quarta-feira, abril 29, 2020

Terceira Humanidade

Em pleno continente antártico, sob uma camada permanente de milhares de metros de gelo, exploradores encontram uma imensa caverna dentro da qual há um lago congelado… E no lago, dois esqueletos humanos e um terceiro espécime inteiro, perfeitamente conservado no gelo, com idade estimada em cerca de oito mil anos. Uma descoberta notável, é claro, pois, por tudo o que se sabia até aí, a Antártida nunca teve populações humanas, estando isolada e coberta de gelo desde bem antes que nossos ancestrais deixassem a África, berço de nossa espécie. A nova descoberta possivelmente exigirá que a trajetória já rastreada das migrações humanas ao longo da Pré-história seja revista. Mas isso tudo é pinto se comparado a um certo detalhe do achado: esses humanos antigos tinham em torno de 17 metros de altura.

A equipe parece ser composta de apenas três pessoas (!): o paleontólogo Charles Wells (francês apesar do sobrenome, que claramente homenageia H. G. Wells), sua assistente e uma repórter e cinegrafista, cuja presença foi exigência do canal de TV que patrocinou a expedição. Os três parecem ter montado sozinhos a perfuratriz que abriu no gelo um túnel de quilômetros de comprimento, e sozinhos desceram para explorar o que houvesse lá embaixo; se eu estiver enganado, corrijam-me, mas a ideia de três pessoas – nenhuma delas um engenheiro – fazerem tudo isso sozinhas me parece bem ingênua. Ainda na mesma linha de abordagem simplista, a assistente de Wells, com a naturalidade de quem esquenta uma lasanha Sadia no microondas, saca um maçarico e descongela ali mesmo parte do corpo do gigante a fim de recolher amostras de seus tecidos!… Se algo assim fosse mesmo descoberto, a coisa não seria feita desse jeito, no total improviso: o espécime provavelmente seria removido ainda congelado e levado para um local onde pudesse ser analisado por cientistas de ponta de diferentes áreas, tendo à disposição a última palavra em equipamentos. Mas o autor Bernard Werber não parece muito preocupado em retratar fielmente os procedimentos científicos.

Wells exulta, imaginando o furor que sua descoberta irá causar nos círculos científicos. Simultaneamente, em Paris, seu filho, o biólogo David Wells, apresenta um projeto diante de uma comissão julgadora na Sorbonne, tentando obter uma bolsa que lhe permita levar adiante sua pesquisa: ele pretende provar que o caminho da evolução leva as espécies a diminuírem progressivamente de tamanho. Para ele, os pigmeus da África central, há muito considerados pela antropologia como um dos mais primitivos grupos humanos ainda existentes em nossos dias, representam, na verdade, um passo à frente na evolução em relação ao resto da humanidade, sendo menores e apresentando uma extraordinária resistência às doenças tropicais – resistência essa que, a meu ver, não é preciso ser cientista para compreender que deve resultar do mero fato de seus ancestrais terem vivido expostos a essas doenças durante centenas de gerações, nada tendo a ver com seu tamanho. Mas a explanação de David não para por aí:

Tenho um título de doutorado pela faculdade de biologia de Paris, e sou especialista no estudo da influência do meio na fisiologia humana e animal. Meu projeto gira em torno da redução do tamanho das espécies. Acredito que tudo se miniaturiza: os dinossauros se transformaram em lagartos, e os mamutes, em elefantes. Antigamente, as libélulas tinham até um metro e meio de envergadura, e agora medem 15 centímetros. Mais recentemente, os lobos se transformaram em yorkshires, e os tigres, em gatos siameses. (…) E também poderíamos citar os vegetais (…). Em outros tempos, certas sequoias chegavam a cem metros de altura. Mas agora são arbustos de dez metros, em média. Recentemente, descobriu-se que as baratas diminuíram para circular nos encanamentos das casas modernas. E, finalmente, no mundo dos objetos: os carros tornaram-se menores para se adaptar ao aperto e aos engarrafamentos das cidades, os computadores tendem a se miniaturizar, até a superfície média dos apartamentos se restringe com a superpopulação das megalópoles.

