sexta-feira, maio 22, 2020

As Crônicas de Nárnia

É claro que eu sempre soube que em algum momento leria as Crônicas de Nárnia; já tenho o livro há alguns anos, mas o dia de realmente pegá-lo para ler vinha sendo protelado devido ao apelo irresistível de outros livros, que sem a menor cerimônia furavam a fila. Foi minha namorada, Cintia, quem providenciou o empurrão de que eu precisava ao reclamar, e não pela primeira nem segunda vez, que não aguentava não ter com quem comentar algo de muito surpreendente, empolgante ou curioso que acontece ou é revelado no último livro da saga, adequadamente intitulado A Última Batalha. Quando o protesto foi substituído pela ameaça de "spoilear" a coisa para poder comentar de um jeito ou de outro, me rendi. Bem-vindos aos domínios do poderoso Aslam!

Na verdade eu já tinha lido os dois primeiros livros, O Sobrinho do Mago e O Leão, a Feiticeira e o Guarda-roupa, na primeira edição da Martins Fontes, que era em pequenos volumes separados; tenho até mesmo um velho exemplar de O Príncipe e a Ilha Mágica, que vem a ser o mesmíssimo Príncipe Caspian (1951), segundo livro a ser publicado (quarto pela ordem cronológica), em sua primeira edição brasileira, lançada pela obscura editora ABU lá nos anos 80. Porém, depois de tanto tempo, o melhor era começar de novo e ler de uma tacada o volume único, também da Martins Fontes, como se fosse tudo um livro só. E foi o que fiz.

Se Clive Staples Lewis (1898-1963) não tivesse se dedicado à literatura fantástica, é provável que, hoje em dia, só fosse conhecido no restrito círculo dos estudos profundos de teoria literária e história da literatura, e possivelmente, também, pelos interessados em apologética cristã. Pois ele se dedicou a tudo isso, e sobressaiu em todas essas áreas. Irlandês de nascimento, Lewis ensinou nas universidades britânicas de Cambridge e Oxford; nesta última, foi colega de J. R. R. Tolkien, com quem firmou uma profunda amizade, reforçada pelos interesses comuns em língua e literatura, especialmente literatura medieval. Apesar da amizade, os dois divergiam em alguns pontos fundamentais, como no fato de Tolkien ser um católico fervoroso, enquanto Lewis era ateu. Depois de anos de discussões filosóficas, em 1931, ao final de uma conversa legendária que varou a madrugada, Tolkien por fim logrou êxito em converter Lewis ao cristianismo, ainda que tenha ficado um tanto decepcionado porque o amigo optou por voltar à Igreja Anglicana, na qual fora educado e da qual se afastara na adolescência, ao invés de abraçar a fé católica, como ele esperava. Os dois e mais alguns amigos literatos fundaram um grupo, uma espécie de pequeno clube informal denominado The Inklings; a tradução é difícil, o mais próximo que consigo chegar é "os da tinta", assim como Earthling significa "da Terra", com o sentido de terráqueo. Esse grupo se reunia num pub nas noites de quinta-feira para conversar sobre literatura; nessas ocasiões trocavam manuscritos ou os liam uns para os outros. Foi assim que Lewis tornou-se uma das primeiras pessoas a ler O Hobbit, e incentivou fortemente Tolkien a publicá-lo, tal como também o incentivaria durante o demorado processo criativo de O Senhor dos Anéis. Tudo indica que a influência de Tolkien tenha sido um dos fatores que levaram Lewis a, por sua vez, dedicar-se a escrever fantasia, embora também seja verdade que ele sempre teve um fascínio por folclore e mitologia, as fontes originais desse tipo de literatura.

As Crônicas de Nárnia só tiveram seu primeiro livro publicado em 1950, sendo que as reuniões dos Inklings deixaram de realizar-se no ano anterior, mas é provável que Tolkien e os outros tenham tido acesso a versões iniciais; sabe-se que o Professor nunca gostou muito delas, por serem essencialmente alegóricas, coisa que ele não apreciava, já que considerava a alegoria como uma forma de coerção intelectual – o autor estaria como que obrigando o leitor a interpretar a história da mesma maneira que ele. Em todo caso, Tolkien reconhecia às Crônicas o mérito de fábulas morais que poderiam contribuir para transmitir às novas gerações a moralidade cristã e os valores humanos fundamentais.


