Depois de Morte Súbita e dos romances policiais escritos sob o pseudônimo de Robert Galbraith, eis J. K. Rowling de volta ao universo de Harry Potter, nove anos depois de Harry Potter e as Relíquias da Morte, conclusão oficial da saga. Os azedos de plantão, é claro, já deram seu veredito: "ela só está a fim de ganhar mais dinheiro!" Rowling simplesmente não precisa disso: ela já tem o suficiente para assegurar uma vida mansa a todos os seus descendentes até a vigésima ou trigésima geração, com folga. Portanto, ela não está nisso pelo dinheiro – pelo menos, não mais. Se continua escrevendo, é porque gosta, e seus fãs certamente não vão reclamar.
Harry Potter e a Criança Amaldiçoada é algo um tanto diferente. A história, escrita por Rowling em cooperação com John Tiffany e Jack Thorne, foi concebida como roteiro para uma peça de teatro, a ser dirigida por Tiffany, e que estreou (com ingressos esgotados e todo o alarde que seria de se esperar) no Palace Theatre, em Londres, em 30 de julho de 2016. O livro foi lançado no Brasil em 31 de outubro – nada mais adequado: em pleno Dia das Bruxas. Confesso que fiquei meio decepcionado ao folheá-lo pela primeira vez, pois, embora soubesse que a história teve origem no teatro, imaginava que a autora tivesse reescrito o roteiro sob a forma de romance para a publicação, mas não: o que temos no livro é o próprio roteiro. Ler desse jeito causa estranheza a quem está acostumado a acompanhar as peripécias do jovem bruxo, mas não será isso que irá impedir os potterheads (fãs apaixonados da saga) espalhados pelo planeta de devorar essa nova aventura.
A história contada na peça inicia-se 19 anos depois dos eventos narrados em Harry Potter e as Relíquias da Morte – portanto, em 2016 mesmo – e se estende alguns anos para o futuro. Harry está agora com 37 anos de idade, trabalha no Ministério da Magia (para ser exato, é chefe do Departamento de Execução das Leis da Magia), está casado com Gina Weasley e tem três filhos: Tiago, Alvo e Lílian (a tradutora Anna Vicentini teve que seguir o controverso sistema de nomenclatura adotado por Lia Wyler, que traduziu os sete volumes anteriores e tinha por hábito traduzir nomes próprios e até mesmo – sei lá com qual critério – rebatizar certos personagens). Tiago, o mais velho, e a caçula, Lílian, foram batizados em homenagem ao pai e à mãe de Harry, e parecem ser filhos perfeitos. A ovelha negra da família é o do meio, Alvo Severo Potter. Seu primeiro nome homenageia o lendário diretor da não menos lendária Escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts, Alvo Dumbledore; o segundo, Severo Snape, o professor que Harry odiou durante sete anos, só para descobrir ao final que, na verdade, o homem era um herói. A peça começa quando Alvo está indo para Hogwarts pela primeira vez, junto com sua prima Rosa – filha de Rony Weasley, irmão de Gina e melhor amigo de Harry desde sempre, e de Hermione Granger, outra grande amiga e aluna mais brilhante de Hogwarts em sua época. Rosa é de opinião que, na viagem de um dia inteiro de trem até a escola, ela e Alvo, a exemplo do que aconteceu com seus pais, poderão ter a chance de fazer as amizades que irão influenciar seus destinos pela vida afora, e mais, também acredita que, por serem quem são, todos vão querer ser amigos dos dois, de modo que poderão escolher à vontade. Para a decepção da garota, o único amigo que seu primo faz é Escórpio Malfoy… Por ironia, filho de Draco Malfoy, arqui-inimigo de Harry durante toda a vida escolar de ambos.
(Toda vez que eu lia o nome Escórpio, era impossível não pensar na arma de cerco romana.)
As surpresas não param por aí. Na cerimônia de seleção, na qual o Chapéu Seletor decide para qual das quatro casas de Hogwarts cada novo aluno será mandado, Alvo acaba sendo designado para a Sonserina, que foi desde sempre a casa dos Malfoy, além de ter sido a de Tom Riddle, antes de ele se tornar o temido Lorde Voldemort. Embora isso vá lhe permitir ter a companhia de seu novo amigo quase em tempo integral, não deixa de ser um choque, pois, até onde se tem lembrança, todos os ancestrais e parentes de Alvo, pelos dois lados da família, sempre foram da Grifinória.
