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quarta-feira, abril 25, 2012

Os Filhos de Anansi

Minha segunda visita ao universo de Neil Gaiman acabou não sendo por meio de O Mistério da Estrela nem de Coisas Frágeis, como eu havia planejado - e, pombas, eu estava planejando isso há bastante tempo!... Minha lista de livros por ler cresce muito mais depressa do que eu consigo dar conta dela, e confesso que nem sempre sigo uma rigorosa ordem de chegada: muitas vezes, a sequência em que os livros são lidos não segue lógica alguma. Então, certo domingo, há poucas semanas, estava eu em Porto Alegre e, ao passar pela Livraria Cultura no shopping Bourbon Country, fui irremediavelmente arrastado para dentro por algo que deve ter algum parentesco com o canto das sereias de que nos fala a Odisseia, com a diferença de que Ulisses só precisou entupir os ouvidos de seus homens com cera e amarrar-se ao mastro de seu navio para escapar dessa influência, enquanto eu ainda não encontrei um método preventivo que funcionasse. E, naquele delicioso exercício de percorrer estantes e mostruários de modo mais ou menos aleatório (está bem, vamos ser francos: completamente aleatório), topei com essa nova edição de Os Filhos de Anansi, livro que já tivera em mãos há alguns anos, quando tinha uma capa diferente e era publicado, creio, por outra editora, mas não cheguei a lê-lo na ocasião. Comprei-o, e, acontecendo que no dia seguinte embarcava para uma viagem de trabalho que duraria a semana toda, resolvi, num impulso, colocá-lo na mala. Como resultado, minhas noites de segunda a quinta-feira num quarto de hotel foram singularmente instigantes, empolgantes e engraçadas. Tentarei dar um vislumbre do quanto.

Charles Nancy (em quem o apelido de Fat Charlie, o 'Charlie Banha', ou, numa tradução mais livre, 'Charlie Gorducho', grudou como uma incômoda segunda pele) é um típico americano do sul, que agora mora na Inglaterra - percurso inverso ao do próprio Neil Gaiman, um inglês que hoje vive nos Estados Unidos. Filho único, ou assim ele pensava, Charlie, nascido na ensolarada Flórida, mudou-se ainda garoto para a nevoenta Londres com a mãe, quando ela se separou de seu pai, a respeito de quem tudo o que Charlie consegue lembrar é que tratava-se de um sujeito alegre, chegado às "boas coisas da vida" (segundo alguns pontos de vista), de conversa fluente, que cativava com facilidade os estranhos e tinha um senso de humor um tanto duvidoso, que o levava a divertir-se enormemente colocando as outras pessoas - sem excluir o próprio filho - em situações vexatórias. Por causa disso, o adjetivo que mais facilmente vem à memória de nosso herói ao pensar no pai é "constrangedor", e ele acha muito confortável ter toda a largura do Atlântico a separá-lo do velho. Isso estabelecido, Charlie é um homem comum que vive uma vida comum: um emprego chato numa firma de contabilidade, um apartamento, e uma noiva, Rosie, com quem está planejando o casamento próximo. Aliás, é só por insistência de Rosie, que não conhece a "peça", que Charlie decide convidar o pai para o casamento, e, com essa intenção, telefona para uma antiga vizinha na Flórida para tentar fazer contato com ele - e fica sabendo que seu pai acaba de morrer.

Sem saber direito por que faz isso, Charlie acaba viajando para os Estados Unidos para comparecer ao funeral do pai. Depois da cerimônia, a vizinha, Sra. Higgler, cumpre outro ritual, o de levar o rapaz para rever a antiga casa, ver se quer guardar algum dos objetos pessoais deixados pelo pai, etc. E também partilha com ele uma série de reminiscências e de coisas que ele não sabia sobre o próprio pai - como o fato, que a velha senhora joga como se não tivesse mais importância do que dizer o time de beisebol para o qual o homem torcia, de que o pai de Charlie era na verdade Anansi, o deus-aranha no panteão de certos povos africanos. E revela-lhe também que ele tem um irmão, e que, quando quiser vê-lo, só precisa pedir a uma aranha que passe o recado.

