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sexta-feira, setembro 16, 2016

O Tigre

Salvo por alguns inevitáveis e esporádicos acidentes de percurso, a convivência milenar entre tigres e seres huma­nos tem sido, de modo geral, pacífica, quanto mais não seja porque, durante a maior parte de sua história, os ho­mens não possuíam armas suficientemente poderosas que os encorajassem a enfrentar um animal tão perigoso sem necessidade. Como regra, enquanto os tigres não atacassem pessoas, e não cobrassem um tributo excessivo dos re­banhos domésticos, os humanos os deixavam em paz. Tem sido assim desde tempos imemoriais, das taigas geladas da Sibéria até as selvas tropicais da Indonésia, e das praias do Mar Cáspio até os confins orientais da Ásia – quer di­zer, em todas as paragens habitadas por tigres e humanos. Só o advento dos séculos XIX e XX, trazendo consigo ar­mas de fogo modernas e o conceito de "caça esportiva", é que mudou essa situação. É verdade que a medicina tradi­cional chine­sa – tão admirável em algumas coisas, tão estúpida em outras – há muito atribui poderes curativos (e sem qual­quer base em fatos) a diversos pedaços do tigre; a impressão que dá é a de que existe um raciocínio de que, se uma coisa é rara e difícil de obter, então ela necessariamente deve ter propriedades milagrosas. Em consequên­cia, o sangue do tigre, o pó de seus ossos, sua bílis, órgãos internos e várias outras partes valem um alto preço, mas, enquanto o bi­cho tinha que ser caçado com arco e flecha, lança, ou com mosquetes rudimentares de um só tiro, ha­via pou­quíssima gente disposta a encarar a bronca, por maior que fosse a recompensa em jogo. Armas mais eficien­tes mu­daram as coisas – não admira que o tigre-da-china esteja quase extinto. Não foi tão melhor na antiga União Soviéti­ca, cujo vasto território abrigava duas subespécies: o tigre-do-cáspio, extinto desde a década de 1960, e o ti­gre-da-sibéria, ou tigre-de-amur, o maior e mais possante de todos os tigres, que teve um pouco mais de sorte por habitar regiões muito re­motas e pouco populosas.

Porém, essa sorte não duraria para sempre. Nos primeiros tempos do comunismo so­viético, os tigres eram considerados uma praga, e o seu extermínio era incen­tivado pelo governo. Mais ou menos na mesma época em que o tigre-do-cáspio foi extinto, e com a população de tigres-­siberianos reduzida a poucas dezenas de exemplares na natureza, felizmente parece que alguém mais esclarecido teve acesso a um cargo no qual dispunha de poder para fazer algo a respeito, e foram promulgadas leis protegen­do os animais. Com isso, o número de tigres-siberianos subiu para algumas centenas ao longo das décadas seguin­tes, e conservacionistas do mundo inteiro já se sentiam mais tranquilos, quando chegou a década de 1990 – a déca­da da Perestroika, a reestruturação política e econômica que pôs abaixo a "Cortina de Ferro" que isolava a União Soviéti­ca do resto do mundo. A isso seguiram-se, sem muita demora, o fim da própria União Soviética e a implosão do co­munismo. Isso tudo teve duros efeitos sobre a sociedade e a economia da Rússia, com um empobrecimento ge­ral da população e um aumento drástico do desemprego. Muitos russos, sem outra alternativa de sobrevivência, passa­ram a tentar viver do que as florestas da Sibéria ofereciam, fosse por meio da caça de diferentes animais ou da ex­tração de madeira – invadindo o habitat dos tigres. Pior ainda, o relaxamento do controle das fronteiras permitiu a entra­da de caçadores ilegais vindos da China em busca dos tigres que já não existiam em seu país.