Certo, Bernard Werber é jornalista por formação, e eu certamente não vou afirmar que só cientistas deveriam escrever ficção científica (mesmo que ter formação em ciências represente uma enorme vantagem para quem se dedica ao gênero), mas, mesmo assim, é difícil ler esse amontoado de bobagens, dito por um personagem que se diz doutor em biologia, e continuar levando o livro a sério. A redução – ou o aumento – do tamanho nas espécies vivas ao longo do tempo é, sem dúvida, uma resposta evolutiva às condições do ambiente – só que essas condições não são sempre as mesmas, e, ainda que fossem, é ingenuidade pensar que um mesmo problema só pode ser resolvido de uma maneira. Pode perfeitamente acontecer de duas espécies expostas às mesmas condições ambientais encontrarem caminhos evolutivos diferentes e até opostos: uma pode crescer, a outra diminuir, e, naquele momento da evolução, cada uma delas terá se adaptado da maneira que melhor lhe permitiu enfrentar essas condições e sobreviver. Dinossauros não se "transformaram em lagartos"; em primeiro lugar, os lagartos que conhecemos hoje pertencem a um ramo dos répteis bem distinto daquele que incluía os dinossauros – aliás, filogeneticamente falando, as aves estão mais próximas dos dinossauros que os lagartos modernos. Em segundo, como qualquer criança aficionada por dinossauros sabe, nem todos eles eram gigantescos: havia espécies que eram do tamanho de um canário, e talvez ainda menores. Tampouco "mamutes viraram elefantes": no tempo dos mamutes já existiam elefantes como os de hoje. Os dois animais são parentes, é diferente; além disso, não havia apenas uma espécie de mamute, mas várias, e, tirando uma média, seu tamanho era mais ou menos equivalente ao dos elefantes – algumas espécies eram um pouco maiores, outras até menores. O mamute-anão da Sardenha, quando adulto, tinha porte semelhante ao de um boi, e nem por isso era menos mamute que o mamute-imperador da América do Norte, que ultrapassava quatro metros de altura e dez toneladas. David também "esquece" de mencionar que um dos ancestrais comuns de mamutes e elefantes, o moeritherium, que viveu há cerca de 35 milhões de anos, era do tamanho de um porco… Libélulas gigantes existiram de fato; insetos enormes eram comuns durante o período Carbonífero, há uns 300 milhões de anos, mas elas mediam em torno de 70 centímetros, não um metro e meio. Quanto a tigres terem virado gatos siameses, isso chega a ser ofensivo: o gato doméstico derivou de uma ou mais espécies de gatos selvagens do norte da África, e só tem um parentesco distante com os grandes felinos como tigres e leões. Finalmente, a transformação de lobos em centenas de diferentes raças de cães, algumas delas minúsculas, foi resultado de cruzamentos seletivos promovidos pelo homem, não de evolução natural. Para não dizer que nada nesse discurso faz sentido, é plausível que as baratas tenham mesmo diminuído de tamanho para melhor se adaptarem a viver nas cidades humanas, mas isso não significa que, se as condições do ambiente fossem outras, elas não pudessem ter, ao invés, aumentado. Não vou nem comentar a parte que fala de automóveis, computadores e apartamentos como se fossem seres vivos…


(Isso foi a título de alerta, além de ser algo que eu não conseguiria calar, e deve dar-lhes uma ideia da reserva com que devem encarar o restante de Terceira Humanidade. Vamos em frente…)

Se o sobrenome Wells homenageia o escritor britânico a quem a ficção científica tanto deve, a escolha do primeiro nome do personagem tampouco foi gratuita: David é Davi, aludindo ao pastor adolescente que, de acordo com o Primeiro Livro de Samuel, na Bíblia, deu aos israelitas a vitória na guerra contra os filisteus, ao abater com um tiro de funda o maior guerreiro destes últimos, Golias, um gigante de quase três metros de altura. Mais tarde, Davi se tornaria rei de Israel, por sinal um dos mais importantes. O nome cai bem para o jovem cientista de baixa estatura que está tentando provar que "gigantes" não estão com nada e que o futuro pertence aos pequenos – e que, ao tomar conhecimento do que seu pai encontrou na Antártida, verá aí um forte elemento corroborador de sua teoria, já que os gigantes de 17 metros do passado distante se extinguiram, enquanto nós, que, para eles, deveríamos parecer pouco mais que camundongos, continuamos por aqui.

