria merecido –, Alexandre Nevsky é obviamente uma peça de propaganda ideológica, mas trata-se de um daqueles raros exemplares dessa categoria que se mostram capazes de sobreviver ao seu momento histórico e até mesmo ao regime que os produziu, continuando a ser admirados pelas gerações seguintes, por seu valor artístico intrínseco.

O filme trata de um momento-chave da história russa. Em meados do século XIII, a Rússia, que já sofria com repetidas tentativas de invasão por parte dos tártaros ao leste, passa a conviver com outra ameaça, oriunda das pretensões expansionistas do Império Germânico. O exército alemão é encabeçado pelos célebres e temidos cavaleiros teutônicos, cujo característico manto branco adornado por uma cruz negra aparece no filme como um símbolo do Mal. Depois de diversas cidades russas terem se rendido ao invasor, os cidadãos de Novgorod enviam uma mensagem a Alexandre, príncipe de Pereslavl, pedindo que os lidere numa tentativa de resistência. Alexandre, nessa época, tinha apenas 22 anos de idade, mas já gozava de certa fama por ter derrotado os suecos na batalha do rio Neva, em 1240 – episódio que lhe valeu o apelido de Nevsky.

O enredo do filme é simples, sem grandes tortuosidades, e os fãs de épicos recentes como Coração Valente ou Gladiador devem ter em mente que, num filme produzido na Rússia e em 1938, não podem esperar ver batalhas hiper-realistas de encher os olhos como as mostradas nesses filmes; sem a ajuda de efeitos especiais ou outros recursos modernos, os atores precisavam ter muito cuidado, pois mesmo as armas cenográficas utilizadas eram capazes de causar danos sérios, e em vários momentos ao longo do filme essa precaução fica patente nas imagens – ou seja, as cenas de batalha não são espetaculares. O que seduz em Alexandre Nevsky é a solenidade quase exagerada com que celebra o amor à pátria, num momento em que a Rússia se preparava para encarar o que talvez tenha sido a maior provação de sua história: toda pessoa bem informada já estava ciente de que a Alemanha de Hitler se preparava para a guerra, e de que a União Soviética seria um de seus alvos principais, de modo que a história se repetiria. Trabalhando sob a chancela do governo soviético, Eisenstein fez deste filme um apelo para que todo cidadão russo se espelhasse no exemplo do herói semilendário para fazer sua parte no esforço de resistência durante a guerra prestes a estourar. Em vez do Niemetz, o cavaleiro teutônico, a Rússia encararia agora um inimigo ainda mais impiedoso, o nazismo; não cabem aqui considerações sobre o fato de o regime comunista soviético nada ter ficado a dever à Alemanha nazista no quesito assassinato em massa, como se sabe.


É curioso observar como a História dá voltas, e esse é um dos exemplos mais notáveis que conheço. Apenas um ano após o lançamento do filme, ele foi tirado de circulação porque o líder Josef Stalin (1878-1953) havia celebrado um pacto de não-agressão com as potências do Eixo. Ou seja, o inimigo de há pouco era agora um aliado... Mas não por muito tempo, pois em 1941 o pacto foi rompido e os exércitos do Eixo invadiram a União Soviética. A resistência ao agressor germânico voltou a estar na ordem do dia.

E parece que Santo Alexandre Nevsky (sim, ele foi canonizado em 1547 pela Igreja Ortodoxa, e mais tarde reconhecido também pela Igreja Católica) estava de fato olhando por seus compatriotas e animando-os, pois a obstinada resistência dos russos quebrou as pernas do poderoso exército do Reich 
– com alguma ajuda do clima: a exemplo do que acontecera com Napoleão um século e meio antes, também Hitler viu seus planos serem arruinados pela intervenção do "general Inverno". Sem esquecer que o contra-ataque soviético também foi essencial para a vitória dos Aliados, já que foi o exército russo que tomou Berlim em 1945, sepultando de vez as esperanças alemãs de vitória na Segunda Guerra Mundial.