Quando me referi a O Sobrinho do Mago como sendo o primeiro livro das Crônicas, considerei a ordem cronológica da leitura, que é como os sete livros são apresentados nesta edição em volume único; pela ordem de publicação, ele seria o penúltimo, pois sua primeira edição é de 1955, depois de cinco outros livros e antes apenas de A Última Batalha. Entretanto, é em O Sobrinho do Mago que vamos encontrar a narrativa da criação do mundo que abriga o reino de Nárnia e dos primeiros contatos entre esse mundo e o nosso. O narrador afirma que os acontecimentos ali descritos tiveram lugar quando "Sherlock Holmes ainda vivia em Londres", o que significa algo entre o fim do século XIX e os primeiros anos do XX. O sobrinho do mago em questão é o garoto Digory Kirke, que acaba de mudar-se do interior da Inglaterra para Londres, em companhia da mãe doente, para morar com os tios André e Letícia, dois irmãos solteirões. O tio André é que é o mago… Ou, ao menos, acha que é: ele tem uma noção extremamente exagerada a respeito de seus próprios conhecimentos e poderes. Não sou muito de ficar procurando pelo em ovo, tenho uma tendência de me impacientar quando vejo alguém analisar uma obra e começar a atribuir-lhe "sentidos ocultos" e "mensagens nas entrelinhas" que provavelmente fariam o autor dar boas risadas se lhe perguntassem a respeito, mas, desta vez, não pude evitar que esse personagem me fizesse pensar em certo tipo de cientista, que se empolga tanto com os progressos alcançados, que por vezes não se dá conta de estar lidando com coisas que podem ser perigosas. Tio André herdou de sua falecida madrinha (segundo ele, uma descendente de fadas) um punhado de pó que teria vindo de outro mundo, ou outra dimensão, como diríamos hoje, e, trabalhando com esse material, consegue descobrir um meio de viajar magicamente para esse lugar, mas, em vez de ir pessoalmente, recruta Digory e sua amiga Polly como exploradores. Dessa forma as duas crianças chegam ao mundo de origem do tal pó, que, como descobrem, não é exatamente um mundo, mas uma espécie de encruzilhada entre as dimensões; tem a aparência de um bosque onde existem inúmeros pequenos lagos, cada um deles, na verdade, um portal para um mundo diferente. Passando por um deles, Digory e Polly vão sair num imenso palácio, uma edificação majestosa, mas quase em ruínas, como se já estivesse abandonado há séculos. Lá, inadvertidamente, acabam despertando a temível rainha-bruxa Jadis de uma espécie de sono mágico no qual ela se encontrava aprisionada sabe-se lá há quanto tempo. A feiticeira vem parar no nosso mundo, e, vendo o estrago que ela poderá causar caso sua estada se prolongue, Digory e Polly encontram um jeito de levá-la novamente ao Bosque Entre os Mundos, e, de lá, para qualquer mundo aleatório – e o mundo em questão acaba sendo aquele, ainda recém-criado, que abrigará Nárnia e outros reinos. Lá, Jadis estará entre os principais vilões da saga que irá se desenrolar.

Merece destaque a narração a respeito do nascimento da vida em Nárnia, que ainda é um lugar escuro e informe quando os personagens chegam lá; eles testemunham o primeiro nascer do sol e a criação da vida vegetal e animal, incluindo os seres míticos. Lewis é extremamente bem-sucedido ao narrar esses eventos com uma combinação de delicadeza e grandiosidade, tudo isso corporificado em Aslam, o Leão, cuja canção vai dando forma ao novo mundo (ou seja, aqui, como no Ainulindalë de Tolkien, o mundo nasce por meio da música!). Ao contrário de Tolkien, Lewis não via problema em recorrer a alegorias, e Aslam é sem dúvida a maior delas: o Leão é Jesus Cristo em pessoa sob uma aparência fantástica. Isso já fica suficientemente claro nesta primeira história, mas vai sendo reforçado por meio de suas palavras e atos ao longo das próximas.

A segunda história neste volume único foi a primeira a ser publicada; trata-se de O Leão, a Feiticeira e o Guarda-roupa (1950), cuja narrativa apresenta os quatro irmãos Pevensie: Peter, Susan, Edmund e Lucy, que na tradução são chamados de Pedro, Susana, Edmundo e Lúcia (não sei ao certo o que penso a respeito de traduzir nomes próprios; às vezes isso parece necessário e adequado, às vezes não, e aqui é um dos casos em que não parece, mas OK). Os quatro são mandados pela mãe para longe de Londres, que sofria com os bombardeios alemães durante a Segunda Guerra Mundial, e hospedam-se na casa de campo de um amigo da família, o professor Kirke – que é ninguém menos que o garoto Digory, agora já um homem idoso, que teve uma carreira notável como intelectual e aventureiro. Tenho a "sensação" de que o professor pode ter sido inspirado em Tolkien – quero dizer, na pessoa de Tolkien, não em sua obra. Posso estar presumindo demais, mas há pelo menos um indício a favor dessa teoria: a mãe de Digory chama-se Mabel, o mesmo nome da mãe de Tolkien. Isso, porém, não é importante aqui.


