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sexta-feira, julho 06, 2012

O Fortim

Estamos no ano de 1941, em plena Segunda Guerra Mundial – que ainda não era chamada assim, é claro. Por enquanto, tratava-se de uma guerra europeia, na qual os Estados Unidos ainda não haviam tomado partido; o pacto de não agressão entre Alemanha e União Soviética estava por um fio, mas ainda vigorava, e os alemães venciam uma batalha atrás da outra, parecendo ter chances reais e concretas de ganhar a guerra num prazo relativamente curto. Nesse cenário, o alto comando do exército alemão decide prevenir uma pouco provável ofensiva russa, em caso de quebra do tratado (o que aconteceria ainda naquele ano, mas por iniciativa alemã), e envia um destacamento para o Passo Dinu, um desfiladeiro nos Alpes da Transilvânia, a fim de guardar o acesso aos campos petrolíferos do interior da Romênia. A tropa recebe ordem de ocupar um fortim do século XV, que domina todo o desfiladeiro e constitui uma posição defensiva ideal.

O comandante desse destacamento é o capitão Klaus Woermann, veterano da Primeira Guerra Mundial, um homem que sempre se orgulhou de fazer parte do Exército alemão, e que não vê com bons olhos a ditadura de Hitler nem a ideologia do Partido Nazista em si. Como muitos soldados de sua geração, Woermann desejou essa nova guerra, que imaginava como uma revanche contra os Aliados, que não se contentaram em derrotar a Alemanha na guerra anterior, mas também a submeteram a todo tipo de humilhação, obrigando-a a concordar com tratados de paz obviamente injustos e sobrecarregando-a com exigências de indenizações impossíveis, o que instaurou o caos na economia e na sociedade alemãs. Para sua decepção, porém, quando a Alemanha tornou a se erguer, não foi em busca de uma justa reparação de sua honra como nação, e sim impulsionada por um movimento político cuja cartilha estava baseada em ódio étnico e nos projetos pessoais megalômanos de um pequeno grupo. Para piorar, parece a Woermann que ele é o único em seu destacamento a compreender isso: os soldados e suboficiais sob seu comando são, em sua maioria, jovens no início da casa dos 20 anos, recém-egressos da Juventude Hitlerista (da qual todo adolescente alemão tinha obrigatoriamente que participar), onde suas mentes ainda em formação foram submetidas a uma cuidadosa lavagem cerebral a fim de que considerassem a visão nazista como a única visão possível. Woermann, portanto, representa todos aqueles soldados que desejavam lutar pelos direitos de sua nação, mas percebem agora, amargurados, que estão sendo usados como instrumentos de um regime insano.


Tudo isso se revolve na cabeça do capitão Woermann enquanto ele e seus homens ocupam o fortim, preparando-se para no mínimo alguns meses de serviço de vigilância contra um ataque que dificilmente virá. Entretanto, suas expectativas de que esse serviço vá ser tranquilo e até tedioso não podiam estar mais equivocadas.

O fortim, curiosamente, não está ligado a qualquer acontecimento histórico conhecido; geração após geração, uma família da aldeia vizinha dedica-se à sua manutenção, tendo seus salários pagos por um fundo anônimo num banco estrangeiro; graças a isso, a estrutura se manteve como nova durante os últimos cinco séculos. Muitos dos blocos de pedra que formam suas paredes internas estão ornados com cruzes metálicas em forma de T, feitas de bronze e níquel – "quase como ouro e prata". Ninguém sabe o porquê disso, mas um dos soldados de Woermann tem a mirabolante teoria de que o fortim teria sido construído por ordem de um papa para esconder um tesouro – um tesouro que ele acredita que ainda pode estar por ali. Numa canhestra tentativa de encontrar o suposto tesouro, o soldado Lutz acaba abrindo uma câmara oculta no subsolo da fortaleza. Logo depois, seus companheiros o encontram morto – decapitado. Por mais louca que pareça tal ideia, tudo indica que, ao abrir a tal câmara, Lutz libertou algo que estava cativo há séculos.