No entanto, Vladi­mir Markov, o caçador ilegal de 46 anos que foi morto por um tigre, nos arredores do vilarejo siberiano de Sobolo­nye, em de­zembro de 1997, não era chinês, e sim russo mesmo. A guarda florestal imediatamente chama a equipe local do pro­jeto conhecido como Inspec­tion Tiger, subordinado ao Departamento de Conservação e Caça. A equipe é lidera­da por Yuri Trush, ex-militar e experiente caçador, cujo trabalho, agora, consiste basica­mente em proteger os tigres contra caçadores ilegais – só que, na eventualidade de os papéis de caçador e presa se­rem troca­dos, isso tam­bém é de sua alçada. Quando Trush e seus companheiros chegam ao local, constatam que pouca coisa restou de Markov para ser vista; o mais desconcertante, entretanto, é que, a julgar pelos rastros e outros sinais deixados na cena da morte (sinais esses que um caçador experiente pode ler como se estivessem escritos num livro), o tigre não ma­tou Markov num encontro fortuito, e nem mesmo para se defender: ele o espreitou e caçou, com inteligência e paci­ência, talvez durante dias.


A primeira hipótese levantada é a de que Markov tivesse capturado um filhote a fim de vendê-lo, e sofrido a vingança da mãe, mas um dos companheiros de Trush logo descarta essa possibilida­de, por­que os rastros encontrados na neve são grandes demais para pertencerem a uma fêmea. E, como se descobre de­pois, ele está certo: o tigre responsável pela morte do caçador é um macho de cerca de seis anos – jovem, mas já adulto, e especialmente grande. No decorrer da mesma investigação, os agentes do Inspec­tion Tiger descobrem uma armadilha, obviamente instalada por Markov, e destinada à captura de tigres. Ou seja, é a prova de que o fale­cido não simplesmente lidava com incidentes ocasionais envolvendo tigres, como todo caçador da taiga está sujeito a ter: ele estava deliberadamente caçando os felinos, um crime grave perante a lei russa, mas também um negócio muito lucrativo.

Uma mente civilizada reluta em estabelecer o nexo entre Markov caçar tigres e o fato de ter sido morto por um. Afinal, nenhuma fera é capaz de desejar vingança, e tampouco de executá-la, não é mesmo? Um tigre pode atacar um caçador que atire nele, que tente roubar carne de uma presa que ele abateu, ou que ameace seus filhotes, e – embora isso seja muito raro – pode até mesmo atacar um ser humano como o faria com um ani­mal qualquer, levado simplesmente pela fome, mas todas essas situações podem ser atribuídas ao instinto de auto­preservação ou ao de defender a prole. Vingança requer compreensão de causa e consequência, capacidade de pla­nejar, e também de experimentar um sentimento semelhante ao ódio – tudo coisas demasiado complexas para um animal dito "irracional". Entretanto, a relutância em admitir essa possibilida­de não é compartilhada por povos nati­vos da Sibéria, como os nanai e os udeghe, que há séculos e milênios vivem em íntima comunhão com a taiga (um tipo de floresta característico das latitudes boreais). Para os caçadores desses povos, que tiram da floresta o susten­to de suas famílias, tal como seus ancestrais o fizeram desde tempos muito antigos, o tigre é tão inteli­gente quanto um homem, igualmente capaz de ser tanto generoso quanto cruel, de guardar rancor ou de perdoar, e, por tudo isso, é digno de ser tratado com respeito e cautela. Conversando com esses caçado­res nativos, Yuri Trush e seus ho­mens vão desenvolvendo uma compreensão diferente do incidente que tirou a vida de Markov – e que se repete al­guns dias depois: desta vez, a vítima é um jovem caçador de 20 anos, Andrei Po­chepnya, para quem Markov havia sido, além de vizinho e amigo, uma espécie de mentor. Se Pochepnya estava atrás de vingança, ou se simplesmente topou com o tigre enquanto caçava para pôr comida na mesa da família, não fica claro, mas o problema nas mãos de Trush e sua equipe fica cada vez maior. Sem alternativa, os homens dão iní­cio a uma caçada perigosa em meio a um ambiente no qual o tigre parece capaz de desaparecer sempre que assim deseja, e, embora o animal esteja ferido e pareça raivoso, age com uma sagacidade quase sobrenatural, tornan­do sua caça um desafio ainda maior, e fazendo da leitura desta história uma experiência que o leitor não esquecerá fa­cilmente.