A casa do professor Kirke é uma daquelas mansões rurais do interior da Inglaterra: muito antiga, e tão grande que o próprio professor declara que não a conhece muito bem. É nela, num dos muitos quartos desocupados, que Lúcia, a caçula dos quatro irmãos, acidentalmente descobre um guarda-roupa cujas portas dão acesso a uma passagem entre mundos. A origem desse guarda-roupa é contada no final de O Sobrinho do Mago: ele foi construído com a madeira de uma árvore cuja semente veio de Nárnia, e é lá que Lúcia vai sair. O tempo transcorre de maneiras diferentes em cada lugar, e parece que nem sempre do mesmo jeito: às vezes parece correr mais lento em Nárnia que na Inglaterra, e outras vezes sucede o contrário. Faz apenas algumas décadas que Digory Kirke esteve em Nárnia, mas, quando a pequena Lúcia põe os pés lá, séculos se passaram. O país está dominado pela temida Feiticeira Branca, que não é outra senão Jadis, outrora a imperatriz de um mundo já desaparecido, que ficou aprisionada em Nárnia em O Sobrinho do Mago, e lá tratou de consolidar seu poder. Agora se diz rainha de Nárnia, mas, embora parte dos narnianos (que são seres míticos ou animais falantes) tenha-se colocado a seu serviço, a grande maioria não a reconhece como tal e espera pelo cumprimento de uma profecia que promete o fim da tirania da feiticeira e a liberdade para toda a terra e seus habitantes. A profecia tem duas partes: uma fala sobre o retorno de Aslam, que não é visto em Nárnia há séculos; a outra diz que, quando os quatro tronos no castelo de Cair Paravel forem ocupados por "filhos de Adão e filhas de Eva", quer dizer, seres humanos, o poder de Jadis terá fim, e o inverno permanente que sua magia lançou sobre Nárnia finalmente acabará. A feiticeira, é claro, mantém observadores e presta a máxima atenção a quaisquer informes sobre a possível presença de humanos em Nárnia; quando Edmundo também faz a travessia pelo guarda-roupa, ela o encontra vagando sozinho pelos bosques gelados e facilmente obtém dele toda a informação de que precisa, engambelando-o com promessas de adotá-lo e fazer dele um príncipe, se trouxer até ela seu irmão e irmãs. Por serem justamente quatro, dois meninos e duas meninas, Jadis vê neles o potencial para cumprir a profecia, o que ela quer impedir a todo custo. Isso já é suficiente para dar uma ideia do enredo, e não vou continuar para não dar spoilers, mas não dá para deixar de comentar como Aslam se oferece como vítima em sacrifício em troca da vida de Edmundo, que deveria morrer por ter traído os irmãos, e, mesmo com todo o seu poder, deixa-se matar sem opor resistência, para depois ressuscitar mais poderoso e glorioso que antes – coisa com a qual Jadis não contava, porque, como Aslam explica, ela pode conhecer a Magia Profunda, mas ignora que existe outra magia ainda mais profunda, que vem de antes da aurora dos tempos.

Para completar, quando Edmundo retorna ao convívio dos irmãos, o Leão diz a estes que não devem recriminá-lo e que "o que passou, passou". Subentende-se que Edmundo já foi suficientemente castigado pela própria consciência, arrependeu-se e recebeu o perdão – isso é cristianismo puro. Deve-se notar que, ao ser resgatado das garras de Jadis e trazido até o acampamento onde estão Aslam, seu exército e também Pedro, Susana e Lúcia, Edmundo não é imediatamente conduzido para se juntar aos irmãos; antes disso, ele e Aslam têm uma conversa a sós, na qual, como o narrador sublinha bem, somente os dois sabem o que foi dito, e mais ninguém – uma clara alusão ao sacramento da confissão, muito prezado pelos católicos, mas alvo de controvérsia entre os anglicanos. Parece que, nesse ponto, Lewis se inclinava ao catolicismo.


