quinta-feira, maio 24, 2018

Contos da Cripta

A revista em quadrinhos Tales from the Crypt foi publicada (com esse título) de 1950 a 1955 nos Estados Unidos, pela legendária editora EC Comics. O motivo da observação entre parênteses é que Tales… teve uma gênese tão estranha quanto muitas das histórias que publicou. Ocorre que a EC tinha uma revista intitulada Crime Patrol, que, como o nome sugere, era dedicada principalmente a histórias de ação policial, até que seu editor, Bill M. Gaines, pelo feedback que recebia dos leitores por meio de cartas, constatou que as histórias que mais agradavam ao público eram as de terror, publicadas até então de forma esporádica. Como Gaines também gostava de histórias do gênero, e conhecia um punhado de artistas dispostos a produzi-las, Crime Patrol mudou de foco, passando a ter o terror como carro-chefe. Já que era assim, a revista acabou tendo o título trocado para The Crypt of Terror a partir de sua edição de número 17, de junho/julho de 1950 (a periodicidade era bimestral), e novamente para Tales from the Crypt, a partir da edição 20, de dezembro/janeiro. Para todos os efeitos, a revista era sempre a mesma, apesar das mudanças de título, tanto que a numeração não se alterou – parece que, fazendo dessa forma, a EC economizou nas despesas de copyright e com outras providências burocráticas que seriam necessárias para finalizar uma revista e criar outra nova.

Tales… marcou a infância de gente como Stephen King e Clive Barker, para não falar de milhares de outros que não se tornaram escritores de terror famosos. Como King nasceu em 1947, e Barker em 1952, devem ter lido edições antigas, encontradas em sebos ou emprestadas por parentes mais velhos, depois que a revista já havia sido cancelada. Por sinal, o cancelamento não se deu pela causa mortis mais comum entre revistas, a baixa vendagem: em 1955, Tales… estava vendendo muito bem, obrigado. O golpe fatal foi a publicação do famigerado livro Seduction of the Innocent ('A Sedução dos Inocentes'), em 1954, pelo não menos famigerado Fredric Wertham, e toda a repercussão que ele teve. Se você é fã de quadrinhos e conhece um pouco da história dessa forma de entretenimento, é provável que já tenha ouvido falar desse livro e de seu autor – e aposto que não foi de forma afetuosa. Wertham, um psiquiatra, acreditava firmemente que a leitura de histórias em quadrinhos era uma das principais causas de delinquência entre os jovens; chegou a discursar diante do senado americano, conseguindo que uma série de "medidas regulatórias" fossem tomadas em relação ao conteúdo publicado nos comic books da época. Essa censura com outro nome não perdoava nem os quadrinhos de super-heróis (cuja tônica, ao menos até então, era sempre a luta do bem contra o mal, com o inevitável triunfo do primeiro, algo que a maioria das pessoas acharia educativo), que dirá os de terror. O próprio título de Tales from the Crypt já a tornava um alvo preferencial, e, se fosse para adequar-se às novas diretrizes, a revista perderia totalmente as características que faziam dela o que era, de modo que Gaines e sua equipe optaram por finalizá-la em sua edição número 46, em fevereiro/março de 1955. Outros dois títulos da editora, The Vault of Terror e The Haunt of Fear (revistas-irmãs de Tales…, por assim dizer) tampouco sobreviveram. A EC ainda tentou trabalhar em outras direções; não havia uma temática que a "patrulha de Wertham" realmente aprovasse, pois, para o ilustre doutor e seus seguidores, quadrinhos eram inerentemente nocivos, pouco importando sobre o que versassem, mas, em todo caso, um ou outro tema ainda era tolerado, e, visando essa brecha, a editora passou a publicar histórias de guerra enaltecendo o patriotismo e a abnegação do soldado americano, ou aventuras urbanas protagonizadas por heroicos policiais e bombeiros – esse tipo de coisa. Fosse por que motivo fosse, todas essas revistas tiveram vida curta. Já outro título da EC, a humorística Mad, alcançou popularidade, assegurando a continuidade da editora até a década de 60, quando foi vendida e absorvida pela DC Comics, a grande rival da Marvel no filão dos super-heróis e dona de personagens como Batman e Super-Homem, entre muitos outros.

Passada a onda de histeria, as edições de Tales from the Crypt foram reimpressas várias vezes nos Estados Unidos, pois havia demanda por elas; hoje está disponível uma versão que traz todas as revistas reunidas sob a forma de cinco volumes de capa dura. Coisa fina! Quanto aos exemplares das tiragens originais, esses são relíquias que podem alcançar altos preços. Já nos anos 2000, foi tentada uma "ressurreição" da revista, com histórias inéditas, sobre a qual não sei muito; entretanto, meu tema de hoje é outro: Tales from the Crypt na TV.

Na verdade, a primeira adaptação de Tales… para mídias audiovisuais foi um longa-metragem feito em 1972, dirigido por Freddie Francis e contando no elenco com ninguém menos que o astro do terror Peter Cushing; o filme traz cinco narrativas independentes, todas elas dramatizações de histórias publicadas em Tales from the Crypt, The Vault of Terror ou The Haunt of Fear, e é muito querido pelos fãs da franquia. Porém, foi a série de TV produzida pelo HBO que realmente trouxe Tales… de volta a seu devido lugar em milhares de mentes doentias (hehehe!) mundo afora. A série teve sete temporadas, indo de 1989 a 1996, e totalizando 93 episódios, a grande maioria adaptações das velhas histórias em quadrinhos publicadas nas três revistas (e também em outro título da EC, Shock SuspenStories), mas com alguns roteiros originais também. Entre os produtores executivos estão Richard Donner, diretor tanto do clássico de terror A Profecia (1976) quanto do primeiro Super-Homem com Christopher Reeve (1978) e Robert Zemeckis, da trilogia De Volta Para o Futuro (1985, 1989 e 1990). O elenco inclui uma verdadeira constelação de nomes famosos de Hollywood: Tom Hanks, Kirk Douglas, Amanda Plummer, Dan Aykroyd, Timothy Dalton, Demi Moore, Brooke Shields, Joe Pesci, Lea Thompson, Malcolm McDowell e até mesmo a brazuca Sônia Braga, e isso é só pra dar alguns exemplos. No time dos diretores figuram Tobe Hooper (O Massacre da Serra Elétrica), William Friedkin (O Exorcista), Russell Mulcahy (Highlander) e os próprios Donner, Zemeckis e Freddie Francis, entre outros. Curiosamente, até alguns atores experimentaram a cadeira do diretor. O fortão Arnold Schwarzenegger dirigiu o episódio A Troca, da segunda temporada, além de fazer uma rápida aparição na introdução do mesmo, contracenando com o Guardião da Cripta (ver adiante). Já Michael J. Fox, o astro de De Volta Para o Futuro, dirigiu A Armadilha, da terceira temporada, no qual também fez um pequeno papel como um promotor público. Os episódios são curtos, com em média 25 minutos, alguns um pouco mais ou um pouco menos. No Brasil, a série foi veiculada nos anos 90 pela rede Bandeirantes, e agora está disponível em DVD pela Screen Vision.


Mesmo com todos esses nomes estrelados participando dos episódios, o verdadeiro astro da série é o Guardião da Cripta (The Crypt Keeper no original), um simpático morto-vivo que lembra uma múmia despida de suas bandagens (a semelhança é de família, como descobrimos no episódio Lower Berth, que, na tradução, ganhou o pífio título Apaixonados) e atua como mestre de cerimônias, aparecendo sempre no início de cada episódio para dar algumas dicas sobre a história, e novamente ao final, para comentá-la com um infalível humor negro – por sinal, uma das coisas mais legais a respeito de Contos da Cripta é o fato de ela em momento algum levar-se a sério. As falas do Guardião são repletas de trocadilhos engraçadíssimos, que, naturalmente, perdem-se na tradução ("boils and ghouls" em vez de "boys and girls" *gargalhadas*), o que é o principal motivo para que eu recomende que vocês tentem assistir sem as legendas… Principal, mas não único: mesmo sem levar em conta a perda dos trocadilhos, as legendas das duas primeiras temporadas, nesta edição, são um horror, e não no bom sentido. Na maioria, parecem ter saído do Google Translator, não o de hoje, que até oferece traduções razoáveis às vezes, mas a versão de fins dos anos 90 ou por aí, aquela que traduzia World Cup por 'Xícara Mundial’, entre outras coisas quase inacreditáveis. No episódio Three's a Crowd ('Três São Demais'), da primeira temporada, um marido desconsolado diz à esposa: I haven't been able to give you any kids ('Eu nem consegui lhe dar filhos'), mas o que a legenda diz é "eu nem sequer pude te beijar". Obviamente, o tradutor confundiu kids ('crianças') com kiss ('beijo'), e não teve a brilhante ideia de perguntar-se se isso fazia algum sentido no contexto da história. Pérolas desse nível são comuns nas legendas dessas duas temporadas. Na terceira, as coisas melhoram um pouco… Mas não muito.

Fiel a suas origens (afinal, nasceu de uma revista chamada Crime Patrol), Contos da Cripta traz em seus episódios um bocado de crimes, geralmente assassinatos. O lado positivo, se dá para dizer assim, é que o criminoso quase sempre acaba pagando, seja com a ajuda do sobrenatural (que está presente em muitos episódios, mas de forma alguma em todos) ou de alguma arte do destino. Por falar em destino, a futilidade de lutar contra ele também é um tema recorrente, como no episódio Dead Right ('Morte Certa'), estrelado por uma Demi Moore no auge, se é que me entendem. Nele, Cathy, uma secretária ambiciosa, ouve de uma vidente a seguinte profecia: ela se casará com um homem que herdará uma fortuna e morrerá logo depois. Acreditando ser essa sua chance de ficar rica, a atraente garota aceita o pedido de casamento de Charlie Marno, sujeito gordo, feioso e de mau hálito, por quem a única coisa que ela sente é repulsa, e que nem sequer é rico, ainda. A previsão da vidente se realiza ponto por ponto, mas, apesar disso, as coisas nem de longe funcionam como Cathy esperava… É o velho tema do fado inalterável, que já rendia assunto na mitologia grega, reciclado de forma criativa e com uma farta dose do já mencionado humor negro.


É claro que, ao mesmo tempo em que mantém um direcionamento geral para a série em termos de estilo, Contos da Cripta também deixa um certo espaço para que cada diretor imprima sua marca pessoal. Como resultado, há episódios que tendem para o suspense, outros para o terror sobrenatural… E há os que apelam despudoradamente para o gore. Exemplo desse último caso é Dead Wait ('Espera Mortal'), da terceira temporada, ambientado em alguma ilha do Caribe, provavelmente perto do Haiti, a julgar pelas referências ao vodu. No que seria o clímax (?) da história, o inescrupuloso aventureiro Red Buckley saca seu canivete e abre a buchada de um cadáver à procura de uma inestimável pérola negra que o sujeito, um milionário de origem francesa, havia engolido pouco antes de morrer, ao preparar-se para fugir da ilha assolada por uma revolução. Como se isso não fosse nojento o suficiente, o ricaço sofria de uma verminose grave, e o diretor achou por bem não nos poupar da visão dos parasitas se mexendo quando o trato intestinal do cara é aberto. OK, os efeitos práticos usados estão longe de realistas, mas o que vocês esperavam?! Tudo se explica quando ficamos sabendo que o diretor desse episódio é o Sr. Tobe Hooper, famoso principalmente por ter dirigido também o "clássico" (aumentem essas aspas aí) O Massacre da Serra Elétrica. O episódio tem um roteiro interessante e poderia passar muito bem sem essa cena. Quase como uma nota de rodapé, é bom registrar que a atriz Whoopi Goldberg, na época vivendo o auge da fama, participa dele, e, depois que termina, é brevemente entrevistada pelo Guardião da Cripta num impagável arremedo de talk show, recheado de trocadilhos com os títulos de alguns filmes de sucesso em que Whoopi atuou.

Mesmo tendo assistido, até agora, apenas às três primeiras temporadas (ainda não encontrei as outras para comprar – espero que a Screen Vision não tenha desistido antes do meio do caminho!), eu poderia ficar aqui enumerando uma longa lista de episódios legais, mas isso seria maçante, então contento-me em registrar que meu favorito até o momento foi o primeiríssimo episódio – o primeiro da primeira temporada –, intitulado The Man Who Was Death ('O Homem que Era a Morte'), a história de Niles Talbot, um homem feliz e realizado com seu trabalho, que consiste em fazer a manutenção da cadeira elétrica numa penitenciária estadual, bem como acionar a alavanca nas execuções. Sua rotina tranquila é sacudida quando a pena de morte é abolida em seu estado (nos Estados Unidos, cada estado tem autonomia para legislar a respeito da pena capital) e ele perde o emprego. Convencido de que sua função é nobre e necessária, Niles decide continuar a exercê-la por conta própria. O episódio é diversão do começo ao fim, com um roteiro que combina com perfeição o macabro e o engraçado (na verdade, o muito macabro com o muito engraçado), um soberbo desempenho do ator Bill Sadler no papel de Niles, e, de longe, a melhor trilha sonora que um episódio de Tales from the Crypt já teve (nem preciso ver a série toda pra saber!), composta por Ry Cooder e executada (ops…) no que parece ser um daqueles teclados eletromecânicos muito utilizados por bandas de rock das décadas de 60 e 70. Show!

Na verdade, não é fácil apontar um único episódio como o preferido, mesmo nesse universo relativamente restrito de apenas três temporadas. Parece que os responsáveis pela série quiseram marcar o final da terceira temporada com algo especial, e dessa ideia surgiu Yellow ('Covarde'), sem a menor dúvida a produção mais ambiciosa e mais cara exibida por Contos da Cripta, pelo menos até então. O episódio tem 36 minutos de duração sem contar as partes do Guardião, ou quase 40 se as incluirmos – muito mais que o normal da série – e traz no elenco não um ou dois, mas um punhado de atores famosos, além de ter envolvido logística e preparação que devem ter-se aproximado das de um filme de cinema. A história se passa na França durante os últimos dias da Primeira Guerra Mundial, e trata de um drama envolvendo o general Kalthrob (Kirk Douglas) e seu filho, o tenente Martin Kalthrob (Eric Douglas, filho de Kirk na vida real). Os dois pertencem a uma família de orgulhosas tradições militares, mas, para a decepção do general, Martin mostra-se um covarde no campo de batalha. Há tempos que sua conduta vem gerando descontentamento e desprezo em meio às tropas, mas, quando ele deserta durante um combate, abandonando os companheiros e causando a morte de vários deles, o pai (que, antes de ser pai, é comandante) não tem alternativa a não ser convocar uma corte marcial para julgar o próprio filho… E não posso ir mais adiante sem dar spoiler. Quando assistirem, notem que a ambição do episódio não se limita aos aspectos da produção e do elenco: o conflito proposto no roteiro é bem mais profundo e complexo que o usual da série, e a densidade dramática é algo nunca visto em nenhum episódio anterior. Em Yellow, Contos da Cripta se permite desencanar um pouco da obrigação de pertencer a um determinado gênero, pois não se trata de uma história de terror e nem mesmo de suspense: é um drama de guerra, um excelente drama de guerra, e ponto. Além dos Douglas pai e filho, marcam presença Lance Henriksen (de Alien: o Oitavo Passageiro, e que já havia aparecido no episódio Cutting Cards, da segunda temporada) e Dan Aykroyd (de Caça-Fantasmas). Robert Zemeckis assina a direção.

Muita gente tem um pé atrás com a ideia de unir terror e humor, e confesso que já fui do mesmo ponto de vista, mas hoje penso diferente: como em quase tudo na vida, também nesse caso poderíamos dizer que o "advérbio" é mais importante que o "verbo". Para quem matou as aulas de gramática, traduzo: não importa tanto o que está sendo feito, e sim como isso está sendo feito. Tales from the Crypt é uma série que esbanja criatividade, talento, e que, mesmo com tudo isso, conseguiu manter-se livre do veneno da pretensão, que já arruinou tantas séries e filmes que poderiam ter sido legais. Não tenta "revolucionar" nada, mas contenta-se em contar boas histórias e, volta e meia, tira um sarro de si própria. Impossível não gostar!

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