Entendam: Fat Charlie Nancy não apenas é um sujeito sem o menor interesse por qualquer assunto de natureza mística ou religiosa - é também um sujeito absolutamente comum e sem um pingo de imaginação. Jamais consideraria a possibilidade de que sua visão confortável do mundo talvez estivesse equivocada e de que algumas coisas estranhas e misteriosas pudessem ser reais. Assim, é num momento em que tem a mente nublada pelo álcool que ele realmente fala com uma aranha e pede-lhe para dizer a seu desconhecido irmão que apareça para vê-lo quando puder.

E o irmão, vejam só, aparece mesmo!

Spider (pois é assim que ele se apresenta) parece ter herdado toda a substância divina que havia no pai dos dois, da mesma forma como Fat Charlie ficou com todos os traços mais prosaicamente mortais: consegue fazer as coisas acontecerem conforme sua vontade, e, quando Charlie se refere a tais feitos como sendo "magia", Spider fica ofendido e explica que não é magia: são milagres. Mas essa não é a coisa a respeito do irmão que mais incomoda Charlie. O que há é que os dois se parecem, mas ao mesmo tempo não: é como se Spider fosse a versão idealizada que Charlie guarda de si mesmo em algum canto da mente - o cara que ele gostaria de ser. Enquanto Fat Charlie é tímido e desajeitado, Spider é "descolado" e esbanja autoconfiança; enquanto Charlie arrasta seu noivado um tanto sem graça com Rosie (que, aparentemente, está com ele mais para chatear a mãe ranzinza que por outro motivo qualquer), Spider é um verdadeiro ímã para mulheres. Tanto que acaba "pegando" também Rosie, que, acreditando que ele seja o irmão, sente repentinamente o afeto aguado que até então a ligava ao noivo transformar-se em paixão avassaladora. A fim de livrar-se de Spider - pois simplesmente pedir-lhe que vá embora não dá resultado -, Charlie viaja novamente aos Estados Unidos para pedir ajuda à Sra. Higgler, que, com o auxílio de outras vizinhas idosas, realiza um ritual mágico que leva Charlie a um lugar misterioso onde ele se encontra com uma série de criaturas estranhas - deuses-arquétipos comuns a todas as mitologias primitivas, cada um representado por um animal, com o qual se parece, ao mesmo tempo em que tem figura humana. Todos eles conhecem Anansi e sua fama de esperto e gozador, mas nenhum parece interessado em ajudar o filho dele. Quando finalmente encontra um deus que aceita fazer um pacto com ele, Charlie não tem ideia do que está desencadeando quando tudo o que realmente deseja é fazer com que Spider vá embora - mas não tardará a descobrir. Só para começar, ele se torna um alvo para o vingativo Tigre (Gaiman ressalta várias vezes que "tigre", aí, é um designativo genérico para qualquer grande felino, com a possível exceção do leão: leopardos, onças e vários parentes seus já foram, em alguma época e região, chamados de "tigre", o que explica a presença desse animal no folclore dos povos africanos, os quais obviamente não conheciam o tigre propriamente dito, que não existe na parte do mundo que habitam). O Tigre costumava ser o "dono das histórias" numa era sombria e esquecida, até ser tapeado por Anansi, que, assim, assumiu o papel de protagonista dessas histórias, alterando profundamente o caráter de cada uma delas e, por consequência, o próprio mundo em volta: quando as histórias pertenciam ao Tigre, o mundo era um lugar violento e sanguinário... Bem, ele ainda é assim, mas ao menos, com Anansi como dono das histórias, existem humor, riso e alegria para contrabalançar; nada disso existia quando o Tigre mandava.

