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quinta-feira, novembro 17, 2022

O Gabinete de Curiosidades de Guillermo del Toro

Guillermo del Toro já foi assunto aqui no blog por várias vezes, por conta de Hellboy, da Trilogia da Escuridão e da série de TV derivada, The Strain, de seu envolvimento com a trilogia cinematográfica O Hobbit… Que eu me lembre, é isso. Existem vários outros de seus trabalhos que admiro pacas, filmes como Cronos (1993), A Espinha do Diabo (2001) e O Labirinto do Fauno (2006), entre outros, que também poderiam virar assunto, e talvez ainda virem. E o cara sempre volta: desta vez, com a série antológica O Gabinete de Curiosidades de Guillermo del Toro, cuja primeira temporada, com oito episódios, ficou disponível na Netflix agora em outubro.

Os primeiros comentários que ouvi e li, antes de ter contato direto com o material, foram no sentido de que se tratava de uma série bastante macabra e pesada, feita sem aliviar a mão, fosse nos conceitos perturbadores ou nas cenas aflitivas – e esse é um lado que Del Toro, como muitos autores ou realizadores do gênero fantasia, sabidamente possui: basta lembrar de O Labirinto do Fauno, que tem cenas delicadas de magia e encantamento, mas tem também um punhado de criaturas horripilantes e uma cena de um homem sendo assassinado a sangue frio a golpes de garrafa. É fato que, aqui, os episódios são dirigidos por outras pessoas, mas, na qualidade de produtor executivo e criador do conceito da série, coube a Del Toro a escolha dos diretores e, presumivelmente, a supervisão geral, de modo que podemos dizer que seu estilo pessoal perpassa tudo. Ele aparece no início de cada episódio, fazendo um breve comentário enigmático sobre o que veremos a seguir, e apresentando o diretor ou diretora. Por sinal, a julgar pelo rápido levantamento que fiz na internet, são, em sua maioria (mas nem todos), diretores pouco conhecidos, com relativamente pouca coisa em seus currículos, pelo menos enquanto diretores – a australiana Jennifer Kent, por exemplo, que dirigiu O Murmúrio, último episódio desta primeira temporada, teve uma extensa carreira como atriz, mas assina a direção de apenas três filmes até o momento (é verdade que um deles é o muito comentado e elogiado O Babadook, que ainda preciso ver). O importante é notar que Del Toro parece estar apostando em diretores que ainda estão em ascensão, sejam os que ainda não acumularam um grande currículo por serem relativamente jovens, ou os que sempre trabalharam em outras funções no cinema ou TV e estão agora se acostumando com a cadeira da direção.

Assisti a essa primeira temporada num espaço de alguns dias e, por tratar-se de uma série antológica, quer dizer, com cada episódio contando uma história fechada e independente, aplica-se, também aqui, o que sempre digo a respeito de livros de contos: existem altos e baixos e isso é natural – mais que natural, é inevitável. A impressão geral foi muito favorável, e torço para que venham mais temporadas num futuro relativamente próximo. Também à semelhança do que tenho feito com livros de contos, não pretendo comentar cada episódio em detalhes; falarei daqueles que, como espectador, eu tiver achado notáveis e/ou que apresentem alguma… hã… curiosidade.

Muitos fãs de Guillermo del Toro devem ter pensado o mesmo que eu pensei sobre esta série: que faltou ter ao menos um episódio dirigido por ele. Como se fosse para compensar em parte isso, há dois episódios baseados em contos de sua autoria. O primeiro, Lote 36, é dirigido por outro Guillermo, o Navarro, também mexicano e seu colaborador antigo, que trabalhou como diretor de fotografia em vários de seus filmes. Foi inevitável pensar em Lote 249, de Sir Arthur Conan Doyle, mas só os títulos é que são parecidos. A história se ambienta em janeiro de 1991 – uma datação tão precisa é possível porque o episódio começa com um personagem vendo na TV o pronunciamento do presidente George Bush (pai) logo após o primeiro ataque aéreo americano contra Bagdá, que deu início à fase "quente" da Guerra do Golfo, que já se arrastava desde meados do ano anterior. O protagonista (que não é o personagem da primeira cena) é Nick Appleton, um veterano do Vietnã que está devendo a um agiota, o qual lhe tem feito ameaças regularmente. Para tentar conseguir o dinheiro que pode ser a diferença entre a vida e a morte, Nick recorre a diversos expedientes, e um deles requer uma breve explicação… Nos Estados Unidos são comuns os self storages, lugares onde as pessoas podem alugar depósitos individuais, numerados, para pôr a tralha que não têm mais onde guardar em casa; se o locatário de um depósito morre sem herdeiros, desaparece ou deixa de pagar o aluguel durante um determinado número de meses, a administração do storage procede a uma espécie de "despejo": o conteúdo do depósito é levado a leilão, e o comprador tem um prazo para retirar tudo, a fim de que o espaço possa ser alugado novamente. Um "lote", então, é a totalidade do conteúdo de um desses depósitos abandonados. O detalhe interessante, por assim dizer, é que esses leilões são uma loteria: os participantes fazem seus lances sem saber o que vão encontrar quando abrirem o lugar. Pode estar cheio de objetos raros que renderão uma pequena fortuna num antiquário, ou conter apenas pilhas de jornais velhos, mobília quebrada, roupas roídas por traças, e todo tipo de quinquilharia sem valor que pessoas idosas (geralmente) guardaram ali porque seus familiares estavam ameaçando jogá-las fora. Nick, então, arrisca o dinheiro que tem comprando alguns desses lotes, na esperança de encontrar algo que dê lucro. O mais recente é o de número 36, que pertenceu ao mesmo "velhote esquisito" desde que o storage começou a funcionar, logo após o fim da Segunda Guerra, e agora o velhote acaba de morrer. Em meio à costumeira montanha de inutilidades empoeiradas, Nick descobre um móvel valioso e curioso, uma mesa feita especialmente para a invocação de espíritos, e, dentro de suas gavetas, três livros muito raros e sinistros. O ex-soldado é do tipo cético – e mais que isso, um cético chato: quando um especialista em ocultismo, que ele procura em busca de uma avaliação dos itens, tenta lhe explicar sobre os mistérios e histórias sombrias envolvendo aqueles livros, ele interrompe impaciente, pois a única coisa que lhe interessa é saber quantos dólares pode conseguir pelo conjunto. Tudo o que posso dizer sem revelar mais do que devo é que ele vai ver-se numa situação na qual seu ceticismo não lhe servirá de nada. Nick é o tipo de protagonista do qual é importante que o espectador não goste, e o roteiro se encarrega disso: além de sua rabugice, ele é preconceituoso, mostrando uma evidente má vontade para com negros, latinos e, provavelmente, para com qualquer estrangeiro – embora eu lhe dê razão num ponto, o de não gostar do fato de que aparentemente só determinados tipos de pessoa é que têm o direito de exigir respeito e de se indignar caso não o recebam: negros são protegidos pela lei e pelo senso comum contra ofensas de cunho racial, mas, por outro lado, eles próprios são livres para dirigir ofensas (inclusive de cunho racial) contra brancos, à vontade, sem que nada aconteça; já era assim em 1991, e hoje muito mais. O mesmo se aplica aos gays em relação aos héteros, às mulheres em relação aos homens e por aí afora: basta apresentar o seu crachá de membro de qualquer "minoria oprimida", que você tem carta branca para fazer e dizer o que quiser, incluindo as coisas mais escrotas e absurdas, e ninguém pode protestar, sob pena de ser rotulado de ista e fóbico. Desculpem-me os politicamente corretos, mas isso não é certo; a verdade não deixa de ser verdade só porque quem está dizendo-a é um sujeito desagradável como Nick Appleton. Mas esse não é o ponto aqui: Lote 36 é um episódio forte e envolvente, um excelente pontapé inicial para a série, além de nos deixar com vontade de ler mais dos trabalhos de Del Toro no campo da literatura.

O segundo episódio, Ratos de Cemitério, é baseado num conto de alguém chamado Henry Kuttner, nome que não me é estranho e que pretendo pesquisar. O episódio é várias coisas, mas, antes de mais nada, é claustrofóbico, motivo pelo qual minha namorada, Cintia, achou-o uma experiência bastante desagradável – e, pelo que ela me contou depois, foi ainda pior para uma amiga, que ficou tão incomodada que nem foi até o final: "dropou" o episódio e a série. E eu entendo: há muitas maneiras de abordar o terror, muitas "pontas por onde pegá-lo" (acho que a expressão é de Stephen King, mas não tenho certeza), e a claustrofobia é uma delas, usada ao longo da história do gênero por muitos autores e diretores. Aqui especificamente, a maior parte da ação transcorre debaixo da terra, dentro de túmulos ou em túneis tão apertados que mal dá para uma pessoa rastejar por eles, e, para algumas pessoas, ambientes apertados, mesmo vistos numa simples tela, podem ser desesperadores. O ano é 1919 (assim consta na lápide de uma jovem sepultada poucos dias antes) e o local é a cidade de Salém, Massachusetts, palco dos famosos julgamentos de bruxaria no século XVII. O protagonista é um homem de nome Masson, que, assim como Nick Appleton, está gravemente endividado. Masson vive de perambular pelos cemitérios saqueando sepulturas, "aliviando" os mortos de quaisquer objetos de valor com os quais eles tenham sido enterrados, mas sua atividade não lhe tem rendido muito ultimamente, e seu credor está pressionando. É então que ele fica sabendo da morte de um figurão da sociedade, um comerciante muito rico e influente, cuja viúva faz questão de enterrar com ele uma de suas posses mais valiosas: um sabre cerimonial que o falecido ganhou de presente do próprio rei da Inglaterra. É claro que Masson imediatamente coloca o túmulo do comerciante no topo de sua lista de prioridades, mas, embora ele esteja acostumado a brigar com ratos em suas andanças noturnas em cemitérios, nem imagina o que vai encontrar desta vez. O episódio é mesmo aflitivo, mas também tem toques irresistíveis de humor (geralmente negro). O ator David Hewlett está magistral no papel de Masson. Vincenzo Natali (de Cubo e Monstro do Pântano) dirige.

Guillermo del Toro sempre foi um grande fã de H. P. Lovecraft. Um de seus sonhos já de muitos anos, e bem conhecido por quem acompanha sua carreira, é dirigir um grandioso filme adaptando um dos contos mais ambiciosos do escritor, Nas Montanhas da Loucura, mas, pelo que li tempos atrás, ele teria brigado feio com os produtores em potencial porque eles queriam meter uma trama romântica na história (!). De vez em quando circulam rumores de que o projeto está em vias de finalmente engrenar, mas, até o momento em que escrevo, nenhum boato sobre o qual eu tenha lido me pareceu ser mais que isso – boato. Enquanto Nas Montanhas da Loucura não acontece, Del Toro nos traz em seu Gabinete as adaptações de duas outras histórias de Lovecraft, estas de porte mais modesto, mas nem por isso menos cultuadas, e muito merecidamente, pelos fãs do autor: O Modelo de Pickman e Os Sonhos na Casa da Bruxa.

O primeiro, dirigido por Keith Thomas e estrelado por Ben Barnes (de O Retrato de Dorian Gray e Westworld), é apenas frouxamente inspirado no texto original, e eu entendo o motivo: o conto é muito discursivo, o que não funcionaria bem na tela. Barnes interpreta o protagonista Thurber, que no conto era também o narrador, e que no episódio ganhou um primeiro nome, William. Nesta versão, Thurber, ainda rapazote, é um dos mais destacados estudantes de arte na Universidade Miskatonic (fundada em 1690 e cuja simples menção deixa qualquer fã de Lovecraft de orelha em pé) quando sua turma recebe um novo aluno, um tal Richard Upton Pickman, um sujeito mais velho, já nos seus 30 ou quase isso, e de passado misterioso. Thurber imediatamente sente uma curiosidade intensa a respeito do novo colega, que demonstra já ser um artista de grandes capacidades, dotado de um talento natural aperfeiçoado por um número muito maior de anos de prática do que qualquer um de seus colegas pós-adolescentes pode ter tido – mas com um detalhe: seja qual for o motivo artístico proposto, Pickman transforma-o em imagens assustadoras, repletas de sugestões de elementos do oculto, da feitiçaria e do além-túmulo, e sempre com uma habilidade prodigiosa. No início é Thurber quem repetidamente procura a companhia de Pickman (que claramente preferiria ser deixado só), fascinado que está tanto por sua arte macabra quanto por sua personalidade misteriosa – mas então a narrativa dá um salto de vários anos, e encontramos um William Thurber já maduro, casado e com um filho, além de membro conceituado da comunidade dos artistas em Massachussetts; nesse ínterim Richard Pickman reaparece, depois de uma longa ausência. Agora é Pickman quem parece ansioso por reatar a antiga amizade, declarando que o julgamento crítico de Thurber é valioso para ele, enquanto Thurber, tomado de desagradáveis suspeitas a respeito de qual pode ser a verdadeira origem da arte de Pickman, prefere não ter ligações com o pintor, e, principalmente, não gosta da ideia de vê-lo rondando sua família… Não irei mais adiante para evitar spoilers, o que é ainda mais importante aqui porque, como a adaptação é muito livre, o episódio reserva surpresas inclusive para quem leu a história, e longe de mim querer estragá-las. Pode-se discutir (e seria uma discussão deveras interessante) se a versão de O Modelo de Pickman trazida por Del Toro e Keith Thomas ainda é Lovecraft, mas, mesmo que não seja, é inegável que o roteirista Lee Patterson soube apropriar-se do legendarium do autor e com ele produzir uma história digna de respeito, que consegue manter-nos durante uma hora inteira com os olhos pregados na tela. Barnes não surpreende – considero-o um ator correto, mas talhado para papéis de galã e que dificilmente nos apresentará algo muito diferente disso; por outro lado, Crispin Glover, no papel de Richard Pickman, é um pesadelo à parte (no sentido elogioso!), com uma atuação ao mesmo tempo feroz e irônica e um olhar que é simultaneamente o de um visionário que enxerga outros mundos e o de um maníaco.