Citar críticas elogiosas feitas por escritores de renome ou por órgãos de imprensa conceituados é uma estratégia muito comum para alavancar as vendas de livros de todos os gêneros, mas uma das que aparecem na contracapa de O Tigre me parece certeira: al­gum crítico do jornal francês Le Monde teria escrito que o livro é "o equivalente de Moby Dick para a floresta", e eu concordo, por pelo menos duas boas razões. A primeira é a combi­nação mortífera de ferocidade e inteligência, de­monstrada tanto pelo grande cachalote branco de Herman Melville quanto pelo tigre homicida caçado por Trush e seu grupo – o que confere a ambas as narrativas um clima aflitivo impossível de compreender sem lê-las. A outra é que o esquema geral de Moby Dick parece ter servido de inspira­ção a John Vaillant: Melville intercalava capítulos que narravam a caçada ao cachalote com outros de conteúdo en­ciclopédico, versando sobre cetologia, sobre a ativi­dade baleeira e assuntos afins; Vaillant alterna a investigação das mortes de Markov e Pochepnya e a perseguição ao tigre com dissertações sobre aspectos históricos, geográficos e humanos da Rússia em geral e da Sibéria em particu­lar, e com uma ampla e fascinante pesquisa na qual a antropo­logia dialoga com a história natural.

Os grandes primatas (entre eles nós, hominídeos) e os grandes felinos evoluí­ram de forma paralela, em muitos casos partilhan­do o mesmo habitat, e, durante 90 por cento do tempo, ou mais, os respectivos papéis eram muito claros: eles eram os predadores dominantes, e nós, presas eventuais. Nosso medo atávico do escuro (e quando digo "nosso", não que­ro dizer apenas dos humanos, mas dos grandes primatas em ge­ral) deve-se provavelmente ao fato de nossos ances­trais, durante pelo menos cinco milhões de anos, terem desen­volvido o hábito de buscar abrigo tão logo anoitecia, sob pena de tornarem-se o jantar de algum dentre uma longa lista de predadores noturnos, lista essa na qual leões, leopardos e outros felinos ocupavam lugar de destaque. Não tínhamos a menor chance contra essas feras: não po­díamos nem por sonhos rivalizar com sua força ou agilidade, e não tínhamos presas ou garras. Com o tempo, fomos encontrando maneiras de compensar essas desvantagens usando nossos dois principais trunfos – nosso cérebro e nossa habilidade manual. Aprendemos a fabricar armas cada vez mais eficien­tes e a agir em equipe de formas astu­tas, o que, aos poucos, equilibrou a balança, e depois a fez pender para o nosso lado. A partir daí, parece que passa­mos a merecer algum respeito da parte de nossos vizinhos felinos – pois, como Vaillant demonstra com base em di­versos estudos de especialistas, não somos os únicos animais capazes de incorporar novos conceitos e mudar nossos costumes de acordo com eles. Por muito tempo, os felinos viram os hu­manos como presas fáceis, mas, a partir do momento em que nossos ancestrais começaram a andar munidos de obje­tos pontiagudos e cortantes que podiam cau­sar sérios estragos, as feras passaram a evitá-los. Por outro lado, mes­mo que agora fosse capaz de se defender, o ho­mem primitivo não tinha qualquer desejo de procurar briga com ani­mais perigosos, a menos que fosse absoluta­mente necessário – um comportamento que foi passando de geração em geração, tanto entre felinos quanto entre humanos, até que se chegasse a um acordo de respeito mútuo, aquele do qual eu fala­va no começo do texto. Apesar disso, a escuridão, e o que quer que possa haver nela, continuaram e con­tinuam a nos intimidar, e devemos isso, em grande parte, aos ti­gres e seus parentes. Para mim, uma das coisas mais fasci­nantes a respeito da antropologia (e, mais especificamen­te, da parte dela que trata dos nossos ancestrais) é o fato de nos permitir compreender os moti­vos de sermos como somos.