E que histórias seriam essas? Quase todas. No livro estão recontadas várias delas, que a maioria de nós já ouviu ou leu: aquela do macaco que roubava bananas até ser apanhado com a ajuda de um boneco de piche, por exemplo, está aqui, apenas adaptada para ter Anansi como protagonista (ou seria a versão de Anansi a original e a que conhecemos a adaptação? Hum...). Essa história, assim como uma miríade de outras, é encontrada nas culturas de inúmeros povos ao redor do globo, desde os celtas da Irlanda até os ainos do norte do Japão - leia-se: povos sem nenhuma possibilidade de terem tido qualquer tipo de interação entre si antes do surgimento dos meios de comunicação modernos. Então como é que todos contavam as mesmas histórias, variando apenas nos detalhes? Carl Jung tinha uma teoria fascinante e, além disso, plausível para explicar esse fato. Neil Gaiman oferece-nos outra, ou, melhor dizendo, dá nova forma à teoria de Jung, recontando-a de modo a transformá-la em mais uma fábula. Brilhante!

Os Filhos de Anansi é um daqueles livros que a gente devora na primeira leitura, e que merecem uma segunda, mais lenta e refletida. Está cheio das marcas registradas de Neil Gaiman: personagens cativantes, situações divertidas, toques geniais de seu infalível humor britânico, e uma maneira absolutamente única de tratar a dualidade entre o mundo "real" e a infinita esfera dos inúmeros mundos místicos, oníricos ou legendários que compõem o imaginário humano - e que, por fazerem parte desse imaginário, são, a meu ver, perfeitamente reais a seu modo, sendo esse o motivo das aspas usadas quando me refiro ao mundo que vulgarmente chamamos de "real". Desconfio seriamente, e não pela primeira vez, que Gaiman seja um grande fã de Michael Ende, e que, se é que a recíproca não era verdadeira, deve ter sido apenas porque o autor de A História Sem Fim não viveu o suficiente para vê-lo alcançar a merecida fama e ter uma chance de conhecer sua obra. Gaiman cumpre com raro vigor e originalidade a missão de não apenas nos mostrar caminhos para chegar a Fantasia, como também de nos fazer refletir sobre o quanto nossas visitas periódicas a ela são essenciais para que nosso próprio mundo conserve alguma dose de equilíbrio e sanidade.

sábado, outubro 16, 2010

Coraline

Quem primeiro me falou de Neil Gaiman foi a minha muito, muitíssimo especial amiga Aline Valek - não preciso ficar aqui falando longamente das qualidades dessa garota adorável e genial: vocês podem visitar pessoalmente o blog dela e conferir por si mesmos. Para mim, até então, Gaiman era "apenas" o responsável por Sandman, obra considerada cult pelos aficionados por quadrinhos, mas que eu só conhecia de nome e de capa. Como, porém, a Aline tinha esse jovem escritor britânico em altíssima consideração - a palavra mais comedida que usava para se referir a ele era "mestre" - e, para mim, a opinião dela sempre teve enorme peso, anotei o nome do autor na minha "agenda infinita" mental, como algo que devia valer a pena conhecer. E, por a agenda ser infinita, no sentido de que são infinitas as obras e autores que a gente deveria conhecer e ainda não conhece (olá de novo, Ítalo Calvino...), só agora, anos depois, é que efetivamente peguei um livro de Gaiman, corri a cortina em volta de mim mesmo para dispor de um isolamento adequado, e disse: "Bom, agora eu vou ler mesmo!" O livro foi Coraline, e eu não estava preparado para o que encontrei. Acho que ninguém pode estar.

Coraline é uma menina - típico, afinal crianças são os melhores protagonistas para histórias bizarras, onde a tessitura comum do mundo que vulgarmente chamamos de "real" começa a ficar incerta: crianças não perdem tempo duvidando dos próprios sentidos nem dizendo bestamente a si próprias que "isso é impossível", embora a coisa esteja bem diante de seus olhos. Uma menina não diferente das outras de sua idade, a não ser, talvez, por ter um gosto ainda maior que o da maioria das crianças por explorar, achar coisas, reconhecer o ambiente ao seu redor. Ela parece gostar do próprio nome (cuja correlação com "coral" pode ocultar algum significado), pois faz questão de que as pessoas o pronunciem direito - o que é um problema, pois adultos em geral insistem em chamá-la de Caroline. Isso também é típico.