Acho necessário fazer um parágrafo separado apenas para comentar o magnífico trabalho de arte que vemos em O Modelo de Pickman. É atordoante pensar na quantidade de horas de trabalho investidas por um artista (aliás, provavelmente vários) para criar pinturas que a câmera iria mostrar apenas de relance (e confesso que apertei o pause várias vezes para tentar analisar mais detidamente as imagens). Seria interessante saber se todas essas pinturas foram feitas especialmente para o episódio ou se algumas delas eram trabalhos preexistentes, usados com permissão dos autores – pois, como já comentei em outro lugar, muitos artistas plásticos fãs de Lovecraft já fizeram suas tentativas de materializar os terríveis quadros de Pickman a partir das descrições fornecidas no texto. As pinturas de Pickman em si eram a parte que mais me intrigava nesse conto, e continuam a sê-lo nesta adaptação. Assumindo todos os riscos (tal como o de enlouquecer), eu bem que gostaria de fazer uma visitinha ao atelier dele.

A outra adaptação de um conto de Lovecraft presente nesta temporada é Os Sonhos na Casa da Bruxa, com direção de Catherine Hardwicke (Crepúsculo) e tendo como ator principal Rupert Grint (o Rony Weasley dos filmes de Harry Potter). Numa comparação com O Modelo de Pickman, Os Sonhos na Casa da Bruxa até tem um pouquinho mais de correlação com o conto que lhe deu origem – e, apesar disso, entrega um resultado menos bom. No conto, o protagonista Walter Gilman é um estudante de graduação da Universidade Miskatonic que, curiosamente, mistura sua exaustiva dedicação a alguns dos campos mais complexos da alta matemática com um interesse por folclore e pelas histórias dos julgamentos de bruxaria – e acaba fundindo os dois campos de conhecimento. Gilman acredita, ou, melhor dizendo, tem certeza, com base nas conclusões teóricas da matemática, de que a existência de outras dimensões é um fato, ao qual só falta a prova material. Ele acredita também (e isso sim é uma crença) que as antigas bruxas conheciam o segredo de como viajar entre as dimensões; as velhas histórias de voos noturnos em vassouras ou no dorso de animais mágicos poderiam não ser mais que uma representação simbólica disso. Dos registros que leu sobre a época dos julgamentos, chamou-lhe especial atenção a história de uma tal Keziah Mason, que teria fugido da Cadeia de Salém em 1692. A casa onde morou essa célebre bruxa ainda existe, e Gilman consegue alugar o exato quarto onde ela viveu e, presumivelmente, praticou seus feitiços. As paredes da decrépita habitação estão rabiscadas com símbolos e diagramas que todos sempre supuseram tratar-se de algum tipo de escrita demoníaca, mas que o estudante reconhece como sendo matemática avançadíssima, um tipo de conhecimento que deveria ser impossível para uma velha comum e provavelmente analfabeta do século XVII. E, ao dormir naquele quarto, Gilman passa a ter sonhos cada vez mais perturbadores envolvendo Keziah e seu suposto "familiar", uma criatura semelhante a um grande rato com cara humana (um "familiar", ao que se acreditava, era um pequeno demônio em forma animal, ou semi-animal, que o diabo dava de presente a cada bruxa por ocasião de sua iniciação, e que prestava serviços a ela). Para Lovecraft, a obsessão intelectual de Gilman, sua determinação de provar perante a ciência que outras dimensões existem e que viajar entre elas é possível, era motivação válida e plenamente suficiente para seu protagonista; nesta adaptação, o roteirista deve ter achado que um objetivo tão abstrato e impessoal quanto esse não atrairia a empatia do público para o personagem, e assim, inventou para ele uma história trágica: Gilman, na infância, tinha uma irmã gêmea a quem era muito ligado, e que morreu em tenra idade, com o detalhe de que o pequeno Walter a viu ser arrastada, em sua forma espiritual (ou fantasmal, se quiserem) para uma espécie de limbo que ficaria em outra dimensão, enquanto seu corpo físico ficava para trás. Daí em diante, o rapaz ficou obcecado por parapsicologia, por fenômenos mediúnicos e pela possibilidade da comunicação entre o mundo dos vivos e o dos mortos, vindo inclusive a fazer parte de uma sociedade espiritualista. É por esse caminho que ele acaba indo parar no velho quarto de Keziah Mason. Na minha opinião, essa "humanização" da trama pode funcionar para os espectadores que nunca leram Lovecraft, mas os que conhecem o conto vão achar o novo enredo uma coisa prosaica e novelesca, que apaga muito da sensação de estranheza extraterrena que conferia à história original a maior parte de seu interesse; além disso, a novidade de fazer com que as viagens de Gilman entre as dimensões sejam possibilitadas por uma espécie de poção foi, a meu ver, um recurso bastante ordinário. Visualmente, achei a representação de Keziah exagerada: poderia ficar mais assustadora se a apresentassem simplesmente como uma velha de olhar maligno em trajes de época, em vez de um espectro hollywoodiano padrão, totalmente criado em CG, que poderia ter saído de algum filme da franquia Invocação do Mal ou de qualquer outro "terrorzão de shopping". Por outro lado, Brown Jenkin, o familiar da bruxa, ficou perfeito – adequadamente macabro.

A Autópsia, dirigido por David Prior, aposta no já tantas vezes bem-sucedido crossover entre ficção científica e terror, propondo uma versão ainda mais assustadora para o clássico Invasores de Corpos (1978). O veterano ator F. Murray Abraham (de quem eu sempre me lembro como o compositor Antonio Salieri, o rival de Mozart em Amadeus) interpreta o Dr. Carl Winters, um igualmente veterano médico legista que atende ao chamado de um velho amigo, o xerife Nate Craven, delegado de uma outrora tranquila cidadezinha mineradora que, há algum tempo, vem sendo assolada por uma onda de desaparecimentos; agora aconteceu um acidente inexplicável na mina que emprega a maior parte da população e que é a base da economia da cidade, tirando a vida de vários trabalhadores. Winters confidencia ao amigo que está sofrendo de um câncer terminal e tem poucos meses de vida – e faz isso pouco antes de entrar na gelada e tétrica sala onde realizará sozinho a autópsia dos mineiros mortos e fará descobertas horrendas. O episódio é muito bom, tenso do início ao fim e com um conceito de arrepiar os cabelos. Só estejam avisados de que, como ele trata em grande parte de autópsias, vocês poderão achar algumas cenas um tanto difíceis de assistir. Eu achei.

Como tantas vezes, o melhor de O Gabinete de Curiosidades de Guillermo del Toro ficou para o final: é justamente O Murmúrio (The Murmuring), dirigido pela já citada Jennifer Kent e tendo como principais atores Essie Davis (também australiana e que atuou em O Babadook) e Andrew Lincoln (da série The Walking Dead). E, assim como o primeiro, este último episódio da temporada é baseado num conto de Del Toro. O primeiro comentário que me veio à cabeça ao terminar de assisti-lo foi que nunca devemos achar que determinado tema já está batido demais para render uma boa história de terror, seja na literatura, cinema ou TV: parece-me que o velho tema da casa assombrada, contanto que seja explorado com competência, nunca deixará de causar calafrios. A história se passa nos anos 50 e os protagonistas são Nancy e Edgar Bradley, um casal de ornitólogos que recentemente passou por uma tragédia pessoal, a perda da filha ainda bebê. Fazendo da dedicação ao trabalho sua terapia, os dois partem para uma pesquisa de campo a fim de estudar os hábitos dos pilritos (pássaros semiaquáticos e migratórios, espécie comum na Europa), o que exigirá que passem um longo tempo numa desabitada região de charcos – o local não é nomeado, mas parece ficar em alguma parte das Ilhas Britânicas. Lá, o casal se aloja numa grande e antiga casa, completamente isolada, parecendo ser a única na pequena ilha onde fica. Está desabitada há 30 anos, mas os retratos nas paredes sugerem que já foi a moradia de uma família perfeitamente normal e feliz – um casal e seu filho pequeno. Nancy se intriga imaginando por que eles teriam partido deixando para trás seus móveis e todos os objetos pessoais, incluindo até mesmo um grande número de cartas, mas seu trabalho com os pilritos ocupa demais seu tempo e energia para que ela possa pensar muito a respeito… Até começar a ouvir e ver certas coisas na casa. Coloquei nessa ordem de propósito: primeiro ela ouve, em meio às horas e horas de gravações dos sons dos pássaros, uma voz infantil sussurrando que está com frio. É indispensável observar que, de acordo com as explicações da própria Nancy, murmuring, em inglês, pode ter dois sentidos: um, bem conhecido e de uso comum, é o de falar baixo, sussurrar; o outro se refere às formações que bandos de pássaros em voo podem assumir, às vezes sugerindo certas figuras (eu nunca tinha ouvido falar nessa segunda acepção). Mais tarde, ela passa a ver o menino andando pela casa às escuras durante a madrugada, às vezes encharcado, com a roupa escorrendo água… É apavorante de verdade, e nisso há muito mérito da diretora, cuja condução é ora sensível, ora implacável. Outra coisa que o espectador nota é que o fato de apenas Nancy ter consciência dessa presença não pode ser mero acaso; Edgar declara repetidamente que nunca viu nem ouviu nada. Isso pode significar, de modo implícito, que, embora tenha sofrido (e ainda sofra) tanto quanto a esposa com a morte da filhinha, ele já conseguiu "ir em frente"; Nancy ainda não. A incapacidade dela de falar sobre sua perda, e o fato – observado pelo marido – de que não verte nenhuma lágrima, indicam que toda a sua dor está trancada dentro dela, atormentando-a dia a dia. Talvez seja essa dor recolhida o que a coloca em sintonia com a dor daqueles que moraram (e aparentemente ainda moram) naquela casa. O Murmúrio chega muito perto da perfeição, conseguindo em uma hora o que muitos longas-metragens de terror não conseguem no dobro desse tempo, e reforça minha vontade de conhecer os filmes anteriores de Jennifer Kent, bem como minha expectativa do que mais ela poderá nos trazer no futuro.

Seguindo minha resolução de só entrar em detalhes sobre um episódio no caso de ele ter chamado muito a minha atenção, percebo que acabei falando (mais longamente ou menos) sobre seis dos oito; houve dois episódios dos quais eu não gostei, e por esses passarei muito rapidamente. Um deles foi o terceiro, Por Fora, que, embora abordando temas importantes (até que ponto uma pessoa é capaz de ir em busca de aceitação social e o poder da TV para influenciar comportamentos e criar necessidades), simplesmente não me "pegou"; não consegui construir uma ligação com a protagonista e achei o desenrolar tedioso, de modo que, mesmo que o episódio tenha a mesma duração que a maioria dos outros, com cerca de uma hora, me pareceu muito mais longo que isso. O outro foi o penúltimo, A Inspeção, cujo maior mérito, a meu ver, é o de conseguir imergir com perfeição o espectador na atmosfera dos anos 70 (o ano citado é 1979), por meio do visual dos personagens e da trilha e efeitos sonoros, evocando aquele mundo psicodélico e com tendência ao exagero estético; a fotografia também parece ter sido planejada para remeter a filmes daquela década ou do comecinho da seguinte, como Alien e O Enigma de Outro Mundo – e vamos descobrir que todo o trabalho investido em criar essa semelhança foi com bons motivos, motivos que têm a ver com o roteiro. Infelizmente, esse roteiro nunca chega a dizer a que veio: a maior parte do episódio é preenchida por longas e tediosas conversas entre os personagens, e, quando o componente fantástico é finalmente apresentado, mostra-se genérico, gratuito e jogado de qualquer maneira. Valeu a curiosidade de rever o agora idoso Peter Weller, ator que protagonizou Robocop, um dos melhores filmes de ficção científica de ação da década de 80.