Outra candidata à bolsa de pesquisa é Aurore Kammerer, médica endocrinologista cujo projeto versa sobre as supostas descendentes das legendárias amazonas citadas na mitologia grega, que ainda hoje viveriam na região próxima à fronteira da Turquia com o Irã, e que, graças ao uso terapêutico que fazem do mel e outros produtos das abelhas, gozariam de saúde muito superior à média, raramente apresentando qualquer doença. Para Aurore, os hormônios femininos das abelhas, presentes em profusão na "geleia real" que alimenta a rainha da colmeia, seriam o segredo – e uma progressiva "feminização" seria o caminho para criar uma humanidade mais sadia e próspera. Dentre 69 candidatos, David, Aurore e mais um são os únicos a terem seus projetos selecionados, e partem em suas respectivas expedições – ele para as selvas do Congo, ela para as estepes da Turquia. Sozinhos. Bem, a essa altura já acho que Werber não estava mesmo tentando soar crível.

A característica mais curiosa de Terceira Humanidade foi inspirada pela "Hipótese Gaia", proposta nos anos 70 pelo médico e ambientalista britânico James E. Lovelock e muito popular desde então. A propósito, o nome foi sugestão do escritor William Golding (ele mesmo, o autor de O Senhor das Moscas), amigo de Lovelock. Gaia, na mitologia grega, é a divindade primordial que personifica a Terra; seu nome em grego, Γαία, às vezes é transliterado como Gea, que originou o radical geo, presente em muitas palavras que fazem referência à Terra: geografia, geologia, geofísica e assim por diante. Ela e outras divindades primordiais teriam sido geradas pelo Caos; Gaia, sozinha, gerou Urano (o Céu), que se tornaria seu consorte. Os dois foram os pais dos titãs, que, por sua vez, gerariam os deuses do Olimpo.

Essa hipótese, basicamente, considera que os elementos físicos da Terra (sua atmosfera, massa terrestre, oceanos etc.) e sua biosfera (quer dizer, o conjunto formado por todos os ecossistemas do nosso planeta e pela totalidade dos organismos vivos que os habitam) mantêm uma estreita e delicada interdependência, cujo equilíbrio seria essencial para manter as condições necessárias à vida. A Terra, então, seria, de certo modo, um único e vasto ecossistema com a capacidade de se autorregular. Trata-se de uma hipótese séria e digna de atenção, mas que já foi alvo de muito sensacionalismo. Por vezes se diz, numa simplificação grosseira, que a Hipótese Gaia descreve a Terra como um grande ser vivo – que, como todo ser vivo, teria seu próprio "sistema imunológico", com a função de combater possíveis ameaças. Disso decorre que se nós, humanos, viéssemos a nos tornar um perigo para a saúde do planeta, "Gaia" encontraria um jeito de nos eliminar. Werber aproveita a Hipótese Gaia da maneira mais fantasiosa, intercalando capítulos (impressos em itálico) que seriam um monólogo da suposta consciência planetária, contando (resumidamente, é claro) sua história desde seu nascimento, há mais de quatro bilhões de anos, passando pelo surgimento e evolução da vida e pelo sofrimento trazido por repetidos impactos de asteroides, três deles especialmente grandes e que causaram estragos proporcionais a seu tamanho. O primeiro foi antes do surgimento da vida, já os outros dois causaram extinções em massa, sendo a última delas a que pôs fim ao reinado dos dinossauros, há cerca de 60 milhões de anos.