A história seguinte é O Cavalo e seu Menino (1954), que tem lugar durante o reinado de Pedro como Grande Rei em Nárnia (com os irmãos como corregentes), mas começa em outro reino, Calormânia, onde o garoto Shasta vive com um pescador que o adotou e sonha em conhecer as terras do norte – quer dizer, Nárnia –, sobre as quais seu pai adotivo e os vizinhos evitam até mesmo falar. A sorte de Shasta tem uma reviravolta quando um tarcaã (parece ser um título nobiliárquico calormano; gostaria de saber como era isso no original…) se hospeda na cabana de seu pai e propõe comprá-lo como escravo, negociação essa que o pescador está disposto a aceitar, sendo o valor da transação a única dúvida. Shasta descobre que o cavalo do tarcaã nasceu em Nárnia e, como muitos animais lá, é capaz de falar e tão inteligente quanto um ser humano, detalhes esses que o animal sempre escondeu cuidadosamente de seu amo, mas revela a verdade ao garoto, e os dois decidem fugir juntos rumo ao norte. Por não conseguir pronunciar o nome com o qual o cavalo se apresenta, Shasta passa a chamá-lo de Bri. Durante sua viagem, os dois eventualmente se encontram com Aravis, a filha de um tarcaã que está fugindo da casa do pai para evitar um casamento arranjado, e a montaria de Aravis é Huin (onomatopeia de um relincho!), uma égua também de origem narniana e falante, como Bri. Como todos têm o mesmo destino, seguem viagem juntos; será inevitável passarem por Tashbaan, a capital da Calormânia, onde Shasta vem a conhecer Edmundo e Susana, dois dos quatro reis de Nárnia. Eles estão ali para as tratativas de um possível casamento entre Susana e o príncipe Rabadash, filho do Tisroc (título dado ao monarca calormano), mas a jovem acaba decidindo que não quer se casar com ele, e a delegação narniana parte de surpresa, para evitar que ela e o irmão acabem sendo feitos reféns. O príncipe, inconformado, convence o pai a invadir Nárnia, e, de formas que vocês saberão quando lerem o livro, esse plano chega ao conhecimento de Shasta, Aravis e seus amigos equinos, que precisam então avisar os reis de Nárnia e ajudá-los a impedir essa invasão. Não sei se alguma coisa do tipo foi levantada enquanto C. S. Lewis era vivo, mas hoje em dia, na "era da lacração", O Cavalo e Seu Menino é alvo de críticas, acusado até mesmo de racismo, porque a Calormânia e seus habitantes, nitidamente inspirados nos povos árabes, ficam com o papel de "império do mal", que tenta atacar a livre e pacífica Nárnia, que faria as vezes da Europa. Como sabemos, o discurso que garante os aplausos nestes nossos tristes dias consiste em pintar a longa e geralmente turbulenta relação entre o Oriente Médio e a civilização ocidental como se tivesse sido feita exclusivamente de ataques covardes e gratuitos desta última contra o primeiro; afinal, esses povos brancos e, pior ainda, cristãos, têm que ser apontados sempre como os vilões da História, não é mesmo? Eu não me surpreenderia se aparecesse gente propondo uma "reescrita" das obras de Lewis, como já quiseram fazer com as de Mark Twain… Antes de passar ao próximo livro, duas notas de pé de página. Primeira: no capítulo 14, uma conversa entre Aslam, Bri, Huin e Aravis toca num ponto importante da fé e da teologia cristãs; esse trecho deve ser lido mantendo em mente que o Leão simboliza Cristo. Seria empolgante esmiuçar a coisa, mas não posso permitir que este texto atinja dimensões demasiado absurdas, e, além disso, tem que sobrar algo para o leitor descobrir quando for ler o livro!… Segunda: a maneira de falar dos personagens calormanos de alta estirpe poderá cansar alguns leitores pelo excesso de floreios retóricos e poéticos, mas, correndo o risco de parecer pedante, devo dizer que me diverti muito com essas passagens. Lewis era certamente um mestre das palavras, e creio que isso tenha sido uma alfinetada proposital no estilo desnecessariamente rebuscado adotado por certos escritores e/ou oradores (assumo minha parcela de culpa).

Em Príncipe Caspian (1951), os irmãos Pevensie estão completando um ano desde seu retorno ao "mundo real" depois das aventuras vividas em O Leão, a Feiticeira e o Guarda-roupa, e estão no meio de sua viagem de volta à escola, ao fim das férias, quando são novamente chamados a Nárnia, onde chegam de um jeito diferente da primeira vez – pois, segundo o ensinamento de Aslam, "nada acontece duas vezes da mesma maneira". Ao chegarem lá, descobrem que 13 séculos se passaram desde os tempos de seu reinado, e que Nárnia foi invadida pelos homens de Telmar, que a conquistaram de forma violenta e quase exterminaram os narnianos originais. Há alguns anos, o rei Caspian IX morreu, deixando um filho de mesmo nome, ainda pequeno, que, desde então, está sob a tutela de seu tio Miraz; este deveria atuar como regente até que o jovem Caspian chegasse à maioridade, mas acaba por fazer-se ele próprio rei. Caspian leva a vida normal de um príncipe herdeiro, mas tem uma particularidade: é fascinado pelas histórias da antiga Nárnia, que lhe são contadas primeiro por uma velha ama e mais tarde pelo Dr. Cornelius, seu preceptor – mas esse interesse não é bem visto pelo tio. Tudo a respeito dos narnianos é considerado mero conto de fadas nessa época, como se nunca tivesse existido de fato, e tanto Miraz quanto as demais figuras importantes da sociedade telmarina prefeririam que tudo isso fosse completamente esquecido.

Quando a esposa de Miraz tem um filho, o usurpador decide dar um fim em Caspian, que é salvo por Cornelius e parte em busca dos descendentes que restaram dos antigos narnianos, pedindo sua ajuda para conquistar o trono que por direito lhe pertence e prometendo que, se ele se tornar rei, iniciará uma nova era de paz entre telmarinos e narnianos, e reinará com justiça sobre ambos os povos. Pedro, Edmundo, Lúcia e Susana são figuras legendárias nesses tempos; como o próprio narrador compara, o retorno deles é para Nárnia o que seria para a Inglaterra a volta do rei Artur, como profetizado na lenda, e, ao que se espera, a presença deles fortalecerá a fé dos seguidores de Caspian durante a guerra que se prepara para estourar. Novamente, a narrativa de fantasia e aventura funciona por aquilo que é, e funcionaria mesmo que não houvesse qualquer mensagem em particular a ser passada – mas a mensagem existe, e desta vez o momento-chave está no capítulo 10, no qual um diálogo entre Lúcia e Aslam aborda a necessidade de acreditar mesmo que ninguém mais acredite, e de ter a coragem de seguir o caminho certo ainda que para isso seja preciso abandonar a segurança de um grupo e ir sozinho – coisas que sempre foram necessárias ao cristão, desde os primórdios, e hoje, talvez, mais do que nunca. Provavelmente vocês viram o filme, eu também vi e gostei, mas não se contentem com ele: leiam o livro. Há detalhes importantes que foram deixados de fora, importantes especialmente para quem está procurando interpretar o simbolismo cristão na obra de Lewis. Por outro lado, o roteiro do filme fez alguns acréscimos interessantes à história, coisas que não estão no livro, mas que são muito plausíveis e, poderíamos dizer, até mesmo adequadas, como a rivalidade que surge entre Pedro e Caspian, o antigo e o atual rei. E a parte sobre as árvores da floresta marchando para a batalha, essa eu poderia jurar que foi inspirada numa conversa entre Lewis e Tolkien!…