Enfim, Guillermo del Toro fez um belo trabalho criando e produzindo esta série, que, embora irregular, certamente recompensa bem o tempo investido para assisti-la, para os amantes do terror em geral e para os fãs de Del Toro em particular. Pelo que vi na internet, a receptividade do público tem sido boa, o que nos permite cultivar a esperança de que essa primeira temporada não seja a última. Seria excelente se, nas próximas, fossem trazidos contos de outros autores notáveis de terror, fossem antigos ou contemporâneos – Arthur Machen, Edgar Allan Poe, Stephen King, Clive Barker… Mas torço para que, se isso acontecer, as adaptações sejam mais fiéis que as de Lovecraft que vimos. Seria bom, ainda, que Del Toro assumisse a direção em alguns episódios. É esperar para ver.

terça-feira, fevereiro 22, 2022

Cobra Kai


Pratiquei caratê durante uns seis anos, dos 12 aos 18 (isso foi de meados dos anos 80 até o início dos 90), chegando à faixa verde, que é a terceira na categoria kyu ('discípulo'; a contagem é das mais altas para as mais baixas). A outra categoria chama-se dan ('mestre') e também tem suas graduações, embora todos os dan usem faixa preta. Como minha namorada, Cintia (neta de japoneses) já me ouviu recordar, receio que mais de uma vez, aprendi a contar até quatro em japonês graças a um dos vários exercícios que fazíamos no dojo ('academia'). Esse exercício era assim: obedecendo à contagem do sensei ('mestre'), dávamos um passo em frente, acompanhado do golpe que estivéssemos praticando no momento, a cada número que ele enunciava. Ao chegar à parede, fazíamos meia-volta e a contagem recomeçava. Ou seja, se a sala fosse maior, eu teria aprendido mais números!

Essa piadinha pueril que circulava no dojo ilustra bem o fato de que, ainda que o caratê nos desse um nível de foco e disciplina que a maioria não tem na nossa idade, mesmo assim éramos garotos (garotOs: em seis anos no dojo, acho que vi umas quatro ou cinco meninas, e uma era filha do professor), e, como nove entre dez garotos, adorávamos filmes de artes marciais. Entre os mais populares estava a trilogia Karate Kid, cujos filmes saíram em 1984, 86 e 89; vi o primeiro quando fazia cerca de um ano que treinava – passou na TV, que era como a gente via filmes na época, de modo que todo mundo viu ao mesmo tempo, e, a partir daí, ele foi o assunto forte na academia durante semanas. O segundo chegou aos cinemas pouco depois que o primeiro passou na TV, e o terceiro, alguns anos depois, e eles também causaram seu impacto, ainda que menor. Nosso sensei nunca disse uma palavra sobre esses filmes; pensando a respeito hoje, creio que ele apreciava a motivação que aquilo nos trazia, e preferia não nos desiludir explicando que muito do que os filmes mostravam era pura fantasia. De todo modo, descobriríamos isso mais cedo ou mais tarde, caso continuássemos treinando.

Acho difícil que alguém que esteja me lendo não tenha visto o primeiro Karate Kid, ou não teria se interessado em ler a respeito de Cobra Kai, então talvez eu nem precisasse falar sobre ele, mas não parece certo não dar ao menos um resumo básico (prometo tentar mantê-lo realmente básico). O jovem Daniel Larusso (Ralph Macchio) começa a frequentar uma nova escola depois de mudar-se, e nela conhece e se interessa por Alison "Ali" Mills (Elizabeth Shue), uma garota bonita, rica e popular que é animadora de torcida (é um filme para adolescentes, então relevem os clichês). Ela também gosta dele, embora Daniel seja apenas um calouro magrelo, pobre e sem nada de excepcional (relevem também as inverossimilhanças). Ocorre que Ali, até pouco tempo antes, namorava Johnny Lawrence (William Zabka), que por acaso é o campeão regional de caratê e não aceitou a decisão dela de terminar. Como resultado, Daniel passa a sofrer bullying violento com frequência – e nem sempre de forma inocente: por vezes ele bem que provoca. Quando está levando uma surra particularmente dura aplicada por Johnny e vários de seus amigos que também são lutadores, o garoto é salvo pelo Sr. Miyagi (Noriyuki "Pat" Morita), que trabalha como zelador e faz-tudo no condomínio modesto onde ele mora. Ao ver aquele japonês idoso e baixinho nocautear cinco atletas de caratê de uma vez só, Daniel percebe que o homem é muito mais do que aparenta, e o convence a lhe ensinar caratê para que possa se defender. Durante seu treinamento, ele recebe de Miyagi uma série de lições que, embora direcionadas ao caratê, encontram aplicação nas mais diferentes situações da vida. O filme termina com Daniel e Johnny se enfrentando no torneio regional, e o final dá a entender que a vitória (dramática, como teria que ser) alcançada pelo primeiro deve ter posto fim ao seu tormento.
 
Os outros dois filmes são apenas desdobramentos do primeiro. O segundo, ambientado na maior parte em Okinawa (a província natal do Sr. Miyagi, no sul do Japão, e provável local de origem do caratê) é legal; o terceiro é fraco, praticamente uma reciclagem do roteiro do primeiro, mudando apenas os detalhes. Existe um quarto filme que, apesar de contar com Morita novamente no papel de Miyagi, é considerado constrangedor por quase todos os fãs da saga; nele, o mestre treina uma nova aluna, interpretada por Hilary Swank. Ralph Macchio não participa – não que sua ausência seja o motivo da ruindade do filme, pois no terceiro ele está tão irritante que dá vontade de socá-lo, não fosse ele um lutador treinado. Esse quarto filme é solenemente ignorado nos roteiros de Cobra Kai, que têm sempre o maior cuidado em levar em consideração cada mínimo detalhe dos três primeiros.

A série estreou em 2018 no YouTube Premium, mas, depois de duas temporadas bem recebidas pelo público, foi adquirida pela Netflix. A terceira temporada saiu no início de 2021, e a quarta, no final do mesmo ano; a quinta já foi confirmada e é esperada para algum momento de 2022. A primeira coisa que chama atenção é o fato de os produtores terem conseguido trazer de volta praticamente todos os atores principais dos filmes (com exceção de Morita, que faleceu em 2005) e até mesmo muitos dos secundários. Os protagonistas são Daniel Larusso e Johnny Lawrence, novamente interpretados por Ralph Macchio e William Zabka, mas, diferente do que acontecia nos filmes, aqui a história é narrada, a priori, do ponto de vista do segundo. Isso fica evidente já no início do primeiro episódio, que exibe as cenas finais do primeiro Karate Kid, com Daniel nocauteando Johnny com o hoje clássico golpe do grou (ou garça), mas, depois do chute que decidiu a final do torneio em 1984, a câmera deixa de lado a comemoração de Daniel e seus amigos para focar em Johnny caído no tatami, atordoado e vencido. A seguir, corta para os dias atuais. Trinta e poucos anos depois de perder o título de campeão de caratê, Johnny sobrevive fazendo serviços de manutenção residencial e mora num condomínio humilde, muito parecido com aquele onde Daniel morava na adolescência – de certo modo, os papéis se inverteram, pois, na época, Johnny parecia ser um rapaz rico, que circulava numa imponente moto e frequentava o elitista country club local. Ficamos sabendo então que ele tem um padrasto rico, mas com quem nunca se deu bem e de quem não quer aceitar favores. Para piorar, tem uma tendência a beber demais. Daniel, em contrapartida, subiu na vida, e agora é dono de várias concessionárias de veículos espalhadas pelo Vale de San Fernando, um distrito de Los Angeles, bem perto de Hollywood e famoso por concentrar as produtoras de filmes adultos (não que isso tenha algo a ver com a história – risos). É casado com Amanda (Courtney Henggeler) e tem dois filhos, a patricinha Samantha (Mary Mouser) e o caçula Anthony (Griffin Santopietro), típico pré-adolescente pé-no-saco que sofre crise de abstinência se ficar uma hora sem celular ou videogame. Samantha, na infância, chegou a aprender caratê com o pai e com o Sr. Miyagi (agora já falecido), mas não pratica há anos, enquanto Anthony nunca teve o menor interesse na arte marcial.
 

Johnny encontra algum estímulo para sair de sua estagnação ao conhecer Miguel Diaz (Xolo Maridueña), filho de uma imigrante equatoriana, que acaba de se mudar para o mesmo condomínio junto com a mãe e a avó. Meio por acaso, salva-o de levar uma surra de um grupo de valentões da escola (é curioso como o mundo dá voltas), e nota-se sua satisfação, apesar de tudo, ao constatar que ainda é um excelente lutador. Começa por recusar os pedidos de Miguel para ensiná-lo, mas acaba não só aceitando, como decide recriar o Cobra Kai, nome do dojo no qual treinava na juventude. O Cobra Kai foi originalmente fundado por John Kreese (Martin Kove), um veterano da Guerra do Vietnã que, ao ensinar caratê, punha ênfase na agressão, inculcando em seus discípulos que "compaixão é para os fracos", o que explica, ao menos em parte, o comportamento truculento de Johnny e seus amigos nos velhos tempos. Portanto, as recordações de Johnny a respeito de seu mestre e do lugar onde aprendeu a lutar são ambivalentes: ali ele não aprendeu apenas como dar golpes e como defender-se deles – aprendeu também sobre disciplina e autoconfiança, lições que lhe podem ser úteis agora, que ele está novamente tentando dar um rumo a sua vida; por outro lado, sofreu uma lavagem cerebral que o transformou num indivíduo irracional e violento, um condicionamento do qual ele ainda luta para se livrar. Seu objetivo é passar aos jovens somente o que havia de bom nos ensinamentos que recebeu: como ele próprio diz, quer ensiná-los a "serem durões sem serem babacas". Infelizmente, nem todos os seus alunos assimilam essa lição, e alguns se aproveitam do fato de agora saberem lutar para virarem eles próprios os bullies.

Daniel fica inconformado ao saber que Johnny trouxe o Cobra Kai de volta e decide contra-atacar abrindo seu próprio dojo, o Miyagi-do, para ensinar caratê focado na autodefesa, tal como aprendeu com seu falecido sensei. Isso reacende a rivalidade entre os dois, mas nota-se que ambos amadureceram (embora nem sempre aparentem) e que têm respeito um pelo outro como lutadores, ainda que cada um ache que sua abordagem do caratê é superior. Em vários momentos chega a parecer que estão a ponto de se tornar amigos, mas, é claro, algo sempre acontece para estragar tudo.
 
 
Paralelamente ao conflito entre os dois senseis, a série também acompanha o que se passa com seus discípulos. Miguel, o primeiro aluno de Johnny, faz progressos impressionantes e torna-se um lutador de primeira linha, ao mesmo tempo que se envolve com Samantha, a filha de Daniel, que, por sua vez, redescobre o interesse pelo caratê e volta a treinar. Johnny, embora nunca tenha se casado, tem um filho com uma ex-namorada; o rapaz, Robby (Tanner Buchanan), tem a mesma idade de Miguel e Samantha e faz o tipo adolescente revoltado. Não quer ver o pai nem pintado e vive com a mãe, mas ela também não é nenhum grande exemplo de comportamento, nem se responsabiliza de fato por ele, de modo que Robby aprendeu a se virar sozinho desde muito cedo – a se virar do jeito errado, diga-se de passagem. Anda nas piores companhias, não estuda e se dedica a praticar pequenos furtos e outras contravenções. Consegue um emprego na concessionária de Daniel apresentando um currículo falso, e, na verdade, é tudo parte de um plano que fez com seus amigos pilantras para infiltrar-se no local e mais tarde roubá-lo, mas acaba se afeiçoando a seu chefe, que o trata de forma justa e lhe ensina muitas coisas – caratê inclusive – sem saber que ele é filho de seu velho rival, pois o garoto usa o sobrenome da mãe. Os ensinamentos de Daniel e o equilíbrio trazido pela prática do caratê vão gradualmente colocando Robby nos eixos; para Johnny, é como se Daniel estivesse roubando seu filho, tal como lhe "roubou" o título de campeão tanto tempo atrás. A certa altura, as coisas entre Miguel e Samantha desandam, e, por treinarem juntos no Miyagi-do, a garota já tinha proximidade com Robby, que sempre foi a fim dela (que é muito bonita, meiga, e ao mesmo tempo corajosa) e aproveita o afastamento entre ela e o namorado para "atacar"; esse triângulo amoroso está destinado a render muita história ao longo da série. Outros personagens jovens também têm lugar na trama, e a maior parte do elenco teen se sai surpreendentemente bem.

