Supernatural, criada por Eric Kripke, é uma de minhas séries de TV preferidas. Bem, na verdade nunca a assisti na TV realmente: tenho as oito primeiras temporadas em DVD (a nona está atualmente sendo exibida nos Estados Unidos), e Cintia e eu costumamos comentar, ao terminarmos de assistir a um episódio especialmente eletrizante e de final inconclusivo, sobre a tortura que deve ter sido para os telespectadores ter que esperar uma semana pela sequência – ou pior, vários meses até o início da temporada seguinte. Melhor assistir em DVD mesmo!
A série criou um mundo interessante. Em linhas gerais, ele se parece muito com o nosso, mas com algumas diferenças notáveis. Nesse mundo, existem homens e mulheres (embora elas sejam minoria) que se intitulam simplesmente "caçadores", e dedicam a vida a rastrear e eliminar todo tipo de seres sobrenaturais malignos (ora, agora é que me dei conta: Salomão Kane é um caçador do século XVII!). Pelo que a série dá a entender, ninguém se torna um caçador por opção: todos parecem ter abraçado a carreira depois de perderem um ou mais entes queridos, vitimados por alguma coisa tenebrosa que qualquer pessoa racional diria que não existe… O que dá uma boa medida do quão pouco as pessoas racionais sabem sobre o mundo.
Os protagonistas são os irmãos Dean e Sam Winchester, que não se tornaram caçadores – foram criados nessa vida. Ainda muito pequenos, perderam a mãe, assassinada por um demônio. Desse dia em diante, John, pai dos meninos, dedicou-se a perseguir a coisa que matou sua esposa. Procurou por caçadores mais experientes e aprendeu com eles tudo o que pôde. Adotou um modo de vida seminômade, percorrendo os Estados Unidos de um lado a outro, indo aonde quer que uma pista o levasse, e sem se limitar a caçar seu próprio inimigo: esforçou-se para destruir o mal onde quer que o encontrasse. Sam e Dean cresceram na estrada, mudando-se constantemente, trocando de escola a cada poucos meses, e muitas vezes tendo que se cuidar sozinhos durante muitos dias, enquanto o pai caçava. Aprenderam a lutar, a atirar e a pesquisar sobre ocultismo numa idade em que outros garotos só se preocupavam em treinar manobras de skate. Porém, serem criados da mesma maneira não apagou o fato de que os dois irmãos têm personalidades muito diferentes. Dean, apesar de disciplinado e focado no dever quando o assunto é a caça, é boa-vida e mulherengo, apaixonado por cerveja e rock clássico (a excelente trilha sonora é um dos pontos fortes da série); idolatra o pai e obedece sem hesitar a qualquer ordem dele, quer a entenda ou não. Sam, por outro lado, é introspectivo e estudioso; sempre sonhou em ter uma vida normal, e, por isso, cresceu nutrindo um certo ressentimento contra John por tê-lo criado como caçador.
Os caçadores têm uma rede de contatos eficiente, cada um deles conhecendo ao menos um punhado de outros, mas costumam agir sozinhos, cooperando entre si apenas ocasionalmente, em geral quando algo especialmente grande e perigoso assim exige. Sam e Dean, entretanto, caçam juntos, por uma série de motivos, a acentuada atitude de galinha choca de Dean em relação ao irmão caçula não sendo o menor deles: acostumado a cuidar de Sam desde que este era um bebê (apesar de ser apenas quatro anos mais velho), esse é um hábito com o qual ele não consegue mais romper.
A ação de Nunca Mais, primeiro romance da franquia Supernatural, escrito por um certo Keith R. A. DeCandido, transcorre em novembro de 2006; portanto, cronologicamente, a história pertence à segunda temporada da série. John Winchester morreu há pouco tempo, e os rapazes ainda lutam para se acostumar com o fato. Dean sente uma óbvia falta da presença e da liderança do pai, enquanto Sam se arrepende das brigas que teve com ele e pergunta-se se foi, realmente, o melhor filho que poderia ter sido, mesmo naquelas circunstâncias. Principalmente, paira sobre os dois a sombra das terríveis últimas palavras de John, dirigidas apenas a Dean, que agora se debate na dúvida entre contar ou não ao irmão: o pai lhe disse que ele deve salvar Sam – e que, se não conseguir salvá-lo, deve matá-lo. Isso revelou que John tinha conhecimento, ao menos parcial, de algum terrível segredo ligado ao destino de Sam, e do qual nunca havia falado até pouco antes da hora da morte, e agora, o que quer que ele soubesse sobre o assunto foi para a pira com ele. Exceto essa dica inquietante.
