domingo, abril 29, 2007

300



Logo que ele estreou, algumas semanas atrás, corri ao cinema para ver o novo filme sobre a batalha das Termópilas, sobre o qual até quem não tem especial inclinação por épicos da Antigüidade andava curioso – imagine-se então como eu estava. E, para começar com a impressão geral que tive, posso dizer que 300 não me decepcionou, embora também não seja exatamente o que eu estava esperando.

Antes de mais nada, é preciso deixar claro que, apesar de inspirado num acontecimento histórico real – e extremamente importante –, e de o roteiro seguir os fatos nos pontos principais, 300 é uma fantasia, o que fica evidenciado por uma série de elementos que claramente pertencem ao universo da imaginação: criaturas semi-humanas, como um homem-fera que os Imortais persas atiçam contra os espartanos; um inusitado "rinoceronte de guerra" (elefantes de guerra, tudo bem, realmente existiam e o exército persa os tinha, embora não haja registro de terem sido usados nessa batalha, mas o rinoceronte nem mesmo é suficientemente inteligente para ser domado ou treinado), e por aí vai. E como não mencionar o rei Xerxes, interpretado pelo brasileiro Rodrigo Santoro, que, graças ao milagre dos efeitos visuais, aparece em cena com três metros de altura? Talvez seja melhor dizer que o filme é uma trama histórica temperada com elementos de fantasia, e tudo arquitetado com extrema competência. O elenco corresponde às exigências da história e a sombria fotografia em sépia ajuda a configurar o clima de "armagedom". O que realmente não gostei foi da anêmica e desnecessária trama paralela protagonizada pela rainha Gorgo (Lena Headey), esposa do rei Leônidas (Gerard Butler), que serve apenas para causar irritantes quebras de ritmo e de clima, a cada vez que a ação é transferida do local da batalha para a cidade de Esparta. Mas algo do tipo já era previsível, considerando a completa impossibilidade de Hollywood produzir um filme de grandes proporções sem colocar um romance, ainda que periférico, na trama. A culpa não cabe a Headey, que, além de bonita, é boa atriz.

300, o filme, baseou-se diretamente numa graphic novel – para os não familiarizados com esse termo, trata-se de um "romance gráfico" (numa tradução bem literal, mas não muito acurada), ou seja, um livro em quadrinhos, de autoria de Frank Miller, um nome coroado nesse meio, embora, de momento, eu só me lembre de seu trabalho na Marvel, com o super-herói cego Demolidor. Na adolescência, eu gostava tanto de quadrinhos quanto de livros, já nos últimos anos tenho andado desligado desse universo. Gostaria muito de ler essa graphic novel em particular, espero que agora, aproveitando o embalo do filme, seja relançada. Para ver como é curioso o processo de realimentação que a arte sofre através dos tempos, Miller foi inspirado, para fazer a graphic novel, por um outro filme sobre o mesmo assunto, Os Trezentos de Esparta (1962), baseado diretamente no relato do historiador grego Heródoto (484-425 a.C.).

E sobre o que é tudo isso, afinal de contas? Bem... O evento central é a batalha das Termópilas, ocorrida no desfiladeiro de mesmo nome no verão de 480 a.C., na qual uma força de cerca de 4000 gregos, tendo como ponta-de-lança uma elite de 300 espartanos, enfrentou o exército invasor de Xerxes, rei da Pérsia – um exército de dimensões inconcebíveis para a época, cujo número exato é até hoje alvo de controvérsia, mas certamente não menos de 200 mil soldados; há autores que falam em um ou dois milhões. Embora não tenha sido o primeiro nem o último enfrentamento entre gregos e persas, essa batalha revestiu-se de um significado especial para os gregos daí em diante; Alexandre, ao aniquilar o Império Persa um século e meio depois, dedicou sua vitória aos Trezentos, como uma vingança tardia. E o que teve essa batalha de tão especial?... É uma longa História (com H maiúsculo, mesmo).