O tigre-siberiano é um dos mais belos animais que alguém seria capaz de imaginar, e também um dos mais aterradores. Mais peludo e corpulento que seus paren­tes de regiões quentes, é uma perfeita má­quina de ma­tar que pode atingir (e, por vezes, ultrapassar) 300 quilos de peso e três metros de comprimen­to to­tal, medindo do fo­cinho à extremidade da cauda. Seus dentes cani­nos têm o comprimento de um dedo indica­dor, a mandíbula é pode­rosa o suficiente para partir o fêmur de um boi com uma única mordida, as garras são cur­vas como ganchos e afia­das como navalhas. Todo esse arsenal está a ser­viço de um cérebro astuto de predador: tal­vez por viverem e caça­rem sozinhos, os tigres parecem ter boa capacida­de de plane­jamento (sim!) e de lidar com situa­ções inesperadas, muito mais que seus primos, os leões. Nenhum animal da tai­ga está a salvo de seu apetite: o tigre pode se alimentar de qualquer coisa, de ratos-silvestres a bisões adultos, e, pasmem, até mesmo de animais que, em qualquer outro lugar, costumam ocupar o topo da cadeia ali­mentar, como ursos e lobos (!). Entretanto, parece que suas presas fa­voritas são cervídeos de grande porte (alce, rena, wapiti) e javalis.

Estima-se que existam hoje cerca de 500 ti­gres-siberianos em liberdade, mais uns cem em zoológicos e cen­tros de preservação em diferentes países. É o sufici­ente para que a subespécie não corra pe­rigo imediato, mas há outro fa­tor complicador a colocar em risco seu futuro: a gradual redução do espaço vital disponí­vel devido à ocupa­ção hu­mana. Foi-se o tem­po em que "Sibéria" designava uma região isolada e quase despo­voada, para onde eram mandados os prisioneiros políticos: hoje ela tem grandes ci­dades e uma população superior a 25 milhões de habi­tantes. Para complicar, o ti­gre, como todo predador de gran­de porte, necessita de um território vas­to – algo em tor­no de 450 quilômetros qua­drados para um macho adulto, sen­do que essa área pode sobrepor-se aos territórios de até duas ou três fêmeas. Embo­ra a Rússia tenha estabeleci­do reservas naturais visando tanto a preser­vação do tigre quanto de outras espéci­es, o sim­ples tamanho dessas reservas torna quase impossível um controle cem por cento efeti­vo; além disso, mais difí­cil que impedir que caçadores entrem, é impe­dir que os animais saiam. Há planos de trans­ferir certo número de ti­gres para o Par­que Pleistoceno, uma reserva natural no nordeste da Sibéria, onde biólogos estão tentando restabe­lecer as condi­ções ecológicas que lá existiam perto do final da última Era Gla­cial, por meio da reintrodução de espé­cies que habi­tavam a região na época. Mesmo antes que a área se tornasse um parque, já vi­viam nela animais como ur­sos, lobos, alces, renas e ja­valis; desde então, foram reintroduzidos com su­cesso bois-al­miscarados, bisões, wapi­tis, ca­valos selvagens, saigas e linces (e, se o projeto de clonagem que está ten­tando trazer de volta os mamutes for bem-­sucedido, o local será, sem dúvida, um lar confortável também para esses gigantes do passado – isso não seria for­midável??). Ainda estão em andamento os estudos sobre a viabilidade de ter tigres vi­vendo lá, e, de qualquer for­ma, será necessário aguardar que a popula­ção de herbívoros aumente até atingir núme­ros que permitam que sir­vam de alimento aos grandes feli­nos sem peri­go para sua própria conservação. Outra ideia, ainda mais ambiciosa, consiste em repovoar com tigres-siberianos as áreas antigamente ocupadas pelo extin­to tigre-do-cáspio, o que re­presentaria um aumento importante do espaço vi­tal disponível para a subespécie, mas isso ainda é uma possibilida­de distante. Por enquanto, o tigre-­siberiano só pode contar mesmo com as reservas que já ocupa, no extremo orien­te russo.