As coisas estão nesse pé quando Dean recebe uma ligação de Ellen Harvelle, uma velha amiga de John e proprietária da Roadhouse (traduzido como Bar da Estrada na dublagem brasileira), lugar onde caçadores se reúnem. Ela administra o bar com a filha, Jo, e com a ajuda ocasional, relutante e capenga de um cara conhecido como Ash, um gênio da informática para quem "alguma coisa não deu certo" na vida. E é a Ash, indiretamente, que diz respeito o motivo do telefonema. Um amigo dele relata estar tendo problemas com um banshee (espírito feminino do folclore irlandês, facilmente identificável por seus gritos agudos e chorosos, e cuja aparição costuma prenunciar a morte de alguém) e pede ajuda. Assim, Sam e Dean tomam o rumo da cidade de Nova York, onde mora o tal amigo, um sujeito chamado Manfred Afiri. Sam planeja aproveitar a viagem para investigar outros fatos estranhos ocorridos há pouco na cidade, aparentemente sem ligação alguma com o banshee de Afiri: numa das ocorrências, dois estudantes universitários foram espancados até a morte por um orangotango (!); na outra, um homem foi emparedado vivo e encontrado dias mais tarde, já morto, naturalmente. Mais culto que o irmão, Sam percebe que os dois eventos recriam situações descritas em contos do célebre (e novaiorquino) Edgar Allan Poe: Os Assassinatos da Rua Morgue e O Barril de Amontillado, respectivamente. Poderia ser obra de um serial killer maluco, o tipo de coisa que é trabalho para a polícia, não para caçadores – mas quantos serial killers têm orangotangos como comparsas? O animal pertencia a um zoológico de Nova York, de onde não teria qualquer possibilidade de escapar sozinho; portanto, alguém o tirou de lá, e, o que é mais surpreendente, encontrou um meio de controlá-lo para fazer com que praticasse o ato de violência, já que os orangotangos, embora fortes, são, no seu normal, animais tímidos, que mais provavelmente fugiriam de seres humanos em vez de atacá-los. Os irmãos decidem, então, dar uma olhada, para ver se há algo que possam fazer, e descobrem que os assassinatos parecem estar ligados aos diversos estágios de um ritual oculto que supostamente poderia ressuscitar os mortos, o que leva à conclusão de que deve haver um fã alucinado de Poe tentando trazer seu ídolo de volta à vida.
(Para quem não fez a ligação, a dica de que Edgar Allan Poe tem algo a ver com a história está no próprio título: Nunca Mais era a sentença que o corvo não cansava de repetir, no mais famoso poema do mestre. Quoth the raven, "Nevermore".)