A noção que a maioria das pessoas tem a respeito da Grécia é a de uma civilização sábia, totalmente voltada para a razão, a ciência, a arte e a beleza, que nos legou uma herança inestimável de filosofia, monumentos deslumbrantes, uma mitologia fascinante e conceitos sem os quais não é possível imaginar o mundo moderno. E tudo isso é verdade, de modo que a noção não é errônea – é meramente incompleta. A civilização grega tinha um outro lado, talvez não tão belo, mas que da mesma forma fazia parte do que ela era. 300, assim como o episódio histórico que lhe deu origem, mostra um pouco desse outro lado.

A Grécia antiga nunca foi uma nação unificada. Estava dividida em inúmeras cidades-estado, que, apesar de compartilharem a mesma língua, origem étnica e base cultural, eram politicamente independentes umas das outras, e, não raro, rivais entre si. Enquanto outras cidades gregas eram famosas por sua arte, filosofia, ciência, e por seus avançados sistemas políticos, havia uma que era um Estado eminentemente militarista: Esparta.


A partir das reformas realizadas por um certo Licurgo por volta de 700 a.C., tudo na sociedade espartana passou a ser feito em função da guerra. Os meninos nascidos de pais livres eram separados das famílias aos oito anos de idade e ficavam sob a responsabilidade do Estado, sendo submetidos a um duríssimo treinamento que se prolongava até os 21 anos e fazia deles guerreiros praticamente imbatíveis. Como hoplitas (assim chamados por causa do hoplon, grande e pesado escudo circular), integravam as falanges, certamente as mais disciplinadas e bem treinadas unidades militares da Antiguidade até então, e que, como tais, não seriam superadas até o advento das legiões romanas, séculos mais tarde. Nelas, os guerreiros lutavam em linha, lado a lado, cada um protegido em parte pelo próprio escudo, em parte pelo do companheiro à direita; combatendo assim, eram muito poderosos, mas bastava que se abrisse uma brecha na linha para levar toda a tropa ao desastre. Em resumo: se um fraquejasse, punha todos os companheiros em risco. Os soldados espartanos precisavam confiar totalmente uns nos outros. Quanto aos outros gregos, lutavam de forma parecida, mas, ao contrário dos espartanos, não tinham a vantagem de serem treinados para isso durante toda a vida. E eis aí um aspecto não tão glorioso da civilização grega: os espartanos cidadãos só podiam dedicar-se de corpo e alma ao treinamento militar porque o trabalho que mantinha a cidade funcionando era todo feito por escravos (ninguém deve supor que isso queira dizer que nas outras cidades gregas não havia escravidão; de maneira nenhuma!).

Como é fácil imaginar, o ressurgimento da ameaça persa nos anos imediatamente anteriores a 480 a.C. inspirou os gregos divididos a porem de lado suas rivalidades e unirem forças, mas, mesmo assim, naquele verão, a Grécia ainda não estava preparada para enfrentar o invasor. A menos que fosse encontrada uma maneira de atrasar os persas por tempo suficiente para que os exércitos de todas as cidades gregas pudessem se reunir, não haveria como evitar que o país fosse conquistado e passasse a ser mais uma província do vasto Império Persa, que já se estendia do Egito à Índia. Leônidas, rei de Esparta, ouvira uma profecia que dizia que ou sua cidade cairia, ou perderia um rei. Preparou então uma expedição, reunindo trezentos de seus melhores soldados, e certificando-se de que todos tivessem filhos vivos do sexo masculino, para que suas linhagens não fossem extintas  pois sabia que nenhum deles voltaria vivo dessa missão. Nem ele, Leônidas, tampouco.