Em A Viagem do Peregrino da Alvorada, mais um ano se passou no "mundo real", a guerra já acabou (eu sei, no filme não) e Edmundo e Lúcia, os dois Pevensie mais jovens, estão hospedados, muito a contragosto, com seus tios Arnold e Alberta, que têm um filho chamado Eustáquio, o protótipo daquele primo insuportável que todo mundo tem ou já teve – a menos que você seja o primo insuportável. Não é por acaso que, dos quatro protagonistas anteriores, apenas Lúcia e Edmundo estão em cena: Aslam havia predito (ou decidido, como parece mais provável) que só os dois retornariam a Nárnia depois dos eventos do livro anterior, pois Pedro e Susana já haviam aprendido tudo o que podiam lá. E quando os dois fazem pela terceira vez a passagem entre os mundos, Eustáquio acaba indo junto. O trio se vê no meio do mar e é recolhido pela tripulação do Peregrino da Alvorada, um navio da novíssima armada de Nárnia, que o agora rei Caspian fez construir após ter conseguido, ao menos em parte, domar o pavor instintivo que seus patrícios telmarinos tinham do mar. E o rei em pessoa está a bordo; ele explica a Lúcia e Edmundo que o objetivo de sua viagem é procurar por sete nobres telmarinos que eram amigos de seu pai, o rei Caspian IX, e por isso foram exilados pelo usurpador Miraz, para impedir que apoiassem o jovem príncipe quando ele reivindicasse seu direito ao trono. A jornada vai levá-los a mares raramente navegados antes e a descobertas fantásticas; é uma narrativa de "viagens maravilhosas" que segue uma tradição antiga na literatura popular do ocidente – e não só do ocidente: alguém lembra das aventuras do marinheiro árabe Sinbad? As origens desse tipo de história remontam, pelo menos, à Odisseia de Homero (que Edmundo chega a citar) e às viagens de Jasão e os Argonautas, e digo pelo menos porque, pelo pouco que sei sobre a Epopeia de Gilgamesh e outros textos legendários sumérios e assírio-babilônicos, suas raízes podem ser ainda mais profundas. Como também é comum em narrativas de viagens por terras desconhecidas, A Viagem do Peregrino da Alvorada acaba sendo, ao mesmo tempo, uma jornada de autodescoberta para diversos personagens; os exemplos mais marcantes são Eustáquio, que vai aos poucos mudando para algo melhor que aquele garoto de maus instintos e desprovido de imaginação, e Caspian, ainda aprendendo a ser um bom rei e a controlar seu temperamento impulsivo e por vezes autoritário. Mais sutilmente, também Lúcia aprende e "cresce"; já Edmundo parece ter aprendido sua lição em O Leão, a Feiticeira e o Guarda-roupa, e não faz novas grandes descobertas interiores, embora vá ganhando experiência e demonstrando mais maturidade. Além de tudo isso, Lewis não resistiu a fazer uma crítica bem-humorada a uns e outros por meio dos Tontópodes, criaturas simpáticas, embora um tanto ridículas (engraçadas, vá), que os aventureiros encontram numa das ilhas onde aportam: eles sempre concordam enfática e energicamente com quem estiver falando no momento, e, se logo em seguida outra pessoa tomar a palavra e disser exatamente o contrário do que disse a primeira, imediatamente lhe dão razão com o mesmo entusiasmo… Caramba, espero que o recado tenha sido entendido pelo menos por alguns. Ao final, Lúcia e Edmundo descobrem, entristecidos mas conformados, que essa aventura, na qual não chegaram a pôr os pés em Nárnia propriamente dita, marcou sua última visita àquele mundo. Tal como já acontecera a Pedro e Susana, daí em diante terão que encontrar seus caminhos em seu próprio mundo, onde Aslam também está, mas, como ele mesmo informa, é conhecido por outro nome.

Como, portanto, os dois últimos dos irmãos Pevensie não mais voltarão a Nárnia, é seu primo Eustáquio quem sobra para servir de elo com a história do sexto livro, A Cadeira de Prata. Durante o ano letivo que se segue às férias em que teve sua primeira experiência em Nárnia, Eustáquio está bastante mudado, e sua colega de escola, Jill Pole, que já o conhecia antes, não deixa de notar o fato. Os dois estudam num colégio experimental, e Lewis, experiente professor, não fazia questão alguma de esconder o que pensava daquela pedagogia moderna:

Os diretores achavam que as crianças podiam fazer o que desejassem. Infelizmente, porém, havia uns dez ou quinze da turma que só queriam atormentar os outros. Lá acontecia de tudo: coisas horríveis que, numa escola comum, seriam descobertas e punidas. Mas ali, não. Mesmo que se descobrisse quem as havia feito, o responsável não era expulso nem castigado. O diretor achava que se tratava de "interessantes casos psicológicos" e passava horas conversando com tais alunos. E estes, se encontrassem uma resposta adequada para dizer ao diretor, acabavam se tornando privilegiados.