Seja como for, Alvo e Escórpio logo percebem que é uma sorte terem um ao outro: nenhum dos dois tem praticamente qualquer outro amigo. Alvo não demonstra talento para nada em particular, nem mesmo para o voo de vassoura, o que acaba com as esperanças que muita gente alimentava, de que ele viesse a honrar os feitos de seu pai e seu avô no campo de quadribol; Escórpio é inteligente e estudioso, mas tímido. De modo que os dois rapidamente assumem seu papel como aquele tipo de estudante que pode ser encontrado em qualquer escola, mágica ou não, esgueirando-se pelos corredores, procurando evitar ser visto, já que é presa fácil para bullies. Alvo se sente de forma oposta ao que acontecia com o pai em sua idade: enquanto Harry detestava as férias (porque tinha que passá-las com seus insuportáveis tios trouxas) e contava os dias para voltar a Hogwarts, Alvo detesta a escola, se bem que em casa não pareça se sentir muito melhor. Embora Harry se esforce por ser um bom pai, o garoto não gosta nem um pouco do fato de ser filho do famoso Harry Potter, e menos ainda de todas as expectativas que isso naturalmente cria nas pessoas – expectativas essas que, em sua própria opinião, ele sempre irá frustrar.
Todavia, por pior que Alvo ache sua vida, a de Escórpio é ainda pior. Muita gente ainda associa os Malfoy a Voldemort, de quem o avô de Escórpio, Lúcio Malfoy, foi um fiel servidor – e correm boatos persistentes de que Astória, esposa de Draco e mãe de Escórpio, foi enviada para o passado a fim de engravidar do próprio Voldemort, presumivelmente quando ele ainda era Tom Riddle, e humano o suficiente para gerar filhos. Ou seja, se esses boatos tiverem fundamento, significa que o verdadeiro pai de Escórpio é… Você-Sabe-Quem. Porém, verdade seja dita, o garoto não parece lembrar em nada o grande bruxo das trevas: segundo Alvo, Escórpio é bom, o que nenhum filho de Voldemort poderia ser; já segundo Draco, ele é por natureza um seguidor, e não um líder, o que tampouco combina com uma possível ascendência "voldemortiana". E há mais: se Astória tivesse viajado ao passado, só poderia ter sido por meio de um viratempo, um dispositivo mágico capaz de realizar esse feito – e todos os viratempos de cuja existência se tinha conhecimento estavam guardados no Ministério, onde foram destruídos durante uma batalha entre Comensais da Morte (os servos de Voldemort) e os membros da Ordem da Fênix, comandada por Dumbledore; esse episódio está narrado num dos últimos livros da saga, não lembro ao certo qual. Portanto, e por vários motivos, os boatos parecem um completo disparate, o que não impede que continuem a ser um doloroso espinho na carne de Escórpio.
Os primeiros três anos de Alvo Potter em Hogwarts passam em rápidos flashes. O importante para os fins da peça é o que acontece em seu quarto ano, quando ele e seu amigo Escórpio estão com 14 – não por acaso, a mesma idade que Harry tinha ao tomar parte no Torneio Tribruxo, como sabe quem leu Harry Potter e o Cálice de Fogo, o quarto volume da série. O torneio, realizado durante o ano letivo de 1994-95, terminou de forma terrível e trágica, com o retorno de Voldemort e a morte do outro campeão de Hogwarts, Cedric Diggory (a Sra. Lia Wyler que me desculpe, mas eu me nego a chamar o coitado de "Cedrico"!). Durante todo o torneio, os dois garotos haviam vivido uma relação de rivalidade e admiração mútua ao mesmo tempo, e, ao concluírem a última tarefa da competição, que daria a vitória a quem o fizesse, nenhum dos dois achou justo que o outro fosse derrotado: decidiram vencer juntos, e, para isso, pegaram ao mesmo tempo a taça da vitória – que, sem que eles imaginassem, estava enfeitiçada para levar instantaneamente quem a tocasse até a presença de Voldemort. O bruxo das trevas só estava interessado em Harry, de modo que, ao ver que havia outro rapaz com ele, displicentemente ordenou a um de seus servos que o matasse. Cedric, portanto, teve uma morte tola e desnecessária, coisa pela qual Harry jamais se perdoou – como se tivesse culpa.