Acho que foi Jacques Cousteau quem declarou que ficava atônito de pensar que, durante o tempo de duração de sua vida, o homem, de­pois de milênios lutando contra a natureza pela sobrevi­vência, teve que fazer um giro de 180 graus e passar a empe­nhar-se em defendê-la, porque percebeu – e esperemos que não tenha sido tarde demais – que é preciso encontrar um equilíbrio. Continuando o pensamento de Cousteau, eu diria que o tigre é um perfeito exemplo concreto dessa ideia mais geral sobre a natureza. Junto com outras feras predadoras, ele fez parte dos nossos pesa­delos na pré-his­tória, e, ao longo de toda a construção da nossa cultura, foi sempre temido – pri­meiro, só temido; depois, temido, admirado e cobiçado de morte. Hoje, temos que nos esforçar para salvar os últi­mos deles, se não quisermos ser os responsáveis por legar às gerações futuras um mundo onde os tigres não exis­tam, um mundo, por­tanto, despojado de um pouco (na verdade, um muito) de sua beleza e terror. Eu fico pensando no quanto vai ser triste se, daqui a um ou dois séculos, uma criança de então abrir um livro, maravi­lhar-se com a ilustração represen­tando um gigan­tesco gato listrado de amarelo e preto, tão forte, majestoso, fasci­nante e terrível, e sentir a frustra­ção de saber que tal animal não existe mais, que nunca lhe será possível ver um de­les vivo e respi­rando – o mesmo tipo de frustração que eu, tanto em criança quanto ainda hoje, sentia e sinto ao abrir um livro e fi­car olhando com espanto para ima­gens de arsinotérios, gliptodontes, entelodontes, rinocerontes peludos e tantas outras feras magní­ficas que nunca vou ver a não ser em livros mesmo. Na verdade, acho que será mais triste ainda, porque essa crian­ça do futuro esta­rá olhando para fotografias, e não para pinturas; para um ani­mal cuja extinção não foi natural, e sim culpa do ho­mem. E ficará sabendo que tivemos uma chance de salvar o ti­gre, e não o fizemos. O que seria uma grande, grande vergonha.

sábado, maio 29, 2010

Fúria de Titãs


Acabo de voltar do cinema, onde assisti ao remake do clássico Fúria de Titãs (1981), um dos filmes que marcaram minha infância. E para falar a verdade, tendo em vista toda a expectativa que eu naturalmente havia criado, preciso confessar que esperava bem mais... O novo filme não faz justiça a seu antecessor, e muito menos à mitologia grega que inspirou a ambos.

Primeiramente, eu não assisti ao Fúria de Titãs original quando foi lançado no cinema - em 1981 eu tinha seis para sete anos de idade, devia ter ido ao cinema duas ou três vezes na vida, e um filme como esse seria provavelmente considerado "forte", como se dizia na época e região, para uma criança da minha idade (pode parecer piada se pensarmos nas coisas a que as crianças de hoje assistem livremente e todo mundo acha normal, mas eram os tempos). Vi o filme quando passou na TV, dois ou três anos depois. Mais tarde o revi em VHS e, faz agora uns três anos, encontrei em DVD e comprei: ele hoje integra uma pequena coleção de filmes que dizem muito sobre minha pessoa, pois, juntamente com um monte de livros, foram realmente uma influência, de uma forma ou de outra.

Não foi esse filme que me despertou o interesse por histórias de deuses, heróis e monstros: tanto quanto posso lembrar, eu já nasci fascinado por mitologia. Já conhecia a lenda de Perseu antes de ver Fúria de Titãs, e, por alguma razão, ele sempre foi o meu preferido entre os heróis gregos - eu gostava das narrativas dos trabalhos de Hércules, mas me parecia que, tendo a força que ele tinha, ser um grande herói não era mais que sua obrigação. Também gostava de Teseu, Jasão e seus Argonautas, e dos outros, e, não obstante, Perseu era meu preferido. Talvez fosse pelas circunstâncias de seu nascimento, aquilo de ser lançado às águas e salvo delas (crianças lançadas às águas são um tema recorrente em muitas lendas e histórias: foi igual com Moisés, Rômulo e Remo, Amadis de Gaula...), pelo fato de ter cavalgado o magnífico Pégaso (um cavalo alado foi por muito tempo uma das coisas que eu mais desejei) ou pela natureza impossível de sua principal façanha: combater e matar uma criatura sem poder olhar para ela. Não importa: fosse por que motivo fosse, o fato é que Perseu era meu herói preferido, e por isso, a princípio, não gostei muito das liberdades que o primeiro Fúria tomou em relação à lenda original, mas, depois de me acostumar à ideia, adorei o filme, ainda que só mais tarde fosse aprender que não adiantava esperar que nenhuma história que eu já tivesse lido fosse continuar igual ao ser transformada em filme. Agora, ao ver o remake, minha contrariedade por ver as liberdades tomadas para com a lenda se soma à de ver outras liberdades tomadas para com o primeiro filme... Meio difícil explicar.