E mais:

Devido aos curiosos métodos de ensino do Colégio Experimental, lá não se aprendia muito Matemática ou Latim, mas todos sabiam desaparecer rapidamente e sem ruído, quando eles [os bullies, diríamos hoje] estavam atrás de alguém.

Jill, então, acompanha Eustáquio quando ele é novamente transportado para o mundo onde fica Nárnia – e, para manter a tradição da saga, a viagem acontece de uma maneira nova, diferente de todas as passagens anteriores. Jill, de certa forma, recebe um privilégio, pois encontra-se com Aslam praticamente assim que chega a Nárnia, o que não acontecera com nenhum outro protagonista até então. O Leão explica-lhe que ela e Eustáquio estão ali porque têm uma missão a cumprir: o único filho do velho rei de Nárnia foi raptado, e eles devem encontrá-lo e trazê-lo de volta, já que a morte de um rei sem herdeiro pode facilmente lançar o reino no caos. Quando as duas crianças chegam à corte em Cair Paravel, Eustáquio sofre um choque ao ter seu primeiro contato com o fenômeno da marcha diferente do tempo no nosso mundo e em Nárnia: o rei não é outro senão Caspian X, que ele conheceu como um rapaz em sua visita anterior, e agora é um homem idoso, pois naquele mundo 70 anos se passaram, enquanto na Terra transcorriam apenas alguns meses.

Além de longo, o reinado de Caspian foi próspero e marcado pela justiça, mas também por uma tragédia: seu filho, o príncipe Rilian, foi raptado, faz vários anos, aparentemente por uma feiticeira por quem ele se havia apaixonado, que tinha o poder de metamorfosear-se numa serpente (acredito que qualquer semelhança com outras histórias envolvendo criaturas em forma de serpente que seduzem ou enganam os incautos não seja mera coincidência). Muitos dos mais bravos cavaleiros e guerreiros de Nárnia – humanos ou não – partiram em busca do príncipe desde então; nenhum obteve sucesso, e a maioria não voltou, então Caspian, embora arrasado pela perda, proibiu novas buscas, para impedir que mais valorosos narnianos perdessem a vida. Agora, porém, o velho rei, sentindo a proximidade da morte, decide partir, ele próprio, acompanhado de um grupo de súditos fiéis, para uma última e desesperada tentativa de encontrar o filho. A missão que Aslam designa a Eustáquio e Jill é a de fazerem sua própria busca a fim de localizar o príncipe e trazê-lo de volta. O Leão dá algumas indicações, e as duas crianças partem, tendo como guia um paulama; esses seres são semelhantes aos humanos de maneira geral, mas com pernas e braços muito mais longos em relação ao corpo, parecendo adaptados à vida nos pântanos – e, muito de acordo com isso, o nome desse paulama em particular é Brejeiro. O guia é o que Eustáquio chama de pé-frio, pois quase todas as suas falas consistem em previsões pessimistas, mas, ao mesmo tempo, mostra-se um companheiro corajoso e leal, que se mantém fiel mesmo ante as eventuais malcriações dos garotos, que por vezes se irritam com suas intermináveis lamúrias.



Não há dúvida de que a Busca é uma das situações mais recorrentes em aventuras heroicas, desde a lenda de Jasão e os Argonautas, que citei não faz muito, até A História Sem Fim, e aqui temos mais um exemplo. Eustáquio, Jill e Brejeiro nos conduzem numa viagem que descortina uma série de paisagens desse mundo fantástico, e que, é claro, não está isenta de perigos e sofrimentos – enfim, podemos, se quisermos, ver essa aventura como uma alegoria para a vida humana… Mas será que o "se quisermos" não faz com que deixe de ser uma alegoria, entrando no campo da aplicabilidade? Eis de novo o choque entre as visões de Lewis e de Tolkien, que nunca está muito longe enquanto lemos as Crônicas de Nárnia.

Bem, se a história for uma alegoria da vida humana, então torna-se claro o significado  de certo detalhe. Ao falar com Jill, logo no começo, Aslam descreve à menina uma série de sinais que ela e seus companheiros encontrarão ao longo do caminho e a orienta sobre como devem agir diante de cada sinal, faz com que ela memorize e repita tudo para ele, porém, mais tarde, envolvida com tantas outras coisas, ela se esquece da maior parte do que o Leão lhe disse; um sinal após outro é perdido e as coisas não saem como deveriam. É fácil ver aí mais um paralelo com o cristianismo: uma pessoa pode amar Cristo e desejar sinceramente agir conforme Seus ensinamentos, mas fazer isso no dia a dia ao longo da vida é difícil, e ela inevitavelmente irá falhar muitas vezes. Faz parte. Também quero registrar que no capítulo 12 há um diálogo que resulta ser uma afiada crítica a certos segmentos religiosos e principalmente filosóficos que tentam fazer com que as pessoas se fechem dentro de uma bolha, esquecendo o que existe lá fora, e ainda se julguem muito inteligentes por fazê-lo. É tentador falar mais sobre esse capítulo, mas não poderia fazê-lo sem dar um sério spoiler.