Gaia teria tido a ideia de selecionar, dentre as espécies animais que a habitavam, uma que tivesse o potencial para desenvolver inteligência e habilidade suficientes para criar uma tecnologia avançada e inventar uma maneira de protegê-la contra o perigo de novos impactos. Sua primeira aposta teriam sido os troodontes, uma linhagem de dinossauros que estava em ascensão quando o último grande asteroide atingiu o planeta. Eram bípedes carnívoros de tamanho semelhante ao nosso (a única espécie descrita até o momento, denominada Troodon formosus, tinha cerca de dois metros de comprimento do focinho à cauda e peso aproximado de 50 quilos), dotados de cérebros excepcionalmente grandes, estando, com toda a probabilidade, entre os animais mais inteligentes da época. Werber dá uma "viajada" ao assegurar que eles até já começavam a utilizar ferramentas rudimentares, coisa que dificilmente poderá algum dia ser provada (ou refutada), mas quem pode garantir que, se tivessem tido a oportunidade, esses répteis não teriam se tornado mais e mais inteligentes e habilidosos, até o ponto de construírem uma civilização? Um artigo que li há muitos anos na Isaac Asimov Magazine dizia que todos aqueles répteis inteligentes dos quais a ficção científica tanto gosta eram biologicamente impossíveis, porque inteligência (no sentido de autoconsciência, raciocínio abstrato etc., quer dizer, uma inteligência de nível comparável ao nosso) exige um cérebro grande e complexo, e os organismos reptilianos, por serem pecilotérmicos (o popular "sangue frio"), não teriam um metabolismo capaz de fornecer energia suficiente para desenvolver um cérebro assim e mantê-lo funcionando – só que, de lá para cá, a ciência descobriu muito sobre os dinossauros, inclusive o fato de que muitos deles, diferentemente dos outros répteis e à semelhança de nós, mamíferos, eram homeotérmicos ("sangue quente"). Alguns paleontólogos teorizam que os troodontes talvez tivessem penas – sabe-se que várias espécies de bípedes carnívoros as tinham; são um recurso eficaz para regular a temperatura corporal, e talvez tenham até mesmo permitido a esses dinossauros colonizar regiões de clima relativamente frio, que seriam inabitáveis para répteis comuns. Em teoria, portanto, nada impediria que uma espécie descendente deles se tornasse inteligente. Não é preciso dizer que, se essa civilização "troodôntica" tivesse se tornado realidade, nós, hominídeos, não teríamos tido o espaço que tivemos para evoluir, e é muito provável que não chegássemos ao nosso estágio atual. É tudo um grande "e se", mas, mesmo assim, as possibilidades são fascinantes e assustadoras.

Concretamente falando, a esperança que Gaia depositava nos troodontes foi baldada, pois aquele inesperado terceiro asteroide caiu e os varreu da existência, junto com cerca de 90 por cento das outras espécies animais de então, muito antes que eles chegassem sequer ao que chamaríamos de Idade da Pedra Lascada. A lista de candidatos que ela cogitou ao longo das próximas dezenas de milhões de anos variou de polvos a porcos, passando por golfinhos, formigas e outros, mas todos apresentavam alguma deficiência que os desclassificava. No caso dos golfinhos, a título de exemplo, era o fato de que, por mais inteligentes que eles fossem, sua conformação física os impossibilitava de criar ou utilizar ferramentas, edificações etc., de modo que nunca chegariam a ter uma civilização no verdadeiro sentido do termo (nisso Werber está correto). Polvos e formigas, é claro, são outra "viagem", ainda que ambos tenham, sob algum aspecto, uma inteligência notável. Por fim, essa Terra autoconsciente e capaz de deliberação voltou sua atenção para os primatas, que tinham uma característica que ela muito admirava: mãos dotadas de dedos preênseis, capazes de movimentos muito precisos. Infelizmente, segundo ela, ainda que os primatas tivessem essa ferramenta fenomenal, faltava-lhes capacidade intelectual que os habilitasse a tirar dela o máximo proveito. Por outro lado, havia o porco, o "animal terrestre mais inteligente" (George Orwell deve ter dado uma risadinha lá no Além), mas que, com cascos no lugar de dedos, dificilmente chegaria muito longe no caminho civilizatório, pelo mesmo motivo que o golfinho. Eis a genial solução encontrada:

Ocorreu-me inicialmente a ideia de um projeto original: levar um primata a fazer amor com um… porco. Certo dia, em consequência de um terremoto, um primata viu-se preso num fosso com uma fêmea facóquera (ancestral do porco). Os dois se estranharam, lutaram e, não conseguindo se matar, acabaram fazendo amor. Nove meses depois, nascia um novo animal híbrido com a pele lisa e rosada como os porcos, a sensibilidade e a inteligência dos porcos, mas a postura sobre as duas patas traseiras e a capacidade de agarrar objetos e manipulá-los, como os primatas. Parecia mais ou menos um macaco sem pelos, com pele de porco. Eu conseguira juntar a boa mente com o bom físico, numa repartição de 60% de genes suínos e 40% de genes primatas. Foi como "inventei" o meu defensor: o ser humano.