O lugar chamado Termópilas, ao norte da Grécia, só era conhecido até então por ser um inocente balneário, procurado por pessoas de todo o país por causa de suas fontes de águas termais  aliás, foi daí que lhe veio o nome: Thermopylae, em grego, quer dizer 'Portões Quentes'  no filme, os atores se referem ao lugar como the Hot Gates, versão perfeita e fiel para o inglês; não me perguntem por que a pessoa responsável pelas legendas decidiu traduzir (?) Hot Gates por 'Boca do Inferno'. Leônidas escolheu esse lugar para fazer frente ao inimigo devido à existência de um desfiladeiro estreito que anularia a vantagem numérica dos persas: não importava quantos eles fossem, apenas algumas centenas poderiam entrar de cada vez. Ali os quatro mil gregos lutaram praticamente sem descanso, durante sete dias, contra sucessivas levas de atacantes, matando até suas armas se desmancharem em suas mãos  segundo a narrativa de Heródoto. Talvez tivessem resistido ainda mais tempo, não fosse por um morador da região que, subornado pelos persas, mostrou-lhes uma trilha íngreme pelas montanhas, através da qual parte do exército persa flanqueou os espartanos, que assim ficaram cercados. Quando isso aconteceu, os aliados gregos se retiraram, com a aprovação de Leônidas, que, com os que ainda restavam de seus Trezentos, permaneceu no local, sem ceder uma polegada de terreno, até serem exterminados até o último homem.

Não vou entrar, aqui, em especulações sobre que tipo de determinação sobre-humana pode ter levado todos esses homens a sacrificarem deliberadamente suas vidas numa batalha que desde o início era impossível de ser vencida. Digamos apenas que cada um ali esforçou-se ao máximo por vender a sua vida tão caro quanto possível, e, de fato, calculou-se que cada espartano não tombou sem levar consigo pelo menos vinte persas, ainda que, diante da vastidão do exército inimigo, isso representasse umas poucas folhas arrancadas de uma floresta. O mais importante, portanto, não foi o número de inimigos eliminados, mas os preciosos sete dias que a batalha durou, e que permitiram que o restante do exército espartano, bem como os exércitos das outras cidades gregas, ocupassem posições estratégicas e, durante os meses seguintes, infligissem aos persas um revés após outro, até derrotá-los definitivamente na batalha de Plateia, obrigando-os a abandonar o plano de conquistar a Grécia. A batalha das Termópilas foi um daqueles momentos que podemos considerar verdadeiras "encruzilhadas" na História, pois, se o desfecho tivesse sido outro, tudo o que veio depois poderia ter sido diferente. Se os persas tivessem conquistado a Grécia, coisas como democracia ou o conceito de liberdade individual só nasceriam séculos ou milênios depois  ou, talvez, nunca. É raro, mas há momentos na História em que verdadeiramente o destino de uma civilização inteira repousa nas mãos de um punhado de homens; esse foi um deles, e a civilização a que me refiro não é apenas a Grécia, mas todo o Ocidente. Paradoxalmente, Esparta, a menos democrática das cidades gregas, impediu que a democracia morresse no berço e tornou possível o nascimento das sociedades modernas – que podem não ser perfeitas, mas sem a menor dúvida seriam muito piores sem os legados que a Grécia nos deixou.

Lembrar dessa batalha sempre me faz voltar àquela questão: vale a pena morrer pela liberdade? Acho que a resposta que se espera receber de qualquer pessoa que preze a dignidade humana só pode ser que sim, que, em se tratando da liberdade  a nossa e a dos outros, e a das gerações futuras , nenhum sacrifício é grande demais. Só que a pergunta talvez precise ser reformulada: será que continua valendo a pena, quando você sabe que a maioria das pessoas pelas quais você estará dando sua vida para que elas tenham liberdade, não fará nada que preste com ela?... Se refletirmos mais um pouco nessa direção, acho que acabaremos concluindo que cada um de nós, hoje, tem uma dívida pessoal para com aqueles bravos soldados mortos há quase 2500 anos, e que a única maneira de saldar essa dívida é procurando fazer de nossas vidas a coisa mais digna, útil e interessante que pudermos.