Engraçado eu ter mencionado o fato de Alexandre ter sido canonizado pela Igreja Ortodoxa, pois esse era um lado do personagem que o "patrão" de Eisenstein – o governo soviético dos anos 30 –, com certeza não desejava ver enfatizado: o regime comunista era oficialmente ateu. De fato, em Alexandre Nevsky a Igreja Ortodoxa (religião majoritária na Rússia, e que manteve milhões de devotos fiéis, mesmo tendo ficado na clandestinidade por 80 anos) é "diplomaticamente" deixada de fora: os religiosos que aparecem são representantes da Igreja Católica e são apenas a cereja do bolo de crueldade preparado pelos Teutônicos, abençoando a matança de camponeses pacíficos e outros atos de brutalidade. Para o governo comunista, o ideal seria colocar toda e qualquer forma de religião ou crença no sobrenatural num mesmo e ignominioso cesto, pintando Deus como uma superstição anacrônica que seria melhor abolir de vez – mas ele deve ter percebido que, atacando a Igreja Ortodoxa, seria difícil ganhar a simpatia de muitos russos para a mensagem trazida pelo filme, pois grande parte da população continuava a ser fortemente religiosa, mesmo sendo obrigada a cultivar sua fé às escondidas
. Assim, o governo contentou-se em demonizar a Igreja Católica, que, mesmo antes da Revolução de 1917, tinha poucos fiéis no país e parecia uma coisa "distante". Pode-se considerar isso como uma concessão.


Além disso, traços (na verdade, "traços" dá a idéia de algo demasiado sutil, mas não encontro palavra melhor) do comunismo e sua visão das coisas aparecem ao longo de todo o filme: Alexandre, embora seja um príncipe, trabalha ombro a ombro com seus súditos mais humildes, pescando no lago Plestcheveio; quando ele chega a Novgorod, é recebido como herói salvador pelo povo humilde, mas repudiado pelos ricos, que de bom grado entregariam seu país aos invasores se a margem de lucro fosse suficientemente alta; durante a preparação para a guerra, um velho ferreiro doa todas as armas e armaduras que tem em sua oficina pelo bem da causa; dois guerreiros russos, Vassili e Gavrilo, que no começo são rivais pelo amor de uma mesma jovem, abraçam-se fraternalmente antes de entrarem em combate com os alemães – ou seja, o interesse da Mãe Pátria deve passar por cima de diferenças pessoais. Não há sutileza: o filme é uma obra fortemente ideológica e não faz nenhuma tentativa de ocultar isso. A própria música, por vezes exótica para ouvidos ocidentais, é claramente feita para mexer com as emoções, e em vários momentos acaba por causar uma reação empolgada no espectador, mesmo a contragosto: uma vontade de pegar uma lança e ir ajudar Alexandre e seus seguidores a expulsar o invasor.

Mesmo com todo o doutrinarismo político existente por trás de sua criação, Alexandre Nevsky ainda é um filme interessante. A história fascina por tratar de uma das infindáveis facetas da eterna questão do heroísmo, além de falar sobre esforço e superação, de modo que sempre terá o que ensinar a pessoas de qualquer lugar ou época.

Uma curiosidade: numa pesquisa realizada no ano passado por um jornal russo, apurou-se que, para a maioria da população do país, Alexandre Nevsky ainda é a personalidade mais importante de sua história, superando por uma boa margem os próprios Lenin e Stalin (!). Seria isso um sinal de que os russos não têm vergonha de reconhecer sua necessidade de ter heróis? E nós?...

terça-feira, dezembro 30, 2008

Hellboy - o Exército Dourado

Nunca li as histórias em quadrinhos de Hellboy, mas vi o primeiro filme do personagem, lançado em 2004, e o fato é que gostei, de modo que, ao ter notícia de que estava saindo do forno o segundo episódio, registrei logo na minha agenda a intenção de vê-lo. Ainda mais curioso fiquei ao saber que quem assinava a direção era o mexicano Guillermo del Toro, responsável por A Espinha do Diabo (2001) e O Labirinto do Fauno (2006), duas extraordinárias produções espanholas que apostam no bizarro e na fantasia inseridos em cenários realistas - não chegaria a classificá-los de "cinema alternativo", mas é uma surpresa que o diretor de ambos seja versátil ao ponto de também assumir a frente de produções hollywoodianas de aventura. Soube também que Del Toro já havia dirigido o primeiro Hellboy, fato esse no qual não me liguei quando o vi.