Alvo, naturalmente, conhece essa história. Acontece então que, pouco antes de ele partir para seu quarto ano em Hogwarts, Harry e seus homens dão uma batida na qual estouram um covil de bruxos das trevas, e apreendem, entre outras coisas, um viratempo clandestino. O ocorrido chega aos ouvidos do jovem Alvo, enquanto o perigoso objeto fica sob custódia no Ministério – e, por falar nisso, a atual Ministra da Magia é ninguém menos que Hermione Granger (agora Granger-Weasley). Por uma daquelas coincidências fatais, Alvo também ouve uma conversa entre seu pai e Amos Diggory, o pai de Cedric, hoje um ancião solitário e inválido que vive num lar para bruxos idosos. Sabendo que Harry agora tem acesso a um viratempo, Amos implora que ele o use e volte no tempo para impedir a morte de seu filho, mas Harry, com dor no coração, tem que se recusar: de acordo com os mais conceituados teóricos da magia, o máximo que uma pessoa pode voltar no passado sem perigo de causar perturbações graves no fluxo do tempo é de cinco horas – quem pode prever as possíveis consequências de uma intervenção num fato ocorrido há 22 anos? Alvo, por outro lado, compadecido do velho, fascinado pela possibilidade de corrigir o que considera um dos erros de seu pai e sem um pingo de juízo na cabeça, decide empreender a arriscada missão. Para isso, conta com a ajuda de seu inseparável Escórpio e de uma jovem que diz chamar-se Delfine ("Delfi") e ser sobrinha de Amos Diggory, prima de Cedric. Os dois garotos fogem do Expresso de Hogwarts em plena viagem – o que, até onde se sabe, ninguém antes deles jamais conseguiu fazer, embora tenha sido tentado por transgressores legendários como Sirius Black e os gêmeos Fred e Jorge Weasley –, reúnem-se a Delfi, e os três invadem o Ministério em busca do fatídico viratempo… E, embora essas já pareçam ser façanhas notáveis, isso é apenas o começo. No decorrer da história, fica provado algo que quem, por enquanto, só leu Harry Potter talvez ainda não tenha percebido, mas que todo leitor de ficção científica sabe: que mexer no passado é extremamente perigoso, não importa se por meios tecnológicos ou mágicos. Por mais tentadora que pareça a ideia de ser testemunha ocular de grandes acontecimentos históricos ou de fazer um safári em meio a dinossauros ou mamutes, acho que, no fim das contas, é uma boa coisa que a viagem no tempo seja, por tudo o que se sabe, impossível segundo as leis da física… Embora seja verdade que já se disse o mesmo a respeito de ultrapassar a barreira do som, coisa que, hoje em dia, até meras aeronaves comerciais fazem tranquilamente.
Harry Potter e a Criança Amaldiçoada, sem dúvida, mantém o espírito da saga; se reescrito, talvez não rendesse um romance, mas daria um conto de boa extensão e, certamente, irresistível para qualquer um dos milhões de "órfãos" que tiveram pelo menos alguns dias de depressão quando terminaram de ler o que acreditavam ser o último livro das aventuras de Harry. Além de nostálgico (inevitável…), é também empolgante rever, agora na idade adulta, aqueles personagens cuja infância e adolescência acompanhamos tão de perto. Muita coisa continua igual e muita coisa mudou. O próprio Draco Malfoy tornou-se menos arrogante, imagino que tanto por ter amadurecido quanto por causa das coisas que passou ao tentar seguir os passos do pai como um Comensal da Morte, e, levado pela necessidade de proteger o filho, aceita o que duas décadas antes teria, sem dúvida, considerado impossível: colocar-se ao lado de Harry como aliado. Talvez, até, como amigo, possibilidade que fica em aberto numa cena da peça. Senti muita falta do gentil e atrapalhado meio-gigante Rúbeo Hagrid, que só aparece em cenas que retratam o passado; não temos nenhuma notícia dele, por onde anda ou o que está fazendo na época em que se passa a ação principal. No mais, assistir a essa peça deve ser uma experiência e tanto. Há coisas que o roteiro descreve e que só podemos ficar imaginando como, em nome de Merlim, podem ser apresentadas num palco: os efeitos especiais devem ser de deixar no chinelo muita coisa que se vê no cinema (não nos filmes de HP, é claro). Quem sabe não tenhamos uma surpresa e seja anunciada uma montagem brasileira? O surgimento de um filme é inevitável, mas ainda deve demorar, e eu realmente torço para que seja um filme – não uma totalmente desnecessária "trilogia", ou coisa que o valha. É esperar pra ver.
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