A partir daí, a cada noite um soldado vai sendo morto, cada corpo encontrado com a garganta estraçalhada, embora mais nenhum chegue a ter a cabeça arrancada. Depois de tentar de tudo para apanhar o assassino, sem sucesso, Woermann, sem alternativa, telegrafa ao Alto Comando solicitando permissão para mudar de local. Em vez disso, recebe a ajuda que menos desejaria no mundo: é enviado um destacamento da SS (Schutzstaffel, 'Tropa de Proteção' – a força paramilitar a serviço do Partido Nazista), composto pelos temíveis Einsatzkommandos de uniformes negros – temíveis não por serem combatentes notáveis, mas por sua especialização em massacrar civis desarmados. Esses homens representam tudo o que Woermann mais despreza na "nova Alemanha", e, para tornar sua miséria completa, quem vem no comando dos reforços é um antigo desafeto seu, o major Erich Kaempffer, que, como Woermann não ignora, tampouco gosta dele, além de temê-lo pelo que pode revelar sobre seu passado: Woermann foi a única testemunha de um ato de covardia de Kaempffer, décadas atrás, quando ambos eram recrutas adolescentes durante a Primeira Guerra.

O major Kaempffer tem certeza de que as mortes são causadas simplesmente pelas atividades de algum grupo de guerrilheiros nacionalistas romenos, e as providências que toma estão de acordo com tal convicção – todas consistindo de atos de brutalidade contra a população da aldeia, à guisa de represália. Como isso não faz pararem as mortes, Kaempffer lança mão de uma informação que obteve sob tortura do estalajadeiro local: o maior especialista vivo na história da região, e quem mais tempo passou estudando o misterioso fortim, é um professor da Universidade de Bucareste chamado Theodor Cuza. O oficial manda buscá-lo, e o professor, gravemente doente, vem acompanhado de sua filha, Magda, que lhe serve de secretária e enfermeira. O irônico nisso tudo é que o homem em quem o empedernido nazista Kaempffer se vê obrigado a depositar todas as suas esperanças é precisamente um... judeu! O que nem os alemães, nem o professor Cuza, nem o povo da aldeia imaginam, é que, no outro extremo do continente, nas praias de Portugal, um misterioso homem de cabelos vermelhos sentiu um inexplicável instinto dar o alerta quando a câmara secreta do fortim foi aberta, e agora dirige-se apressadamente ao Passo Dinu a fim de realizar uma missão de vida ou morte, que está fora do alcance das forças de qualquer pessoa que não ele...

O Fortim é um achado surpreendente, um livro extraordinário de um autor que, se produzisse em maior quantidade, poderia ter vindo a ser tão grande quanto um Stephen King! Infelizmente para nós, leitores, o norte-americano Francis Paul Wilson optou por manter a medicina como profissão e ter a literatura como atividade paralela. O Ciclo do Inimigo, iniciado com este romance, inclui cinco outros, sendo que o último, Nightworld, ainda aguarda tradução para o português. Wilson demonstra ser um mestre da narrativa tensa e do clima sombrio, e só não afirmo que o livro nos oferece isso do início ao fim, por causa das anticlimáticas partes românticas protagonizadas por Magda e pelo tal estranho ruivo – não sei se outros leitores terão sentido da mesma forma, mas essas partes me deixaram sempre impaciente, ansioso para que a narrativa voltasse logo ao horror no fortim. Mas não é esse pequeno percalço que torna o livro menos recomendável, ainda mais porque, para além de sua maestria no horror, Wilson ainda demonstra um sólido conhecimento histórico, que aparece na ambientação da narrativa durante a Segunda Guerra – até onde pude perceber, impecável.

Ah: não podia deixar de destacar que, nos agradecimentos do início do livro, Wilson reconhece sua dívida para com Robert E. Howard, H. P.  Lovecraft e Clark Ashton Smith. Tal é a admiração de Wilson por Lovecraft, que ele adere à tradição, já honrada por tantos mestres do horror, de homenagear o autor introduzindo o Necronomicon em sua história, embora só se refira a ele como Al-Azif, que, segundo Lovecraft, seria o título original em árabe. Uma homenagem que, realizada num romance de tal qualidade, sem dúvida deixaria Lovecraft satisfeito.

quarta-feira, agosto 11, 2010

Vlad: a Última Confissão

"(...) - Quanto ao contexto dos meus pecados, é simples. (...) Eu preciso governar.
- Você governa.
- Não. Eu me sento no trono. Ele está colocado no centro da terra mais sem lei do mundo. E fui colocado nele para mudar isso. Este é o meu kismet.
- Não conheço essa palavra.
- É uma palavra dos turcos. Uma tradução aproximada seria um 'destino inalterável'. Dado por Deus no nascimento. (...)
- Você está dizendo que não pode evitar o que faz?
- Sim.
- Este não é o ensinamento de nossa Igreja, de sua fé. Cada homem tem uma escolha, fazer o bem ou o mal.
- Então talvez eu tenha me desviado da Ortodoxa nesse ponto. Porque sei o que estou destinado a fazer e como fazê-lo. Não posso fazer outra coisa."

