segunda-feira, outubro 26, 2009

O Ladrão de Raios

Para usar um dos inícios de frase favoritos do nosso presidente, "nunca antes na história deste país" se viu tamanha enxurrada de lançamentos literários no gênero normalmente chamado "infanto-juvenil", mas que, como se sabe, também agrada aos adultos que gostam de soltar a fantasia quando tiram tempo para ler um livro por prazer. Bem, às vezes agrada. Depende de muitas coisas. De qualquer forma, é fato que nunca se publicou tanto livro de fantasia no Brasil como de alguns anos para cá. Dos melhores aos piores, livros envolvendo magia, grandes aventuras, criaturas fantásticas e, quase sempre, heróis adolescentes, entopem prateleiras e mais prateleiras em quase todas as livrarias onde entro. Como seria de se esperar, essa abundância de oferta tropeça numa certa mesmice: muitas histórias são excessivamente parecidas entre si. Sendo assim, encontrar O Ladrão de Raios, do norte-americano Rick Riordan, é uma bem-vinda brisa de novidade, pois nos oferece algo inesperado e interessante.

Confesso que, ao pegá-lo para olhar pela primeira vez, minha testa se franziu automaticamente ao ver escrito em letras douradas, em sentido transversal à capa, aquele "Percy Jackson e os Olimpianos – Livro Um". Nada errado com Percy Jackson nem com os Olimpianos, e sim com o "livro um"... Outra série?? Porra, se antigamente (e mesmo nem tão antigamente assim) os escritores conseguiam contar boas histórias num único volume, por que raio (ops...) os autores de hoje parecem absolutamente incapazes disso? Agora tudo é, no mínimo, "trilogia"... E, na maioria das vezes, a história não é tão grandiosa que justifique passar do primeiro volume. Na verdade, para não poucas delas, um volume já é demais.

Mas vamos falar de Percy Jackson.

O herói adolescente (Não diga! Sério??) de mais esta série de fantasia tem 12 anos e é um garoto problemático, que sofre de dislexia e distúrbio de déficit de atenção, além de uma acentuada tendência a atrair eventos bizarros e inesperados, que teimam em acontecer nos locais onde ele está. Por conta disso, já foi expulso de cinco escolas – a média é uma por ano. No momento, prestes a concluir a sexta série, Percy está por um fio de ser expulso de mais uma escola, onde, apesar de continuar enfrentando todos os problemas de sempre, fez ao menos um amigo, Grover, além de ter um professor de quem gosta, o cadeirante Sr. Brunner, que ensina latim e cultura clássica (é o cara que eu queria ser quando crescesse...). O drama de Percy é que, por mais que ele tente andar na linha e ser um garoto "comum", as tais coisas estranhas continuam acontecendo independentemente de sua vontade. E quando ele descobrir por quê... Bem, toda a sua vida vai sofrer uma reviravolta.

OK, sei que até aqui não parece haver novidade, está tudo soando meio Harry Potter, não é? O garoto que sempre se sentiu diferente dos outros um dia descobre que é muito mais diferente do que pensava, e tal revelação será seu passaporte para uma vida cheia de aventuras inimagináveis... Mas sosseguem, que a proposta de Riordan não envolve nenhuma escola de magia, nem tampouco um grande bruxo do mal que quer ter de qualquer maneira a cabeça empalhada do jovem herói na parede de sua sala de visitas. Em vez disso, ele levanta a pergunta que está na orelha do livro: "E se os deuses do Olimpo estivessem vivos em pleno século XXI? E se eles ainda se apaixonassem por mortais e tivessem filhos que pudessem se tornar heróis?" Seria o desajustado Percy um semideus como Hércules ou Perseu??

Essas são as linhas gerais do universo da série, onde personagens e criaturas da mitologia clássica aparecem misturados com exemplares típicos da fauna humana das grandes cidades norte-americanas, e a interação de uns com os outros, além de bizarra, é por vezes muito engraçada. É deliciosamente absurdo (em especial para quem já tem um bom conhecimento do universo da mitologia e história gregas, como, modéstia à parte, é o caso deste que escreve estas mal digitadas linhas) ver os elementos daquele universo fascinante se misturarem com as coisas prosaicas do dia-a-dia moderno. Por exemplo, na mitologia, o deus Hermes usava sandálias aladas; neste livro, seus filhos nos dias de hoje usam tênis Nike ou Reebok alados! Sem falar na coisa exótica (para dizer o mínimo) que é ler uma narrativa em que moleques americanos praguejam em grego arcaico.