Nesse segundo filme, o excelente Ron Perlman (o monge corcunda de O Nome da Rosa e um dos guerreiros pré-históricos de A Guerra do Fogo) volta ao papel do herói Hellboy, ou "Anung un Rama", seu nome verdadeiro. Sua origem, mostrada no primeiro filme, é como segue: nos dias da Segunda Guerra Mundial, um grupo de ocultistas a serviço da Alemanha nazista (Hitler realmente tinha um enorme interesse por ocultismo, ao ponto de ter assessores exclusivamente dedicados a pesquisar esse campo) realiza um ritual que abre uma brecha entre a Terra e o inferno, esperando conseguir um poder que garanta sua vitória na guerra. Uma missão dos Aliados chega a tempo de impedir que o processo se complete, mas "algo" escapa de lá para cá: um "demônio-bebê" de pele vermelha, chifres, cauda longa, e cuja mão direita, gigantesca, é feita de pedra. A bizarra criaturinha ganha dos soldados o apelido de Hellboy (o "Garoto do Inferno"), é adotada por um dos integrantes da missão, o cientista Trevor Broom, e educada como uma criança humana.

Sendo um demônio, Hellboy naturalmente não envelhece no mesmo ritmo que um ser humano, de modo que atinge o apogeu de sua força cerca de 60 anos depois de vir parar na Terra - ou seja, mais ou menos nos dias de hoje. Por esse tempo, virou um gigante de bem mais de dois metros de altura (a enorme mão de pedra finalmente tornou-se proporcional ao resto), força e resistência prodigiosas, apetite insaciável e coração de ouro: adora crianças, animais, e seu senso moral é o de um escoteiro. Integra o "grupo de choque" do Departamento de Defesa e Pesquisa Paranormal, que se dedica a combater ameaças sobrenaturais, sob a coordenação de seu pai adotivo, o Prof. Broom, e tendo como companheiros a namorada, a pirocinética Liz Sherman (Selma Blair - ver os dois lado a lado lembra irresistivelmente o conto de fadas A Bela e a Fera) e o melhor amigo, o homem-peixe Abraham "Abe" Sapien (Doug Jones).

O segundo filme começa com um flash de uma história lida pelo Prof. Broom para Hellboy quando este ainda era criança - a história de uma guerra entre os seres humanos e as criaturas mágicas, lideradas pelo rei elfo Balor, e que teria tido lugar muitos séculos atrás. Por encomenda do rei, um mestre-ferreiro goblin construiu um exército de golems (algo como robôs animados por magia ao invés de eletrônica), 70 vezes 70 guerreiros dourados gigantescos e indestrutíveis, impossíveis de serem detidos. Sob as ordens de Balor, o Exército Dourado causou tamanha carnificina entre os humanos, que a guerra parou: os homens estavam demasiado aterrorizados, e o rei elfo, por demais arrependido. Celebraram então um acordo, pelo qual os homens ficariam com as cidades, e os elfos e demais seres mágicos, com as florestas. Balor fez uma coroa mágica e a dividiu em três partes, guardando duas e dando uma aos humanos como penhor da trégua: só com a coroa completa seria possível comandar o Exército Dourado, que, até ser novamente chamado, ficaria dormindo sob a terra. Contudo, o filho do rei, o príncipe Nuada Lança-de-Prata, não aceitou isso, porque não confiava nos humanos, e partiu para o exílio, jurando voltar no dia em que seu povo mais precisasse.

E aparentemente, Nuada (Luke Goss) é de opinião que esse dia chegou, pois agora, em nossa época, ele está de volta e disposto a fazer o que for preciso para reunir as três partes da coroa, e a última coisa com que se importa é quantos humanos terá de matar para isso - pois afinal, se conseguir seu objetivo, será mesmo para varrer de uma vez por todas nossa espécie da face do planeta. O pior é que não podemos deixar de dar certa dose de razão ao príncipe elfo: "Os humanos esqueceram os deuses, destruíram a terra, e para quê? Estacionamentos, centros comerciais! A ambição criou um vazio no coração deles que nunca será preenchido. Eles nunca terão o bastante! (...) Eu voltei do exílio para começar uma guerra, e reclamar a nossa terra, nosso direito!" Nuada, sob um certo ponto de vista, tem motivações justas, que lhe conferem algum grau de complexidade e o fazem, de longe, o personagem mais interessante do filme: não há nada pior que um vilão que só está ali porque toda história precisa de um vilão, mesmo que seja um que de vez em quando dá uma olhadinha para a câmera e diz: "Hehehe... Como eu sou mau!" Graças a Nuada, Hellboy II está livre de pagar esse mico.