Fúria de Titãs, dirigido por Desmond Davis, com Harry Hamlin como Perseu, foi o último e, para muitos, melhor trabalho de Ray Harryhausen, o mago da animação stop motion, que utilizava modelos fotografados quadro a quadro para dar vida a criaturas fantásticas em filmes. Outro trabalho dele do qual me lembro (e que adoraria ter em minha DVDteca - será que não está em catálogo? Há tantos filmes antigos sendo relançados... Preciso verificar) é Simbad e o Olho do Tigre, uma de várias produções sobre o heroico marinheiro árabe.

A Lenda de Perseu

A lenda original de Perseu é relativamente simples. Acrísio, rei de Argos, tem uma filha, Dânae, de beleza incomparável. O pai, como era costume na época, consulta um oráculo sobre o futuro da menina, e o vaticínio que ouve não poderia ser pior: ela terá um filho, que irá um dia causar a morte dele. Numa tentativa de evitar o destino (o que, como todo grego sabia, era inútil, mas personagens de lendas tinham que fazê-lo para servirem de exemplo), Acrísio decide nunca permitir que Dânae conheça homem algum, para que a criança profetizada nunca nasça. Então, tranca a filha numa torre, onde Zeus, o deus supremo, entra sob a forma de uma chuva de ouro. Uma vez lá, seduz a jovem e a engravida. Quando a criança nasce, Acrísio, tendo certeza de que nenhum homem poderia ter visitado Dânae sem que ele soubesse, é obrigado a acreditar no que ela conta sobre a paternidade do menino, mas, ainda aterrorizado pela profecia, tenta mais uma vez fugir ao destino: manda encerrar Dânae e Perseu numa arca e lançá-los ao mar para morrerem - mas é claro que não morrem. A arca é encontrada, próximo à ilha de Sérifos, por um pescador, que confia os dois náufragos a seu amo, Polidectes, rei da ilha. Ele os acolhe, mas, tempos depois, começa a assediar Dânae. Quando Perseu chega à idade adulta, o rei, pensando em tirá-lo do caminho, dá-lhe a missão de ir matar a górgona de nome Medusa, um monstro em forma de mulher, com serpentes em vez de cabelos, cujo simples olhar transforma qualquer ser vivo em pedra. Perseu recebe ajuda dos deuses, que lhe dão armas divinas e um par de sandálias aladas para vencer as vastas distâncias (não, não foi o Pégaso, ainda). No caminho de volta, Perseu passa pela Etiópia, que, para os gregos antigos, não era o humilde país africano que conhecemos, e sim uma terra fabulosa, mais ou menos como o reino Tão-Tão Distante do Shrek, e vê uma linda jovem acorrentada a um rochedo na praia, enquanto um apavorante monstro marinho dirige-se para ela. A certa distância estão os chorosos pais, que, naturalmente, são os reis do lugar, Cefeu e Cassiopeia. Perseu conversa rapidamente com eles e fica sabendo que Tétis, uma deusa do mar (sim, ela mesma: a futura mãe de Aquiles), exigiu o sacrifício da princesa Andrômeda ao apetite do monstro Cetus, como expiação por ter Cassiopéia tido a insensatez de comparar a beleza da filha à da própria Tétis. Em algumas versões, Perseu vence Cetus num combate leal, com sua espada e sua coragem; em outras, simplesmente usa a cabeça (no caso, a de Medusa, não a sua própria) e transforma o monstro num monumento. Depois disso, prometendo retornar, parte de volta a Sérifos e apresenta orgulhosamente o troféu que fora mandado buscar, a cabeça da górgona - petrificando instantaneamente Polidectes e sua corte e livrando sua mãe do assédio indesejado. Depois de casar com Andrômeda, Perseu parte com ela numa peregrinação a sua terra natal, Argos, onde, participando de uma competição atlética, arremessa o disco com tamanha força, que o objeto bate no chão e, quicando, vai atingir violentamente no peito um velho que passa pelo local - e que, é claro, é seu avô, Acrísio, e sofre morte instantânea, de modo que mais uma vez fica provada a inutilidade de lutar contra o destino: o fatalismo era uma das características básicas do pensamento grego clássico. Resta a dizer apenas que Perseu aparentemente não herdou dos sogros o reino da Etiópia (talvez Andrômeda tivesse irmãos mais velhos; a lenda nada diz a respeito), já que, segundo a tradição, teria fundado Micenas - que, no devido tempo, iria tornar-se a mais poderosa das cidades gregas - e sido seu primeiro rei.