Creio também que muitos leitores adolescentes irão se identificar com a sensação de inadequação que Percy experimenta, pois parece não pertencer realmente a lugar algum. Quando descobre sua verdadeira natureza, ele é levado para uma espécie de "acampamento de verão" nos arredores de Nova York, onde dezenas de outros jovens semideuses já estão sendo educados e treinados. Lá, tem o privilégio de tomar aulas com o centauro Quíron, famoso mestre de heróis desde os tempos clássicos: na lista de seus ex-alunos figuram nomes como Hércules, Aquiles e outros menos votados. É Quíron quem explica a Percy o significado do fato de os deuses gregos continuarem vivos e atuantes: segundo o velho centauro, eles fazem parte da própria essência e espírito do que conhecemos como civilização ocidental, e existirão enquanto ela existir. São chamados de deuses "gregos" porque foi na Grécia que nossa civilização nasceu, mas habitaram sempre "onde quer que a chama da civilização ardesse mais forte": depois da Grécia, transferiram-se para Roma, e em seguida, durante períodos mais curtos, sempre para o país que mais fortemente representasse, naquele momento histórico, essa mesma civilização ocidental: Espanha, França, Inglaterra... Segundo essa lógica, eles hoje vivem nos Estados Unidos. Bem, o que vocês esperavam? O livro foi escrito por um norte-americano. Política e economicamente, temos que concordar que os Estados Unidos são onde "a chama arde mais forte", agora, culturalmente, isso é no mínimo discutível... Mas passei por cima desse pomo da discórdia (epa) por amor a uma boa história, e estou certo de que vocês podem fazer o mesmo.

E a história propriamente dita (passada a parte de apresentar o herói e esboçar o enredo) começa quando Percy é informado de que o raio-mestre de Zeus, a mais poderosa arma já forjada, foi roubado, e de que o rei dos deuses tem um suspeito – o deus que vem a ser o provável pai de Percy, e que não vou revelar aqui quem é. Zeus exige a devolução do raio até o solstício do verão, e o deus acusado exige um pedido de desculpas até a mesma data. Caso contrário, haverá uma guerra entre os deuses, com consequências desastrosas para o mundo dos mortais. Percy, então, recebe uma missão: ir em busca do verdadeiro ladrão do raio e recuperá-lo antes que o prazo expire. Para isso, terá que atravessar os Estados Unidos – mas não os Estados Unidos que os mortais conhecem, e sim uma versão do país por onde se locomove todo tipo de criatura mítica, algumas das quais poderão ajudá-lo, enquanto outras o matariam com o maior prazer. A explicação que Quíron (perdão: Riordan) dá para o fato de os simples mortais não verem essas criaturas ou qualquer indício de suas atividades é muito interessante:

A Névoa é algo poderoso, Percy. (...) Leia a Ilíada. Está cheia de referências a isso. Sempre que elementos divinos ou monstruosos se misturam com o mundo mortal, eles geram a Névoa, que tolda a visão dos seres humanos. Você verá as coisas exatamente como são, sendo um meio-sangue, mas os seres humanos interpretarão tudo de modo muito diferente. É realmente incrível até que ponto os seres humanos podem ir para adaptar as situações à sua concepção de realidade.

Sim, eu li a Ilíada, e sim, isso está lá! :) Sem falar que conheço muita gente a quem a última frase se aplica com perfeição, sem a necessidade de haver Névoa alguma.

Eu até gostaria de fazer um pouco de pose de grande literato e dizer meramente que achei o livro "agradável, recomendável para um pouco de relax mental" – mas, como sou a favor de reduzir a hipocrisia ao mínimo inevitável, vou dizer a verdade: me irritei com cada coisa que me obrigou a largar este livro antes de terminá-lo, e mal posso esperar pelo segundo volume. Que deve aparecer em breve: conforme me disse o rapaz da livraria, um filme sobre as aventuras de Percy Jackson já está em produção e deve estrear em 2010, o que, somado ao fato de a edição original ter sido publicada nos Estados Unidos em 2005, é sinal de que os livros poderiam ter saído no Brasil bem antes, e estão saindo agora para ir no embalo do filme... Bem, espero ter tempo de ler a série toda antes que os filmes apareçam.