* * *

Vlad III Basarab (1431?-1476), príncipe da Valáquia, não é uma figura histórica como outras. É difícil obter alguma informação sobre ele além do que todo mundo sabe: que serviu de inspiração para que o escritor irlandês Bram Stoker criasse o mais famoso vampiro da literatura, Drácula. Experimentem uma busca rápida no Google com o nome dele, ou com qualquer de seus apelidos mais famosos, Vlad Tepes ou Vlad Drácula: praticamente só vão encontrar uma lista infindável de textos em sites sobre vampirismo, enfatizando o vasto derramamento de sangue que ele promoveu em sua terra (na época um principado subordinado ao reino da Hungria, hoje uma das províncias que formam a Romênia), e talvez mencionando o desconcertante fato de que, quando seu túmulo foi aberto, em 1933, só ossos de cavalo foram encontrados - o que, em se tratando de um homem sobre cujas supostas afinidades sobrenaturais já se cochichava desde quando ele era vivo, levantou as inevitáveis dúvidas sobre se ele teria realmente morrido, se, morrendo, teria permanecido morto, ou... Bem, vocês entenderam.

O que C. C. Humphreys faz neste livro é tentar encontrar o homem por trás do mito, reconstituindo a vida de Vlad desde sua juventude (boa parte da qual passada como refém dos turcos) para tentar entender os porquês de seus atos. Não há propriamente um juízo de valores nestas páginas, mas o autor consegue, sem formular a questão em termos explícitos, fazer com que o leitor se pergunte qual a explicação para que o mesmo homem considerado um herói em seu país (pois Vlad o é) seja visto no resto do mundo como um mero assassino psicótico que, para o azar da humanidade, herdou uma coroa e um trono, numa época em que os atos dos poderosos não eram contestados.

O romance começa em 1481, cinco anos após a morte de Vlad, quando o cavaleiro húngaro Janos Horvathy, ele próprio um membro da Ordem do Dragão (à qual também pertencia Vlad) chega à Valáquia com a missão de investigar e descobrir a verdade sobre o príncipe; se possível, tentar reabilitar seu nome, já que o excesso de sangue que manchou sua história acabou prejudicando a reputação dessa irmandade outrora venerável. Para tanto, ele reúne as últimas três pessoas vivas que privaram da intimidade de Vlad: Ion Tremblac, cavaleiro valáquio, que foi seu braço direito e melhor amigo; Ilona, amante do príncipe; e o ex-monge Vasilie, seu confessor. É através dos depoimentos deles que a extraordinária história de Vlad Drácula será recuperada.

A vida de Vlad desenrolou-se em situações limítrofes, tanto no tempo quanto no espaço. Em sua época, a Europa atravessava o traumático período de transição entre a Idade Média e a Idade Moderna - é possível que ele tenha sido testemunha ocular da queda de Constantinopla nas mãos dos turcos (1453), evento que, por convenção, costuma ser tomado como linha divisória entre as duas eras. Ao mesmo tempo, seu pequeno país estava cravado exatamente onde o Ocidente cristão encontrava o Oriente Médio muçulmano: onde dois mundos colidiam. E, a exemplo do que seus irmãos maometanos do norte da África - mouros, berberes - haviam feito na Península Ibérica séculos antes, os turcos do Império Otomano pretendiam agora expandir a influência do Islã pelo leste europeu. E a Valáquia estava em seu caminho.

O pai de Vlad, príncipe Vlad II, era conhecido tanto pela coragem em batalha quanto pela forma impiedosa como costumava tratar inimigos vencidos. E inimigos não faltavam, tanto externos - os turcos, cujo furor expansionista estava no auge nessa época - quanto internos: boa parte dos boiardos, isto é, dos nobres, não tinham nada contra cooperar com os invasores, desde que a margem de lucro fosse suficientemente alta, além de cobiçarem o trono e não recusarem qualquer ajuda para chegar a ele, viesse de onde viesse. Por sua participação na resistência contra o invasor muçulmano, Vlad II recebera do patriarca da Igreja Ortodoxa a alta honraria de ser nomeado membro da Draculea, a Ordem do Dragão, e por isso ficou conhecido como Dracul (dragão, em romeno), passando seus filhos homens a terem o direito de usar o epíteto de Dracula: os "filhos do dragão".