Eu poderia ficar aqui dizendo o óbvio, ou seja, que, mesmo que essa bizarra relação sexual chegasse a acontecer, ela jamais produziria uma descendência, que a "pele lisa e rosada" é uma característica do porco doméstico (na verdade, nem isso: só de algumas raças), e não do facóquero, ou facócero (javali africano), nem do javali europeu que foi quem realmente deu origem aos nossos amigos fornecedores de bacon… Mas acho suficiente observar que, com essa, todas as bobagens anteriormente ditas por Werber perdem a relevância, já que agora ele escancarou o fato de que não tem nenhuma pretensão de ser levado a sério.

(Destaque para o "bem-humorado" detalhe de nos atribuir uma porcentagem maior de genes suínos que primatas, e para a "sutileza" de emendar, logo a seguir a esse capítulo, outro no qual David Wells aparece praticando um ato "semicanibal" ao devorar sanduíches de presunto.)

Se, portanto, Gaia "inventou" o homem para que ele concebesse e executasse uma maneira de proteger-se (e, por tabela, também a ela) contra o perigo do impacto de asteroides, então, apesar de alguns sucessos pontuais obtidos pelos gigantes nos tempos antigos, parece que o saldo geral do experimento até agora é contraproducente, pois a humanidade atual não só permanece basicamente tão vulnerável a esse risco quanto estavam os dinossauros, como ainda tem maltratado um bocado o planeta, extinguindo espécies às centenas, destruindo florestas e poluindo a atmosfera, o solo e as águas com resíduos tanto comuns quanto radioativos.

Absurdos científicos e fantasias new age à parte, a narrativa prossegue. David, Aurore e o terceiro selecionado retornam de suas expedições preliminares financiadas pela Sorbonne e voltam a se apresentar à mesma comissão julgadora para a fase seguinte da seleção, na qual somente um passará – e acaba não sendo nenhum dos dois. Entretanto, uma integrante da comissão procura ambos e oferece-lhes a possibilidade de tocarem seus projetos sob a chancela do Ministério da Defesa da França. Seu nome é Natália Ovitz, coronel Natália Ovitz (curiosamente, uma anã), e ela parece ter como uma de suas funções manter o presidente da república (um abobado cheirador de cocaína) a par dos avanços da ciência que possam afetar os interesses da nação. A coronel Ovitz acredita que o estudo de David sobre a redução de tamanho e o de Aurore sobre a feminização da humanidade – ambos tendo a ver também com resistência a doenças – podem ser valiosas ferramentas para impedir possíveis desastres causados pela guerra nuclear e biológica.

Apesar de todas as sandices, Terceira Humanidade é notavelmente eficiente ao aproveitar-se da experiência de David na África para retratar – e denunciar – a situação revoltante vivida pelos pigmeus, outrora um povo livre e orgulhoso. Algumas tribos, cada vez menos, ainda conseguem continuar vivendo como seus ancestrais, isoladas na selva, sustentando-se com a caça e a coleta, mas a própria selva não cessa de diminuir por causa da exploração desordenada da madeira e da demanda por terra para a agricultura e a pecuária, o que força cada vez mais pigmeus a se renderem à "vida civilizada", o que, no caso deles, em geral significa trabalhar para os bantos (etnia majoritária no Congo e outros países da África central), em condições que só podem ser descritas como escravidão. Isso tudo é muito real e muito bem descrito por Werber – pena que, estando no meio de tanta bobagem, o leitor pode ser levado a menosprezar essas informações. Já as amazonas de Aurore podem ser fictícias (se alguém souber do contrário, por favor me informe!), mas a situação delas, de minoria perseguida, reflete bem a de várias etnias e culturas que ainda tentam resistir à extinção, no Oriente Médio e em outros lugares.