domingo, setembro 27, 2009

O Culto do Amador

Qualquer pessoa que já haja experimentado manter comigo alguma conversação de pelo menos 15 minutos sobre temas culturais (como é o caso de todos os leitores deste blog - toda a meia dúzia, quero dizer) já me ouviu esbravejar ardorosamente contra o que considero uma das maiores pragas da modernidade: aquilo que chamo de fragmentação do conhecimento, fruto de uma supervalorização da especialização, que, por sua vez, é fruto dos antolhos que o mundo capitalista pós-moderno prendeu na cara do cidadão mediano do fim do século XX, início do XXI. Em bom português, a ideia geral é que você não precisa (e, para muitos, nem deve) conhecer, saber ou se interessar por coisa alguma que não tenha diretamente a ver com sua profissão ou área de atuação: se você é um técnico em informática, não tem que saber nada de biologia, se você é um administrador, não deve perder tempo com literatura, se você é um advogado, não deve se ocupar de nada que não seja jurídico, e por aí afora. Para mim, isso é a receita mais garantida para criar uma multidão de pessoas burras (diploma e sucesso profissional não são antídoto contra a burrice, nunca foram), rasas, tapadas, desumanas e materialistas. Mesmo que eu esteja sozinho no mundo, sem ninguém que compartilhe de tal opinião, continuo acreditando que devemos saber um pouco de tudo, sim: não necessariamente ser um multi-homem como Leonardo da Vinci, mas saber uma infinidade de pequenas e grandes coisas sobre os mais variados assuntos, saber o que é fotossíntese, quem foi Péricles, no que acreditam os muçulmanos, onde fica o deserto de Gobi, o que são placas tectônicas, como se sopra vidro, como os samurais obtinham a liga de aço que lhes permitia fabricar as melhores espadas do mundo, saber que baleia não é peixe, saber o que é o teorema de Pitágoras, saber qual a função dos metais semicondutores na eletrônica... SABER! Não importa se esses conhecimentos irão lhe ser "úteis" algum dia ou não: saber, simplesmente (parafraseando Ítalo Calvino) porque saber é melhor que não saber. É preciso conhecer muitas coisas, sobre muitos assuntos diferentes, para chegar a alguma percepção - nunca à percepção completa - de que todas as áreas do conhecimento humano estão interligadas, de que todas as ciências e artes interagem e se interpenetram, de que tudo faz parte de um grande todo. Estou convencido de que o único motivo porque algumas pessoas são curiosas e sedentas de saber, enquanto outras são apáticas e não se interessam por coisa alguma, é que as primeiras compreenderam isso, e as outras não.

Ocorre que o "jogo" (na falta de palavra melhor...) do conhecimento tem ainda outra particularidade tão fascinante quanto aflitiva: toda moeda tem dois lados. Este livro de Andrew Keen me mostrou esse fato na prática. Tendo sido um figurão dentro de mais de uma grande empresa norte-americana de internet, Keen não apenas testemunhou a assim chamada "revolução da informação" nos anos 90, mas ajudou a fazê-la. Agora, nos anos 2000, alarmado com os rumos que a coisa tomou, escreveu este livro para chamar a atenção para o grande problema deste mundo onde temos toda a informação que desejarmos sempre à mão, acessível com poucos cliques: quem é que garante a qualidade dessa informação? Essa já era uma das grandes questões relacionadas à internet desde que ela se popularizou e passou a ser acessível a muita gente, e tornou-se ainda mais crucial nos dias de hoje, quando literalmente qualquer um pode escrever e publicar qualquer coisa que deseje.