Vlad II acabou derrotado pelo sultão turco Murad na batalha de Galípoli, e, entre as concessões que teve de fazer, entregou os dois filhos mais jovens, Vlad e Radu, como reféns ao inimigo vitorioso, enquanto apenas o mais velho, Mircea, permanecia em sua companhia. O tratamento dispensado aos reféns segundo o romance faz lembrar o que os romanos davam aos filhos de chefes bárbaros sob sua tutela: confortos condizentes com sua posição social e, mais importante, a melhor educação possível - dentro da cultura do povo vitorioso, é claro. Vlad aprende várias línguas, poesia, literatura, matemática, além de ser iniciado naquela que se tornaria sua grande paixão, a falcoaria. Também estuda a fundo o Corão, o que não o leva a abraçar a fé islâmica, mas é de suma importância para que compreenda melhor os turcos, contra os quais não duvida em nenhum momento de que um dia terá de lutar. Até que um passo em falso dado por seu pai tem consequências terríveis: Vlad é transferido para a fortaleza de Tokat, onde amarga longas semanas num calabouço e depois é integrado à força a uma turma de estudantes que se dedicam a matérias bem menos edificantes que as que estudara até aí: métodos de tortura, alguns dos quais o jovem sente na própria pele. E é em Tokat que Vlad pela primeira vez vê um homem ser empalado, técnica que os turcos aprenderam com os saxões da Transilvânia e aperfeiçoaram.

Paradoxalmente, Vlad acaba contando com o favor de Murad para não só recuperar sua liberdade, como para conquistar seu direito: durante seu período como refém, seu pai e seu irmão mais velho haviam sido assassinados por uma liga de boiardos traidores, e aos 18 anos, à frente de um pequeno exército de valáquios fiéis e de tropas cedidas pelo sultão (que provavelmente imaginou que um príncipe coroado graças a sua benevolência se tornaria um fantoche útil), Vlad recupera o trono da Valáquia e senta-se nele pela primeira vez - ao longo de sua turbulenta carreira esse trono seria perdido e recuperado nada menos que três vezes. É só mais tarde, durante seu segundo e mais longo período de governo (1456-1462), que ele ganha a fama que o acompanharia até o túmulo e muito além: começa empalando os nobres que conspiraram contra seu pai e depois instaura a mesma pena para todos os crimes, de qualquer tipo, que venham a ser cometidos. Com isso, consegue transformar a Valáquia de uma terra sem lei, onde o enorme número de bandidos nas estradas havia inviabilizado o comércio, num país seguro e próspero, o que faz com que a população comum o veja com bons olhos. Isso, mais as diversas vitórias que obteve contra os turcos, mesmo em grande inferioridade numérica, valeu-lhe o status de herói nacional de que ainda hoje goza na Romênia. E no entanto...

É difícil separar fato de ficção em relação a qualquer vulto histórico, e talvez nenhum outro seja tão difícil nesse ponto quanto Vlad. Pode-se (e isso já foi feito) retratá-lo simplesmente como um patriota obstinado que desejava o melhor para seu país e para isso estava disposto a tudo - inclusive a atos brutais e chocantes - ou como um perfeito monstro, que se deliciava com o derramamento de sangue e aproveitava qualquer pretexto que se apresentasse para ordenar verdadeiros holocaustos. Os romenos gostam de acreditar que seu antigo príncipe sabia usar o terror como uma arma para alcançar objetivos válidos: punir com brutalidade exemplar qualquer criminoso apanhado era uma maneira de fazer outras pessoas pensarem mil vezes antes de cometer crimes, enquanto, para os soldados turcos, marchar por uma estrada ladeada pelos cadáveres empalados de centenas de seus camaradas era sem dúvida um golpe severo no moral, o que só podia beneficiar os valáquios. E, para quem quiser entrar nesse mérito, o que não farei aqui, é interessante lembrar que, além de todos os outros motivos de notoriedade, Vlad provavelmente foi o primeiro governante da História a ter o poder da imprensa mobilizado contra si: a então recente invenção de Gutenberg permitiu que panfletos narrando seus crimes fossem copiados aos milhares e amplamente distribuídos em vários países. Tenha isso sido um golpe de difamação orquestrado por seus inimigos, ou mero resultado do faro comercial de alguns indivíduos que perceberam que podiam lucrar com a curiosidade do público por histórias assustadoras (ei, isso não é uma maravilha? A imprensa marrom nasceu praticamente junto com a própria imprensa!), o fato é que fica praticamente impossível saber quanto do que dizem esses folhetos é verdade e quanto é fantasia.

Humphreys parece ser o tipo de escritor que gosta de personagens complexos e contraditórios, e soube fazer de "seu" Vlad um exemplo perfeito e completo disso: ora ele ganha nossa admiração, ora nos causa horror. As qualidades que o autor atribui ao príncipe são aquelas que já eram imaginadas por quem conhecia um pouco mais sobre ele do que apenas seus atos sanguinolentos: qualquer um que tenha tido a trajetória de vida que Vlad teve só podia tratar-se de um homem com uma vontade de ferro e uma coragem inabalável. Além disso, ele tem facetas diferentes: pode ser incrivelmente cruel, mas também gentil - enfim, é humano. E o melhor é que há no livro vários outros personagens fascinantes, além de uma narrativa vigorosa, envolvente, como há tempos eu não via. Pena que o autor ponha tudo isso a perder com um final que tenta ser surpreendente, mas só consegue parecer absurdo: no lugar de Humphreys, eu teria terminado o livro no capítulo 50, pois os dois últimos e o epílogo são um delírio só. Não que eu seja um daqueles chatos que ficam cobrando "verossimilhança" em obras de ficção (e Vlad: a Última Confissão é ficção, mesmo que baseada em fatos históricos), mas há ficções que convencem e outras que soam artificiais. Até o capítulo 50, o livro de Humphreys se enquadra no primeiro tipo; daí para diante, cai no segundo.

quarta-feira, março 31, 2010

Drácula

Recentemente, no Covil do Orc - um dos blogs que leio com mais frequência, e cujo autor também costuma honrar-me com suas visitas e comentários - li um post a respeito de Drácula, que, como Dom Quixote e um pequeno número de outros, é um daqueles livros sobre os quais todo mundo sabe alguma coisa, até mesmo quem nunca os abriu - e, não raro, até mesmo quem não tem o costume de abrir qualquer livro que seja pode saber algo sobre eles. Se não me falha a memória, isso era parte de uma das definições de "clássico" propostas por Ítalo Calvino. But that's not my point here.

O Orc atribui uma nota vermelha (ops!) a Drácula na avaliação geral, considerando a história como um todo entediante, com os momentos interessantes ou importantes separados uns dos outros por mares de páginas em que meramente são debatidas as questões pessoais dos personagens - e preciso concordar que, de fato, o livro melhoraria com uma boa enxugada. Também é verdade que não é oferecida explicação alguma para a razão pela qual o Conde resolve mudar-se de seu sossegado castelo nos Cárpatos para a agitação e a poluição da Londres vitoriana. Um dos visitantes que deixaram comentários ao texto do amigo Orc diz que teria sido por ter visto uma fotografia de Mina Murray, a noiva do herói (mais ou menos) Jonathan Harker, e nela reconhecido a reencarnação de sua própria noiva, morta há séculos... Na verdade, como bem observado pelo Orc ao responder, isso só aparece no filme (referindo-se, creio, à produção de 1992 dirigida por Francis Ford Coppola), e eu acrescentaria que, mesmo no filme, o fato não constitui explicação para a mudança do Conde: Jonathan, com a foto no bolso, só vai até o castelo de Drácula porque este o chama, interessado que está em comprar uma propriedade em Londres, negócio a ser mediado pela firma onde Harker trabalha. Ou seja, o vampiro já planejava mudar-se antes de saber da existência de Mina.

Sobre o filme, aliás, devo dizer que ele tem muitas qualidades: é visualmente magnífico, tem um roteiro que prende e um punhado de atuações notáveis, destacando-se Gary Oldman como Drácula e Anthony Hopkins, excelente como sempre, no papel de Van Helsing. Já Keanu Reeves, como Jonathan Harker, mostra-se tão expressivo quanto um peixe defumado, mas nada no mundo é perfeito mesmo... Winona Ryder, que interpreta Mina, não atua mal na minha opinião, mas eu, no lugar do diretor, escolheria uma atriz com mais "presença" (leia-se sex appeal) para o papel. Certo, ela passa a maior parte do filme como uma recatada professorinha, mas lá pelas tantas, sob a influência de Drácula, deveria parecer uma vampira sedutora e terrível - e não convence muito como tal. O fato é um pouco compensado pelas aparições breves mas memoráveis de Monica Belucci, ainda não tão famosa na época, mas deslumbrante como sempre, como uma das três servas-vampiras do Conde. E já que estamos falando das figuras femininas, faço um parêntese para assinalar que aquela doida ninfomaníaca que atende pelo nome de Lucy Westenra no filme não tem nada a ver com a delicada e virtuosa personagem homônima do livro!...

Vampiras à parte, talvez a coisa mais legal do filme seja a breve introdução ambientada no século XV, que explica a transformação do príncipe Vlad, de um devotado defensor de seu país e da Igreja Ortodoxa contra os invasores muçulmanos, para um conde vampiro mancomunado com o demo... No livro, Stoker não cita o nome de Vlad, embora ele tenha sido, sem dúvida, sua principal fonte de inspiração: em vez disso, permite ao próprio vampiro dar algumas pistas sobre sua identidade. No castelo, quando Jonathan ainda não sabe que ele é um vampiro, o Conde enaltece os feitos de um suposto "ancestral" que na verdade era ele próprio; mais tarde, já sem nada a esconder, ele gaba-se de ter governado nações e combatido por elas, séculos antes do nascimento dos que agora o veem.



Curiosidade 1: Só notei isso ao rever o filme para escrever este texto, mas o bispo que diz a Vlad que a alma de Elizabeta não poderá ser salva porque ela se suicidou é o próprio Anthony Hopkins, quase irreconhecível com cabelo longo e vastas barbas!


Curiosidade 2: Todos que já ouviram falar no príncipe Vlad Basarab sabem que ele era mais conhecido por seu apelido, Vlad Tepes, que significa Vlad, o Empalador. Era assim chamado por ter uma preferência especial por executar prisioneiros de guerra e desafetos em geral espetando-os em longas estacas. Na introdução do filme, um soldado turco aparece morrendo numa comprida lança que o atravessa do peito às costas - uma versão mais "apresentável", digamos, do que seria o verdadeiro empalamento, de cujos detalhes prefiro poupar meus leitores; basta dizer que era uma forma bem mais demorada, dolorosa, humilhante e chocante de morrer do que essa, tanto que jamais poderia ser mostrada nem mesmo num filme de terror... Pelo menos, não num com um mínimo de bom gosto.


Ao lado de todas essas qualidades, o filme de Coppola tem um grande defeito: é romântico demais. Mina e Drácula vivem uma relação intensa e apaixonada, com o coitado do Jonathan tendo que resignar-se à sina de corno de um morto-vivo... Há uma sequência na qual Mina pede a Drácula que a torne igual a ele, e a dramática resposta é que ele a ama demais para condená-la a uma existência tão miserável: só depois de muita insistência por parte dela é que o vampiro cede. Na parte equivalente do livro, ele simplesmente faz um corte no próprio peito com suas garras e obriga a moça a provar de seu sangue, a fim de consolidar seu domínio sobre ela. Para o Drácula do livro, Mina nada mais é do que uma ferramenta útil. Essa romantização exagerada, a meu ver, não se justifica num filme cuja intenção declarada era a de ser o mais fiel possível à obra original, objetivo esse denunciado já no próprio título, que não é simplesmente Dracula, e sim Bram Stoker's Dracula - Drácula de Bram Stoker! Mas temos que entender o lado de Coppola: Hollywood tem suas regras. Nenhum filme com ambições de alcançar grandes bilheterias pode deixar de ter um romance no meio.


Comentei acima sobre o visual impecável do filme, e o cuidado nesse sentido começou pelo próprio personagem principal: estamos acostumados à imagem de um Drácula de casaca, capa com colarinho alto e cabelo gomalinado - uma figura digna de teatro vaudeville. Isso é culpa de Tod Browning e Bela Lugosi, respectivamente diretor e ator principal de uma versão de Drácula filmada em 1931 e ainda considerada por muitos como a mais clássica, apesar de adulterar a história muito mais que o filme de Coppola (e de eu, pessoalmente, achar Lugosi mais cômico que assustador). Nada poderia estar mais distante da "verdadeira" aparência do Conde, que é descrito por Stoker como tendo cabelos longos e farto bigode - um visual muito mais selvagem e sinistro que o do vampiro-almofadinha encarnado por Lugosi e copiado em dezenas de filmes posteriores. Já Coppola e Gary Oldman optaram por compor a imagem de Drácula seguindo à risca a descrição de seu criador. Ponto para eles. Por outro lado, o diretor e/ou o roteirista parecem ter alguma admiração, apesar de tudo, pelo filme de Browning, pois pelo menos dois detalhes que não estão no livro foram copiados diretamente de um filme para o outro: a foto de Mina e a frase morbidamente zombeteira que o Conde diz ao servir o jantar a Jonathan. Desculpando-se por não acompanhá-lo, ele explica que já jantou e que além disso nunca bebe... vinho, insinuando que o líquido vermelho que lhe agrada ao paladar é outro.


Deixando o filme um pouco de lado e voltando a falar do livro, acho necessário dizer algumas palavras sobre seu autor. Abraham Stoker ("Bram" era um apelido de infância) nasceu em Clontarf, Irlanda, em 1847. Foi um menino débil e adoentado, que passou a maior parte da infância recolhido a um quarto, onde sua mãe, uma apaixonada por narrativas fantásticas, entretinha-o contando as histórias tradicionais do folclore irlandês, desde as mais engraçadas até as mais tenebrosas, o que deixou uma marca indelével na imaginação de Bram. Apesar de seu histórico de doença na infância, ele veio a tornar-se um homem de grande energia, resistência e determinação, trabalhador incansável. Formou-se em Matemática, mas trabalhou durante a maior parte da vida como jornalista e produtor teatral. Casou-se em 1878 com Florence Balcombe, tida e havida como uma das maiores beldades da Grã-Bretanha na época - consta que Stoker teve que disputar a mão dela com o também irlandês e escritor Oscar Wilde, que, como sabemos, não era exatamente "do ramo" (leia-se: preferia a companhia de rapazes), de modo que provavelmente não foi um rival que haja se empenhado muito. Ocorre que Florence não tinha só beleza: era também muito dominadora e uma espécie de pré-feminista, de modo que Stoker não desfrutou de uma vida doméstica das mais tranquilas. Suas heroínas dóceis, quase submissas, e totalmente devotadas aos maridos, poderiam ser uma forma de crítica que o escritor fazia ao gênio difícil de sua própria esposa - o que explicaria a presença, em Drácula, de frases que soam um tanto inverossímeis saídas da boca ou da pena de personagens femininas, como este trecho de uma carta de Lucy para Mina: "Minha cara Mina, por que os homens são tão nobres e nós mulheres nos mostramos tão indignas dessa nobreza?" (!) Acreditar em vampiros é fichinha comparado a acreditar que uma mulher, mesmo no século XIX, pudesse escrever isso!

Stoker escreveu ao todo 17 romances, alguns dos quais tiveram um sucesso discreto, mas Drácula, o oitavo pela ordem, não foi um deles: passou quase despercebido na época. O autor morreu em Londres, em 1912. Ah: caso estejam achando sem graça a capa do livro no início deste post, saibam que ela é histórica: trata-se da capa da primeira edição de Drácula, de 1897, da qual resta hoje apenas um punhado de exemplares. O que foi fotografado para esta imagem está no Museu dos Escritores, em Dublin.

Um comentário do Orc que achei brilhante foi que o método de narração escolhido por Stoker - o de não ter um narrador fixo, mas contar a história por meio de trechos de cartas e diários escritos por diferentes personagens - poderia ter rendido magnificamente, se explorado com mais habilidade. De fato, concordo: Stoker não consegue "vestir a pele" dos personagens, nota-se que o tom e o ponto de vista são sempre os mesmos, quer o texto seja atribuído a um funcionário de escritório de advocacia, a um médico ou a uma adolescente. Por outro lado, não dá para negar que ele fez um trabalho admirável ao compilar e organizar num todo coerente a vasta e caótica quantidade de informações que colheu sobre o mito do vampiro, partindo do folclore rural de seu próprio país, para ir descobrindo lendas sobre seres semelhantes entre quase todos os povos do globo - sendo que os habitantes da Romênia, sem a menor dúvida, falavam de vampiros com maior riqueza de detalhes, convicção e pavor que qualquer outro povo. Embora hoje desgastada pelo uso excessivo, a fórmula criada por Stoker foi durante muito tempo um dos mais interessantes materiais de que escritores de horror e fantasia dispunham para trabalhar. E Stoker fez ainda mais: mesmo sem nunca ter visitado pessoalmente a Romênia, encheu seu livro com ricas e pormenorizadas descrições de suas paisagens, geografia e de suas diferentes etnias, descrições essas que todos os estudiosos são unânimes em considerar cem por cento corretas - tudo fruto de milhares de horas de minuciosa pesquisa na biblioteca do Museu Britânico.

Curiosidade 3: Ao ler o livro pela primeira vez, alguns anos atrás, tive uma surpresa ao ver que o Conde realmente se transforma em morcego, o que eu julgava ser mais uma invenção dos filmes. Explico: a conexão entre vampiros e morcegos é relativamente recente - para ser mais exato, é posterior à colonização das Américas, pois só nas Américas Central e do Sul é que foram descobertos os famosos morcegos hematófagos (sugadores de sangue). Os morcegos da Europa não passam de inofensivos comedores de insetos, de modo que ninguém pensou em relacioná-los ao folclore vampírico. Nas lendas mais antigas, dizia-se que os vampiros costumavam assumir a forma de lobos (o que Drácula também faz), gatos ou pássaros, mas parece que Stoker gostou da novidade e adotou o morcego.

Um ponto interessante do livro (e que o filme, por dispor do recurso da imagem, potencializa) são os sinais de modernidade espalhados por toda parte e que, se o leitor tentar pensar com a cabeça da época, constituem, misturados ao mero fato da existência dos vampiros, um contraste bizarro. Jonathan viaja para a Transilvânia a bordo de sofisticados trens a vapor, Mina escreve seu diário usando uma máquina datilográfica, enquanto o Dr. Seward registra o seu por meio de um gravador de bobina e pede a ajuda de Van Helsing via telégrafo... Que diabos, estes são tempos modernos, científicos, pleno final do século XIX! Num mundo onde existe tudo isso, como ainda pode haver lugar para "superstições" como o vampirismo? A ideia de horrores antigos e mistérios sobrenaturais se perpetuando no tempo, sem se importar com todo o progresso que a humanidade acredita ter alcançado, contribui com sua dose de implicações sinistras.

Tenho que admitir, há duas coisas em Drácula que são realmente duras de aguentar: o discurso "edificante" e repetitivo de alguns personagens sobre sua "missão sagrada de livrar o mundo de semelhante monstro" (Van Helsing é o pior nesse quesito) e, o que chega a ser ainda mais chato, a interminável "rasgação de seda" entre os protagonistas, que não perdem uma só oportunidade de dizer uns aos outros o quanto são pessoas extraordinárias e cheias de qualidades admiráveis - e nunca o fazem da forma mais sucinta possível: não raro, essa mútua puxação de saco ocupa uma página inteira, quebrando o ritmo e o clima, o que é ainda mais prejudicial numa história de terror do que numa de qualquer outro tipo. Mas há compensações: os primeiros capítulos, com Jonathan aprisionado no castelo de Drácula e aos poucos descobrindo a inacreditável verdade sobre seu anfitrião; a descrição, pelo olho clínico do Dr. Seward, dos sintomas da loucura de seu paciente Sr. Renfield e as ligações sutis entre os atos deste último e os do Conde; a narrativa arrepiante da libertação final da alma de Lucy mediante a destruição de sua forma vampírica por seu noivo Arthur e Van Helsing; a terrível cena em que Drácula transforma Mina em sua escrava ao forçá-la a beber seu sangue após ter sugado o dela; e, é claro, a tensa e implacável perseguição do Conde pelo grupo de heróis através dos ermos da Romênia, são, todas elas, cenas que dificilmente perderão o lugar de destaque que ocupam há mais de cem anos nos anais da ficção de horror.

Minha conclusão: Drácula certamente não é candidato a um lugar na lista das dez maiores obras da literatura universal, mas, com os defeitos que possa ter (e tem), segue sendo a melhor história de vampiros a que já fui apresentado. E nestes tempos de Crepúsculo, redescobrir a obra de Bram Stoker pode ter o mérito adicional de nos dar um vislumbre do que era a figura do vampiro antes de sua atual "pasteurização" - quando rostos pálidos e presas longas verdadeiramente metiam medo, e figuravam nos pesadelos de gerações inteiras.