Nave Escrava foi publicado pela primeira vez de forma serializada na Galaxy, em 1956 (isso foi antes de Pohl tornar-se editor da revista), ganhando a primeira edição em livro no ano seguinte. É uma aventura militar ambientada numa guerra fictícia que reúne, de um lado, uma coalizão de nações principalmente do ocidente (mas incluindo a Rússia), lideradas pelos Estados Unidos (é claro!), e, do outro, uma aliança oriental que tem como fator de união uma tal religião Caodai (que, para minha surpresa, descobri ser uma religião real, de origem vietnamita – ou, pelo menos, existe uma religião real com esse nome). Os Caodais não têm nacionalidades definidas, mas parecem ser predominantemente asiáticos. Segundo o protagonista-narrador Logan Miller, um tenente da marinha americana, trata-se, tecnicamente, de uma guerra fria (expressão que era novidade nos anos 50), mas uma "guerra fria" notavelmente quente. Explicando melhor: até aquele momento, nenhum dos lados atacou alvos ou desembarcou tropas em territórios continentais que estejam sob o domínio ou a proteção do outro lado, mas a mesma regra não se aplica a ilhas, e confrontos navais em mar aberto são frequentes. De maneira geral, todos concordam que a eclosão de uma guerra de verdade é inevitável e apenas questão do tempo.
Pohl chega a citar o trabalho de um cientista real, Konrad Lorenz (1903-1989), zoólogo e etólogo austríaco – etologia é o ramo da biologia que estuda o comportamento animal. Lorenz trabalhou durante muito tempo com aves, em especial gansos e gralhas. Foi ele quem descreveu o fenômeno do imprinting, que consiste na formação de um vínculo instantâneo: aves recém-nascidas passam a acompanhar o primeiro objeto animado que avistarem ao sair do ovo. Normalmente esse "objeto" é a mãe (ou o pai, que, em muitas espécies de aves, é o principal responsável pelos cuidados com a prole), mas, se por azar eles não estiverem no ninho no momento em que o ovo eclodir, e qualquer outro animal estiver passando… Bem, digamos que é provável que as coisas não terminem bem para esse filhote.
Para os fins de Nave Escrava, porém, têm maior interesse outros resultados obtidos por Lorenz: ele chegou a construir um vocabulário, ainda que limitado, do "idioma gralhês", associando significantes e significados, tal como no estudo de um idioma humano, e graças a isso, conseguiu de fato se comunicar com as gralhas, que, junto com seus primos, os corvos (sabemos hoje), estão entre os animais mais inteligentes. Enfim, Lorenz era praticamente um Dr. Dolittle da vida real; não causa surpresa que fosse o cientista mais admirado pelos integrantes do Projeto Mako, e que seu trabalho seja de extrema importância para eles.
No Projeto Mako, a tarefa de Logan Miller é operar o computador – tenham em mente que o livro foi escrito nos anos 50, e, mesmo que Pohl estivesse tentando imaginar um futuro dali a algumas décadas, a noção que ele tinha a respeito de computadores é a dos que existiam naquele tempo: eles ocupavam salas inteiras (em casos extremos, todo um prédio) e precisavam ser manejados por técnicos especializados. Os dados que o computador do Projeto está processando são os diferentes sons e gestos dos animais – cães, macacos, porcos, vacas e até focas – para, por meio da análise de padrões de repetição e combinação, tornar mais rápida a tarefa dos pesquisadores de descobrir o significado de cada um desses gestos e sons. Na base, o colega de quarto de Miller é o tenente russo Semyon Timiyazev, cuja mãe foi aluna e assistente de Ivan Pavlov (1849-1936), médico e fisiologista que se celebrizou por ter descrito o fenômeno do reflexo condicionado em animais. Seu experimento mais clássico nos parece hoje simples e até meio óbvio, mas Pavlov teve o mérito de ser o primeiro a demonstrar a coisa de maneira científica: se você sempre tocar uma sineta ao alimentar um cão, depois de algum tempo bastará tocar a sineta para que ele comece a salivar, mesmo que não haja comida alguma à vista. Timiyazev aplica muito do que aprendeu com a mãe em prol do Projeto, e é graças a sua amizade com ele que Miller acaba tendo envolvimento direto com os animais, o que, em princípio, não estaria previsto na descrição de suas funções.
Outra diferença entre ficção e realidade é que, em Nave Escrava, o conhecimento a respeito dos fenômenos de ESP (percepção extrassensorial, na sigla em inglês) está muito desenvolvido, ao ponto de existirem profissionais que oferecem ao público, de forma comercial, serviços que permitem que a pessoa se comunique telepaticamente com entes queridos distantes, tal como nos anos 50 havia empresas de telefonia que faziam o mesmo. O problema é que pessoas com essa habilidade, ou as que utilizaram seus serviços recentemente, ficam mais vulneráveis ao que se acredita ser uma arma secreta dos Caodais, o Glotch, que produz queimaduras sem causa aparente, podendo ferir gravemente ou matar. Tirando o fato de que atinge com mais frequência os extrassensoriais, nada se sabe sobre essa arma ou seu funcionamento, e as coisas ficam mais complicadas quando se descobre que há Caodais sendo atingidos também… O clímax da história chega quando Logan e Semyon são destacados para uma missão no Oceano Índico, integrando a tripulação de um gigantesco porta-aviões submarino que se dirige à ilha de Madagáscar, onde existe uma base Caodai que até há pouco era secreta. Os dois tenentes são encarregados de um pequeno submarino, transportado pelo porta-aviões e que pode ser ejetado para missões de curta distância – e nessa subnave, mais que apenas comandantes, eles são os únicos membros humanos da tripulação. Não posso ir mais adiante sem dar spoiler; digo apenas que o final claramente procura surpreender, e de certa forma consegue, mas, pessoalmente, achei-o muito repentino.
Nave Escrava é um livro curto e simples, baseado numa ideia inovadora para a época (e que, pelo menos até onde sei, tampouco foi muito explorada depois), e tem o mérito de recorrer pouquíssimo aos clichês mais batidos da ficção científica, sem com isso deixar de ser ficção científica na completa acepção do termo, o que faz dele um bom exemplo da versatilidade que, na minha opinião e na de muitos outros leitores, constitui uma das qualidades mais atraentes desse gênero literário. Não é, com certeza, uma das obras essenciais de Frederik Pohl, mas é uma leitura que entretém, e pode servir como uma boa introdução para quem ainda não conhece o autor.
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