Não se trata de questionar o princípio da liberdade de expressão, e não mudei de ideia sobre o bem que faz à mente humana interessar-se por muitas coisas diferentes, mas é preciso reconhecer que algo está errado quando não se faz mais distinção entre boato e realidade, entre opinião e fato, entre amador e especialista. Eu me irrito com a conversa de executivos que são totalmente analfabetos sobre qualquer outra coisa que não seja o mundo "business", mas reconheço a importância do que fazem e jamais me meteria a entender mais que eles sobre esse mundo, assim como consideraria ridículo que um deles pretendesse saber mais que eu sobre língua ou literatura. O que me distingue desses executivos é apenas que, enquanto eles não sabem nem querem saber nada que não se relacione ao seu campo profissional, eu, embora tenha estudado e me formado em língua e literatura, não me contento em viver num mundo onde só exista isso: quero conhecer física, química, biologia, ocultismo, matemática, zoologia, medicina, geografia, história, religião, arte, filosofia e (por que não?) também economia e administração, ou seja, "business"... Não me tornarei um expert em nenhuma dessas disciplinas como o sou (espero) em língua e literatura, mas, poxa, eu quero saber! Saber, sem perder de vista que você tem que estudar uma coisa durante longos anos se quiser ser algo mais que um curioso sobre ela. Quando um especialista em qualquer um desses campos estiver falando, eu humildemente murcharei a minha orelha. Isso requer apenas bom senso.

Bom senso esse que, como nos mostra Keen, anda em falta no mundo pós-revolução da informação: qualquer pessoa, por menos credenciais que tenha, pode discorrer sobre qualquer assunto, e 99% dos eventuais leitores irão atribuir ao material produzido por essas pessoas sem credenciais o mesmo peso que aos trabalhos de doutores na matéria, simplesmente por não terem maturidade intelectual para separar o que merece credibilidade do que não merece. Na verdade, talvez a maioria dos leitores-internautas dê mais valor ao que é escrito por amadores, por ser mais próximo do seu nível de entendimento e de seus pontos de vista como leigos - ainda que o que está sendo dito seja uma asneira digna de participante de reality show.

Tudo o que escrevi até agora pode ser assim resumido: um sujeito contentar-se em ser especialista em algo e pensar que não precisa saber mais nada é ruim, mas muito pior é não saber nada e pensar que pode falar como um especialista - e vira uma calamidade se houver outras pessoas ainda mais desinformadas que o aceitem como se fosse um.



Infelizmente, o que não falta neste mundo - ou nestes mundos: o real e o virtual - é gente desinformada.

Keen prossegue seu raciocínio mostrando que há muito mais em jogo do que apenas a qualidade da informação que estamos digerindo e assimilando: o desenfreado faça-você-mesmo da internet dos anos 2000 está aterrando o fosso que sempre separou o palco da plateia, gerando uma oferta torrencial de conteúdo gratuito criado pelos próprios usuários, e que, por ser gratuito, está usurpando o mercado que sempre pertenceu a profissionais ou empresas que se dedicavam a produzir esse conteúdo - e que, por só fazerem isso, podiam especializar-se e atingir a excelência em seus respectivos campos. Se a visão (muitas vezes tola e desinformada) de um sujeito que durante o dia trabalha em qualquer outra coisa e posta textos num site depois do jantar, vale para o público o mesmo que a de um jornalista profissional com décadas de experiência, por quanto tempo ainda será compensador para um jornal ou uma emissora de TV continuar pagando um salário a esse jornalista? O oba-oba dos downloads gratuitos de música destruiu a indústria fonográfica, que atualmente está em seus estertores (não vou bancar o único inocente e dizer que nunca baixei música da internet: só posso dizer em meu favor que não parei de comprar CDs por causa disso). Sem gravadoras, quem irá investir dinheiro e trabalho em descobrir e alavancar novos talentos musicais? E quanto tempo levará para que a indústria do cinema e a do livro tenham o mesmo destino? Conclusão: o atual modelo de utilização da internet está promovendo o fim das próprias fontes de conteúdo das quais depende.

Um velho adágio existente em várias línguas diz que o que vem fácil, vai fácil; embora tenha sido criado para referir-se a dinheiro, ele é igualmente verdadeiro no que toca ao conhecimento. Quando eu e as pessoas da minha geração frequentávamos a escola, um trabalho de história, por exemplo, demandava horas na biblioteca, pesquisando em enciclopédias - ao contrário da maioria dos colegas, eu gostava disso, mas não vem ao caso: gostando ou não, o próprio esforço despendido em encontrar e processar as informações de que precisávamos fazia com que ao menos uma parte daquilo tudo se cristalizasse em nossos cérebros em formação, de modo que sei até hoje quem foram Maurício de Nassau e o padre Anchieta; já os estudantes de hoje, tudo o que precisam fazer é acessar o Google ou o Yahoo! e digitar no mecanismo de busca o tema do trabalho, para instantaneamente terem dezenas ou centenas de textos prontos à disposição. Aí temos que perguntar: o que essa garotada está realmente aprendendo? Alguns anos atrás, essa suprema facilidade para se obter informação era o sonho de quem desejava um mundo onde a cultura estivesse ao alcance de todos; hoje, quando muitos professores se veem obrigados a proibir seus alunos de entregar trabalhos impressos, tendo que exigir que sejam manuscritos, para tentar evitar que eles simplesmente imprimam qualquer coisa achada na internet e entreguem sem ler, somos forçados a reconhecer que parece ter havido algum desvio no caminho trilhado entre o sonho e sua transformação em realidade.

Talvez o maior exemplo do "culto do amador" na era da internet seja a famigerada Wikipédia, a "enciclopédia livre que todos podem editar" - que ostenta esse slogan com orgulho, como se conhecimento fosse uma questão de democracia. E não é: sinto muito, mas não é. Nas enciclopédias tradicionais, podemos ter a certeza de que as informações que encontraremos serão fidedignas: o verbete sobre o padre Anchieta foi escrito por um historiador, o sobre José Saramago, por um doutor em Letras, o sobre dicotiledôneas, por um botânico, o sobre vulcões, por um geólogo, e assim por diante. Naturalmente que todo esse pessoal não é infalível, mas são eles os que, por todo o estudo e experiência que acumularam, têm maiores possibilidades de deter informação correta sobre seus respectivos campos. Na Wikipédia, por tudo o que se sabe, qualquer verbete pode ter sido escrito por um adolescente de bermudão e boné de beisebol virado para trás, já que ninguém lhe pediu credenciais mesmo. Conforme conta Keen:

"O dr. William Connolley, um modelador climático no British Antarctic Survey em Cambridge, especialista em aquecimento global e autor de muitas publicações profissionais, recentemente entrou em confronto direto com um editor da Wikipédia particularmente agressivo em torno do verbete 'aquecimento global' do site. Após tentar corrigir imprecisões que percebera no verbete, foi acusado de 'impor fortemente seu ponto de vista, com a remoção sistemática de todo ponto de vista que não coincidia com o seu'. Connolley, que não estava impondo nada além da precisão factual, foi submetido a restrições editoriais pela Wikipédia e limitado a fazer apenas uma adição por dia. Quando contestou a decisão, o comitê de arbitragem da Wikipédia não deu nenhum peso à sua expertise, tratando-o, um especialista internacional em aquecimento global, com a mesma deferência e atribuindo-lhe o mesmo nível de credibilidade que a seu adversário anônimo – o qual, pelo que se sabia, podia ser um pinguim na folha de pagamento da Exxon Mobil." (pp. 44-5)

Exxon Mobil é uma grande companhia petrolífera norte-americana, que, é claro, não deve ter entre suas prioridades a correta informação da opinião pública sobre a questão do aquecimento global.

Esse excerto ilustra o quanto a distinção entre fato e opinião torna-se a cada dia mais nebulosa nessa nova cultura que está se formando entre as malhas da "rede". "Pontos de vista", meus amigos, não têm o poder de mudar fatos, mas parece que, no mundo da cultura pós-moderna, ninguém sabe ou se importa com isso. Dar a mesma importância às palavras de um especialista e às de um diletante sem qualquer instrução formal na matéria que se mete a discutir, é reconhecer que estamos pouco ligando para a qualidade da informação que consumimos.

Disse acima que conhecimento não é uma questão de democracia. Explico-me: não quero com isso dizer que ele não deve ser democratizado - ele deve, claro, ser democratizado, no sentido de estar acessível a todos, e para isso a internet poderia (eu disse poderia) ser uma ferramenta maravilhosa. Porém, a veracidade de um fato não depende da "opinião" de uma ou de milhões de pessoas, e não deveria ser tratada como se dependesse, que é o que vem acontecendo na sociedade pós-revolução da informação. Há assuntos onde existe espaço para opiniões divergentes; em outros não. Num fórum sobre telenovelas, um participante pode declarar que acha Caminho das Índias ridícula, enquanto outro pode considerá-la uma obra definitiva da teledramaturgia brasileira - cada um tem suas razões para pensar como pensa, e, concordando ou não, devemos respeitar essas razões. Mas, se em vez de telenovela o assunto em pauta for de natureza científica, como no caso do Dr. Connolley versus o "pinguim", aí não se pode dar-se ao luxo de entrar no terreno do "eu acho". Em ciência não existem "opiniões": existem teorias, que, para adquirirem o status de fatos, precisam ser provadas.

Percebo que me foquei na questão que mais me chamou a atenção no livro, porque isso tudo me fez repensar a minha velha antipatia a priori pela noção de especialista, o que significou a necessidade de remodelar diversas ideias que eu tinha há bastante tempo, mas Keen não para por aí. Ele dedica um capítulo todo ao desmoronamento da indústria da música graças à pirataria digital, outro ao perigo do jogo de azar online (potencialmente ainda mais pernicioso que o jogo tradicional em cassinos, por estar acessível 24 horas por dia e a partir de qualquer lugar), e outro, ainda, aos males causados pelo livre acesso de crianças e adolescentes à pornografia na rede (já que nenhum controle parental é cem por cento seguro, e na maioria dos sites a única exigência feita ao usuário é clicar num botão que diz "sou maior de 18 anos"...). O capítulo final chama-se Soluções, e tem exatamente o conteúdo que o título sugere, mas, sem querer ser muito apocalíptico, a maior parte das saídas propostas por Keen para os problemas discutidos nos capítulos anteriores soa-me um tanto ingênua: algumas passam pela adaptação da legislação existente e pela criação de uma nova, capaz de ser aplicável ao meio amorfo e em constante mutação que é a internet - o que, concordo, é da maior importância -, mas a maior parte das soluções sugeridas parecem depender de que o público em geral caia em si e mude de atitude - uma circunstância que tenho dificuldade em acreditar que se concretize. Historicamente, situações extremas somente foram revertidas após terem chegado ao ponto de ruptura - e não me perguntem o que pode representar o "ponto de ruptura" para um mundo onde uma gorda fatia do dinheiro e toda a informação passam por uma internet que lembra muito o Velho Oeste sem lei. Mas uma coisa é possível dizer: ao contrário do que acontece com os grandes problemas ecológicos, por exemplo, onde é lugar comum dizer que "nossos filhos e netos sofrerão as consequências", no mundo da web tudo é tão rápido que não poderemos sequer contar com a chance de passar a bola para as gerações seguintes: a maioria de nós ainda estará por aqui para ver o fim. Seja ele qual for.

quinta-feira, julho 30, 2009

O Delírio de Dawkins

“Dawkins está correto - inquestionavelmente correto - quando propõe que não embasemos a vida em delírios. Precisamos examinar nossas crenças - em especial se formos ingênuos o bastante para acreditar, primeiramente, que não temos nenhuma. No entanto, pergunto-me: quem está, de fato, iludido sobre Deus?” (Alister McGrath)

Antes de se transformar no guru do ateísmo "científico" que se contenta em ser hoje, o biólogo britânico Richard Dawkins foi por muito tempo um dos mais bem-sucedidos dentre os cientistas que se ocupam da delicada e por vezes espinhosa missão de tornar a ciência inteligível para o leitor não especializado. Suas obras de divulgação científica inspiraram e despertaram entusiasmo e curiosidade em muita gente, e, só por isso, ele já seria merecedor de algum crédito. Isso tudo torna ainda mais difícil de compreender o fato de que ele hoje se empenhe, de forma absolutamente fanática e amarga, numa contínua tentativa de dissuadir a humanidade de qualquer tipo de crença na divindade, levantando a bandeira de que "a ciência explica tudo". Com esse objetivo, escreveu um verdadeiro tijolo de mais de 500 páginas, intitulado Deus: um Delírio, onde tenta provar por A mais B que a crença em Deus não passa de uma herança perniciosa e ridícula que ficou de épocas supersticiosas, e que seria melhor extirpar de uma vez, já que, além de inibir o pensamento crítico e obstruir o avanço da ciência, ela se constitui (segundo ele) na "raiz de todo o mal" sofrido pela humanidade. Para dar a resposta necessária, ninguém melhor que um colega de Dawkins (ambos são professores na Universidade de Oxford) que, ateu na juventude, converteu-se ao cristianismo, e, hoje, doutor tanto em biologia molecular quanto em teologia, está preparado como poucos para discorrer sobre o conflito (se é que precisa ser um conflito) entre ciência e fé. Este é Alister McGrath, autor de O Delírio de Dawkins.

Tendo sido durante anos um admirador do trabalho de Dawkins como cientista e divulgador da ciência, McGrath mostra-se perplexo de constatar o quanto seu colega afastou-se da razão que alega defender, com o objetivo de propagandear suas idéias ateístas. Não o critica por ser ateu - pois esse é um direito que assiste tanto a Dawkins quanto a qualquer pessoa, assim como o direito de ter fé, se tal for a sua opção -, mas pela atitude inflexível, intolerante e, surpreendentemente, cheia de dogmas que ele demonstra em seu livro.

Tive o primeiro contato com a obra de Dawkins quando tinha uns 18 anos de idade e encontrei por acaso seu livro O Relojoeiro Cego na livraria da universidade. Na época, eu vivia contando os tostões (não raro, saía de casa só com o dinheiro certo para o ônibus), de modo que não tinha a menor condição de comprá-lo, mas voltei diversas vezes só para ler mais um trecho, sentindo-me cativado pela defesa vigorosa e apaixonada que Dawkins fazia do darwinismo, e que me parecia ser uma prova cabal de que uma atitude científica podia, sim, ser conciliada com a intensidade emocional e, por conseguinte, com uma certa forma de idealismo. Para qualquer pessoa que, sem a obrigação acadêmica ou profissional de fazê-lo, movida apenas pela curiosidade e pelo amor ao conhecimento, haja se dado ao trabalho de estudar de fato a teoria da evolução e de se inteirar do que ela realmente diz, há pouca coisa mais exasperante que ouvi-la ser atacada por pessoas que, nos próprios "argumentos" (?) que usam, entregam o fato de que nunca chegaram sequer a entendê-la - nem querem, pois, caso a entendessem, correriam o risco de começar a achar que ela faz sentido.

Embora isso possa parecer uma desnecessária divagação pessoal, creio que pode ser útil, por ilustrativo, sintetizar aqui a experiência intelectual de um leitor de Dawkins no tocante ao suposto choque "Ciência x Religião". O que há é que sou e fui católico toda a minha vida; sou também um darwinista convicto, e nunca vivi um só instante de conflito devido ao fato de ser ambas as coisas. Para mim, a evolução biológica é um fato além de qualquer contestação possível; a dúvida que ainda paira em torno dela reside somente em ainda estarmos longe de compreender integralmente de que forma ela acontece. O livro do Gênese não precisa (nem deve) ser lido literalmente - trata-se de uma alegoria, e, também, de uma explicação adaptada à compreensão das pessoas da época. Não há nada de intrinsecamente anti-religioso em aceitar a noção de que a natureza segue seu curso, submetida a determinadas leis - uma das quais é a da evolução, que determina que as espécies vivas se transformem, ao longo de milhares ou milhões de anos, a fim de melhorar suas chances de sobrevivência dentro das condições impostas pelo ambiente. Tal noção nada tem de incompatível com a crença em Deus: conforme a expressão extraordinariamente feliz empregada por McGrath, "Deus deu corda ao relógio e, então, deixou-o trabalhar por si". A atitude de certas correntes religiosas (ou, talvez, nem isso: a de alguns indivíduos dentro delas), sim, é anticientífica ao usar a crença como uma fonte de respostas fáceis: quando defrontadas com qualquer mistério ou indagação relacionada a algum fenômeno da natureza, essas pessoas simplesmente declaram que "isso é assim porque Deus quer que seja assim e pronto". Esse tipo de atitude me enoja e revolta. Ninguém agrada a Deus sendo burro, e menos ainda usando o nome d'Ele como desculpa esfarrapada para a própria preguiça de pensar. O que Dawkins faz, infelizmente, é fechar os olhos ao fato de que só alguns extremistas e fanáticos agem dessa forma: a fim de tentar dar consistência a seus argumentos, ele finge acreditar que toda e qualquer pessoa religiosa usa necessariamente sua crença como um álibi para a ignorância voluntária, e que, portanto, fé é incompatível com ciência. Ele se empenha para vender sua idéia de que o verdadeiro cientista deve ser ateu - e, para vendê-la, está disposto a fazer o que for necessário, inclusive manipular informações. Nas palavras de McGrath, "um dos traços mais característicos da polêmica anti-religiosa de Dawkins é apresentar o patológico como o normal, o extremo como o centro, o excêntrico como o padrão. Isso em geral funciona bem para o seu público, que supostamente pouco conhece de religião e, com muita probabilidade, menos ainda se importe com ela. O que, no entanto, não é aceitável nem científico."