Curiosidades Mitológicas

De acordo com a lenda, Perseu não montou Pégaso ao ir em busca da Medusa, já que o fabuloso garanhão alado só nasceria depois da decapitação da górgona. A lenda colateral que narra a origem da Medusa conta que ela teria sido sacerdotisa de Atena, e uma mulher de grande beleza. Tão bela, de fato, que tentou Poseidon, o deus do mar, que a procurou sob forma humana, como um belo guerreiro portando uma espada de ouro, e os dois fizeram amor dentro do templo onde ela servia - o que deve ter sido visto por Atena, uma deusa casta, como uma injúria grave. Na segunda vez, sabendo que Atena já estaria desconfiada, Poseidon adotou um estratagema: apareceu sob a forma de um garanhão (o cavalo era seu animal favorito) e transformou Medusa numa égua, após o que os dois galoparam até um local distante para novamente consumar seu amor. Mas Atena não se deixou enganar: furiosa, e não podendo fazer nada contra Poseidon, que afinal era seu tio e um deus mais poderoso que ela, descontou sua fúria na sacerdotisa, privando-a para sempre de sua beleza e de qualquer convívio humano ao transformá-la no monstro horripilante que sabemos. Muitos anos mais tarde, quando Perseu decapitou Medusa, do sangue que escorreu do cadáver nasceram os dois filhos que Poseidon lhe havia feito: o primeiro foi o filho que Poseidon gerou sob forma humana, e por isso nasceu também humano. Apossando-se da espada de ouro que seu pai deixara no templo (donde lhe veio o nome, Crisaor, "o da espada de ouro"), veio a praticar certas façanhas notáveis que, infelizmente, eu não conheço; o segundo foi justamente Pégaso, que Poseidon gerara sob a forma de cavalo. De que maneira Perseu encontrou Pégaso, eu não sei, mas consta que ele realmente o montou. Mais tarde, o cavalo alado serviria ainda a outro herói de menor projeção, Belerofonte, o matador da Quimera.

Em ambos os Fúria de Titãs, o monstro marinho que aparece é chamado de Kraken, nome que na verdade pertence à mitologia germânica/nórdica, onde designava uma lula gigante, capaz de afundar navios. No primeiro filme, ao ordenar a Poseidon que liberte o tal Kraken, Zeus refere-se a ele como "o último dos titãs" - coisa que não faz nenhum sentido. Os titãs não eram monstros, eram deuses, na verdade a geração anterior aos Olimpianos: um deles, Cronos (o Tempo) foi o pai dos seis deuses maiores do Olimpo - Zeus, Poseidon, Hades, Hera, Deméter e Héstia, que, direta ou indiretamente, deram origem a todos os outros. Além disso, mesmo que Kraken fosse um titã, seria tolice dizer que era "o último": Zeus e os irmãos travaram uma guerra contra os titãs, mas não puderam matar nenhum deles, já que eram imortais também. Em vez disso, tiveram que aprisioná-los no Tártaro, a região mais profunda do submundo que Hades passou a governar.

Como já mencionei acima, o verdadeiro nome do monstro que Perseu derrotou para salvar Andrômeda era Cetus, nome que, graças à lenda, passou a significar "monstro marinho" de um modo geral - tanto, que foi adotado pela moderna zoologia para designar as baleias e seus parentes: os "cetáceos". Em Moby Dick, Herman Melville dedica todo um divertidíssimo capítulo à tentativa de demonstrar as origens antigas e nobres da balearia - entre outras coisas, tenta provar por A mais B que o tal Cetus da lenda era mesmo uma baleia, o que faria de Perseu, provavelmente, o primeiro baleeiro de que se tem notícia! :)