Sem dar muito spoiler, adianto que outros rostos do passado vão surgindo e trazendo reviravoltas que obrigam Johnny e Daniel a trabalharem juntos, o que, no entanto, nunca acontece sem atritos. A série tem roteiros ágeis, com as doses certas de ação e drama; as partes românticas não são exageradas a ponto de se tornarem enjoativas, nem as partes de luta a ponto de cansarem (há também momentos de humor aqui e ali). Como dito acima, muitos atores da trilogia de longas-metragens (muitos mesmo) vão reaparecendo um por um, dando vida novamente a seus antigos personagens, o que é empolgante e divertido – puro fan service da melhor qualidade! Para dar uma ideia, até Randee Heller, que interpretava Lucille Larusso, mãe de Daniel, está de volta, velhinha como sua personagem teria que estar depois de mais de 30 anos. Rob Garrison, que fazia o papel de Tommy, um dos lutadores do Cobra Kai original e amigo de Johnny, retorna num episódio que investe na nostalgia – já muito debilitado pela doença que o mataria pouco depois.
 
No que diz respeito ao caratê em si, não sou um especialista, mas, como contei, cheguei a ter contato com a coisa e digo que, nesse quesito, Cobra Kai supera bastante os filmes que lhe deram origem. Nos filmes, sempre me incomodaram a falta de postura (postura mesmo, física) e os movimentos moles de Ralph Macchio; mesmo um aprendiz como eu podia ver que ninguém conseguiria lutar um caratê decente daquele jeito. Nosso sensei sempre nos cobrou energia e firmeza: cada movimento devia ser feito com força, os músculos precisavam funcionar. Em comparação com os filmes, a série cuidou muito melhor dessa parte; com certeza contou com mestres de artes marciais como consultores, e provavelmente os atores tiveram que treinar de verdade, o que não significa que tudo ali seja realista. Entre outras coisas (naturalmente), no mundo real ninguém se torna um lutador em questão de algumas semanas, como os alunos de Johnny e Daniel, mas, na minha opinião, dá para perdoar essa "licença poética" numa boa.
Vou confessar, tive um certo receio do que iria encontrar quando decidi assistir Cobra Kai; teria sido péssimo descobrir que o legado dos filmes Karate Kid só estava sendo usado como pretexto para empurrar um monte de lacração (o que não seria inesperado vindo do YouTube, e ainda menos da Netflix), mas, depois de ver alguns episódios e ter tempo de sentir a vibe da série, a sensação foi de alívio, além da empolgação. Pois Cobra Kai, surpreendentemente, não só nos poupa do insuportável discurso politicamente correto, como até mesmo tem a ousadia de tirar um leve sarro dele. Johnny é o próprio estereótipo do "macho hétero top" que, para os progressistinhas de Twitter, resume tudo o que há de errado no mundo (em muitos círculos, "hétero" virou pejorativo): gosta de cerveja, de rock das antigas (nada posterior aos anos 80), de carros, motos, filmes de ação (tem uma epifania ao assistir a uma reprise do clássico Águia de Aço), esportes de combate (claro!!) e não entende muito bem o mundo moderno com sua tecnologia e suas frescuras – e isso tudo rende momentos engraçados, mas não é apresentado de forma negativa. Mesmo com seu passado de vilão, Johnny é um personagem com quem nos importamos e por quem torcemos. Há uma cena impagável em que uma nova aluna se apresenta à turma e, depois de dar o nome, acrescenta que seus pronomes são "ela" e "dela". (Parêntese: para quem não sabe que besteira é essa, é costume na Lacrolândia colocar no seu perfil nas redes sociais os pronomes que você quer que as pessoas usem para falar de você, porque, no mundo do politicamente correto, é considerado violência presumir o sexo [ou "gênero", como eles dizem] de alguém mediante uma mera inspeção visual; se um sujeito barbudo, peludo e musculoso, cujo RG o identifica como Alcides, declarar que está se sentindo mulher, quiser ser chamado de Shirley e que se refiram a ele como "ela", todo mundo tem que fazer isso. Fim do parêntese.) Johnny replica que os únicos pronomes que importam ali são "sensei" e "aluno". A garota diz que esses são substantivos, e o mestre encerra o papo: "Oh, desculpe. Eu quis dizer CALE A BOCA!" Perfeito!! Ao longo da série, mais de um garoto moloide e cheio de não-me-toques se transforma depois de algum tempo no dojo – em qualquer dos dojos.

Colocando a questão em palavras simples, o fato é que o caratê e outras artes marciais são a antítese dessa cultura da glorificação da fraqueza que nos cerca hoje. O mundo está cheio de jovens "floquinhos de neve" – mimados, frágeis, hipersensíveis – que se ofendem e se magoam com tudo e são absolutamente incapazes de qualquer coisa que exija um mínimo de determinação ou sacrifício, e isso nem é o pior: o pior é que a mídia e grande parte da sociedade incentivam e recompensam esse tipo de atitude. No caratê, você precisa de força de vontade para obter qualquer progresso, precisa se acostumar à obediência pronta, a treinar sempre, não importa se está disposto ou não, a conviver com a dor, a esforçar-se pela vitória mas encarar serenamente a possibilidade da derrota, e precisa aprender a não se abalar com um corretivo severo aplicado pelo seu sensei; precisa fortalecer o corpo e o espírito. Enfim, ele desenvolve virtudes que aqueles que controlam a mídia atual não querem que as pessoas tenham. Portanto, apostar numa série com essa temática foi uma iniciativa corajosa, e a excelente recepção que ela vem tendo é um bem-vindo sinal de que ainda podemos ter alguma esperança de que a humanidade não acabe morrendo afogada num oceano de cancelamentos e pronomes neutros.

quinta-feira, julho 30, 2020

Black Mirror

O uso imprudente (ou simplesmente tolo) da tecnologia é mais um dentre os muitos aspectos de uma questão muito maior: o Homo sapiens está, no mínimo há alguns séculos, vivendo num mundo para o qual ele não foi feito. Ao longo da nossa evolução, sempre precisamos lutar dia a dia por comida, e, na natureza, essa luta é constante e quase sempre feroz. Antes de aprenderem a estocar e conservar alimentos, nossos ancestrais se condicionaram durante centenas de milhares de anos a comer o quanto conseguissem quando havia comida disponível, já que ninguém sabia quando isso aconteceria de novo. De modo semelhante, nosso paladar evoluiu para achar agradáveis os sabores doces, porque coisas como mel ou certas frutas forneciam muitas calorias – que, naqueles tempos, eram preciosas. Hoje, graças à agropecuária moderna, aos transportes e ao comércio, a maioria de nós tem comida disponível na hora que precisar e na quantidade que quiser, mas o instinto de se empanturrar e o de gostar de doces continuam vivos no ser humano. Em consequência, as outrora escassas e valiosas calorias viraram um problema, e agora vamos à academia para gastá-las, fazendo movimentos que não têm qualquer finalidade prática – coisa que nossos ancestrais considerariam loucura. Coisa parecida acontece com o sexo: em uma hora navegando no XVideos, você provavelmente se expõe a mais estímulo sexual do que um ser humano médio era exposto durante toda a vida, um mero século atrás – e, como o nosso cérebro não sabe a diferença entre sexo virtual e real, não há dúvida de que isso, de algum modo, nos afeta. A tecnologia (e por esse nome não me refiro apenas a coisas como computadores e smartphones: a clava do homem primitivo já era tecnologia) surgiu para nos ajudar com problemas que tínhamos dificuldade em resolver sozinhos, e contribuiu de forma decisiva para a sobrevivência de nossa espécie mais vezes do que conseguimos contar – era o caminho mais recorrente que encontrávamos para usar nossa inteligência de maneiras que compensassem nossa debilidade física. Hoje, porém, ela mudou seu foco e, eu ousaria dizer, sua própria razão de ser: com nossa sobrevivência já garantida (pelo menos em relação às coisas que nos ameaçavam no passado), a tecnologia se propõe agora a ser uma extensão do próprio ser humano, mudando radical e talvez irreversivelmente a nossa maneira de interagir com o mundo e uns com os outros. Neste post tentarei comentar uma obra que trata de tudo isso.

Se me pedissem para descrever Black Mirror usando um único adjetivo, isso seria bem fácil, e esse adjetivo seria necessária. A série criada por Charlie Brooker apresenta uma história independente em cada episódio (apesar de vários deles parecerem frouxamente interligados entre si, muitas vezes por meio de detalhes que, para serem notados, exigem do espectador um certo grau de atenção), mas todos têm algo em comum: tratam da relação dos seres humanos com a tecnologia, e, na maioria das vezes, não de uma forma que nos deixe otimistas. E, ainda que isso seja penoso e exija de nós um bocado de coragem, essa questão precisa ser enfrentada – temos que respirar fundo e olhar nesse "espelho" (em inglês, mirror), pois dificilmente poderia haver um tema mais atual e que fosse mais relevante para um número tão grande de pessoas – praticamente a humanidade toda, a bem dizer.

A série nasceu na rede de TV britânica Channel 4, e sua primeira temporada foi ao ar em 2011. Eram apenas três episódios, já que se tratava de uma aposta um tanto arriscada: implicava em custos de produção consideráveis e não se sabia como seria a receptividade do público, entretanto parece que o saldo foi positivo, pois uma segunda temporada surgiu dois anos depois, com mais três episódios (como se vê, não é uma série recomendável para pessoas ansiosas). Em 2014 veio um único episódio, um especial de Natal com duração mais longa que o normal da série e seguindo aquela estrutura de filme-antologia que era popular no gênero terror durante os anos 80: havia uma história-moldura e, dentro dela, por meio de narrações, eram apresentadas três histórias curtas e (relativamente) independentes. No ano seguinte, a Netflix comprou a série, e, na sequência, anunciou novas temporadas, que chegaram em 2016 e 2017, cada uma com seis episódios. Outro especial foi lançado em 2018, Bandersnatch, um "filme interativo", no qual o espectador, via controle remoto, escolhe as ações do protagonista dentre duas ou três opções, e a soma de todas as suas decisões levará a um dos vários finais possíveis – é como naqueles livros tipo Enrola & Desenrola. A quinta e, até este momento, última temporada estreou em 2019 e tem três episódios.

O único gênero no qual consigo encaixar Black Mirror é a ficção científica, embora fazer isso pareça um pouco estranho, por razões fáceis de entender para quem vê a série, mas difíceis de explicar. Alguns episódios poderiam facilmente acontecer no mundo de hoje, com a tecnologia que já existe – na verdade, coisas parecidas já acontecem –, e outros parecem estar a um estalar de dedos de distância, quando pensamos em como a sociedade em que vivemos lida com coisas como redes sociais ou realidade virtual. O episódio da terceira temporada Queda Livre, por exemplo, retrata uma realidade na qual a dinâmica de like/dislike das redes sociais foi estendida para as interações presenciais do dia a dia: cada vez que interage com alguém no trabalho, na rua ou até em casa, você avalia essa pessoa numa escala de cinco estrelas; graças a certos implantes biocibernéticos que, nessa época, todo mundo tem, qualquer pessoa sabe instantaneamente a média de avaliações de qualquer outra, tão logo põe os olhos nela. Essa média é o que determina o que você é: um indivíduo popular, de quem todos querem ser amigos (para elevar suas próprias médias, é claro) ou um pária que as pessoas fingem não enxergar, tendo a entrada barrada em muitos lugares e sendo preterido no atendimento em estabelecimentos comerciais, aeroportos e até mesmo hospitais. Conclusão: hoje, em 2020, nós já vivemos num mundo onde o que você aparenta nas redes sociais é mais importante que o que você realmente é; tudo o que o mundo de Queda Livre tem de diferente é um tiquinho de tecnologia a mais – e as consequências assustadoras disso tudo. Talvez só a falta desse tiquinho de tecnologia esteja nos poupando, por enquanto, de arcar com essas consequências.