Por meio de um ritual dos pigmeus, turbinado por alucinógenos, David faz uma "viagem" a uma suposta encarnação anterior, na qual ele era um cientista da raça gigante que habitava a Atlântida, e cujas pesquisas teriam tornado possível a "miniaturização" da humanidade, dando origem a versões reduzidas dos seres humanos da época – e, como vocês já adivinharam, as miniaturas somos nós. Isso fazia parte do plano de Gaia: as naves espaciais que os gigantes atlantes construíram com o objetivo de defender a Terra contra meteoros eram, naturalmente, em escala para seus tripulantes, e, por serem tão grandes, elas se desintegravam ao chegarem ao espaço (não entendi o como ou o por quê, mas tudo bem). Com uma tripulação de criaturas pequenas, seria possível fazer naves menores e mais estáveis. O que David vê nesse vislumbre de sua vida passada lhe traz insights que permitem a ele e seus companheiros repetir o processo para gerar a "terceira humanidade" que dá título ao livro: os primeiros humanos, cuja estatura média era de 17 metros, "inventaram" a segunda humanidade, que somos nós, com nossa média de um metro e setenta centímetros; o próximo passo seria um ser humano de 17 centímetros de altura, que cresceria dez vezes mais depressa, chegando à fase adulta em menos de dois anos, e que, por consequência, viveria dez vezes menos, mas que, com esse tamanho reduzido, estaria em condições de tornar-se o espião e sabotador perfeito. Esse é o objetivo: criar uma equipe de miniespiões que possam se infiltrar em lugares-chave do governo e das forças armadas do Irã, país que, naqueles dias, ameaça precipitar o planeta na Terceira Guerra Mundial. Maluco? Totalmente.

Ah, sim: já perto do final do livro, Werber decide criticar e satirizar a religião. Seu "embasamento" é do mesmo nível de quando ele fala sobre ciência:

(…) São Paulo, cujo nome era Saulo de Tarso, foi inicialmente um grande perseguidor dos amigos de Jesus. Chegou inclusive a participar do apedrejamento de Estêvão, um dos companheiros mais próximos de Cristo. O que não o impediu de inventar o cristianismo, embora nunca tivesse encontrado Jesus pessoalmente. Por sinal, o dito-cujo, na verdade chamado José, deixou claro em vida que não queria "de modo algum criar uma nova religião, mas apenas lembrar a lei dos pais aos que a haviam esquecido sob o jugo da ocupação romana".

Que São Paulo começou por perseguir os cristãos, é fato, mas notem como o autor evita chamá-los por esse nome para não entrar em conflito com o que diz depois, isto é, que o próprio Paulo teria inventado o cristianismo, bobagem repetida com certa regularidade pelos detratores deste último. De onde Werber terá tirado que o nome de Jesus era José, não me perguntem, mas a declaração que ele coloca na boca de Cristo, se não me engano, foi copiada quase palavra por palavra do romance Operação Cavalo de Troia, de J. J. Benítez. Dos Evangelhos é que não foi.

Talvez alguém que me leia esteja pensando: mas Marcos, por que é que você, um assumido apreciador de literatura de fantasia, que sempre protestou quando via algum crítico malhar uma obra sob a alegação de que ela era "inverossímil", e sempre considerou uma atitude burra achar que a ficção deve se limitar a copiar a realidade, agora resolveu criticar esse livro específico dizendo que ele é "maluco"? A resposta não é simples, e eu absolutamente não tenho certeza da minha capacidade de explicá-la de forma satisfatória, mas acho que devo tentar.