E, claro, para fazer o que pretende, o príncipe terá que enfrentar o pessoal do Departamento, sendo que, desta vez, Hellboy, Liz e Abe contam com o reforço do Dr. Johann Krauss, um homem cujo corpo foi totalmente destruído, restando um ser feito exclusivamente de ectoplasma, o material hipotético de que seriam feitos os fantasmas. Não há surpresas da parte do grupo de heróis, a menos que se considere o que acontece com Abe, o homem-peixe de fala calma e gestos comedidos, cultíssimo, apreciador de literatura e música clássica, que sempre foi o cérebro da equipe, enquanto seu amigo Hellboy responde pelos músculos. Apaixonado pela princesa Nuala (Anna Walton), irmã do vilão, Abe se vê as voltas com sentimentos desconhecidos, que o levam a agir de maneiras que teria considerado inimagináveis em qualquer outra situação. Por conta disso, algumas cenas são bem engraçadas, e outras, dramáticas, embora de uma maneira manjadíssima.

No mais, é interessante assistir a este filme tendo em mente quem é o diretor, quando já se conhece e admira o trabalho de Del Toro. Ele também assina o roteiro, em parceria com Mike Mignola, veterano argumentista de quadrinhos e criador de Hellboy. O enredo, envolvendo a interação entre a humanidade e um mundo oculto habitado por criaturas fantásticas, faz lembrar O Labirinto do Fauno, assim como o visual das cenas em que esse mundo é mostrado - dando-se um desconto para o fato de que, aqui, Del Toro conta com a tecnologia mirabolante a serviço da indústria norte-americana do cinema, enquanto no outro filme teve de se virar com um aparato bem mais modesto, e eu não chegaria a considerar esse up tecnológico uma vantagem: quando se quer mostrar criaturas fabulosas na tela, um excessivo realismo turbinado por programas de computador de última geração é antes prejudicial que benéfico. Afinal, uma criatura fantástica deveria ter um visual ligeiramente irreal. Por conta disso, o Fauno de O Labirinto... continua a me agradar muito mais que qualquer dos seres esdrúxulos que Hellboy, Abe e o Dr. Krauss encontram no Mercado Troll, numa das cenas mais extravagantes do filme.

Por mais que pareça (e, no fundo, seja) um mero filme-pipoca, sem outras ambições além de dar lucro nas bilheterias e oferecer ao espectador duas horas de diversão adrenal, Hellboy toca num ponto interessante, ao negar de forma absoluta a crença no determinismo - que, para quem não sabe, é a noção, muito difundida entre as elites intelectuais dos séculos XVIII e XIX, de que cada pessoa é exatamente aquilo que nasceu para ser, e, não importa o que aconteça, nunca será nada diferente disso. Um exemplo clássico é o romance Oliver Twist, de Charles Dickens, onde o garoto Oliver continua bom, educado e honesto, apesar de ter crescido num orfanato, exposto a tratamento desumano, e depois vivido vários meses entre ladrões e todo tipo de pilantras: a crença de Dickens era a mais aceita na época, a de que ser uma pessoa decente (ou um bandido nato) está nos genes, ou no "sangue", como se dizia então. Ou seja, o homem não seria um produto do meio, mas tão somente da genética, o que tornaria a educação, em princípio, algo bem pouco importante. Hellboy ilustra a crença contrária: a de que até mesmo um demônio, um criatura do puro mal, gerada com o único objetivo de disseminar o caos e a perversidade, pode tornar-se bom, se for educado para o bem.

Observação de última hora: acaba de chegar às locadoras o filme O Orfanato, produção espanhola dirigida por J.A. Bayona e onde Del Toro participa como produtor executivo, além de (e talvez isso seja o mais importante) emprestar seu nome para a divulgação, pois a primeira coisa que aparece nos créditos iniciais é Guillermo del Toro presenta..., o que certamente atrairá um punhado de espectadores já familiarizados com seu nome e admiradores de suas brilhantes bizarrices. Sinal de que o cara não abandonou de vez suas raízes e ainda podemos esperar mais novidades suas no campo do cinema fantástico não-Hollywood. Gostei de saber disso.