Em certa ocasião, numa entrevista, Charlie Brooker declarou que a tecnologia também é um tipo de droga, e, sendo assim, é uma preocupação válida se nos perguntarmos quais podem ser os seus efeitos colaterais – e esse é o motor que move Black Mirror. Não é mera força de expressão. Li tempos atrás na Superinteressante (salvo engano) a respeito de um estudo que indicava que é mais fácil uma pessoa se livrar do vício em crack que em redes sociais. O paralelo é completo: pode-se ter crise de abstinência de Facebook, Twitter e sei lá o que mais – nunca me interessei por essas coisas, e parece que foi melhor assim. É claro que a série não poderia ignorar esse assunto, que é pincelado em vários episódios, mas tem papel central em Smithereens, da quinta temporada, que conta a história de um homem em crise, que se culpa pela morte da noiva, há alguns anos: ele estava dirigindo o carro em que ambos viajavam, quando seu celular deu o alerta de alguma atualização em sua rede social favorita, e ele olhou. Esses segundos de distração causaram o acidente que custou a vida dela. Ele decide então sequestrar um alto executivo da empresa proprietária da rede social e ameaçar matá-lo, a menos que o todo-poderoso CEO da tal empresa converse com ele. Eis um episódio que pode levantar polêmica – polêmica de verdade, não do jeito como a tchurma da internet usa, chamando de "polêmica" qualquer coisa que cause hype e deixando claro que quem produz o conteúdo não tem a menor ideia do que essa palavra significa. Aqui cabe polêmica mesmo. À primeira vista, pôr a culpa nas redes sociais pelo uso obsessivo que muita gente faz delas (e que pode prejudicar seriamente suas vidas, de várias maneiras) parece tão sem sentido quanto querer processar o McDonald's exigindo indenização pela sua obesidade ou problemas cardiovasculares – afinal, ninguém obriga ninguém a se entupir de junk food cinco vezes por semana, nem a ficar 12 horas por dia numa rede social até isso ferrar seu cérebro e acabar com qualquer vida normal que porventura tivesse… Porém, a coisa muda de figura quando ficamos sabendo que as empresas de redes sociais têm departamentos inteiros que trabalham em tempo integral para encontrar maneiras de tornar o uso delas cada vez mais compulsivo, recorrendo para isso a todo o conhecimento que as ciências do comportamento podem oferecer.

Se alguns episódios de Black Mirror parecem se ambientar no presente (em geral, numa versão alternativa do presente), ou num futuro que pode ser real dentro de cinco, dez anos, outros chutam mais longe no campo da ficção científica, descrevendo futuros um pouco mais distantes, mas sempre com foco na questão da tecnologia e/ou mídias sociais. É o caso de Quinze Milhões de Méritos (primeira temporada), que retrata o cotidiano de pessoas que passam seus dias pedalando em bicicletas fixas para gerar energia, dentro de complexos aparentemente construídos para isso, sem contato com o mundo exterior. De acordo com a quantidade de energia que produzem, eles ganham méritos, que são uma espécie de moeda virtual com a qual podem adquirir desde comida até pequenas bobagens tecnológicas, acesso a jogos, TV etc. E, como a política do pão e circo nunca perde a atualidade, há um programa de talentos estilo The Voice que é extremamente popular; por meio dele um punhado de ex-pedaladores tornaram-se artistas de sucesso e alcançaram uma vida de glamour e conforto, o que, naturalmente, é o sonho de milhares, quiçá milhões. A inscrição para participar custa os 15 milhões de méritos do título, o que equivale a vários meses de trabalho frenético nas bicicletas. A história do episódio gira em torno de um jovem (o excelente Daniel Kaluuya, de Corra!), que se apaixona por uma garota com talento de cantora, mas que não tem como pagar a inscrição no programa. Ele a patrocina e ela realmente consegue participar, mas o resultado acaba sendo desastroso – muito pior do que ela levar "buzina", ou o equivalente a isso. O episódio termina dando-nos um doloroso tapa na cara para mostrar como até mesmo o protesto pode virar mercadoria comerciável e um instrumento a mais para fortalecer o status quo.

Pesquisando na internet em busca de informações sobre Black Mirror, vim a saber que as duas primeiras temporadas (as que foram lançadas enquanto a série ainda pertencia ao Channel 4) são as favoritas da maioria dos fãs; para mim, parece que essas pessoas estão cedendo ao instinto (tão comum) de dar mais valor ao que é alternativo só por ser alternativo, como quem pensa "ah, a Netflix é muito mainstream, não vai pegar bem se eu disser que ela fez um bom trabalho, tenho que ser da opinião de que a série só foi boa enquanto estava num canal menor e que, quando passou para a Netflix, decaiu – assim todo mundo vai me achar fodão". Minha própria opinião é que a primeira temporada é, de fato, muito intensa, mas não dá para dizer o mesmo da segunda, que tem um episódio forte, Urso Branco, um mediano, Volto Logo, e tem também Momento Waldo, a meu ver um dos episódios mais fracos de toda a série. A terceira e a quarta temporadas têm muito mais momentos marcantes, e mesmo a quinta, de modo geral execrada, tem coisas interessantes (já citei Smithereens). Suponho que a maior parte da bronca que muitos têm com essa temporada seja por causa do episódio Rachel, Jack e Ashley Too, uma história leve (para os padrões de Black Mirror, bem entendido) e com final otimista, o que deve ter decepcionado muita gente que, num episódio da série, espera ver coisas terríveis, trágicas ou chocantes. A participação da cantora Miley Cyrus, no papel de uma estrela pop (nããão, jura?!), também deve ter desagradado aos mais radicais. De minha parte, acho a variação de tons entre os episódios uma boa coisa; caso venham mais temporadas, espero ver um equilíbrio entre histórias mais tensas e outras mais divertidas. Não há motivo para que o futuro precise ser sempre retratado de modo tão negro e ameaçador. E, para falar francamente, Rachel, Jack e Ashley Too está longe de ser o melhor episódio de Black Mirror, mas está ainda mais longe de ser o pior.

Embora vários temas ligados à tecnologia sejam abordados na série, talvez o mais recorrente (e, pelo menos para mim, de longe o mais inquietante) é a possibilidade (teórica) da migração da consciência humana para algum tipo de dispositivo artificial. Em San Junípero (terceira temporada), pessoas próximas da morte podem ter a totalidade do conteúdo de suas mentes escaneada, copiada e carregada em poderosos servidores que rodam simulações virtuais perfeitas do mundo real, em qualquer época ou lugar que se deseje; na teoria, a pessoa pode passar a eternidade revivendo os momentos agradáveis de sua vida e/ou vivendo experiências novas, e, como o corpo que ela tem nas simulações é puramente virtual, pode descartar a idade e quaisquer doenças, voltar a ser jovem e forte e permanecer assim para sempre. Na teoria. À primeira vista, isso de fazer upload da sua mente para um computador pode parecer ótimo, e, em princípio, deve ser possível, pois, como dizia Joachim Kleronomas, uma mente humana é feita de memórias, memórias são dados, e dados podem ser copiados. Porém, se isso um dia se tornar factível, me parece, por simples lógica, que sua versão digitalizada não será realmente você. Para dar um exemplo: se sua mente for copiada para um substituto eletrônico de cérebro, e este for implantado num corpo robótico ou clonado (Westworld também lida com essa ideia), a criatura resultante pode parecer você, agir como você, pensar como você, pode até acreditar ser você, mas não creio que a sua consciência vá estar ali, que você realmente vá ver através daqueles olhos e experimentar as sensações daquele corpo. Será uma cópia sua, uma máquina programada para agir como se fosse você, e não mais que isso. Seu verdadeiro "eu" terá sido extinto ou terá migrado para outro plano de existência, conforme a crença que você tenha – enfim, você terá morrido, como sempre aconteceu com os seres humanos desde o princípio. Em palavras simples, acredito que seja possível copiar uma mente, mas não transplantá-la. Mas posso estar enganado, é claro.

O upload de consciência tem um papel-chave, também, no que talvez seja o episódio mais perturbador de todos (e é sem dúvida um dos melhores), Black Museum, o último da quarta temporada – mas se eu fosse descrever exatamente de que forma esse conceito é usado no episódio, teria que dar um spoiler pelo qual ninguém me perdoaria. Assim como Natal, trata-se de um filme-antologia. Na história principal, acompanhamos uma jovem que está viajando de carro pela estrada que corta o deserto no estado de Utah (Salt Lake City é mencionada) quando para num posto de combustíveis no meio do nada, só para descobrir que ele está fechado e vazio. Ela põe o carro para carregar usando a energia solar, mas isso demorará horas, e então, como se fosse uma decisão tomada de improviso, só para matar o tempo, ela vai até um estranho museu que fica exatamente ao lado – o Black Museum, cujo proprietário, administrador e cicerone é um homem chamado Rolo Haynes. Haynes explica à visitante que trabalhou durante muito tempo para a TCKR (empresa de tecnologia que aparece também em outros episódios) e esteve envolvido com certas experiências inovadoras e pouco ortodoxas, uma das quais acabou causando sua demissão. Então criou o museu, que reúne uma coleção de itens tecnológicos ligados de alguma forma ao crime ou tragédias. Ele conta as histórias de três dos objetos em exibição, mas o espectador atento reconhecerá outros, mostrados quase de relance, que tiveram papéis fundamentais em episódios anteriores. Por fim, a visitante é conduzida à atração principal do museu, sobre a qual não darei detalhes, mas, talvez mais que qualquer outro tema na série, essa revelação nos leva a refletir que a simbiose homem/máquina, que já começa a se tornar realidade em nossos dias, pode, sim, ter possibilidades (teóricas, insisto) fascinantes, mas também tem outras extremamente assustadoras e macabras. Tudo vai depender de como essas possibilidades vierem a ser exploradas, é claro, mas, se levarmos em conta o jeito como outras tecnologias têm sido aplicadas ao longo da História… Bem, acho que vocês me entendem.

Meu objetivo com este post foi apenas dar a quem ainda não assistiu uma ideia preliminar do que é Black Mirror, mencionando alguns episódios que considero relevantes; há vários outros que mereceriam destaque, e, se outra pessoa for redigir um texto com a intenção de apresentar a série, ela certamente escolherá episódios diferentes para citar. Há muitos sites e blogs por aí com análises aprofundadas, seja da série como um todo ou de episódios específicos – recomendo especialmente o Farofa Geek, que oferece uma interpretação fascinante a respeito de Black Museum, mas só leiam depois que tiverem assistido ao episódio. Minha conclusão será modesta, apenas reiterando que Black Mirror é muito necessária. Deveria ser vista por todos, já que todos vivemos nesse mundo maluco, e a maioria de nós viverá o suficiente para vê-lo tornar-se mais maluco ainda. É claro que a série dificilmente escapará da mesma sina que afeta a maior parte da ficção científica: por mais que suas previsões nos pareçam espantosas, a realidade, no devido tempo, muito provavelmente fará essas previsões parecerem tímidas e conservadoras. Ainda assim, ela vale por uma espécie de vacina mental, e talvez nos deixe um pouco mais preparados para o que deveremos ver aparecer durante os próximos anos e décadas.

quinta-feira, janeiro 09, 2020

13 Reasons Why

Dramas protagonizados por indivíduos comuns não são bem o tipo de obra que costuma me atrair a atenção; meus gostos inclinam-se muito mais para coisas que me permitem esquecer um pouco a realidade, que, via de regra, consegue a proeza de ser ao mesmo tempo tão complicada e tão pouco interessante. Daí a minha preferência por fantasia, ficção científica, terror, ficção histórica, e, no campo do audiovisual, filmes e séries que transponham para a tela esses mesmos gêneros. Mesmo assim, às vezes é bom aventurar-se com algo diferente, e, xeretando o catálogo da Netflix um dia desses, topei com 13 Reasons Why, sobre a qual já havia lido algo. Decidi dar uma chance à série e não me arrependi.

A adolescência tem seus espinhos e desafios, isso faz parte dela; são coisas que, na maioria, podem parecer bobas se vistas pelos olhos de um adulto, a menos que ele ainda lembre como é ter 15, 16, 17 anos – e um número surpreendente parece não lembrar. OK, há coisas que são mesmo bobagens, e os jovens que hoje dão muita importância a elas provavelmente vão se sentir envergonhados ou rir de si mesmos ao pensarem nisso daqui a 20 anos, mas outras são questões sérias, ao menos para quem as está enfrentando e não tem ainda a experiência e a sabedoria que poderiam torná-las mais fáceis. Seja como for, a maioria de nós, aos trancos e barrancos, acaba superando essas chuvas e trovoadas e seguindo a vida. A maioria, mas nem todos. 13 Reasons Why gira em torno de uma jovem que faz parte da minoria para quem a aventura da adolescência acaba mal. Trata-se de uma obra de ficção, mas inspirada (talvez se possa dizer baseada) em um grande número de casos reais – isso fica claro e aparente, mas infelizmente não encontrei mais detalhes sobre o provável trabalho de pesquisa levado a cabo pelo autor Jay Asher, e que resultou no livro que deu origem à série. No Brasil, esse livro foi publicado como Os 13 Porquês; em Portugal, chama-se Por 13 Razões.