As Crônicas terminam com A Última Batalha, e esse livro começa numa pegada que lembra as fábulas de Esopo. Numa floresta de Nárnia vivem um velho macaco, Manhoso, e seu amigo, o jumento Confuso, que pertencem à classe dos animais falantes narnianos. Como assinalei ao tratar de O Cavalo e Seu Menino, esses animais não só falam como também possuem inteligência equivalente à de um ser humano – só que, não adianta negar, os seres humanos não têm todos a mesma inteligência, e entre eles não é diferente: Confuso faz jus a seu nome e ao estereótipo (falso, por falar nisso) que pesa sobre toda a sua espécie. Já Manhoso é esperto e matreiro, conseguindo sempre engambelar o amigo para que faça todo o trabalho pesado enquanto ele colhe os benefícios. Um belo dia, os dois encontram por acaso uma pele de leão, e Manhoso decide fazer com que Confuso a vista; como o narrador observa, os habitantes daquela região de Nárnia nunca viram nem sequer um leão comum, de modo que muitos se deixam enganar quando o macaco começa a apresentar o jumento disfarçado como sendo o próprio Aslam, e se autonomeia seu porta-voz. É claro que o pobre asno nem mesmo entende direito o que está acontecendo, limitando-se a fazer o que Manhoso lhe diz. Aproveitando-se de sua nova posição de poder, o macaco passa a dar ordens "em nome de Aslam" para conseguir que os outros animais façam tudo o que ele quer – mais uma alegoria fácil de identificar, na qual Manhoso é o falso profeta, representando tanto líderes religiosos quanto reis e potentados em geral que, ao longo da História, arrogaram-se autoridade divina.

A farsa começa como um problema apenas local, mas ganha dimensões maiores quando Manhoso, também à semelhança de muitos desses líderes, vai longe demais com sua ganância e passa a negociar com os calormanos, obrigando os animais a trabalhar para eles e até vendendo muitos para os inimigos, tudo em benefício do "profeta" (que, é claro, assegura que o dinheiro será usado para o bem da comunidade) e supostamente por ordem de Aslam. Quando as notícias chegam aos ouvidos do jovem rei Tirian (bisneto do bisneto de Rilian, filho de Caspian, pois, novamente, séculos se passaram), ele decide investigar pessoalmente, acompanhado apenas por seu melhor amigo, o unicórnio Precioso, e acaba capturado pelos calormanos. Quando, em desespero, o rei clama pelo socorro do verdadeiro Aslam, este lhe envia ajuda nas pessoas de Eustáquio e Jill, e os três, com o reforço de mais alguns aliados, encaram a missão de recolocar as coisas nos devidos lugares. A história aborda não apenas a questão do falso messianismo, mas também uma de suas mais graves consequências: quando o deus falso é desmascarado, muita gente acaba descrendo até mesmo do verdadeiro, como um grupo de anões que declaram que não existe Aslam nenhum e se põem a bradar "vivam os anões!", o que só pode simbolizar o ateísmo e a visão antropocêntrica moderna, para a qual o homem é a medida e a finalidade de tudo, e não existe nada acima dele. Por fim, a tentativa de Manhoso e do comandante calormano de fazer com que os narnianos acreditem que Aslam e o deus dos calormanos, Tash – uma divindade sanguinária, em cujos altares fazem-se sacrifícios humanos – são o mesmo deus, é um alerta contra aqueles que, em nome de uma suposta tolerância, trabalham para sabotar a fé dos cristãos tentando convencê-los de que o Deus em que acreditam é a mesma coisa que as divindades de outras religiões, e que, portanto, não faria sentido crer em dogmas que são exclusivamente cristãos.



Curiosidade da vez: Tirian, por especial graça de Aslam, tem a oportunidade de reunir-se com os Sete Amigos de Nárnia que habitam no mundo dos filhos de Adão e filhas de Eva, e que vêm a ser os protagonistas de todas as histórias narradas nas Crônicas. O leitor atento provavelmente fará a mesma coisa que eu fiz ao chegar a esse trecho: vai pausar a leitura e fazer um cálculo. Sete? Como assim? Digory, Polly, Pedro, Susana, Edmundo, Lúcia, Eustáquio e Jill: são oito! Só que tem um porém…

– Senhor – disse Tirian, após saudar a todos –, a não ser que eu tenha entendido mal as crônicas, deve haver mais alguém. Vossa Majestade não tem duas irmãs? Onde está a rainha Susana?
– Minha irmã Susana – respondeu Pedro, breve e gravemente – já não é mais amiga de Nárnia.
– É verdade – completou Eustáquio. – E toda vez que se tenta conversar com ela sobre Nárnia, ou fazer qualquer coisa que se refira a Nárnia, ela diz: "Mas que memória extraordinária vocês têm! Continuam no mundo da fantasia, pensando nessas brincadeiras tolas que a gente fazia quando era criança!"
– Essa Susana! – disse Jill. – Agora só pensa em lingeries, maquilagens e compromissos sociais. Aliás, ela sempre foi louquinha para ser gente grande.
– Gente grande, pois sim! – disse Lady Polly. – Gostaria que ela crescesse de verdade. Quando estava na escola, passava o tempo todo desejando ter a idade que tem agora, e agora vai passar o resto da vida tentando ficar nessa idade. Tudo em que ela pensa é correr para atingir a idade mais boba da vida o mais depressa possível e depois parar aí o máximo que puder.

