Você, jovem leitor do século XXI, acostumado a entrar em qualquer livraria e encontrar uma fartura de títulos de fantasia para escolher, não tem como imaginar o que era a vida de um fã do gênero no Brasil durante os anos 80 e primeira metade dos 90. O "raciocínio" dos editores da época era o de que, como essas histórias com dragões, elfos e magos eram uma coisa tão distante do cotidiano dos brasileiros, os leitores em potencial não se interessariam por elas. (Pergunto: que espécie de mocorongo, ao escolher um livro de ficção, um livro para se divertir, deseja encontrar nele as mesmas coisas do cotidiano, coisas essas das quais já atura o suficiente ― e, em geral, muito mais que o suficiente ― em seu próprio dia-a-dia?) E, como os editores achavam isso, os autores fantásticos estrangeiros eram muito pouco traduzidos ou publicados por estas paragens. Autores nacionais? Um brasileiro querendo escrever fantasia naqueles dias era mais ou menos como um filho de agricultores do interior gaúcho querendo ser astronauta.
Uma das poucas alternativas que tínhamos eram os livros importados ― e para quem, na época, ainda não lia em inglês, tinham que ser os importados de Portugal. Editoras como a Europa-América, que, já no próprio nome, demonstrava o objetivo de integrar leitores portugueses e brasileiros, eram meio que a nossa tábua de salvação. Graças a ela, pude ler as Crônicas de Dragonlance em 1992/93, vários anos antes de sua primeira edição brasileira, edição essa que, por tudo o que sabíamos então, poderia jamais sair. Mesmo em tempos mais recentes, depois de a literatura de imaginação ter finalmente conquistado espaço e visibilidade em nosso país, os livros portugueses continuaram a ser objetos de desejo, já que muitas obras famosas e/ou importantes que não encontramos em versões brasileiras estão disponíveis em edições de além-mar.
Eis aqui um exemplo: este volume das aventuras de Salomão Kane, herói criado por Robert E. Howard quatro anos antes que Conan aparecesse, foi publicado pela portuguesa Saída de Emergência (campeã indisputada no quesito Nome Mais Exótico) em 2005, ganhando mais tarde uma sobrecapa com a imagem do pôster do filme sobre o personagem lançado em 2009, estrelado por James Purefoy ― que, para mim, será sempre o Marco Antônio da série Roma. Note-se que o nome do personagem é grafado no livro como Salomão Kane, enquanto, na sobrecapa, aparece na forma inglesa, Solomon, tal como usado no filme. Usarei Salomão mesmo, tanto por causa do livro como pelo fato de meu primeiro contato com o personagem ter sido nas páginas d'A Espada Selvagem de Conan, que também grafava dessa forma.
E quem é Salomão Kane? Trata-se de um puritano que vive entre o final do século XVI e o início do XVII, tempos do reinado de Elizabeth I, tempos de Shakespeare e de Francis Drake, bem como de tantas outras personalidades e eventos da maior importância na história da Inglaterra. De modo especial, foi quando o Império Britânico viveu seu momento de maior ímpeto expansionista. "Puritano", aí, significa adepto do puritanismo, movimento religioso que se desenvolveu na Inglaterra, caracterizado por alinhar-se teologicamente com as igrejas protestantes, rejeitando tanto a doutrina católica quanto a anglicana, e por insistir na austeridade dos costumes, tanto que, hoje, é relativamente comum referir-se a qualquer pessoa que se conduza segundo uma moral rígida como sendo "puritana", sem que isso tenha necessariamente a ver com sua formação religiosa.
O interessante para nós é que Kane, em vez de ficar em sua nativa Devon e tornar-se um pregador, decidiu correr o mundo buscando "destruir o mal em todas as suas formas", o que geralmente significa matar monstros sobrenaturais. Por causa de tal temática, suas aventuras estão entre as histórias mais sinistras escritas por Robert E. Howard, revelando um interesse do autor pelo clima de terror, que mais tarde seria um pouco posto de lado, quando Conan se firmou como a mais popular de suas criações, e a que capitalizou a maior parte de seus esforços durante seus últimos anos de vida. Tenho a sensação de que, se Howard tivesse vivido mais algumas décadas, teria eventualmente retomado a linha mais sombria, fosse com Salomão Kane ou com outros heróis. Mas isso, infelizmente, ficará para sempre no terreno do "se".
Howard define Kane, na história A Lua de Caveiras, como "uma estranha mistura de puritano e cavaleiro, com um toque do filósofo antigo, e mais toques humanos do paganismo, embora a última asserção o tivesse chocado". Essa perfeita descrição do caráter do personagem permite, ainda, ler nas entrelinhas algo mais: Kane sempre gostou de lutar. O amor pela loucura da batalha, herança de seus ancestrais saxões, corre em suas veias, mas, ao mesmo tempo, tendo sido educado como cristão, ele aprendeu que a paz é preciosa. Assim, o nobre objetivo de exterminar o mal e proteger os inocentes ajuda-o a conciliar as coisas, tornando possível para ele saciar sua fome de luta sem ser torturado pela consciência. O que não quer dizer que ele não tenha seus conflitos: por mais que os críticos irritantes que gostam de malhar Howard se recusem a admitir, a verdade é que Salomão Kane está longe de ser um personagem raso.
Howard define Kane, na história A Lua de Caveiras, como "uma estranha mistura de puritano e cavaleiro, com um toque do filósofo antigo, e mais toques humanos do paganismo, embora a última asserção o tivesse chocado". Essa perfeita descrição do caráter do personagem permite, ainda, ler nas entrelinhas algo mais: Kane sempre gostou de lutar. O amor pela loucura da batalha, herança de seus ancestrais saxões, corre em suas veias, mas, ao mesmo tempo, tendo sido educado como cristão, ele aprendeu que a paz é preciosa. Assim, o nobre objetivo de exterminar o mal e proteger os inocentes ajuda-o a conciliar as coisas, tornando possível para ele saciar sua fome de luta sem ser torturado pela consciência. O que não quer dizer que ele não tenha seus conflitos: por mais que os críticos irritantes que gostam de malhar Howard se recusem a admitir, a verdade é que Salomão Kane está longe de ser um personagem raso.
Este livro reúne sete contos e um poema, originalmente publicados nas revistas pulp para as quais Robert E. Howard habitualmente vendia o que escrevia, mas que, de lá para cá, já apareceram em muitas compilações dirigidas aos fãs do autor ― em língua inglesa, é claro. Os contos O Chocalhar de Ossos e Asas na Noite, bem como o poema O Retorno a Casa de Salomão Kane, eu já conhecia d'A Espada Selvagem; Asas na Noite é provavelmente o melhor, tanto na ideia quanto no desenvolvimento, alternando momentos sinistros, épicos e trágicos ao narrar os esforços de Kane para defender uma tribo africana contra os ataques de uma raça de monstros alados. O Chocalhar de Ossos e A Mão Direita do Destino são magníficos contos de terror, sendo que, no segundo, cabe a Kane apenas o papel de testemunha ― e, creiam, ficou muito legal assim! A Lua de Caveiras é a história mais longa, talvez tenha sido tema da capa da revista por ocasião de sua publicação original, mas não é tão emocionante, chegando a deixar o leitor impaciente em algumas passagens. Ainda assim, vale a leitura, em especial por causa das partes que desvelam um pouco da história das eras antigas do mundo tal como imaginadas por Howard ― as menções a Atlântida e Lemúria configuram, ainda que de forma nebulosa, os conceitos da Era Pré-Cataclísmica na qual teriam lugar as aventuras do rei Kull, personagem criado em 1929 e que serviria de modelo direto para a criação de Conan, o Bárbaro, três anos depois. Kull teve apenas três histórias publicadas em vida do autor, todas mais ou menos no mesmo período em que saíram as aventuras de Salomão Kane (A Lua de Caveiras é de 1930).
A partir de A Lua de Caveiras, as histórias parecem formar uma sequência, coisa pouco comum na obra de Howard, que geralmente preferia escrever narrativas "soltas", sem se preocupar em seguir uma ordem cronológica. Desse conto em diante, o cenário é sempre o continente africano, que Kane desbrava sozinho, aparentemente sem outro objetivo a não ser obedecer a um impulso inexplicável que o faz ir sempre para o leste ― isto é, na direção do desconhecido, do inexplorado. Confesso que até pensei em criticar o fato de que os africanos nativos retratados nesta páginas parecem extremamente estereotipados, nada mais que a figura do "selvagem" tal como imaginada por europeus e norte-americanos com pouco ou nenhum conhecimento sobre os elementos humanos da África ― no máximo, há "bons" e "maus" selvagens. Mas optei por não fazer isso: quantos de nós podem dizer que realmente possuem um conhecimento ao menos razoável sobre as características e os costumes das tribos africanas? Mesmo para quem tenha interesse, essas não são informações de fácil acesso, nem sequer hoje, que dirá na época de Howard, então prefiro considerar que o cara fez o melhor que pôde.
Com Salomão Kane, Robert E. Howard conseguiu fundir, de forma eficiente, o terror e a aventura heroica, definindo um estilo muito pessoal, que se tornaria sua marca registrada e influenciaria muitos outros escritores ao longo das décadas seguintes. Ler As Fabulosas Aventuras… dá a fãs e não-fãs do autor a chance de compreender a tremenda injustiça do papel secundário ― na verdade, o semiesquecimento ― que foi o que restou aos outros heróis de Howard a partir do surgimento de Conan. Daí em diante, pouca gente quis saber deles, e, como os leitores não se interessavam, os editores, consequentemente, também não. Assim, Howard, que, como todo mundo, precisava ganhar o pão, teve que se curvar às exigências do mercado, de modo que, de 1932 até sua morte quatro anos depois, praticamente só escreveu sobre o cimério. Mesmo que, mais tarde, tenham sido resgatados, esses personagens e suas aventuras, ainda hoje, recebem muito menos atenção do que merecem, e é por isso que iniciativas como a da Saída de Emergência ao publicar este livro devem ser aplaudidas e prestigiadas. Quem achar, por favor, compre! Só assim podemos ter esperança de que tantos outros tesouros ocultos escritos pelo filho mais ilustre de Cross Plains possam continuar, aos poucos, vindo à luz.
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