Até chegar mais ou menos à metade do livro, eu pensava em escrever no comentário que o principal problema com Nunca Mais era a demora da história para decolar. Se eu de fato o fizesse, isso acabaria por nos induzir a considerar uma série de coisas como atenuantes para o autor. Por exemplo, é preciso lembrar que, se adaptar um livro para transformá-lo em filme é tarefa complicada, fazer o inverso também não deve ser nada fácil. É verdade que não estamos falando de uma adaptação de fato, já que Nunca Mais é uma história original, mas quem está acostumado ao ritmo dos episódios de Supernatural fatalmente achará esta narrativa arrastada demais. Um roteirista, ao adaptar um livro para a tela, precisa limar tudo o que não for essencial, por mais que isso lhe doa no coração – e na certa vai doer, se ele for um fã do autor. Já um escritor que esteja criando um romance ambientado num mundo tirado do cinema ou da TV, tem a liberdade de fazer o contrário: ele pode acrescentar detalhes, explorar a parte psicológica dos personagens, aprofundar pontos que só eram tratados de forma superficial, e muito mais. Empolgante? Sem dúvida. Porém, esse escritor necessita de uma grande dose de bom senso para decidir quando e, principalmente, como fazer uso dessa liberdade. Cito dois exemplos, um do que fazer e um do que não fazer, ambos tirados de Nunca Mais: ao hospedar-se na casa de Manfred – um "dinossauro" do rock, que esteve em Woodstock e canta numa banda cover –, Dean fica maravilhado com a coleção de discos que o cara tem, o que abre espaço para várias menções interessantes sobre música. Isso é legal! Já em outro momento, DeCandido faz questão de nos atormentar durante quase uma página inteira com a rica e pormenorizada descrição das agruras enfrentadas por Sam e Dean durante sua árdua busca por uma… vaga para estacionar. Isso não é legal. Sabemos que, num romance escrito sob encomenda, como é o caso deste, o editor costuma estipular um número de páginas que o autor é obrigado a atingir, mas, a meu ver, qualquer fã de Supernatural deveria facilmente conseguir pensar em vários jeitos mais interessantes de encher linguiça do que esse.
Porém, "demorar a decolar" não é o maior problema de Nunca Mais – antes fosse. Para falar francamente, o livro não decola em momento algum. A ideia de uma trama de mistério envolvendo as histórias de Edgar Allan Poe poderia dar um resultado magnífico, se bem aproveitada, mas, infelizmente, o que encontramos nestas páginas é um enredo fraco e pobremente desenvolvido, narrativa tosca, nenhum aproveitamento do vasto potencial dramático dos personagens, e um desfecho digno de um episódio (ruim) de Scooby-Doo. Como se fosse para não destoar da baixa qualidade do texto, a tradução é horrível. Muitas passagens parecem ter saído direto do Google Translator, sem direito a uma revisão elementar. O problema mais comum é o excesso de literalidade: os leitores familiarizados com a língua inglesa reconhecerão um sem-número de estruturas frasais típicas dela, e que ficam bem num texto em inglês, mas que, na tradução, deveriam ter sido adaptadas, pois, do jeito que ficaram, soam forçadas, artificiais. E não é só na estrutura das frases que isso acontece: muitas vezes a própria compreensão do que está sendo dito ficou comprometida. Exemplo: na linguagem coloquial/chula falada nas ruas norte-americanas, é comum, quando um sujeito quer mandar outro às favas, dizer "suck me", ou, mais explícito ainda, "suck my cock" – mas isso só funciona porque os falantes dessa linguagem coloquial/chula decidiram, sabe-se lá por que, estabelecer uma convenção que determina que "suck me" equivale a "vá às favas". Em português, essa convenção não existe, de modo que a tradução literal de "suck me" ('me chupa') fica parecendo simplesmente um convite para sexo gay. O sentido da expressão original seria muito melhor mantido com o uso de um singelo "vá se foder". Por mais curioso que pareça, muitas vezes uma tradução é mais fiel quando menos literal.
Outro detalhe bizarro a título de curiosidade: na grande maioria das vezes em que um dos Winchester vai agradecer a alguém, ele, por algum motivo, diz "obrigada" em vez de "obrigado". Como um mesmo erro pode aparecer tantas vezes num texto e, mesmo assim, escapar da revisão, é coisa que não ouso tentar responder. E esse é apenas o exemplo mais gritante entre muitos.
Por mais que a perspectiva de curtir uma aventura inédita dos irmãos Winchester fosse tentadora, e ainda mais sendo numa mídia diferente daquela em que estamos acostumados a vê-los, Nunca Mais acaba se mostrando um daqueles livros que, quando a gente termina de ler, pensa que gostaria de tê-los pego emprestados com alguém, pois ficam longe de valer o que gastamos com eles – ou de merecer o espaço que vão ocupar na nossa estante. Há outros romances da franquia com lançamento já previsto, e eu torço fervorosamente para que os próximos autores se saiam melhor que DeCandido, e para que a editora Gryphus cuide mais da qualidade da versão brasileira. Os fãs de Supernatural merecem.
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