Coraline e seus pais acabam de mudar-se para uma enorme e antiga casa de três andares, que foi dividida em vários apartamentos. Abaixo deles, moram duas idosas ex-atrizes; acima, um velho solitário e excêntrico. Além disso, ainda há na casa apartamentos vazios. Na sala de visitas do apartamento dos pais de Coraline existe uma porta que, aparentemente, não vai dar em lugar algum: abre-se para uma parede de tijolos que, como a mãe explica, foi erguida para vedar a passagem quando a casa foi desmembrada. Acontece (e isso só Coraline parece notar) que a parede nem sempre está ali: às vezes, ao ser aberta, a porta dá acesso a um corredor longo, escuro e frio. Do outro lado existe um apartamento, à primeira vista, igual ao que ela conhece - mas só à primeira vista. Ali ela tem outro pai e outra mãe, que, diferentemente dos originais, que têm seu trabalho e seus próprios assuntos para ocupá-los, parecem estar ali só para ela, cercando-a de toda a atenção. De resto, parecem-se muito com o pai e a mãe que Coraline conhece, só que são ligeiramente estranhos. Ao sair para explorar, ela descobre que também existem outras duas velhas senhoras no andar de baixo e outro velho solitário no andar de cima, todos muito parecidos com suas contrapartes do outro lado do corredor, só que todos, também, ligeiramente estranhos. E, como ela não demora a descobrir, o fato de nesse estranho lugar todos terem botões pretos no lugar dos olhos está longe de ser a coisa mais estranha ali.

E outras coisas bizarras e horripilantes começam a surgir e acontecer. Ao retornar pelo corredor ao mundo que conhece, Coraline descobre que seus pais verdadeiros desapareceram, e só podem estar num lugar: aprisionados do outro lado, como uma isca para forçá-la a voltar. Há um gato que parece saber de tudo o que acontece ali e ser capaz de circular livremente entre os dois mundos, mas não está lá muito interessado em ajudar Coraline. Três crianças presas por trás de um espelho - fantasmas, ou menos que isso, pois suas almas foram roubadas. Presenças misteriosas e sem forma que perambulam pelo corredor escuro. Para ganhar sua própria liberdade e a de seus pais, Coraline terá de vencer um jogo contra sua "outra mãe", o que irá exigir dela toda a sua coragem. Coragem que, como ela explica sabiamente ao gato, não consiste em não ter medo, mas em fazer o que se deve, apesar do medo.

É incrível a facilidade com que um leitor pode ser envolvido por esta história. Nela, entra-se num mundo que poderíamos ficar tentados a qualificar de "irreal", mas essa palavra perde o sentido quando tudo o que costuma servir de referência para definir o que é real e o que não é, começa a ser questionado e se torna objeto de dúvida. A linguagem e o desenvolvimento da narrativa são simples, quase do modo como uma criança contaria uma história, e mesmo assim (ou, quem sabe, em grande parte por causa disso), os arrepios experimentados não serão facilmente esquecidos. As imagens oníricas evocadas por Gaiman me lembraram em diversos momentos o alemão Michael Ende, não tanto em sua obra mais conhecida, A História Sem Fim, mas principalmente em outros livros onde o elemento surrealista aparece com mais força, como O Espelho no Espelho. Pois a proposta do surrealismo, expressada da maneira mais simples, consiste em transformar em imagem - seja gráfica ou literária - as manifestações do inconsciente, sem fazê-las passar pela peneira da razão. Vocês já acordaram com a sensação de terem tido um sonho estranho, que parece ainda estar roçando quase na superfície da mente, mas que não conseguem lembrar, embora a sensação perturbadora que ele causou ainda esteja bem nítida? Pois Neil Gaiman nos convida a reencontrar alguns desses sonhos esquecidos, se tivermos essa coragem - a coragem da qual Coraline fala ao gato. Por fim, para registro, já estou com dois outros livros de Neil Gaiman na fila: Coisas Frágeis e O Mistério da Estrela. Não se surpreendam se logo, logo, eu voltar a falar no mestre.