A escola secundária Liberty está de luto, e com ela toda a comunidade da pequena cidade de Evergreen. Hannah Baker (Katherine Langford), aluna do último ano, tirou a própria vida poucas semanas atrás. Ainda em meio à comoção geral, um rapaz de nome Clay Jensen (Dylan Minnette) recebe uma caixa contendo sete fitas cassete, que, como ele descobre, foram gravadas pela própria Hannah e contam o que a levou a fazer o que fez. Cada fita tem 60 minutos, e, com exceção da última, cada uma está gravada de ambos os lados; em cada uma dessas 13 sessões de 30 minutos, Hannah se dirige a uma pessoa diferente, que, segundo ela, contribuiu por meio de seus atos para levá-la ao suicídio.

Sim, vocês leram certo: fitas cassete. Para os colegas de Hannah (e para o resto dessa geração nascida na virada do século), é mais ou menos como se ela tivesse registrado sua história num conjunto de tabletes de argila, utilizando caracteres cuneiformes sumérios. A maioria não tem em casa qualquer aparelho capaz de reproduzir esse tipo de mídia, e muitos nunca nem viram um aparelho desses – um sinal de que ela não estava disposta a facilitar as coisas para aqueles a quem essa mensagem final era dirigida. A garota deixou instruções precisas: a caixa deve ser enviada a essas mesmas pessoas, uma por vez, na mesma ordem em que elas aparecem nas gravações. Quem a recebe deve: 01) ouvir todas as fitas; 02) passá-las ao próximo da lista. Naturalmente, Hannah não tinha como obrigar os destinatários a cumprir a primeira parte, mas a segunda, sim: ela garante que outra cópia das fitas foi deixada com uma pessoa de sua inteira confiança, e que, se alguém quebrar a corrente, essa pessoa levará o material a público, o que será, no mínimo, constrangedor para todos, e poderá causar enormes problemas a um ou dois dos contemplados, que praticaram atos bem mais graves que mero bullying ou espalhar boatos.

Hannah não era natural de Evergreen e era quase uma novata: só estava na escola Liberty desde o início de seu penúltimo ano. Portanto, não tinha grandes amigos, estava um tanto insegura em relação a sua integração social e, embora fosse muito atraente, não desfrutava de nenhuma popularidade notável. Essa questão da "popularidade", por sinal, sempre me intrigou. Qualquer pessoa que assista regularmente a filmes e/ou séries (de qualquer gênero que for) feitos nos EUA, e que retratem o cotidiano daquele país, está mais ou menos a par de como o universo dos adolescentes americanos parece funcionar. Já me perguntei se seria mesmo do jeito que o cinema e a TV mostram, mas, a julgar pela consistência com que o fazem, a resposta parece ser positiva – sem esquecer os livros de Stephen King, principalmente Carrie e Christine, que corroboram isso tudo, e olhem que King foi professor antes de ser escritor, de modo que devia saber do que falava ao escrever esses romances. Eu passei pelo ensino médio, vocês também devem ter passado, então sabemos como é a vida numa escola secundária no Brasil. Há bullying e todo tipo de comportamento estúpido, naturalmente, mas em lugar nenhum vi uma estratificação explícita e rígida como parece existir nas escolas norte-americanas: de um lado o hot people, do outro os losers. Lá, os atletas e as animadoras de torcida; aqui, os aficionados da informática, os jogadores de RPG, o pessoal do clube de xadrez, os nerds em geral. E os dois grupos não se misturam. Os hots, embora possam, em teoria, andar por onde quiserem, certamente não vão jogar RPG nem participar do clube de xadrez, para não mancharem sua imagem – pois, afinal, imagem é tudo. Já os losers não podem andar por onde quiserem: se um deles sentar no lugar errado na lanchonete, apanha. Felizmente, esse estado de coisas parece só durar o tempo que se leva para sair do ensino médio: os nerds que hoje ganham salários de seis dígitos no Vale do Silício devem se divertir lembrando dos atletas bonitões que os oprimiam e humilhavam alguns anos atrás, e que agora estão provavelmente trabalhando em postos de gasolina. De qualquer forma, essa microssociedade das escolas secundárias parece ser sempre mais ou menos igual, e a Liberty não é exceção: também nela há aquele punhado de rapagões musculosos que andam sempre com a jaqueta do uniforme esportivo da escola, pegam as garotas gostosas e adoram tornar um inferno a vida de quem não for da sua tribo.

O espectador acompanha a história pelo ponto de vista de Clay, um garoto que pode ser definido como um tipo intermediário: não é nem um atleta pegador, nem um caso perdido de nerdice. Ele conhecia Hannah de vista, da escola, até os dois começarem a trabalhar juntos no cinema local; a partir daí, tornaram-se mais próximos, e houve um ou dois momentos em que rolou um clima, mas nunca chegaram a namorar ou mesmo a "ficar" propriamente. É fácil ver que Clay era completamente apaixonado pela garota, e que já estava sofrendo antes dela se matar, por achar que tinha "estragado as coisas" de modo irremediável entre os dois – e, o que é pior, sem saber o que tinha feito de errado. Quando Hannah consumou seu ato, acabando com qualquer possibilidade de remediar o que quer que fosse, Clay ficou devastado. Ao ouvir as fitas, ele fica sabendo de detalhes sobre alguns fatos que até então só conhecia em linhas gerais, e descobre outros que ignorava por completo. Essas revelações o abalam e chocam, e ele decide que não poderá descansar nem seguir com sua vida até que certas pessoas respondam pelo que fizeram. Os pais de Hannah (que nada sabem sobre as fitas) já estão movendo um processo contra a escola alegando que houve negligência, que a direção do estabelecimento não prestou a assistência psicológica de que a garota necessitava e tampouco adotou ações para impedir o bullying e outras formas de perseguição. Clay, em princípio, também quer que as coisas sigam a via regular, fazendo tudo ao seu alcance para que os culpados sejam levados à justiça – mas às vezes seu sangue ferve e ele se sente inclinado a tentar fazer justiça com as próprias mãos.

Hannah parecia ser uma jovem de alguma personalidade, que não ligava muito para a tal popularidade – e bem que poderia tê-la conseguido se quisesse, pois, como era bonita, tinha chances de ser selecionada para as animadoras de torcida, mas parece que sua opinião a respeito disso era igual à minha: essa coisa de animadoras é uma idiotice que, no fundo, objetifica e diminui as garotas, ainda que, aos olhos da comunidade estudantil, elas sejam praticamente semideusas, disputadas pelos atletas populares e completamente inacessíveis ao resto dos rapazes. Apesar disso, Hannah não escapa das peças que o coração prega em todos nós e nos adolescentes em particular: acaba apaixonada por um dos tais atletas populares, um rapaz chamado Justin Foley (Brandon Flynn). Os dois têm um encontro no qual o máximo que acontece é um beijo – só que Justin espalha na escola uma versão bem diferente. Esse ato (tão comum) de babaquice teen dá início à marcha da vaca para o brejo na vida de Hannah. Mas haverá muito mais: ela tem a pouca sorte de ser colega também de Tyler Down (Devin Druid), um garoto impopular, tímido e oprimido, com quem o espectador sentiria um impulso de se solidarizar, não fosse por ele ser também um voyeur de carteirinha, que se aproveita de seu trabalho de extensão em fotografia (é uma espécie de fotógrafo oficial da escola) para espionar garotas bonitas e clicá-las nos momentos mais íntimos possíveis. Ele chega ao ponto de descobrir onde Hannah mora e ficar de tocaia, escondido na frente da casa, espionando-a através da janela. Por sinal, a série dá a impressão de que em Evergreen todo mundo faz tudo de janela aberta, e também de que não só espiar, mas até mesmo entrar e sair por uma (sem nunca ser visto) é a coisa mais fácil que existe. Hannah acaba por perceber que está sendo stalkeada e, meio por acaso, conta isso a Courtney Crimsen (Michele Selene Ang), uma garota que ela não conhece muito, mas que acredita ser uma possível amiga, e que se oferece para ajudá-la a dar uma lição no tarado. Courtney parece ter boas intenções, mas há um detalhe: ela gosta de meninas e tem uma queda por Hannah. Na casa desta última, as duas planejam uma armadilha para Tyler, e, nervosas, decidem tomar um gole de alguma coisa surrupiada da adega dos pais de Hannah "para ganhar coragem"; acabam tomando mais que um gole e, já "alegres" demais, trocam uns beijos, completamente esquecidas do paparazzo, que, é claro, aproveita a chance e registra o momento "desinibido" das duas garotas. No dia seguinte suas fotos já estão fazendo sucesso na escola, de modo que, além da fama de garota "fácil", Hannah agora também tem a de bissexual. Logo ela está sendo alvo de abordagens grosseiras por parte de vários rapazes, além de comentários sem noção, tanto de rapazes quanto de garotas. Por mais que ela não ligue para a popularidade, é próprio da adolescência preocupar-se com a opinião do grupo social, e isso tudo vai fazendo-a entrar em parafuso. Esses dois episódios parecem ter sido o gatilho, mas vários outros acontecem (alguns muito, muito piores), quase sempre envolvendo as "pessoas das fitas". Para Clay, ouvir a história de Hannah é uma tortura, e o pior de tudo é o próprio fato de estar incluído na "lista dos 13": o que ele pode ter feito que tenha contribuído para fazer a garota que amava se matar? Por uma ou duas vezes ele pensa estar ouvindo sua própria fita e tem um alívio momentâneo quando, ao continuar, percebe que, na verdade, estas se referem a outras pessoas, mas isso apenas adia a hora de saber qual foi realmente sua participação na tragédia. Querer desesperadamente saber algo, mas, ao mesmo tempo, ter medo da resposta, é uma situação horrível, mas pela qual acho que todo mundo já passou ou ainda passará pelo menos uma vez.

Uma pessoa citada mais de uma vez nas fitas de Hannah é Jessica Davis (Alisha Boe), que, durante algum tempo, foi de fato sua amiga. Jessica, filha de um militar que se muda com frequência por conta do trabalho, também era nova na escola Liberty, e isso serviu para aproximar as duas durante o início do penúltimo ano de ambas. Seu pai é negro, e sua mãe, loira, o que deu a Jessica uma beleza exótica, que chama atenção. Seu primeiro namorado em Evergreen é Alex Standall (Miles Heizer), filho do xerife local e, como Clay, um rapaz "mediano". Alex começa por ser amigo de Jessica e também de Hannah, e os três pegam o costume de se reunir no Monet's, o café badalado do pedaço, para trocar desabafos e risadas. Quando Alex e Jessica começam a namorar e não contam a Hannah, ela se ressente por achar que seus amigos estão lhe escondendo segredos, o que se torna o primeiro fator de afastamento entre ela e Jessica. Mais tarde, esse namoro acaba e Jessica se torna animadora de torcida; não fica claro qual das duas coisas acontece primeiro, mas, conforme as regras sociais rígidas de que falávamos há pouco, daí em diante ela só pode ter como novo namorado um dos atletas – e quem acaba sendo, senão Justin Foley em pessoa? Isso parece ser a pá de cal no que porventura ainda restasse da amizade das duas garotas, e certamente contribuiu para fazer com que Hannah visse o mundo em cores um pouco mais sombrias. Como sempre, quero evitar spoilers, então basta dizer que um dos episódios mais "cabulosos" narrados nas fitas envolve Jessica, Justin e um sujeito chamado Bryce Walker (Justin Prentice), amigo íntimo de Justin e que, além de atleta e popular, é rico; é nítido que, por causa de tudo isso, Bryce se considera o rei da escola, e o pior é que muitos dos outros alunos parecem dispostos a reconhecer-lhe esse status.

Os episódios de 13 Reasons Why são narrados por meio de uma alternância constante entre presente e passado – ora vemos Hannah viva, ora as outras pessoas tendo que lidar com sua morte –, e por isso exige bastante atenção do espectador. Algumas cenas começam um tanto dúbias, mas logo são fornecidos elementos que nos permitem situá-las na linha do tempo. Um recurso engenhoso foi adotado para diferenciar o "Clay de agora" do "Clay de antes": logo depois de receber as fitas, o garoto sofre um acidente com sua bicicleta e leva um corte na testa; daí em diante, sempre que o vemos com um curativo, sabemos que a cena é do presente.

Como costuma acontecer em séries, vários diretores se revezam nos episódios, e, de modo geral, achei que fizeram um trabalho eficiente. A criação para a TV é assinada por um certo Brian Yorkey, que também chefia o time dos produtores executivos, e o próprio Jay Asher figura nos créditos como consultor de produção. O elenco jovem, para mim desconhecido, quase sempre manda bem; já entre os atores nos papéis adultos, é fácil reconhecer figurinhas carimbadas de outras séries, como Amy Hargreaves, de Blindspot, e Josh Hamilton, de American Horror Story, que interpretam a mãe e o pai de Clay, e Mark Pellegrino, que aparece em muitos episódios de Supernatural no papel do diabo, e aqui é o xerife Standall, pai de Alex, entre outras caras conhecidas. Como não li o livro, não posso dar certeza a respeito, mas, pelos comentários que encontrei, o que entendi foi que apenas a primeira temporada de 13 Reasons Why é diretamente baseada nele, e as seguintes são desdobramentos; o que posso dizer é que terminei a primeira e minha opinião é que ela impacta bastante o espectador e dá o que pensar. No momento estou tentando ver a segunda, que se passa cinco meses depois e gira em torno do julgamento do caso levantado pelos pais de Hannah; infelizmente, essa está longe de ter a mesma força, mas ainda é cedo para decidir se continuo ou desisto. Em todo caso, não tenho dúvida em recomendar a primeira temporada, uma obra que fala de provações pelas quais os adolescentes passam, mas que, no fundo, continuam iguais durante toda a vida. Talvez essas provações ganhem versões mais complicadas conforme ficamos mais velhos, e, com sorte e algum juízo, podemos adquirir resistência para enfrentá-las sem ficar com vontade de acabar com tudo como fez Hannah – e como, infelizmente, muitos jovens fazem todos os anos no mundo real – mas, em essência, elas não mudam. O que nos resta é mudarmos nós, para sermos capazes de encarar essas coisas sem permitir que nos levem ao desespero. 13 Reasons Why dá a sua pequena mas importante contribuição.

quinta-feira, novembro 21, 2019

A Hora do Vampiro

Havia uma igreja em ruínas no caminho, um antigo centro de reuniões metodistas, que erguia seus destroços na extremidade de um gramado estragado pelas geadas e cheio de elevações, e quando alguém passava por suas janelas vazias e sem sentido, os passos soavam muito alto, e o que quer que se estivesse assobiando morria nos lábios, e podia-se pensar em como aquilo devia ser lá dentro – os bancos tombados, os hinários apodrecidos, o altar desmoronado, onde hoje só os camundongos guardavam o domingo, e ficava-se pensando, o que poderia haver ali além dos camundongos – que loucos, que monstros. Talvez estivessem olhando para a pessoa com seus olhos amarelos, de répteis. E talvez não bastasse espiar, uma noite; talvez uma noite qualquer aquela porta rachada, mal pendurada, se abriria repentinamente e o que se veria ali levaria à loucura, com um só olhar.

Não se poderia explicar isso à nossa mãe ou pai, que eram criaturas da luz. Assim como não se podia explicar-lhes que, aos três anos, o cobertor sobressalente ao pé do berço transformava-se numa coleção de serpentes que ficavam olhando para a gente com olhos planos e sem pálpebras. Nenhuma criança jamais vence esses medos, pensou ele. Se um receio não pode ser formulado, não pode ser vencido. E os medos trancados em cérebros pequeninos são grandes demais para passarem pelo orifício da boca. Mais cedo ou mais tarde, a gente encontrava alguém com quem caminhar por todas as casas de reunião desertas que se tem de passar entre a infância sorridente e a senilidade ranzinza. Até aquela noite. Até aquela noite, em que ele via que nenhum dos velhos receios fora vencido – apenas guardados em seus caixões pequeninos, de criança, com uma rosa silvestre espetada em cima.

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No post a respeito de Ao Cair da Noite, eu já havia dado breves pinceladas sobre o início da carreira de Stephen King, assinalando que, como muitos escritores de todos os gêneros, ele começou pelos contos, mais rápidos de escrever e mais fáceis de vender, somente passando aos romances quando já estava com o nome consolidado, com leitores fiéis e um currículo que obrigaria qualquer editor a, no mínimo, dar-lhe atenção. Carrie (1974) foi como que um trabalho de transição – um romance, mas relativamente curto, com menos de 200 páginas, como se o autor ainda estivesse se ajustando a escrever narrativas mais longas. Assim, podemos dizer que 'Salem's Lot (1975) foi seu primeiro romance "padrão": foi com ele que King deslanchou como romancista.

Quanto ao título nacional, bem… O exemplar que tenho, e cuja capa estou reproduzindo aqui, é da edição de 1991 da Nova Cultural, um livro barato vendido em bancas de jornal – o único tipo de livro que eu, adolescente, tinha condições de adquirir, e mesmo isso, só muito ocasionalmente; a maior parte do que eu lia na época era emprestado da biblioteca pública. O que eu ia dizer, entretanto, era que, como costuma acontecer com essas edições baratas, essa foi publicada mediante licença da editora que havia publicado o livro antes e que detinha os direitos da tradução, no caso a Record. Isso significa que a primeira edição brasileira de 'Salem's Lot saiu, provavelmente, alguns anos antes, portanto em meados dos anos 80, em plena febre dos filmes A Hora. Quem é macaco velho em matéria de cinema fantástico sabe do que estou falando; para os mais jovens, explico: durante boa parte daquela década mágica, existiu (no Brasil) uma convenção de que filme de terror, para fazer sucesso, tinha que ter o título começando com A Hora. Creio que isso tenha começado com A Hora do Pesadelo (A Nightmare on Elm Street, 1984), que inaugurou o que seria uma das franquias mais lucrativas do gênero, mas sobre a qual confesso que sei muito pouco. No ano seguinte surgiu A Hora do Espanto (Fright Night), de Tom Holland, por sinal um ótimo filme de vampiro. Depois que ambos os filmes foram sucessos de bilheteria no país, as distribuidoras nacionais passaram a rebatizar uma infinidade de produções de variados temas e qualidade ainda mais variada como A Hora disso e A Hora daquilo: tivemos A Hora dos Mortos-vivos, A Hora das Criaturas, A Hora da Zona Morta, A Hora do Lobisomem (os dois últimos baseados em livros de Stephen King), entre muitos outros. E o modismo, que surgiu no cinema, acabou respingando na literatura, o que valeu a 'Salem's Lot o pífio título pelo qual ficou conhecido no Brasil. A capa desta edição, apresentando uma espécie de Drácula genérico, também não ajuda, mas, felizmente, eu já conhecia um pouco de King na época (tinha lido Zona Morta e Sombras da Noite), e por isso não permiti que o título nem a capa me detivessem. E, com título ruim ou não, A Hora do Vampiro é um vigoroso exemplo de Stephen King no melhor de suas capacidades.

'Salem's Lot é uma contração de Jerusalem's Lot, nome da pequena cidade do Maine que serve de cenário à história. É bem claro que se trata da mesma cidade que aparece no conto A Saideira, presente na coletânea Sombras da Noite, mas fica-se em dúvida se será também a mesma de outro conto da mesma coletânea, intitulado Jerusalem's Lot. No livro de que estamos tratando, não há qualquer menção à amaldiçoada família Boone, ao livro profano De Vermis Mysteriis ou à sinistra mansão de Chapelwaite. Em vez dela, há outra mansão com reputação de assombrada, a Casa Marsten, cujo proprietário, então o homem mais rico de Lot e região, assassinou a esposa e logo em seguida suicidou-se, isso em 1939, décadas antes dos eventos narrados no livro, que se ambienta na mesma época em que foi publicado, meados dos anos 70. Benjamin Mears, escritor de certa fama, que morou na cidade durante parte de sua infância, decide passar uma temporada lá enquanto escreve um novo romance. Cerca de um ano antes, a fatídica Casa Marsten foi comprada, de forma sigilosa, por uma dupla de forasteiros que também adquiriram o prédio de uma lavanderia há muito fechada; sua intenção declarada é a de fixar residência na velha mansão e transformar a antiga lavanderia numa loja de móveis finos e antiguidades. Parece que os preparativos necessários foram demorados, pois, coincidência ou não, o homem que diz chamar-se Richard Straker e se apresenta como um dos sócios-proprietários da loja reaparece em Lot praticamente ao mesmo tempo em que Ben Mears chega. Straker, homem de aparência distinta, fala culta, modos misteriosos e calma imperturbável, diz a todos que seu sócio, Kurt Barlow, está em viagem de negócios, adquirindo itens para a loja, e só deverá aparecer na cidade dali a semanas.

Como foi dito, Ben está escrevendo um novo livro, que, diferente dos anteriores, terá uma pegada sobrenatural (olha a metalinguagem!), e, nas raras ocasiões em que consente em comentar algo sobre seu trabalho, confessa que parte da inspiração para ele veio da Casa Marsten e de experiências que teve quando garoto, ali em Jerusalem's Lot. Na biblioteca pública local, ele faz extensas pesquisas em jornais antigos, e, além das informações que procurava, acaba descobrindo algo inesperado e que pode ter implicações macabras: parece que desaparecimentos periódicos de crianças foram registrados em Lot sempre coincidindo com épocas em que a Casa estava habitada – e isso volta a acontecer agora. Os irmãos Glick, Danny, de 12 anos, e Ralphie, de nove, são surpreendidos por "alguma coisa" enquanto percorrem uma trilha na mata à noite; Ralphie desaparece e Danny volta para casa num estado de confusão mental, incapaz de dizer o que aconteceu ou que fim levou seu irmão. Poucos dias mais tarde, o garoto mais velho morre de algo diagnosticado como anemia perniciosa, embora nada em seu histórico médico sugerisse esse quadro ou qualquer tendência para ele. Todos sabemos que anemia significa, em linguagem médica, uma quantidade insuficiente de glóbulos vermelhos no sangue, geralmente devido à carência de ferro no organismo, mas é interessante atentar para a etimologia da palavra, que, se traduzida literalmente de sua origem grega, exprime um conceito bem mais simples: an (sem) + hema (sangue). Uma vez que sabemos isso, a coisa torna-se autoexplicativa.

Danny Glick é a primeira peça derrubada num tenebroso efeito dominó. Poucas pessoas sabem o que realmente está acontecendo em Jerusalem's Lot, e essas precisam lutar sozinhas, pois, se revelarem ao resto da sociedade local o que sabem, só conseguirão ser trancadas num manicômio. Impossível não lembrar de uma cena do filme 30 Dias de Noite e de uma coisa que o líder de um grupo de vampiros diz ao repreender um de seus comandados por ter feito algo que punha em risco o segredo em torno da existência de sua raça: "Levou séculos para convencermos os humanos de que somos apenas uma lenda!" Na verdade, a mais clássica de todas as histórias de vampiro (Drácula, é claro) já trazia algo parecido, quando o Dr. Van Helsing declara que o maior trunfo do vampiro é que ninguém acredita em sua existência.

King não faz qualquer tentativa de "modernizar" o mito: seus vampiros temem crucifixos, água benta, luz do sol, talvez até alho, e não podem entrar numa casa a menos que sejam convidados. Muitos autores desprezam tais noções, especialmente as que atribuem a objetos sagrados o poder de repelir os sanguessugas; no entendimento desses autores, isso tudo é fruto da ideia popular e antiga de que os vampiros estariam necessariamente relacionados às forças do mal, quiçá ao diabo em pessoa. Bem, parece que, para Stephen King, essas ideias, pouco importa o quão populares ou antigas, podem conter um fundo de verdade: não pode ser coincidência que, num romance sobre vampiros, haja tantas menções às ligações do falecido Hubert Marsten com cultos profanos e sacrifícios de crianças.

O pequeno grupo de heróis, capitaneado por Ben Mears, conta também com Susan Norton, uma jovem que ele conheceu ao chegar à cidade e com quem rapidamente se envolveu; Matt Burke, um veterano professor de inglês e literatura; Jimmy Cody, ex-aluno de Matt e hoje médico (que sempre me fazia pensar no Dr. Jack Seward, de Drácula); o padre Donald Callahan, vigário da paróquia católica de Jerusalem's Lot; e Mark Petrie, um garoto de 12 anos cuja coragem, força de vontade e autodomínio deixariam muitos adultos envergonhados. Mark desempenha o papel que crianças frequentemente têm em histórias fantásticas: sua mente, não limitada pelas amarras do "racional", aceita os fatos (por mais bizarros que sejam) quando eles se apresentam, e reage imediatamente, em vez de perder um tempo precioso tentando negar a realidade ou procurando "explicações plausíveis". Se é com vampiros que estamos lidando, vamos preparar as cruzes e as estacas! Ficar repetindo como um idiota que "vampiros não existem" não vai manter as presas deles longe do seu pescoço. Mark conta, ainda, com uma vantagem: conhecimento. Sendo um garoto de muita imaginação e com um gosto natural por coisas soturnas e misteriosas, é um ávido leitor de terror e, por isso, é quem melhor conhece as particularidades e os pontos fortes e fracos dos vampiros. Nesse quesito, supera Ben e Matt, embora ambos sejam homens cultos e já tenham lido a sua quota de histórias sobrenaturais.

Kurt Barlow, como se descobre, é apenas o nome atual de um ser que provavelmente já usou muitos outros ao longo dos séculos. Trata-se de um vampiro muito velho e muito poderoso; em certo capítulo, os caçadores invadem seu covil durante o dia, apenas para descobrir que ele antecipou seu movimento e foi esconder-se em outro lugar, deixando para eles uma carta muito polida e ligeiramente irônica. A carta é para o grupo, mas há algumas linhas dirigidas especificamente a cada um, e, na parte dedicada ao Pe. Callahan, Barlow revela que, embora há muito tempo ele tenha suas "diferenças" com a Igreja Católica, ela não é seu inimigo mais antigo: "Eu já era velho quando ela ainda era nova, quando seus membros se escondiam nas catacumbas de Roma e desenhavam peixes no peito, para poderem distinguir-se entre os outros. Eu já era forte quando esse clube lamuriento de comedores de pão e bebedores de vinho, que veneram o seu salvador-cordeiro, ainda era fraco." Portanto, estamos falando de um ser com mais de dois mil anos de idade – bem mais, se ele já se considerava velho quando a Igreja dava seus primeiros passos, pois sabemos que a palavra velho tem um significado diferente para um vampiro do que tem para um humano. Perto de Barlow, Drácula, com os quinhentos e poucos anos que teria se ainda fosse "vivo" nos anos 70, não passaria de um aprendiz. Do alto dessa vasta experiência acumulada, Barlow conhece bem a natureza humana, e sabe onde deve atacar primeiro ao fechar o cerco sobre Jerusalem's Lot. Qual o seu objetivo com isso? Mistério. Tudo o que podemos depreender é que tem a ver com Hubert Marsten, com quem o velho vampiro tinha ligações e, provavelmente, algum tipo de acordo. E ele ataca primeiro onde vê fragilidade: às vezes visa crianças, como no caso dos irmãos Glick, outras vezes pessoas que estejam emocionalmente abaladas, como Floyd Tibbets, o ex-namorado rejeitado de Susan, ou Corey Bryant, logo depois de ser pego em flagrante pelo marido de sua amante. Sendo um vampiro clássico, Barlow deve possuir todos os poderes que as lendas antigas atribuem a sua raça, ou, pelo menos, aos representantes mais poderosos dela: força descomunal, capacidade de controlar animais e sabe-se lá o que mais; Bram Stoker insinua que Drácula era capaz de controlar até mesmo as condições meteorológicas. Porém, ele prefere, sempre que possível, utilizar métodos mais sutis, em especial a hipnose. Depois de um instante de medo extremo, suas vítimas experimentam uma sensação de conforto e paz, uma noção de que basta entregarem-se para que todo o medo e sofrimento acabem. Para resistir a isso, é necessária uma tremenda força de vontade.

Vou admitir, 'Salem's Lot tem trechos deprimentes, sem relação direta com nada sobrenatural; o autor se permite explorar (nunca muito longamente, graças a Deus) a sordidez que constitui uma faceta inseparável da natureza humana – embora a natureza humana não se resuma só a sordidez, como certa classe de chatos parece sentir prazer em papagaiar. Uma jovem mãe que alivia sua frustração com a vida batendo no filho pequeno; uma anciã cuja razão de viver é conhecer segredos escabrosos dos outros habitantes da cidade e espalhá-los para o maior número de ouvintes que puder; um homem de negócios que suborna sem hesitar um de seus trabalhadores para que ele fique calado a respeito de possíveis evidências de um crime, e por aí vai. Outros trechos retratam momentos depressivos vividos por um ou outro personagem, como o Pe. Callahan, que enfrenta problemas com álcool e uma crise de fé. Pelo menos na minha leitura, as páginas dedicadas a isso tudo são necessárias: parece haver nas entrelinhas do romance como um todo uma insinuação de que, se todas as pessoas fossem fortes, íntegras, saudáveis e felizes, seres como Kurt Barlow não teriam poder, e talvez nem conseguissem sobreviver. Para se fortalecer e exercer seu poder, ele precisa das trevas – tanto as da noite quanto as da alma humana. Entretanto, o saldo final da história não é de puro pessimismo, já que existem pessoas corajosas dispostas a arriscar tudo para deter o mal. Ainda há esperança para nossa pobre espécie.

Mesmo nessa fase inicial de sua carreira, King já demonstrava uma compreensão muito precisa de como o medo funciona, e também do fato de que existem diferentes tipos de medo. Há medos que são socialmente aceitos, porque considerados racionais, como o medo da violência urbana, do futuro incerto, da guerra, de doenças; esses são temores que as pessoas confessam com relativa facilidade, porque sabem que encontrarão empatia. Porém, há outros medos, como aquele que experimentamos tarde da noite, sozinhos em casa, deitados na cama, no escuro, incapazes de dormir, quando temos a sensação inexplicável de uma presença sombria no canto do quarto, ou poderíamos jurar ter ouvido algo se mover na peça ao lado – e não temos coragem sequer de esticar o braço para acender a luz, quanto mais de ir averiguar a origem do barulho. Horas depois, à luz do dia, esses temores parecem tolos, e a maioria de nós acharia muito embaraçoso confessá-los a qualquer outra pessoa, mas isso não muda o fato de que aquele momento de medo e suor frio durante a madrugada parece durar um século, e de que, enquanto dura, esse medo sem nome é absolutamente real. Racionalmente, eu sei que o medo do escuro nada mais é que uma herança dos nossos ancestrais primatas, que, nas savanas e florestas onde viviam, estavam sempre expostos aos ataques de predadores de olhos brilhantes e presas afiadas que preferiam caçar à noite. Sendo assim, e continuando a ser racional, reconheço que esse medo está obsoleto, já que dificilmente algum leopardo ou hiena vai invadir meu apartamento – e, não obstante, algo em mim parece impermeável a toda essa racionalidade, e, como resultado, o velho medo do escuro continua a dar as caras de vez em quando. Muito menos que quando eu era criança, é verdade, mas ele ainda aparece. Talvez as únicas pessoas imunes a isso sejam as totalmente desprovidas de imaginação, e isso não é coisa que se possa escolher… E, para ser franco, ainda que fosse possível, eu não escolheria. Como dizia Jorge Luís Borges, não se pode matar os demônios sem matar junto as fadas.

Mas chega de poesia. Não há muito mais que eu possa dizer sobre 'Salem's Lot sem dar spoiler, exceto que, como narrativa de terror, é de uma eficiência implacável. Além disso, como acontece com quase todos os trabalhos de Stephen King, é um texto de leitura fluente, que você percorre sem sentir, o que favorece enormemente a imersão do leitor na história. Esta edição da Nova Cultural tem alguns pequenos problemas, erros que provavelmente não devem ser creditados à tradutora Luzia Machado da Costa, mas à revisão e/ou ao pessoal da composição – confesso que não faço ideia de como era o passo a passo da produção de um livro no início dos anos 90. A respeito da tradução, eu gostei dela de modo geral, tenho a impressão de que preservou bem o sabor original da prosa de King, embora haja alguns detalhes meio estranhos, em especial o fato de que nomes de lugares ou estabelecimentos comerciais são quase sempre mantidos "inteiros" como no original; por exemplo, a colina onde fica a Casa Marsten também leva o nome dos antigos proprietários, e a tradutora a chama de "Marsten's Hill" – por que não Colina Marsten? Ao chegar a Lot, Ben aluga um quarto numa pensão cuja proprietária chama-se Eva, e mais tarde diz a Susan que está hospedado em "Eva's Rooms" (!). Um senhor de nome Milt Crossen possui um bar, açougue e mercearia ao qual a tradutora se refere como "Crossen’s Store"; a meu ver, seria muito mais natural dizer "Loja Crossen", ou "a loja do Crossen", já que o texto, depois de traduzido, está em português. Também é engraçado que os personagens chamem uma menina ou moça de "pequena": isso me faz lembrar as dublagens de certos filmes do tempo do onça (creio que a maioria era dos anos 50, e as dublagens devem ter sido feitas logo depois) que eram reprisados à exaustão na Sessão da Tarde quando eu era garoto. Pode ter sido proposital, uma tentativa de reproduzir na tradução uma linguagem meio arcaica que talvez ainda fosse ouvida em lugarejos interioranos dos EUA naqueles tempos sem internet e quando rádios e TVs eram basicamente regionais. De qualquer forma, quem for adquirir o livro agora encontrará a edição da Suma de Letras, que provavelmente tem uma tradução diferente.

Curiosidade 1: Quando Ben e seus companheiros invadem a Casa Marsten e encontram certo personagem morto, pendurado de cabeça para baixo, Stephen King se engana ao colocar na boca do Pe. Callahan que "São Paulo foi crucificado assim, numa cruz em forma de X, com as pernas quebradas". São Paulo não foi crucificado de nenhuma maneira, porque, embora de origem judaica, possuía cidadania romana, e nenhum cidadão romano podia ser crucificado, já que esse método de execução era tido como aviltante. Em vez disso, ele foi decapitado, o que, em comparação, era considerado uma morte misericordiosa e, se não propriamente digna, ao menos decente. Quem morreu da forma que King descreve (com a possível exceção das pernas quebradas, pois não encontrei referência a isso) foi Santo André, o padroeiro da Escócia – é por isso que a bandeira desse país ostenta uma cruz em forma de X, a "Cruz de Santo André". Segundo a tradição da Igreja, André, condenado à morte no ano 60, teria pedido a seus carrascos para crucificá-lo de cabeça para baixo, porque não se achava digno de morrer do mesmo modo que Jesus Cristo. Idêntico pedido fez seu irmão, São Pedro (o primeiro papa), ao chegar sua vez, sete anos depois. A Cruz de São Pedro tem a mesma configuração da cruz comum, só que invertida, e já era reconhecida como o emblema do santo séculos antes que os satanistas decidissem adotá-la como símbolo de oposição a Cristo.

Curiosidade 2: Depois do prólogo e antes de começar a primeira parte de 'Salem's Lot, intitulada A Casa Marsten, encontramos, como epígrafe, uma citação do livro The Haunting of Hill House, de Shirley Jackson, publicado em 1959 e que recentemente ganhou uma adaptação para a TV, produzida pela Netflix. A citação é aquela que ouvimos logo no início do primeiro episódio, na voz do mais velho dos irmãos Crain, o escritor Steven: começa com "Nenhum organismo vivo pode continuar a existir por muito tempo num estado de realidade total", e termina com "o que quer que caminhasse ali, caminhava só". Stephen King visivelmente segue seu próprio conselho, o que ele sempre oferece aos aspirantes a escritor: ler muito, e parece que dedica especial atenção aos autores que escrevem o mesmo gênero que ele.

'Salem's Lot foi filmado em 1979 como uma minissérie de TV em seis episódios, totalizando cerca de três horas de duração, e dirigida por Tobe Hooper, mais conhecido por causa do filme "ame-ou-odeie" O Massacre da Serra Elétrica, e que também dirigiu ao menos um episódio de Contos da Cripta. Alguns anos mais tarde, apareceu nas videolocadoras uma versão editada de duas horas, apresentada como um filme único, com o título A Mansão Marsten. Em 2004 saiu um remake, desta vez feito para o cinema, com direção de Mikael Salomon, Rob Lowe no papel de Ben Mears, Rutger Hauer (de Blade Runner e O Feitiço de Áquila) como Kurt Barlow, e Donald Sutherland (de Jogos Vorazes) como Richard Straker. Confesso que não vi nenhum deles (assim como no caso de Christine, preferi preservar minhas próprias imagens da história), mas, enquanto procurava na internet por ilustrações para este post, encontrei fotos do ator Reggie Nalder caracterizado como Barlow para a antiga minissérie… O visual foi obviamente inspirado em Nosferatu (1922), de Friedrich Murnau: assim como Nosferatu, o Barlow de Nalder tem os dentes incisivos centrais em forma de presas, ao invés dos caninos, como é o comum em representações de vampiros – o que lhe dá uma aparência asquerosa lembrando um rato. Além disso, é calvo e tem a pele azul (!). Nada a ver com a descrição que King faz de Barlow, que deveria ter um aspecto aristocrático e atraente, podendo aparentar a idade que preferisse. Optei por não usar nenhuma dessas imagens, já que se afastam tanto da visão do autor, mas, se tiverem curiosidade, é bem fácil achá-las no Google.