Muita gente vê machismo aí, e no meio dessa "muita gente" estão nomes de peso como J. K. Rowling, que tem uma dívida visível com Lewis (é só comparar o modo como os centauros são descritos na obra de cada um, e esse é apenas um exemplo dentre vários possíveis), mas já chegou a criticar especificamente esse trecho. À primeira vista, as alegações levantadas por ela e outros parecem fazer sentido: Susana é retratada como a pessoa que escolheu a pior parte de duas maneiras diferentes (em outro texto eu poderia dizer que ela escolheu "o pior de dois mundos", mas aqui isso causaria confusão), pois, em nome de sua vontade de se afirmar como uma mulher adulta, abandonou a imaginação, mas ao mesmo tempo, não alcançou a verdadeira maturidade e vai provavelmente passar a vida, como diz Polly, ocupando-se de frivolidades próprias de moças jovens-adultas. Porém, a meu ver, Lewis poderia igualmente ter excluído Pedro do rol dos Amigos de Nárnia e colocado Susana para explicar a Tirian que seu irmão mais velho agora só pensa em trabalho e carreira e diz que tudo sobre Nárnia é "fantasia" ou "brincadeira tola"; alguém tinha que ser exemplo da tolice que há em enterrar a imaginação em prol de um suposto crescimento, e calhou de ser Susana. A patrulha politicamente correta vai objetar: e por que é que trabalho e carreira são "coisas de homem", enquanto maquiagem e compromissos sociais são "coisas de mulher"? Sei que é inútil pedir a esse pessoal que leve em consideração a perspectiva histórica (um conceito que eles parecem incapazes de compreender), mas, em todo caso, a resposta é simples: as Crônicas de Nárnia foram escritas durante a década de 50, quando relativamente poucas mulheres tinham carreiras profissionais, e a maioria das pessoas via como normal que a empreitada mais importante da vida delas consistisse em aproveitar o breve período de beleza na juventude para conseguir o melhor casamento que pudessem. Sessenta e poucos anos depois, a sociedade vê isso tudo de forma diferente, mas Lewis não tinha como prever isso.

Esta edição termina com Três Maneiras de Escrever para Crianças, um brevíssimo e agradável ensaio que, ao contrário do que poderia parecer, não se propõe a dar diretrizes sobre como escrever histórias infantis – poderíamos dizer que é muito mais descritivo que normativo. Não vou resumir tudo aqui, este texto já está longo demais e, além disso, vale a pena ler o próprio ensaio; será suficiente dizer que, nele, Lewis tece interessantes considerações sobre o que define a literatura infantil como tal, sublinhando que "literatura infantil" e "literatura para adultos" não são compartimentos absolutamente estanques. Sua opinião, com a qual eu concordo inteiramente, é que uma das marcas de uma boa história para crianças é a capacidade de interessar também ao leitor adulto; faço, porém, uma ressalva: uma boa história infantil é a que consegue interessar a certo tipo de leitor adulto. As próprias Crônicas de Nárnia são um bom exemplo, pois, mesmo classificadas como literatura infanto-juvenil, têm multidões de fãs de todas as idades. Nenhum leitor verdadeiramente maduro deixará de ler o que o agrada e atrai por receio de que este ou aquele o julguem "muito criança" por causa disso; Lewis, afiado e certeiro, resume o caso parafraseando São Paulo: "Quando me tornei homem, deixei para trás as coisas de menino, inclusive o medo de ser infantil e o desejo de ser muito adulto". Desta vez vou juntar-me aos Tontópodes e afirmar enfaticamente que "ninguém jamais disse palavras mais sábias!"

As Crônicas de Nárnia, sem dúvida, integram a seleta lista das obras de fantasia mais importantes do século XX, sendo, ao lado de O Senhor dos Anéis e mais algumas, uma das mais fortes e recorrentes influências dos autores do gênero que estão em atividade hoje, ou estiveram durante as últimas décadas. Como Lewis também observa em seu ensaio, há histórias de fantasia que são mais adequadas ao público infantil, e outras, a leitores mais maduros, mas não é raro que o público de ambos os tipos acabe sendo o mesmo; ele poderia estar falando exatamente sobre sua própria obra e a de seu amigo. Há leitores de todo o mundo que leram as Crônicas na infância e, depois de um pouco mais velhos, apaixonaram-se pela beleza intrincada do mundo de Tolkien, mas há também muitos outros que só chegaram a Nárnia depois de já conhecerem a Terra-média (meu caso) e nem por isso a amaram menos. As Crônicas são mais simples e despretensiosas que o SdA, mas não menos inspiradoras, empolgantes, comoventes ou cheias de significado. Todo fã de fantasia deveria conhecê-las.

Nenhum comentário: