terça-feira, dezembro 30, 2008

Hellboy - o Exército Dourado

Nunca li as histórias em quadrinhos de Hellboy, mas vi o primeiro filme do personagem, lançado em 2004, e o fato é que gostei, de modo que, ao ter notícia de que estava saindo do forno o segundo episódio, registrei logo na minha agenda a intenção de vê-lo. Ainda mais curioso fiquei ao saber que quem assinava a direção era o mexicano Guillermo del Toro, responsável por A Espinha do Diabo (2001) e O Labirinto do Fauno (2006), duas extraordinárias produções espanholas que apostam no bizarro e na fantasia inseridos em cenários realistas - não chegaria a classificá-los de "cinema alternativo", mas é uma surpresa que o diretor de ambos seja versátil ao ponto de também assumir a frente de produções hollywoodianas de aventura. Soube também que Del Toro já havia dirigido o primeiro Hellboy, fato esse no qual não me liguei quando o vi.


Nesse segundo filme, o excelente Ron Perlman (o monge corcunda de O Nome da Rosa e um dos guerreiros pré-históricos de A Guerra do Fogo) volta ao papel do herói Hellboy, ou "Anung un Rama", seu nome verdadeiro. Sua origem, mostrada no primeiro filme, é como segue: nos dias da Segunda Guerra Mundial, um grupo de ocultistas a serviço da Alemanha nazista (Hitler realmente tinha um enorme interesse por ocultismo, ao ponto de ter assessores exclusivamente dedicados a pesquisar esse campo) realiza um ritual que abre uma brecha entre a Terra e o inferno, esperando conseguir um poder que garanta sua vitória na guerra. Uma missão dos Aliados chega a tempo de impedir que o processo se complete, mas "algo" escapa de lá para cá: um "demônio-bebê" de pele vermelha, chifres, cauda longa, e cuja mão direita, gigantesca, é feita de pedra. A bizarra criaturinha ganha dos soldados o apelido de Hellboy (o "Garoto do Inferno"), é adotada por um dos integrantes da missão, o cientista Trevor Broom, e educada como uma criança humana.

Sendo um demônio, Hellboy naturalmente não envelhece no mesmo ritmo que um ser humano, de modo que atinge o apogeu de sua força cerca de 60 anos depois de vir parar na Terra - ou seja, mais ou menos nos dias de hoje. Por esse tempo, virou um gigante de bem mais de dois metros de altura (a enorme mão de pedra finalmente tornou-se proporcional ao resto), força e resistência prodigiosas, apetite insaciável e coração de ouro: adora crianças, animais, e seu senso moral é o de um escoteiro. Integra o "grupo de choque" do Departamento de Defesa e Pesquisa Paranormal, que se dedica a combater ameaças sobrenaturais, sob a coordenação de seu pai adotivo, o Prof. Broom, e tendo como companheiros a namorada, a pirocinética Liz Sherman (Selma Blair - ver os dois lado a lado lembra irresistivelmente o conto de fadas A Bela e a Fera) e o melhor amigo, o homem-peixe Abraham "Abe" Sapien (Doug Jones).

O segundo filme começa com um flash de uma história lida pelo Prof. Broom para Hellboy quando este ainda era criança - a história de uma guerra entre os seres humanos e as criaturas mágicas, lideradas pelo rei elfo Balor, e que teria tido lugar muitos séculos atrás. Por encomenda do rei, um mestre-ferreiro goblin construiu um exército de golems (algo como robôs animados por magia ao invés de eletrônica), 70 vezes 70 guerreiros dourados gigantescos e indestrutíveis, impossíveis de serem detidos. Sob as ordens de Balor, o Exército Dourado causou tamanha carnificina entre os humanos, que a guerra parou: os homens estavam demasiado aterrorizados, e o rei elfo, por demais arrependido. Celebraram então um acordo, pelo qual os homens ficariam com as cidades, e os elfos e demais seres mágicos, com as florestas. Balor fez uma coroa mágica e a dividiu em três partes, guardando duas e dando uma aos humanos como penhor da trégua: só com a coroa completa seria possível comandar o Exército Dourado, que, até ser novamente chamado, ficaria dormindo sob a terra. Contudo, o filho do rei, o príncipe Nuada Lança-de-Prata, não aceitou isso, porque não confiava nos humanos, e partiu para o exílio, jurando voltar no dia em que seu povo mais precisasse.

E aparentemente, Nuada (Luke Goss) é de opinião que esse dia chegou, pois agora, em nossa época, ele está de volta e disposto a fazer o que for preciso para reunir as três partes da coroa, e a última coisa com que se importa é quantos humanos terá de matar para isso - pois afinal, se conseguir seu objetivo, será mesmo para varrer de uma vez por todas nossa espécie da face do planeta. O pior é que não podemos deixar de dar certa dose de razão ao príncipe elfo: "Os humanos esqueceram os deuses, destruíram a terra, e para quê? Estacionamentos, centros comerciais! A ambição criou um vazio no coração deles que nunca será preenchido. Eles nunca terão o bastante! (...) Eu voltei do exílio para começar uma guerra, e reclamar a nossa terra, nosso direito!" Nuada, sob um certo ponto de vista, tem motivações justas, que lhe conferem algum grau de complexidade e o fazem, de longe, o personagem mais interessante do filme: não há nada pior que um vilão que só está ali porque toda história precisa de um vilão, mesmo que seja um que de vez em quando dá uma olhadinha para a câmera e diz: "Hehehe... Como eu sou mau!" Graças a Nuada, Hellboy II está livre de pagar esse mico.



E, claro, para fazer o que pretende, o príncipe terá que enfrentar o pessoal do Departamento, sendo que, desta vez, Hellboy, Liz e Abe contam com o reforço do Dr. Johann Krauss, um homem cujo corpo foi totalmente destruído, restando um ser feito exclusivamente de ectoplasma, o material hipotético de que seriam feitos os fantasmas. Não há surpresas da parte do grupo de heróis, a menos que se considere o que acontece com Abe, o homem-peixe de fala calma e gestos comedidos, cultíssimo, apreciador de literatura e música clássica, que sempre foi o cérebro da equipe, enquanto seu amigo Hellboy responde pelos músculos. Apaixonado pela princesa Nuala (Anna Walton), irmã do vilão, Abe se vê as voltas com sentimentos desconhecidos, que o levam a agir de maneiras que teria considerado inimagináveis em qualquer outra situação. Por conta disso, algumas cenas são bem engraçadas, e outras, dramáticas, embora de uma maneira manjadíssima.

No mais, é interessante assistir a este filme tendo em mente quem é o diretor, quando já se conhece e admira o trabalho de Del Toro. Ele também assina o roteiro, em parceria com Mike Mignola, veterano argumentista de quadrinhos e criador de Hellboy. O enredo, envolvendo a interação entre a humanidade e um mundo oculto habitado por criaturas fantásticas, faz lembrar O Labirinto do Fauno, assim como o visual das cenas em que esse mundo é mostrado - dando-se um desconto para o fato de que, aqui, Del Toro conta com a tecnologia mirabolante a serviço da indústria norte-americana do cinema, enquanto no outro filme teve de se virar com um aparato bem mais modesto, e eu não chegaria a considerar esse up tecnológico uma vantagem: quando se quer mostrar criaturas fabulosas na tela, um excessivo realismo turbinado por programas de computador de última geração é antes prejudicial que benéfico. Afinal, uma criatura fantástica deveria ter um visual ligeiramente irreal. Por conta disso, o Fauno de O Labirinto... continua a me agradar muito mais que qualquer dos seres esdrúxulos que Hellboy, Abe e o Dr. Krauss encontram no Mercado Troll, numa das cenas mais extravagantes do filme.

Por mais que pareça (e, no fundo, seja) um mero filme-pipoca, sem outras ambições além de dar lucro nas bilheterias e oferecer ao espectador duas horas de diversão adrenal, Hellboy toca num ponto interessante, ao negar de forma absoluta a crença no determinismo - que, para quem não sabe, é a noção, muito difundida entre as elites intelectuais dos séculos XVIII e XIX, de que cada pessoa é exatamente aquilo que nasceu para ser, e, não importa o que aconteça, nunca será nada diferente disso. Um exemplo clássico é o romance Oliver Twist, de Charles Dickens, onde o garoto Oliver continua bom, educado e honesto, apesar de ter crescido num orfanato, exposto a tratamento desumano, e depois vivido vários meses entre ladrões e todo tipo de pilantras: a crença de Dickens era a mais aceita na época, a de que ser uma pessoa decente (ou um bandido nato) está nos genes, ou no "sangue", como se dizia então. Ou seja, o homem não seria um produto do meio, mas tão somente da genética, o que tornaria a educação, em princípio, algo bem pouco importante. Hellboy ilustra a crença contrária: a de que até mesmo um demônio, um criatura do puro mal, gerada com o único objetivo de disseminar o caos e a perversidade, pode tornar-se bom, se for educado para o bem.

Observação de última hora: acaba de chegar às locadoras o filme O Orfanato, produção espanhola dirigida por J.A. Bayona e onde Del Toro participa como produtor executivo, além de (e talvez isso seja o mais importante) emprestar seu nome para a divulgação, pois a primeira coisa que aparece nos créditos iniciais é Guillermo del Toro presenta..., o que certamente atrairá um punhado de espectadores já familiarizados com seu nome e admiradores de suas brilhantes bizarrices. Sinal de que o cara não abandonou de vez suas raízes e ainda podemos esperar mais novidades suas no campo do cinema fantástico não-Hollywood. Gostei de saber disso.

quarta-feira, novembro 12, 2008

Construtores de Continentes

“O brasileiro é um Narciso às avessas, que cospe na própria imagem. Nossa tragédia é que não temos um mínimo de auto-estima.” (Nelson Rodrigues)

Em primeiro lugar, não, eu não sou fã de Nelson Rodrigues. Concordo que todo escritor que tenha a pretensão de dar alguma profundidade ao que escreve não pode furtar-se, por vezes, a ter de retratar as torpezas e o mal inerente aos seres humanos, mas tenho para mim que isso deve ser feito quando necessário. No meu entender, um escritor que escolhe sempre e deliberadamente como tema o que existe de pior na humanidade, não está contribuindo para criar nada de bom, e não terá a minha admiração. Excesso de idealismo? Talvez; podem chamar do que quiserem.

Mas, mesmo não simpatizando com o dramaturgo carioca, não vou tirar os méritos que ele tenha, e um deles é o de ter forjado um punhado de frases certeiras e perfeitas sobre vários assuntos. A que escolhi para abrir este artigo é minha preferida, e tem a ver com meu tema.

Dias atrás, visitando a Feira do Livro de Porto Alegre, tive a grata surpresa de encontrar numa caixa de saldos o livro Construtores de Continentes, do autor norte-americano L. Sprague de Camp, que já havia lido nos meus saudosos 14 ou 15 anos, época do meu maior furor no que se referia à ficção científica. Batido pela nostalgia, comprei o livro por um valor simbólico qualquer e, no trem mesmo, durante a viagem de volta para São Leopoldo, comecei a relê-lo, experimentando uma sensação muito semelhante à de reencontrar um velho amigo.

Dá um certo desespero perceber que, não bastasse o fato de que não viverei o suficiente para ler todos os livros que gostaria (e ver todos os filmes, estudar todos os assuntos, visitar todos os lugares...), ainda há esse outro fato: o de que muitos livros, dentre os que já li, mereceriam, se fosse possível, uma segunda leitura, à luz de tudo o que aprendi e vivi desde meu primeiro contato com eles. É o caso de Construtores de Continentes, pois a nova leitura me levou a pensar coisas que não ocorreram ao garoto que eu era 20 anos atrás.

Lyon Sprague de Camp (1907-2000) foi o que poderíamos chamar de escritor polivalente, pois, além de ficção científica, escreveu fantasia, romance histórico, mistérios, poesia e sabe Deus o que mais. Foi um nome importante durante a Era de Ouro da ficção científica, e amigo pessoal de vários outros autores famosos, entre eles Isaac Asimov, que, aliás, prefaciou este livro. Construtores de Continentes não é um romance - inclui duas novelas independentes entre si, embora ambientadas no mesmo futuro imaginário. A primeira passa-se em 2137, chama-se Moto-contínuo, e narra as aventuras de Felix Borel, um trambiqueiro profissional que decide tentar a sorte em Krishna, um planeta de descoberta relativamente recente, habitado por uma raça espantosamente semelhante aos terráqueos, só que com algumas características insectóides, e com um nível tecnológico pouco mais que medieval. Justamente por terem, até então, convivido pouco com os terráqueos, os krishnianos ainda são passíveis de serem enganados por golpes em que, na Terra, ninguém mais cai há muito tempo - ou seja, o planeta é um paraíso para trapaceiros como Borel, que, no entanto, vai descobrir, às suas próprias custas, que nada é tão fácil quanto parece.

A segunda novela, que dá título ao livro, começa em 2153 e fala sobre um projeto que está sendo implementado para criar um novo continente no Atlântico, entre a América do Sul e a África. Por meio de engenharia tectônica, os cientistas e técnicos do século XXII esperam aumentar o espaço vital disponível para a humanidade na Terra, independentemente da eventual migração para outros planetas.

Agora é que chegamos ao ponto verdadeiramente importante... Por mais interessantes que sejam os enredos dessas duas histórias, não são elas que mais chamam a atenção dos leitores brasileiros, e sim um "detalhe" do pano-de-fundo: no futuro imaginado por De Camp, os Estados Unidos decaíram de sua posição de liderança mundial, que passou a ser exercida por uma nova superpotência... Imaginam qual? Sim, meus amigos, o Brasil.

Ao contrário de muitos outros escritores (e dos norte-americanos em geral), De Camp realmente conhecia alguma coisa sobre o Brasil - no texto original em inglês apareciam diversas palavras em português, que o tradutor teve a boa idéia de assinalar para nossa referência. O departamento de abrangência mundial que cuida das idas e vindas dos viajantes espaciais chama-se Viagens Interplanetárias - assim mesmo, em português, porque a coisa toda é controlada e administrada por brasileiros. De Camp não teria incluído isso em seus livros se não acreditasse pelo menos na possibilidade de tais coisas - e ele era norte-americano... E nós, que somos brasileiros? Nós acreditamos que possamos chegar lá??

É difícil dizer até que ponto o nosso povo criou o autoconceito que tem, e até que ponto simplesmente comprou a imagem de si mesmo que é vendida pelos "gringos", mas o que se observa é que o brasileiro, quase sempre, acredita que sua função no mundo é simplesmente a de ser o cara alegre, hospitaleiro e "caloroso", e que a vocação do Brasil é a de um "país-colônia de férias", para onde americanos, europeus, japoneses e demais habitantes do "Primeiro Mundo" vêm quando querem praia, sol e festa - porque, tanto na visão desses estrangeiros quanto, infelizmente, na dos próprios brasileiros, tudo o que o nosso país tem para oferecer são praia, sol e festa! Tem sido assim por tanto tempo, que é difícil para a maioria dos brasileiros encarar a possibilidade de fazerem parte de algo sério e importante, ou de que seu país possa um dia ocupar uma posição de destaque no cenário mundial. Pois isso exigiria um esforço sério e comprometido, cujos resultados só seriam visíveis a longo prazo, e, ainda mais importante, exigiria que acreditássemos ser capazes. Seria necessário que víssemos em nós mesmos força de vontade e inteligência (qualidades que, infelizmente, não estamos acostumados a associar ao nosso próprio povo como um todo), e capacidade latente para fazer mais do que apenas organizar o maior carnaval do mundo. Quero muito acreditar que, se não a nossa geração, a de nossos filhos ou netos há de acordar desse torpor de séculos e se dar conta de que tudo o que qualquer outro povo foi (ou será) capaz de realizar, também está ao nosso alcance, desde que queiramos e acreditemos.

quarta-feira, outubro 22, 2008

Pinceladas clássicas

Houve tempos em que a cultura geral era vista como um dos componentes mais importantes da bagagem de conhecimento de uma pessoa. Não fazia diferença se você estivesse estudando para ser um advogado, médico, engenheiro, administrador... Era considerado indispensável ter algum conhecimento de História, literatura, mitologia e campos afins, porque não era concebível que uma pessoa que se pretendia instruída não soubesse ao menos o básico sobre as raízes culturais de nossa civilização e suas grandes realizações. Isso foi antes da era da especialização, cujos amargos frutos a atual geração está colhendo: a sociedade incentiva cada um a se aperfeiçoar em sua própria profissão e ignorar o resto do universo. Não estou dizendo que a especialização seja ruim em si mesma, mas ela pode estimular a fragmentação do conhecimento - e esta, sim, é uma praga em todos os sentidos, um poderoso agente perpetuador da ignorância.

No tempo em que um pouco de conhecimento clássico era considerado parte essencial do cabedal de qualquer pessoa que tivesse atingido um determinado grau de instrução, expressões como estas abaixo eram usadas, não largamente, mas com uma certa freqüência, em situações as mais diversas: um discurso numa festa, uma defesa judicial, um artigo que se enviava para a página de "opinião do leitor" num jornal... As pessoas podiam usá-las porque tinham cultura para tanto, e também porque podiam ter confiança de que seus ouvintes ou leitores as compreenderiam. Hoje, com exceção de um punhado das mais populares ("força hercúlea", "presente de grego", "agradar a gregos e troianos"), essas figuras de linguagem estão em extinção, o que eu acho realmente uma pena - elas deixavam mais interessantes uma série de situações cotidianas. Como um exercício agradável, fiz um pequeno apanhado de algumas delas, com a explicitação de seus significados. Ordenei-as numa seqüência temporal dos eventos que deram origem a cada uma, dos mais antigos para os mais recentes.

1. O leito de Procusto: Damastes era um salteador de estrada que aterrorizava os arredores da cidade grega de Elêusis. Entediado de apenas roubar e matar, igual a todos os outros bandidos, ele inventou uma variação: quando um viajante lhe caía vivo nas mãos, era amarrado ao seu leito de ferro e "adaptado" ao tamanho deste: os mais altos tinham um pedaço das pernas cortado, enquanto os mais baixos eram violentamente esticados com cordas até ficarem do comprimento do leito. Isso valeu a Damastes o apelido de Procusto ("o Estirador"). Essa revoltante diversão terminou com a chegada do herói Teseu, que deu um fim ao bandido infligindo-lhe o mesmo tratamento que ele dera a tantos infelizes. Em lembrança a essa lenda, a expressão "leito de Procusto" designa algum padrão rígido e arbitrário no qual todos são forçados a se enquadrar.

2. O pomo da discórdia: Conta-se que, por ocasião do casamento do herói Peleu e da nereida Tétis (que viriam a ser os pais do célebre Aquiles), todos os deuses haviam sido convidados, exceto Éris, a Discórdia, que foi deixada fora da lista justamente para evitar brigas na festa. Não adiantou: despeitada por não ter sido convidada, Éris apareceu na festa, jogou uma maçã ("pomo") de ouro entre as deusas, e desapareceu, sem dizer uma palavra. No pomo estava gravada uma frase: "À mais bela". Foi o suficiente. Imediatamente três das principais deusas começaram a reclamar o prêmio: Hera, esposa do deus supremo, Zeus; Atena, filha de Zeus e deusa da sabedoria; e Afrodite, também filha de Zeus, deusa do amor. O papel de juiz coube ao pastor Páris, na verdade filho de Príamo, rei de Tróia, que deu a vitória a Afrodite - mas não fazia muita diferença, pois, qualquer das três que escolhesse, ele ganharia a inimizade mortal das outras duas, como de fato aconteceu. A expressão "pomo da discórdia" pode significar qualquer coisa, concreta ou abstrata, que cause disputas acirradas. Uma observação: essa história, como se viu, apresenta Páris já adulto numa época em que Aquiles ainda não havia nascido, enquanto outros episódios da saga da Guerra de Tróia sugerem que a diferença de idade entre os dois não era maior do que alguns anos. Discrepâncias cronológicas são comuns em ciclos lendários, já que eles aglutinam uma série de histórias que, na origem, eram independentes umas das outras.


3. O calcanhar de Aquiles: Esta é outra daquelas expressões de origem clássica que deverão sobreviver, pois é de uso tão comum que acaba por se auto-alimentar: muita gente a conhece e usa, mesmo sem saber quem foi Aquiles. Como vimos, o tal cara era filho de Peleu, rei da Tessália e famoso herói, e da ninfa marinha Tétis. Conta-se que esta última, desejando fazer o filho imortal, mergulhou o bebê no rio Estige, o que o tornou invulnerável - com exceção do fatídico calcanhar, por onde a mãe o estava segurando e que, por isso, não foi tocado pela água milagrosa. Adulto, Aquiles veio a ser o maior guerreiro grego e fez de seu nome uma lenda durante a Guerra de Tróia. Eventualmente, ele se apaixonou por Polixena, uma das filhas do rei Príamo, e, para poder desposá-la, ofereceu-se para usar sua influência entre os gregos para conseguir que se estabelecessem negociações de paz. Então, durante uma reunião de negociação (0u, segundo outros, já em seu casamento), Aquiles foi ferido no calcanhar, seu único ponto vulnerável, por uma flecha envenenada atirada por Páris - que era covarde, mas ótimo arqueiro - e morreu. Claro que isso pôs fim às esperanças de paz: a guerra foi retomada e, ao fim de mais um ano, Tróia caiu. "Calcanhar de Aquiles", como a história deixa óbvio, significa, simplesmente, um ponto fraco em alguém ou alguma coisa. O curioso nisso tudo é que o detalhe da invulnerabilidade de Aquiles é criação de algum poeta anônimo em um período já relativamente tardio da História grega, pois é em vão que se procurará por qualquer menção a ela na Ilíada de Homero. O Aquiles de Homero usa uma armadura (quase um canto inteiro do poema é dedicado a narrar sua forjadura pelo deus Hefestos) e chega a sofrer um ligeiro ferimento em combate.

4. A teia de Penélope: Alguns anos após chegar a notícia de que a Guerra de Tróia havia acabado, Ulisses (ou Odisseu), rei da ilha grega de Ítaca, ainda não havia retornado à sua terra, nem havia qualquer notícia sobre seu paradeiro. Muitos já o davam como morto, acreditando que tivesse perecido no mar durante a viagem de volta. A rainha Penélope, porém, mantinha a esperança de ver o marido retornar, e por isso recusava obstinadamente as propostas de casamento que recebia de diversos nobres da ilha - todos de olho no trono. Conforme o tempo passava, a pressão para que escolhesse um novo marido aumentou, e a rainha arquitetou uma artimanha: anunciou que faria sua escolha depois que terminasse de tecer a mortalha de seu sogro, Laertes (será que era normal, naquela época, tecer mortalhas para pessoas vivas?). E, para ganhar mais tempo, ela desmanchava à noite a parte tecida durante o dia. Uma "teia de Penélope", então, é aquele trabalho que está sempre sendo feito, mas nunca é concluído.

5. Vitória de Pirro: Pirro do Épiro foi coroado rei da Macedônia em 287 a.C. Além de ter sobre os ombros o pesado encargo de governar um reino e comandar um exército que ainda sonhavam com a figura semidivina de Alexandre, ele também teve de se preocupar com a ameaça representada por certa cidade italiana que, até então pouco importante, estava agora procurando se impor como uma nova potência na bacia do Mediterrâneo: Roma. Bom estrategista e contando com uma arma secreta - elefantes de guerra e arqueiros treinados para atirar do alto do lombo dos paquidermes -, Pirro venceu os romanos por duas vezes no campo de batalha. Porém, mesmo na derrota, as destemidas legiões romanas nunca deixavam de mostrar ao inimigo de que matéria eram feitas: essas vitórias custaram tantas baixas, que o rei teria declarado: "Mais uma vitória como essas duas, e nós, os vencedores, é que teremos que oferecer nossa rendição aos vencidos!" Daí surgiu a expressão "vitória de Pirro", que significa uma vitória obtida a um custo excessivamente alto, ao ponto de não valer a pena.

6. Paz cartaginesa: Outros, além de Pirro do Épiro, desafiaram Roma quando esta ainda era uma potência "emergente", como diríamos hoje. Destes, a mais digna de nota, e a que mais perto chegou de obter a vitória, foi sem dúvida Cartago, cidade de origem fenícia situada no norte da África, e que, já independente de qualquer obrigação para com os reinos fenícios do leste, enriqueceu muito graças ao comércio marítimo no Mediterrâneo. Roma e Cartago eram, portanto, duas cidades poderosas, procurando ampliar suas esferas de influência numa mesma região. O resultado não surpreendeu: as duas entraram em choque, e não foi uma vez só. As assim chamadas Guerras Púnicas duraram de 264 a 241, de 218 a 201 e de 149 a 146 a.C. Do ponto de vista militar, os romanos, formidáveis num combate de infantaria, eram medíocres como marinheiros - já com os cartagineses, a recíproca era verdadeira. Isso criava um certo equilíbrio que pode explicar a longa duração das duas primeiras guerras. No entanto, e apesar de Cartago ter produzido dois dos mais brilhantes generais da Antigüidade - Amílcar Barca na Primeira Guerra Púnica, e seu filho, Aníbal, na Segunda - ambas terminaram com vitórias romanas. E, fosse pela falta de outro comandante do mesmo calibre, ou porque Roma evoluíra muito em matéria militar no período após a Segunda Guerra Púnica, o fato é que a Terceira foi breve e decisiva. No verão de 146 a.C., os romanos finalmente tomaram Cartago. Todos os homens foram mortos; mulheres e crianças, escravizadas. Os vencedores foram metódicos em se certificar de que nenhuma pedra ficasse sobre outra na cidade, e depois espalharam sal sobre os destroços e em volta deles, para que nem capim crescesse mais ali. Brutal? Sem dúvida, mas, se Cartago tivesse saído vitoriosa, Roma teria tido o mesmo destino. A verdade é que ambos os lados sofreram o diabo nessas guerras, e qualquer um que vencesse no final iria querer ter a certeza de ter-se livrado do outro de uma vez por todas. Desse sangrento episódio ficou a expressão "paz cartaginesa", que significa a paz obtida mediante a completa aniquilação do inimigo.

terça-feira, abril 15, 2008

Literatura Fantástica

"Trust the tale, not the teller!" (D.H. Lawrence)

Esta tarde passei duas horas muito agradáveis participando da aula inaugural da oficina literária O Fantástico no Conto, ministrada por Maurício Chemello, mestre em Letras, na livraria/café Letras & Cia (Av. Osvaldo Aranha, 444). Adoraria poder participar de todos os encontros, que acontecerão até fins de junho, sempre às terças-feiras, mas, infelizmente, trabalho no interior e geralmente fico de segunda a sexta-feira longe de Porto Alegre. Pude estar presente à aula inaugural (aberta a todos os interessados, sem necessidade de inscrição) por estar de férias no momento. Ao me despedir do Maurício, sugeri que promova uma oficina aos fins de semana, o que seria ótimo para diversas pessoas que gostariam de participar e têm o mesmo problema que eu.

Sendo eu um graduado em Letras, não sou estranho à nomenclatura particular da Teoria Literária, mas, como, na faculdade, o currículo dedicava pouquíssimo espaço à literatura fantástica, saí desta aula com algumas noções novas. Aprendi, por exemplo, que o que comumente chamamos de literatura de fantasia (exemplo: todas as sagas heróicas ambientadas em mundos próprios e/ou envolvendo seres imaginários) é conhecido, dentro da Teoria Literária, como realismo mágico. Imagino que a palavra realismo, aí, aponte para o fato de que essas histórias descrevem uma determinada realidade - não a nossa, mas uma realidade - onde as coisas acontecem de modo a serem coerentes com a lógica interna desse universo próprio. Já o conto fantástico, assunto propriamente dito da oficina, é aquela história que, em princípio, retrata a realidade cotidiana - onde o autor introduz algum elemento incomum, inusitado, inesperado, que vai contra a ordem "normal" das coisas, podendo, ou não, ter caráter sobrenatural. Forçando um pouco (não muito) essa definição, poderíamos até dizer que todo conto é fantástico!... Pois toda história, para existir, precisa envolver um conflito - algo que perturba o andamento da vida cotidiana -, sendo que o enredo falará basicamente das ações dos personagens com o objetivo de restabelecer o equilíbrio. Isso se aplica tanto a Os Três Porquinhos como a Guerra e Paz; é um princípio universal. Daí temos que, se for para escrever uma história apenas narrando fatos comuns do dia-a-dia, onde nada de diferente acontece, melhor não escrevê-la. Por outro lado, se, em meio ao cotidiano, destaca-se um fato qualquer digno de ser narrado, isso não encaixa a história na definição acima? Pois!...

Claro que sabemos que não é bem assim, mas não dá pra resistir a fazer um pouco de "terrorismo" contra aquelas criaturas cansativas que gostam de torcer o nariz para livros, filmes, etc., dizendo que são "inverossímeis", como se isso fosse um defeito...

Como "tema" para a próxima aula, da qual, infelizmente, já não poderei participar, o Maurício nos recomendou ler a coletânea de contos O Livro de Areia, do argentino Jorge Luís Borges, um grande autor do conto fantástico e também ensaísta, que vem a ser um dos (inúmeros) escritores com os quais já estou há muito tempo devendo a mim mesmo um contato mais aprofundado. Mesmo não podendo seguir a oficina, pretendo fazer o tema: depois escrevo aqui sobre o livro.

Para pensar: cá entre nós: para que a literatura (ou, se pensarmos bem, todas as artes) serviria, se nada mais pudesse fazer do que copiar a realidade?

quinta-feira, fevereiro 07, 2008

Henrique V

A peça Henrique V, de William Shakespeare (1564-1616), começa com um pedido de desculpas. O coro, ao introduzir o tema, roga ao público que seja indulgente, já que é impossível, no acanhado espaço de um teatro (uma "rinha de galos", como diz o texto) e com um elenco de número limitado, reproduzir de forma digna a grandiosidade dos eventos que vão ser narrados. Segue-se uma exortação, pedindo aos espectadores que usem a imaginação para transformar aquele modesto palco nos vastos campos da França, para visualizar os cavalos quando estes forem mencionados, e para multiplicar em grandes exércitos o escasso punhado de atores vestidos de soldados. No filme baseado na peça, lançado em 1989, essa indulgência é muito menos necessária, pois as amplas possibilidades novas a serviço do cinema permitem recriar as cenas narradas de uma forma até que bem satisfatória, pelo menos para os olhos do espectador moderno. Mesmo assim, o coro (no filme, reduzido a uma única voz, a do excelente Derek Jacobi) ainda pede por indulgência – talvez para preservar a atmosfera teatral, ou apenas porque seria uma pena suprimir esses belos versos. Numa avaliação do conjunto, de qualquer forma, coisas como cenários, figurinos e uma boa produção, embora importantes, são secundárias: o essencial é a força inigualável do texto de Shakespeare, e essa eu acredito que permaneça relativamente intacta, apesar de muitos dos diálogos originais da peça terem sido adaptados para um inglês mais próximo do que se fala hoje. Vi o filme pela primeira vez em VHS, poucos anos depois de seu lançamento; dias atrás, relendo meu post sobre o livro O Marechal das Trevas, a breve menção que fiz dele me trouxe a vontade de revê-lo (adquiri o DVD há algum tempo) e de ler a peça, o que nunca havia feito. O resultado disso tudo está aqui.

Uma observação: embora eu domine o inglês, os escritos originais de Shakespeare são praticamente outra língua. Os quatro séculos de lenta e gradual transformação (as línguas nunca param de mudar), mais os floreios e imagens poéticas dos quais o autor fazia largo uso, tornam sua leitura um desafio, de modo que evitei morder mais do que podia mastigar: achei melhor ler a peça em tradução.

Henrique V é a parte final de uma quadrilogia que também inclui Ricardo II, Henrique IV, parte 1 e Henrique IV, parte 2 – mas não se preocupem, pois não é indispensável conhecer aquelas peças para poder apreciar esta. Retratado em Henrique IV, parte 2 como um adolescente turbulento e indisciplinado, mais interessado em prazeres irresponsáveis que em aprender a ser rei, Henrique V parece ter sofrido uma transformação radical com a chegada da idade adulta e sua coroação, em 1413, aos 27 anos, pois foi considerado, em sua época, um monarca competente, corajoso e dotado de múltiplos e variados talentos. E com uma ambição acima de todas as outras:

Rei Henrique:

Partamos, pois, meus caros compatriotas.
Nas mãos de Deus ponhamos nossa força
e demos logo início à expedição.
Alegres, para o mar! A guerra avança;
só serei vosso rei se o for da França.

(Ato II, Cena II)

A pretensão de Henrique ao trono da França era baseada em laços sanguíneos derivados de antigos casamentos políticos entre as famílias reais inglesa e francesa, e ele já havia, antes disso, reivindicado seu suposto direito por meios diplomáticos – só que os franceses, é claro, não iriam, de livre vontade, entregar o poder supremo de seu país a um monarca estrangeiro, fosse herdeiro de sangue ou não, e menos ainda em se tratando precisamente do rei da Inglaterra, rival da França desde os primórdios da história das duas nações. Sem esquecer, ainda, que estava-se em plena Guerra dos Cem Anos, que foi mais como uma sequência de diversos períodos de guerra intercalados por intervalos de uma paz frágil (e bota frágil nisso). Para negar a petição de Henrique, os franceses invocaram a Lei Sálica, do século V, que, entre muitos outros assuntos, tratava de direitos de sucessão e herança. Conforme essa lei, mulheres não podiam herdar bens imóveis: nem terras, nem tampouco casas, castelos etc. Numa interpretação extensiva, isso significava que elas também não podiam herdar títulos de nobreza (já que estes se ligavam estreitamente à posse da terra), incluindo o mais alto de todos os títulos, a realeza. Como, portanto, mulheres não podiam herdar a coroa (segundo essa interpretação), isso, por consequência, retirava a legitimidade de qualquer candidato ao trono que não fosse ligado à família real por linha masculina – e Henrique era parente dos reis franceses somente por intermédio de ancestrais femininas. Acontece que essa lei nunca havia sido aplicada com muito afinco até 1328, quando outro rei inglês, Eduardo III, havia feito a mesma reivindicação – que foi negada com o mesmo argumento. Ou seja, Henrique poderia alegar que os franceses só se lembravam da existência da Lei Sálica quando lhes convinha. Em adição a isso, o arcebispo de Canterbury, seu conselheiro, asseverou que essa lei, em sua origem, só vigorava na região de Meissen, na atual Alemanha, entre os rios Sala (e daí o nome de Lei Sálica) e Elba, e que tal região só se tornou possessão francesa sob o imperador Carlos Magno, séculos depois da criação da dita lei, de modo que não haveria motivo algum para afirmar que ela devesse ser seguida em todo o território francês. Uma vez aceita essa premissa, decorria como conclusão lógica que o rei francês de então, Carlos VI, só estava no trono porque este havia sido negado indevidamente, no passado, aos ancestrais de Henrique – que, portanto, estaria amparado pela razão e pelo direito.

Era tudo o que o jovem e ambicioso rei queria ouvir. Ele adotou um brasão pessoal cujo principal elemento, o escudo, era particionado em quatro; no jargão da heráldica, um escudo assim é dito esquartelado, e cada partição é um quartel. Dois dos quartéis desse novo escudo exibiam os leões da Inglaterra, dourados em campo vermelho, e os outros dois, os lírios da França, também dourados, em campo azul. Com esse símbolo, Henrique anunciava ao mundo que se considerava rei dos dois países, que estava disposto a sê-lo não só de direito, mas também de fato, e a fazer o que fosse necessário para isso. Ainda nesse mesmo espírito, ele também incluiu no brasão da coroa britânica a divisa em francês que ele ostenta até hoje: Dieu et mon droit ('Deus e meu direito').

(Na peça de Shakespeare, o desejo de Henrique por uma guerra é atiçado por um fator a mais: a petulância do delfim [título dado ao príncipe herdeiro do trono da França], que lhe envia de presente uma arca cheia de bolas de tênis… O tênis havia sido um dos passatempos favoritos de Henrique durante sua adolescência tresloucada, de modo que mandar as bolas é uma maneira de o delfim insultá-lo, deixando claro que ainda o considera o mesmo rapazinho tolo, indigno de temor ou sequer de respeito. Não sabemos se isso de fato aconteceu; tenho para mim que Shakespeare tenha inventado o episódio, inspirando-se em outro parecido, esse sim atestado por historiadores, que teria acontecido com Alexandre: Dario, rei da Pérsia, teria lhe mandado uma bola e um chicote de brinquedo como presentes, com o mesmo objetivo insultuoso. E, tal como o grande conquistador da Antiguidade, Henrique também não deixaria barata a brincadeira. Aliás, no ato IV, cena VII, a comparação de Henrique com Alexandre é explícita, na voz do capitão Fluellen, personagem meio heroico, meio cômico, que se gaba de ser conterrâneo do rei, e, como se fosse para sublinhar o fato, fala com um carregado sotaque galês).

Em agosto de 1415, Henrique desembarcou na Normandia (norte da França) com seu exército, que incluía, é claro, um contingente de cavaleiros, homens de berço nobre, treinados para a guerra desde a infância e equipados com armadura pesada e excelentes cavalos de combate, e também infantaria, lanceiros na maioria – esses, em geral, homens do povo, recrutados, treinados e equipados às expensas da coroa. Porém, a confiança do rei repousava de modo especial nos famosos arqueiros do País de Gales, que lhe eram particularmente devotados, já que também era galês. A arma desses soldados era o arco longo, assim chamado porque tinha quase a mesma altura de quem o manejava, e, embora fosse conhecido em toda a Europa, parece que a maioria dos exércitos o subestimava. Mas não os britânicos. Em Gales, principalmente, seu manejo era uma tradição. Apesar da construção simples, sendo feito numa única peça de madeira (geralmente teixo, às vezes carvalho ou bétula), esse arco, bem utilizado, tem um formidável alcance de até 500 metros, oferecendo boa precisão até mais ou menos a metade dessa distância. Naturalmente, o bom manejo exige muito treino, além de braços fortes. Cerca de sete mil desses arqueiros integravam o exército de Henrique, além de uns cinco mil lanceiros e algumas centenas de cavaleiros. As fontes divergem, mas o número total devia estar em torno de 13 mil homens.

O primeiro e bem-sucedido ataque do exército inglês foi contra a cidade portuária de Harfleur, que se rendeu depois de um cerco que se prolongou bem além do esperado e foi cruel para os dois lados. Henrique comandou pessoalmente suas tropas, participando do combate direto. Pode-se questionar a sensatez disso, já que sua morte em plena campanha causaria um caos e traria consequências terríveis não só para o exército, mas para a própria Inglaterra; por outro lado, não havia modo mais claro de mostrar a seus soldados que seu rei não estava pedindo a eles nenhum sacrifício que ele próprio não estivesse disposto a fazer. Também consta que Henrique enviou uma mensagem ao delfim, desafiando-o a ir a Harfleur para enfrentá-lo num combate singular. E parece que o delfim não respondeu.

Shakespeare nos conta que, na tomada de Harfleur, Henrique foi misericordioso, ordenando a seus soldados que tratassem com civilidade todos os cidadãos, proibindo a pilhagem e toda e qualquer violência desnecessária – mas só agiu assim porque o governador da cidade concordou com a rendição. No filme, a negociação entre ambos acontece numa pausa da batalha, com o governador falando do alto das muralhas, Henrique diante dos portões, montado em seu cavalo e coberto de sangue; o rei inglês aconselha a rendição, prometendo clemência, mas ressalva que, caso o governador não aceite, será ele o responsável por condenar seu povo:

Rei Henrique:

Que terei eu que ver, se sois vós próprios
os culpados de virem vossas filhas
a ser presas da mais intolerável
e feroz violação? (…)
Tão pouco resultado alcançaríamos
procurando pôr cobro nos excessos
dos soldados entregues à pilhagem,
como se ao Leviatã determinássemos
que viesse para a praia. Por tudo isso,
homens de Harfleur, mostrai-vos compassivos
com vosso próprio povo e com a cidade,
enquanto os meus soldados me obedecem (…).

(Ato III, Cena III)

A expressão de alívio no rosto de Henrique ao ouvir o governador concordar com seus termos é uma pequena amostra da capacidade dramática do ator Kenneth Branagh, que, por sinal, também é o diretor do filme. Um alívio que o rei, na certa, sentiu mesmo, pois seu exército, além de pouco numeroso, começava a padecer com o cansaço e doenças; uma epidemia de disenteria estava se anunciando, e pioraria muito durante as semanas seguintes. Além disso, era fim de verão, conta-se que chovia muito e havia lama por toda parte, condições realmente miseráveis para se manter um cerco. O rei Carlos, o delfim e seus oficiais também sabiam disso, de modo que abstiveram-se de ir em socorro de Harfleur (a cidade era um sacrifício que eles podiam dar-se ao luxo de fazer) e adiaram o quanto puderam o momento do confronto, à espera de que os ingleses ficassem tão debilitados quanto possível.


Depois da capitulação de Harfleur, Henrique deixou parte do exército como guarnição na cidade e marchou com o restante em direção ao leste, para Calais, na época um enclave britânico na França. O corpo principal do exército francês, que não havia se movido até então, saiu em seu encalço, mas, mesmo debilitados, os ingleses contavam com a vantagem da mobilidade, pois dispunham de cavalos em número superior ao da soma total de seus soldados e pessoal de apoio – quer dizer, mesmo quem, na hora da batalha, lutava a pé, ou nem lutava, tinha uma montaria para a viagem. É claro que a celeridade teve seu preço: as catapultas e os canhões (estes, uma grande novidade na época) que haviam sido usados para tomar Harfleur, tiveram que ser deixados lá mesmo, assim como toda carga não essencial: Henrique ordenou a seus homens que não levassem consigo nada além de armas, armaduras, o equipamento indispensável, e provisões – que já começavam a ficar escassas. O plano do rei era reunir-se a suas tropas estacionadas em Calais e, ou passar o outono e o inverno lá, ou navegar de volta para a Inglaterra e retornar no ano seguinte, pois, naquela região do mundo e com a tecnologia bélica existente na época, campanhas militares só eram praticáveis na primavera e verão, e, naquele momento, já se estava entrando no outono.

Mesmo viajando leves, a marcha foi dura. Chovia torrencialmente, as estradas eram verdadeiros atoleiros, e, depois de alguns dias, as rações tiveram que ser reduzidas, sob pena de, em breve, ficarem sem nada para comer. A má qualidade da água agravou as doenças que já castigavam o exército. Ao chegarem às margens do Somme, que teriam que transpor para alcançar Calais, os ingleses enfrentaram outro problema: todas as pontes tinham sido demolidas, e os pontos onde o rio podia ser vadeado estavam fortemente defendidos por tropas francesas – e um exército cruzando um rio fica muito vulnerável. A solução foi marchar cada vez mais para o interior ao longo do rio, à procura de um vau que não estivesse defendido, o que tomou vários dias, tempo esse durante o qual o exército britânico ficava cada vez mais cansado, faminto e fraco devido à doença.