É o seguinte: se você está lendo fantasia, significa que você e o autor celebraram um acordo tácito, e a sua parte nesse acordo, como leitor, consiste em suspender a descrença enquanto estiver lendo: você sabe que elfos e dragões não existem no mundo real, mas, ao abrir as Crônicas de Dragonlance, "esquece" momentaneamente esse fato e passa a pensar conforme a lógica interna do mundo de Krynn, onde existem dragões, elfos e muito mais. Isso pode valer também, embora de forma menos explícita, para a ficção científica: nenhum ou quase nenhum físico sério acredita na existência do famigerado hiperespaço, mas, se um autor de ficção científica tem uma ideia empolgante para uma história, e, para que essa história funcione, é indispensável que haja uma maneira de viajar mais rápido que a luz (coisa, até onde se sabe, impossível pelas leis da física), apenas um leitor muito chato torceria o nariz só porque o autor se permitiu essa "licença poética". Porém, se outro autor está escrevendo uma história que ele quer que tenha uma cara de realidade, que se pareça com algo que poderia acontecer no mundo que conhecemos, a meu ver ele precisa ser bem mais sutil em sua liberdade autoral. Colocar na boca de um personagem cientista declarações que qualquer pessoa com conhecimentos básicos de ciência sabe que são absurdas, e tornar imprescindível dar a esses absurdos o status de fatos, fazendo disso elemento essencial para que a história se sustente, compromete logo de cara toda a estrutura da narrativa e torna muito difícil "mergulhar" nela. Para falar de modo mais concreto, não me importo que Werber brinque o quanto quiser com a ideia de três humanidades sucessivas, cada qual dez vezes menor que sua antecessora – mas dinossauros não viraram lagartos e tigres não viraram gatos siameses, ponto. Trechos de resenhas (elogiosas, é claro) reproduzidas na contracapa do livro colocam ênfase na crítica que o autor faz ao mundo atual e também em seu "humor ácido"; é fato que tentativas de humor (negro, muitas vezes) pululam por todo o livro, mas, pelo menos para mim, ao longo de suas 500 páginas há no máximo duas piadas que funcionam.

É possível, entretanto, que vocês não se importem com nada disso, e, nesse caso, Terceira Humanidade até vale como passatempo, pois é inegável que a narrativa é fluente e entretém… Principalmente o Ato 2: a Era da Mutação, que narra uma pandemia mundial de uma "nova antiga" forma de gripe, um vírus que o professor Charles Wells e suas companheiras inadvertidamente "acordaram" na Antártida, depois de ter ficado inativo durante milênios. O médico-legista que examina seus corpos em Paris se contamina e, viajando de férias para o Egito logo em seguida, transmite a doença para outros turistas, profissionais de saúde, funcionários de companhias aéreas… Com isso, e graças ao transporte aéreo que hoje permite a qualquer um (saudável ou infectado) chegar a qualquer lugar do mundo em questão de horas, esse patógeno rapidamente se dissemina por dezenas de países e afeta milhões de pessoas, acabando com a economia e com a ordem social. E, casualmente, li o livro entre os meses de março e abril de 2020, bem durante a crise do COVID-19, o que resultou numa coincidência um tanto sinistra… É claro que o vírus da ficção é muito mais terrível que o real – transmite-se com mais facilidade e é cem por cento letal –, pois descrever uma doença relativamente controlável não teria um efeito satisfatório numa narrativa de tom apocalíptico, como a dessa parte do livro. Mas, mesmo assim, a coincidência é perturbadora. A partir daí, a história ganha mais ação, com coisas que já vimos em muitos outros lugares antes, como cidades mergulhadas no caos e sobreviventes encerrados em bunkers, tendo que rechaçar à bala outros que vagam pela terra devastada em busca de comida e abrigo. Nada de novo, mas funciona como narrativa de ação e de "ficção científica de terror".

2 comentários:

Samuel disse...

Olá, tudo bem? Saberias me indicar livros sobre os personagens de Robert E. Howard?

Vi um comentário seu no video sobre os livros do Conan da Pipoca e Nanquim e cheguei até seu blog.

Abs e muito obg!

Marcos* disse...

Olá, Samuel! Você pode ver todos os meus posts a respeito de livros de Howard clicando no marcador "Robert E. Howard", na lista de marcadores do lado direito da página do blog, ou apenas clicando aqui:

http://notasdeliteratura.blogspot.com/search/label/Robert%20E.%20Howard

Você vai ver que comentei ao todo quatro livros de Howard, sendo o mais recente deles o primeiro volume das histórias de Conan da editora Pipoca & Nanquim; além disso, mencionei o autor em outros posts que tratavam de H. P. Lovecraft e de Michael Moorcock. Espero que goste dos textos e ficarei honrado caso comente em algum deles! Grande abraço e seja sempre bem-vindo por aqui!