O Novo Filme

O novo
Fúria de Titãs, estrelado por Sam "Avatar" Worthington (não que Avatar possa me servir de referência, já que até agora não o vi) parte de uma premissa bastante absurda, mesmo para um filme de fantasia: os homens teriam declarado guerra (guerra mesmo, literalmente!) contra os deuses, levando a cabo ataques que vão desde demolir seus templos e estátuas até pôr cerco ao monte Olimpo (!!). Não que não seja plausível a ideia de que muitas pessoas se revoltassem contra os desmandos dos muitas vezes fúteis e cruéis deuses gregos, capazes de desgraçar vidas e destruir nações só para satisfazer paixões condenáveis como luxúria ou vingança ou para acariciar a própria vaidade; o que eu não consigo "engolir" é que alguém, e ainda mais um grande número de pessoas, pudesse ter apostado na viabilidade prática de lutar contra um inimigo de poder ilimitado e que simplesmente não podia ser morto. O cerco ao Olimpo, aliás, teria sido movido pelo rei Acrísio, que, aqui, não é avô, e sim padrasto do herói Perseu: no novo filme, foi a esposa, e não a filha do rei quem foi seduzida por Zeus. Presumivelmente como castigo pelo cerco, e pelo que fez a Perseu e sua mãe, Acrísio é amaldiçoado com deformidade física (e, por alguma razão misteriosa, ao mesmo tempo abençoado com força sobre-humana e poderes especiais) e passa a ser conhecido como Calibos - personagem não mitológico, importado do primeiro filme, se bem que apenas o nome foi mantido: sua origem, histórico, motivações e aparência mudaram completamente.

Embora Perseu, criado por um pescador, tenha visto toda a sua adorada família adotiva perecer como vítimas inocentes numa batalha sem sentido entre homens e deuses (sem sentido, tanto na visão do personagem quanto pelos motivos que expus no parágrafo anterior) e, por consequência, esteja tão revoltado contra os Olimpianos quanto muitos outros homens, seu pai Zeus (interpretado por Liam Neeson) ainda assim aposta que ele poderá ser uma peça chave para restabelecer a paz entre mortais e imortais. Desta vez, o que causa a libertação do Kraken e a exigência do sacrifício de Andrômeda são as blasfêmias da rainha Cassiopeia, não motivadas por uma justa revolta, e sim por mera soberba. De passagem, registro que Andrômeda, no novo filme, parece uma versão Grécia Antiga da rainha-santa D. Isabel de Portugal, e é interpretada pela francesa Alexa Davalos - nem de longe tão bonita quanto Judi Bowker (*suspiro*), que no esplendor dos 27 anos fez a personagem no filme de 1981.

Pelo visto, o Perseu versão 2010 também não achou Davalos tão fascinante assim, pois os dois não terminam juntos - o que não surpreende, já que, nos poucos minutos de filme em que contracenam, não chega a rolar a menor sugestão de algum clima. Para que o herói não termine chupando o dedo, o que seria inadmissível em Hollywood, o roteirista enxertou uma personagem chamada Io (Gemma Arterton), oriunda de outra lenda que nada tem a ver com a de Perseu.

Mais uma vez, tocou ao pobre Hades (interpretado pelo excelente Ralph Fiennes) o papel de deus-vilão: Hollywood não perde a mania de tentar imputar aos antigos a mesma atitude hipócrita que a sociedade moderna tem em relação à morte. Se Hades governa o reino dos mortos, ele tem que ser "mau"... Uma noção absolutamente estúpida e que não encontra apoio nenhum na mitologia ou no modo de pensar de gregos e romanos (ambos povos que sempre tiveram uma atitude natural e serena em relação à morte), mas que a indústria cultural atual continua explorando.

Nem é preciso dizer que o filme é uma verdadeira vitrine de efeitos especiais mirabolantes, usados principalmente nas criaturas míticas - Medusa, o Kraken, Pégaso, os escorpiões gigantes, os
djinns (mais um enxerto: não sei bem o que os djinns são, mas sei que pertencem ao folclore árabe), mas, embora eu admita que são todos visualmente perfeitos, sou um tanto chato quanto a isso: como sei que já escrevi em outro post, a meu ver, excesso de realismo é antes prejudicial que meritório quando se quer mostrar seres fabulosos num filme - uma aparência um pouco mais irreal os tornaria mais fascinantes. Conclusão: eu gostava mais dos monstros de Harryhausen... Por isso, e também por não ter gostado do roteiro, dou no máximo uma nota cinco a esse novo Fúria de Titãs, que, quando sair em DVD, certamente não figurará na minha estante ao lado da versão antiga, que continuo preferindo sem a menor dúvida.