Quando, por fim, conseguiram atravessar o Somme, Henrique e seus homens viram-se numa extensão de terra agrícola perto um vilarejo chamado Azincourt (Agincourt na forma inglesa), dominado pelo castelo de mesmo nome. A essa altura, o exército de 13 mil homens estava reduzido a uns seis mil ainda em condições de combater: os 13 mil originais, menos as baixas sofridas durante o cerco de Harfleur, menos os que foram deixados lá como guarnição, menos os que morreram ou ficaram incapacitados por causa da doença durante a marcha. Nos campos de Azincourt, o depauperado exército inglês viu-se encurralado entre duas forças francesas que, somadas, o superavam em número por uma diferença de, no mínimo, cinco para um, e provavelmente mais, para não mencionar que os franceses estavam descansados e bem alimentados. Era ao entardecer de uma quinta-feira, 24 de outubro de 1415.

A madrugada tensa que antecede a batalha é, sem dúvida, um dos trechos mais magistrais da peça. Tensa, é claro, para os ingleses, que temem a chegada da aurora, porque acreditam que não verão o próximo pôr-do-sol. Quanto aos franceses, esses anseiam pela manhã, reclamam da demora do dia em despontar, antegozando a batalha como se fosse uma festa, enquanto conversam despreocupadamente sobre quem tem o melhor cavalo e a mais bela armadura. Henrique, disfarçado, percorre o acampamento inglês, ouvindo o que dizem seus soldados, apresentando-se com um nome inventado para falar com eles. Ouve seu desalento e procura encorajá-los, sem nunca revelar sua verdadeira identidade. Por fim, ao ver-se sozinho, desabafa num monólogo a respeito do pesado fardo da realeza:

Rei Henrique:

Só sobre o rei! Ponhamos nossas vidas,
nossas almas, as dívidas, os filhos,
as esposas ansiosas, os pecados,
tudo, em cima do rei! Forçoso é tudo
suportarmos. Oh dura condição!
Ser gêmeo da grandeza e estar sujeito
ao capricho do sopro dos estultos
que só sabem sentir suas próprias dores.
Quantas satisfações são proibidas
aos reis para que os súditos se alegrem!
Que têm os reis a mais que seus vassalos,
além do rito, além das cerimônias
exteriores? Que vales, rito ocioso?
Que espécie és tu de deus, para sofreres
muito mais do que os teus adoradores
a condição humana!

(Ato IV, Cena I)

Entretanto, esse momento de fragilidade não é mais do que isso: um momento. Quando o dia finalmente desponta – sexta-feira, 25 de outubro, dia de São Crispiniano –, o rei profere aquele que é, sem sombra de dúvida, a "mãe" de todos os discursos inspiradores que outros reis e comandantes fazem a seus soldados em inúmeros filmes épicos, geralmente logo antes de uma batalha que tudo indica ser impossível vencer:

Westmoreland:

Oh, se agora tivéssemos ao menos
dez mil dos homens que imobilizados
se encontram na Inglaterra!

Rei Henrique:

Quem deseja
tal coisa? Westmoreland? Não, caro primo;
se fadados estamos para a morte,
a pátria, em nós, já perde muitos filhos;
mas se vivermos, quanto menos formos,
maior será nosso quinhão de glória.
Deus o decida. (…)
Hoje é dia de São Crispiniano. (…)
Quem neste dia não perder a vida
e chegar à velhice, há de todo ano,
na véspera, dizer para os vizinhos:
"Mais um dia de São Crispiniano!"
Arregaçando as mangas, mostra as marcas
e dirá: "Todas estas cicatrizes
são do dia de São Crispiniano".
Tudo os velhos esquecem; mas embora
fique tudo esquecido, hão de lembrar-se
com minúcias dos feitos deste dia. (…)
Esta história os valentes hão de aos filhos
transmitir, e de agora ao fim do mundo
não poderá jamais ser pronunciado
o nome de Crispim Crispiniano
sem que lembrados todos nós sejamos.
Nós, poucos; nós, os poucos felizardos;
nós, pugilo de irmãos! Pois quem o sangue
comigo derramar, ficará sendo
meu irmão. Por mais baixo que se encontre,
confere-lhe nobreza o dia de hoje.
Todos os gentis-homens que ficaram
na Inglaterra julgar-se-ão malditos
por não terem estado aqui presentes,
e hão de fazer ideia pouco nobre
de sua valentia, quando ouvirem
alguém dizer que combateu conosco
neste dia de São Crispiniano!

(Ato IV, Cena III)

(Fico com os olhos rasos d'água cada vez que leio isso, e sou macho o suficiente para admitir!)

Sim, eu sei: é fácil imaginar os soldados magros, esfarrapados e cobertos de lama saudando com um brado ensurdecedor o final desse discurso, e ainda mais fácil ter a sensação de que já ouvimos e vimos algo parecido antes, seja em Coração Valente, O Retorno do Rei ou, literalmente, dezenas de outros. Qualquer semelhança não é mera coincidência. Para dar um toque final no moral de suas tropas, Henrique assegurou que não seria capturado vivo: em caso de derrota, morreria com seus soldados. Faz bem ao coração acreditar que isso não era só uma bravata, e, de qualquer forma, além de um ato de coragem pessoal, expressava a vontade de não causar ainda mais sofrimento a seu país: se os franceses o apanhassem vivo, a soma que pediriam por sua libertação poderia quebrar a Inglaterra (a expressão isso custa o resgate de um rei, usada em várias línguas para dizer que o preço de algo é abusivo, não surgiu do nada).


Se o discurso de Henrique deixou seus soldados ansiosos para lutar, eles precisaram ter um pouco de paciência. Ao romper do dia, os franceses estavam prontos, mas não fizeram nenhum movimento para atacar, e por bons motivos. É quase sempre mais vantajoso para um exército manter sua posição e esperar que o inimigo tome a iniciativa, e, no presente caso, o tempo era aliado dos franceses, para quem suprimentos não eram um problema: no que dependesse deles, podiam esperar ali até que os últimos ingleses morressem de fome. Lá pelo meio da manhã, Henrique fez o primeiro movimento, ordenando que seu exército avançasse cerca de 200 metros, até uma posição da qual seus arqueiros já tivessem o inimigo ao alcance de suas flechas. Analistas militares avaliam que, se a cavalaria francesa tivesse aproveitado a momentânea desorganização dos ingleses durante esse pequeno deslocamento, poderia ter quebrado a espinha do exército de Henrique e assegurado uma vitória fácil, mas, por algum motivo, a ordem para a carga não foi dada. Os franceses só se moveram ao serem forçados a isso, quando as flechas inglesas começaram a chover sobre suas posições. E foi aí que as coisas começaram a dar errado para eles.

Como vimos, o local da batalha era uma terra de cultivo, que havia sido recentemente arada, esperando pela semeadura do trigo; isso, combinado às chuvas pesadas dos últimos dias, havia convertido o terreno num grande lodaçal, onde os cavalos afundavam até os joelhos – que dirá então os enormes e pesados animais da cavalaria francesa, cada um levando sobre o dorso um cavaleiro em armadura completa. Com isso, a carga aconteceu em câmera lenta, facilitando as coisas para os arqueiros de Henrique, que, para a ocasião, haviam recebido aljavas carregadas das assim chamadas flechas-punhal, providas de pontas alongadas, desenhadas para concentrar toda a força do disparo num único ponto; impulsionadas por seus robustos arcos longos, essas flechas eram capazes de perfurar a maioria das armaduras. A topografia do local também conspirou a favor dos ingleses, pois o campo, relativamente estreito, era ladeado, à direita e à esquerda, por densos bosques onde a circulação de tropas montadas era impossível, o que livrava Henrique e seus homens da preocupação com a possibilidade de serem flanqueados. Para completar, a vanguarda francesa era formada pelos nobres e suas guardas pessoais: esses cavaleiros haviam feito questão de estar à frente, para garantir a própria glória no que esperavam ser uma vitória rápida e fulminante, e para ter a chance de capturar vivos alguns nobres ingleses, pelos quais seria possível obter gordos resgates. Os besteiros, únicos no exército francês que poderiam ter respondido aos arqueiros, estavam atrás, sem possibilidade de intervir. Os poucos cavaleiros franceses que conseguiram se aproximar do inimigo deram de cara com uma floresta de estacas longas e pontudas, que os arqueiros haviam fincado em diagonal no chão, e nas quais os cavalos se estripavam. Onda após onda de franceses atacou e encontrou seu fim sob as flechas inglesas. O próprio número enorme dos franceses trabalhou contra eles: os que vinham atrás, ainda sem perceber o tamanho do desastre, impediam que os da frente recuassem para se reorganizar. A pressão vinda de trás foi forçando milhares de franceses para dentro de uma espécie de corredor, entre duas colunas de arqueiros que os massacravam sem parar – e, ao fim desse corredor, os cavaleiros e lanceiros ingleses esperavam por eles. Quando ficaram sem flechas, os arqueiros empunharam o que quer que tivessem à mão (alguns tinham espadas, a maioria apenas machadinhas, facas e outros objetos que eram mais ferramentas que armas) e caíram sobre os flancos do inimigo, agora cansado, confuso e aterrorizado demais para conseguir lutar decentemente. Muitos franceses foram feitos prisioneiros, na maior parte homens nobres e/ou abastados, cujos resgates poderiam mudar a vida de seus captores. Entretanto, uma vez mais, o número excessivo foi sua perdição. Ainda havia um grande contingente de franceses descansados preparando-se para atacar, e o rei Henrique sabia que precisaria que cada homem que ainda tinha estivesse em seu posto de combate; não podia dar-se ao luxo de deixar boa parte deles vigiando prisioneiros. Além disso, estes últimos eram tão numerosos que, mesmo desarmados, poderiam rebelar-se, com boas chances de conseguir dominar seus carcereiros, apossar-se de armas que facilmente achariam entre os mortos no campo de batalha, e obrigar os ingleses a uma luta em duas frentes, que, sem a menor dúvida, seria o seu fim. Nessas circunstâncias, Henrique tomou uma decisão difícil, mas que se mostraria acertada: mandou seus homens executarem os prisioneiros e depois se prepararem para receber a última onda do exército francês, que não teve melhor sorte que as anteriores. Foi uma carnificina – mas parece que, nessa fase final da batalha, novos prisioneiros foram capturados; ou isso, ou os mais importantes do grupo anterior foram poupados da matança, pois os registros históricos fazem referência a cativos sendo levados até Calais e depois à Inglaterra, e a resgates que teriam sido efetivamente pagos.

Na peça, Shakespeare fala em dez mil franceses mortos, um número razoavelmente realista segundo os historiadores, mas "viaja" longe ao mencionar apenas 29 baixas fatais do lado inglês, sendo quatro nobres e 25 homens comuns – um "exagero ao contrário", claramente destinado a reforçar a ideia de que a vitória fora um milagre. O número real de mortos deve ter sido algo em torno de 500, sendo impossível saber quantos foram feridos; ainda assim, uma impressionante média de vinte para um! Henrique, que sempre acreditara ter Deus ao seu lado, atribuiu totalmente a Ele essa vitória impossível. No filme, o rei começa a entoar uma belíssima e comovente versão para o Non Nobis (do Salmo 113), dizendo, em síntese, que a glória desse dia não cabe a ele nem a seus homens, mas unicamente a Deus. Aos poucos, os soldados vão juntando suas vozes à dele em meio àquele campo enlameado e juncado de cadáveres, na cena mais emocionante do filme.

Ao colher os frutos de sua vitória, Henrique preferiu mostrar benevolência, talvez na intenção de dar início a um tempo de entendimento entre os dois reinos que esperava governar. Naturalmente, fez uma série de exigências de cunho territorial, econômico e estratégico, mas, em vez de destronar Carlos VI, como poderia ter feito, contentou-se em receber em casamento sua filha, a princesa Catarina, então com 15 anos (pelo costume da época, essa era a idade de casar; Henrique é que estava atrasado, ainda solteiro com quase 29), e em ser formalmente nomeado o próximo na linha de sucessão ao trono da França, o que, é claro, implicou em deserdar o delfim, o que muito deve ter agradado a Henrique. Infelizmente para ele e para a Inglaterra, porém, Henrique nunca se sentaria nesse trono: morreu repentinamente em 1422, com 36 anos de idade. Seu filho, Henrique VI, também foi um rei notável (e também assunto de peças de Shakespeare), que, além de reinar sobre a Inglaterra, disputou longamente o trono da França com seu tio, Carlos VII – o ex-delfim, coroado, em grande parte, graças aos feitos de Joana d'Arc.


Só a título de curiosidade, algumas fontes informam algo interessante: o popular gesto obsceno de mostrar o dedo médio esticado, que quase todos pensam tratar-se de um símbolo fálico (tanto, que o gesto é normalmente acompanhado da expressão fuck you, ou do equivalente no idioma local), teria tido origem, na verdade, num episódio relacionado à batalha de Azincourt. Os cavaleiros franceses tinham um ódio antigo aos arqueiros britânicos, em especial os galeses, por causa das derrotas sofridas em Crécy (1346) e Poitiers (1356); aos olhos deles, essas derrotas pareciam um ultraje, até mesmo algo antinatural: como era possível que arqueiros, que não passavam de camponeses, tivessem tido a ousadia de liquidar centenas de cavaleiros, que eram nobres?! Para eles, isso era uma subversão da ordem "natural" das coisas, um crime que merecia punição exemplar. Então, certos de vencer em Azincourt, dada a vasta superioridade numérica de seu exército, os nobres franceses teriam prometido cortar o dedo médio da mão direita de todos os arqueiros que fossem capturados, a fim de que nunca mais pudessem manejar um arco… Uma ameaça sem muito sentido, na verdade, pois os arqueiros eram homens do povo, sem famílias ricas que pudessem pagar resgates; portanto, não tinham valor como prisioneiros, e, se capturados, seriam muito provavelmente executados sem mais delongas. De qualquer forma, quando, contra todas as expectativas, os britânicos venceram, conta-se que os arqueiros divertiam-se ao passar pelos cercados improvisados para os prisioneiros franceses e zombar deles exibindo o dedo médio, para mostrar que ainda o tinham, de modo que a ameaça dera em nada. Talvez nunca saibamos se essa é de fato a origem do tal gesto, mas esse é bem o tipo de curiosidade do qual eu gosto!

Henrique V, claro, é um épico, mas não é só isso. O perfil psicológico do protagonista é sólido, detalhado, fazendo dele um personagem complexo, o que deve ser ainda mais difícil de conseguir no teatro que num romance. Como disse, não conheço as peças anteriores da quadrilogia, mas, pelo que fiquei sabendo ao pesquisar o assunto, a mudança de Henrique, do jovem irresponsável para o rei intrépido, é convincente e marcante. Dois episódios de Henrique V ilustram isso; ambos são tratados brevemente na peça e um pouco mais detalhados no filme, acredito que retomando elementos de Henrique IV, parte 2, e ambos envolvem antigos companheiros de farra do rei na época em que este era príncipe. No primeiro, ainda na Inglaterra, um velho fidalgo, Sir John Falstaff, está doente, à beira da morte, e todos os seus amigos são unânimes em dizer que ficou assim devido à tristeza de ter sido destratado e renegado pelo rei, que, no último encontro dos dois, afirmou não conhecê-lo, apesar de terem virado tantas noites bebendo, cantando e arrumando confusão juntos em tabernas. No segundo, ocorrido já durante a campanha na França, Bardolfo, soldado do exército de Henrique e também seu velho chapa de bebedeiras, rouba de uma igreja e, por tal crime, deve ser condenado à morte; o rei poderia, se quisesse, mandar prendê-lo e, mais tarde, depois da poeira baixar, libertá-lo discretamente, aplicando alguma pena mais branda – mas opta por não fazer nada disso: Bardolfo é imediatamente enforcado, sem favorecimento algum. Nesse caso, Henrique mostra-se apenas justo e, pode-se dizer, inflexível; com Falstaff, ele é decididamente cruel. Entretanto, os dois episódios deixam entrever no espírito do rei uma mesma decisão: a de enterrar de vez seu passado de loucuras. E esses dois homens faziam parte desse passado.

Henrique V acaba de passar a dividir com Macbeth o primeiro lugar na minha preferência entre as peças de Shakespeare (o que pode mudar, é claro, pois, por enquanto, li poucas delas), e apresenta em traços vigorosos a marca da genialidade de seu criador. As partes que tratam de pessoas comuns são um tanto maçantes, mas isso é largamente compensado pelas cenas grandiosas que colocam em jogo o destino de nações, com um protagonista de um carisma indescritível e mais um punhado de personagens notáveis. Nas mãos habilidosas de Kenneth Branagh, essa grande peça tornou-se um filme inesquecível, um sinal visível de que Henrique não estava dizendo palavras vazias ao prometer a seus soldados uma fama que o tempo não apagaria. Seis séculos depois, seus feitos ainda inspiram os que encontram em histórias de heroísmo, fictícias ou reais, uma fonte de força e coragem para enfrentar seus próprios desafios.

terça-feira, janeiro 29, 2008

Eu, Robô

Isaac Asimov nasceu em Petrovich, na então União Soviética, em 02 de janeiro de 1920, e faleceu em Nova York, onde morava, em 06 de abril de 1992. Entre uma coisa e outra, teve tempo de ser um dos mais prolíficos e admirados escritores norte-americanos do século XX (pois, apesar de nascido na Rússia, mudou-se com a família para os Estados Unidos aos três anos de idade, e sempre se considerou um cidadão americano). Desde pequeno foi um leitor voraz, e, graças à leitura das revistas de ficção científica mais populares da época, desenvolveu também o entusiasmo pela ciência. Formou-se em Bioquímica na Universidade de Columbia, onde mais tarde também lecionou. Porém, fizesse o que fizesse, nunca deixou de escrever.

Tenho uma longa história com o livro Eu, Robô. Li pela primeira vez aos 12 anos, e ele foi um dos grandes responsáveis por me tornar um fã de ficção científica, o que fui durante muitos anos - e ainda sou, embora hoje em dia tenha tantos outros interesses no campo da leitura, que tornou-se um tanto raro pegar um livro do gênero. O livro reúne nove contos - nove exemplos do que de melhor se produziu em matéria de ficção robótica durante a assim chamada "era de ouro da ficção científica", que foi do fim dos anos 30 ao fim dos 40, aproximadamente - escritos quando Asimov tinha de 19 a 30 anos, e publicados ao longo desse período em diversas revistas. Em 1950, o autor selecionou exatamente esses nove (dentre a enormidade de coisas que havia escrito desde 1939) para integrarem este livro, que viria a ser uma das "bíblias" do gênero.

O livro começa em 2057, quando a famosa robopsicóloga (sim, isso mesmo: psicóloga de robôs) Susan Calvin, uma das figuras mais importantes da gigante US Robôs e Homens Mecânicos S.A., está para se aposentar, e um repórter é incumbido de entrevistá-la. Essa conversa acaba não sendo apenas sobre a vida da Dra. Calvin, mas sobre a história da US Robôs e, por conseqüência, também sobre a evolução dos robôs positrônicos, sem os quais já não é possível imaginar a sociedade naqueles tempos. Os nove contos originais são inseridos na conversa entre a cientista e o repórter, como sendo lembranças de histórias de que ela participou, que testemunhou ou ouviu contar durante mais de 50 anos de vida dedicados ao trabalho com os robôs.

Para nove histórias que foram escritas independentemente umas das outras, é impressionante como os contos ilustram bem a crescente importância que os robôs assumem ao longo da primeira metade do século XXI (não esqueçam, essas histórias foram escritas quando o século XXI era um futuro relativamente distante). O primeiro conto, Robbie, passa-se ainda no século XX, para ser mais exato em 1998, e trata da amizade entre Gloria, uma menina de oito anos, e um robô programado para ser sua ama-seca (!). Detalhe: Robbie é mudo, pois foi construído antes da invenção dos sintetizadores de voz que depois equipariam robôs mais avançados, mas isso não o impede de comunicar-se com sua pequena dona. Mas talvez o ponto mais importante do conto seja a abordagem da tecnofobia, que iria se manifestando com cada vez mais força à medida em que os robôs se tornassem mais sofisticados. Embora Robbie seja um modelo relativamente rudimentar, causa desconfiança à mãe de Gloria, que não gosta da ideia de sua filha ser "criada por uma máquina" e empenha-se ferozmente em separar os dois amigos.

A tecnofobia, aliás, tem a ver com uma das principais razões que fizeram as histórias de robôs de Asimov serem consideradas revolucionárias, apesar de tantos autores de ficção científica antes dele já terem escrito sobre o assunto. Ele foi o grande responsável por eliminar (ou, ao menos, suavizar) o "complexo de Frankenstein", que era o ponto de vista predominante até então: a idéia de que, se o homem criasse uma máquina tão ou mais inteligente que ele próprio, essa máquina fatalmente destruiria seu criador. Vale lembrar que Frankenstein, de Mary Shelley, escrito em 1818, é considerado uma das primeiras obras de ficção científica, apesar de seu ponto de vista ainda ser típico do Romantismo (refiro-me ao movimento artístico) vigente na época: "Há coisas que o homem não deve descobrir!"

Asimov mudou isso ao criar as Três Leis da Robótica, que são enunciadas pela primeira vez no segundo conto de Eu, Robô (que, por falar nisso, é também onde foi inventada a palavra "robótica"). O conto é Brincadeira de Pegar, e, nele, os engenheiros da US Robôs Gregory Powell e Michael Donovan estão em sérios apuros, em pleno planeta Mercúrio, com sua sobrevivência dependendo de um robô que aparentemente enlouquece de uma hora para outra. Para descobrir o porquê do estranho comportamento da máquina, os dois homens precisam raciocinar tendo como base as Três Leis, que são:

1. Um robô não pode fazer mal a um ser humano, ou, por inação, permitir que um ser humano sofra qualquer tipo de mal.
2. Um robô deve obedecer às ordens recebidas de seres humanos, exceto quando tais ordens entrarem em conflito com a Primeira Lei.
3. Um robô deve proteger sua própria existência, desde que, fazendo isso, não entre em conflito com a Primeira ou a Segunda Leis.

A idéia é que tais leis fossem o "princípio zero" no cérebro dos robôs, de tal forma que nenhum "bug" (como diríamos hoje) seja capaz de interferir nelas: qualquer robô simplesmente pararia de funcionar muito antes de se tornar capaz de desobedecer a essas leis.

Ao longo dos contos seguintes, somos confrontados com uma série de situações desafiadoras envolvendo robôs de diversos tipos, sempre tendo como eixo as Três Leis e as possíveis implicações e problemas do seu cumprimento. O que a inflexível lógica binária dos robôs interpretaria como "fazer mal"?... Mesmo que um robô se julgue superior aos seres humanos (e, sob muitos aspectos, sem dúvida ele o é), continua a ter a obrigação de obedecer a tais criaturas patéticas?...

Os dois últimos contos são os de maior alcance e implicações mais profundas. Em Prova, um certo Stephen Byerley, candidato a prefeito de Nova York, é suspeito de ser na verdade um robô de aparência humanóide. A Dra. Susan Calvin, que nesse conto participa diretamente da ação, declara que o teste para saber a verdade é um só, mas não é conclusivo: se Byerley transgredir as Três Leis, então ele é humano - mas, se ele as respeitar, isso não prova coisa alguma! No último conto, O Conflito Evitável, Byerley já é Coordenador Mundial, numa época em que a maior parte das funções de governo são desempenhadas por supercomputadores, que, por também serem robôs de certo tipo, operam subordinados às Três Leis, o que faz deles governantes muito mais confiáveis que a maioria dos políticos que conhecemos. Quantos líderes, ao longo da História, se lembraram que seu verdadeiro papel devia ser o de servir àqueles a quem governavam?... Nesse conto, escrito às vésperas da década de 50 - o período mais tenso da Guerra Fria -, Asimov aposta em que os robôs, com sua inteligência artificial, poderiam um dia evitar que nós, seres humanos, nos autodestruíssemos com nossa burrice natural.

Deixo a conclusão para a própria Dra. Calvin: "E isto é tudo. Vi tudo desde o começo, quando os pobres robôs não podiam falar, até o fim, quando servem como baluartes, postados entre a humanidade e a destruição. Nada mais tenho a ver. Minha vida terminou. Cabe a vocês ver o que virá no futuro."

Uma nota final: por muito tempo me neguei a ver o filme Eu, Robô, de 2004, estrelado por aquela mistura de cantor de rap, comediante e ator de ação que atende pelo nome de Will Smith, por receio de ficar excessivamente enfurecido no caso de os enredos profundamente cerebrais bolados por Asimov terem sido transformados num pastiche propício para Smith protagonizar cenas de ação ensandecida e soltar suas piadinhas sem graça, mas, recentemente, quando o filme passou na TV, resolvi encarar, e, para minha surpresa, ele não é um desastre total. Certo, Susan Calvin aparece totalmente descaracterizada, e Asimov JAMAIS criaria um herói como o interpretado por Smith, mas o enredo geral, baseado no conto Pobre Robô Perdido, que também está em Eu, Robô, manteve o elemento de mistério do original - Asimov também escreveu histórias policiais, e, dentro de sua produção de ficção científica, esse é provavelmente o conto mais "policial". Não terá sido por outro motivo que foi escolhido para basear o filme.