E, de fato, nota-se que muitas vezes Dawkins torna-se o que poderíamos chamar um "cego guiando cegos", pois não consegue ocultar que desconhece a coisa que está atacando. Ao contrário de outros autores ateus, como Christopher Hitchens, que pelo menos sabe do que está falando, o autor de Deus: um Delírio mostra-se deploravelmente ignorante em matéria de cultura religiosa. Por tal razão, o maior efeito que seu trabalho atual alcança é o de perpetuar preconceitos - coisa que, a meu ver, deveria estar abaixo da dignidade de qualquer pessoa que se pretenda um cientista. Pintando todos os cristãos - aliás, todos os adeptos de qualquer religião - como fanáticos pervertidos e auto-iludidos, Dawkins age como os homens que o imperador Nero mandava infiltrarem-se pelos mercados e tavernas de Roma, para espalhar rumores de que os cristãos praticavam incesto e canibalismo em suas reuniões secretas - tudo para preparar a opinião pública para uma perseguição em massa contra essa estranha seita. Contra os pontos levantados por Hitchens, é possível ter uma discussão decente; quanto a Dawkins, tudo o que se pode fazer é desejar que ele fosse menos obtuso e tendencioso.

"A visão dawkinsiana da realidade", escreve McGrath, "é uma imagem invertida da concepção encontrada em algumas das seções mais exóticas do fundamentalismo americano". Outra frase certeira. Talvez a coisa mais surpreendente na argumentação de Dawkins, e na visão de mundo por trás dela, seja perceber o quanto ele se tornou dogmático em seu próprio antidogmatismo. Acusa os religiosos de serem "imunes a qualquer argumentação" e de teimarem em manter suas crenças "a despeito da ausência de qualquer evidência - e até mesmo contra ela", mas não parece se dar conta de que faz as mesmas coisas de que acusa os outros. A mim parece que fanatismo algum pode ser bom - não importa que seja fanatismo teísta ou ateísta. Não admira que nem mesmo a maioria dos cientistas que são ateus simpatizem com Dawkins e muito menos queiram ter seus nomes associados, de qualquer forma que seja, ao dele: não se pode querer que um sistema de idéias seja levado a sério, quando alguém que se diz seu representante parece querer que todos os que pensam diferente sejam queimados na fogueira. McGrath menciona que "um respeitável cientista ateu, colega em Oxford, me pediu (...): 'Não julgue todos nós por essa conversa fiada pseudo-intelectual'". Outro cientista, Michael Ruse, igualmente ateu, registrou, e McGrath relata: "Quando João Paulo II escreveu uma carta endossando o darwinismo, a resposta de Richard Dawkins foi simplesmente dizer que o papa era hipócrita, que ele não podia falar genuinamente sobre a ciência e que o próprio Dawkins preferiria um fundamentalista honesto." Evidentemente que preferiria: isso lhe daria excelente motivo para lançar mais farpas contra a Igreja Católica e, por extensão, contra o cristianismo em geral, acusando-o de ser anti-ciência. E, claro, pela ótica de Dawkins, qualquer religioso que se declare favorável à ciência está sendo "hipócrita"...

Não há dúvida de que o mundo estaria melhor sem o fundamentalismo religioso - mas será que seria vantagem substituí-lo pelo fundamentalismo ateu de Dawkins? É realmente digno de lástima que um cientista de tanto mérito se empenhe hoje nesse tipo de "cruzada anti-Deus", ao invés de devotar sua energia e entusiasmo ao progresso e à divulgação da ciência, como fez durante tanto tempo, mas talvez não haja muito o que fazer além de ter esperanças de que Dawkins acabe vendo a luz - não uma luz divina, já que despreza tal idéia (e tem todo o direito de fazê-lo), mas a luz da razão, essa mesma razão que ele tanto defende com palavras e da qual tanto se desvia com suas atitudes.

sábado, março 07, 2009

Alexandre Nevsky

Hoje, finalmente, consegui ver um filme sobre o qual andava curioso há anos. Datado de 1938 e dirigido por Sergei Eisenstein – um dos poucos cineastas da União Soviética a terem feito alguma fama no ocidente, ainda que não toda a que teria merecido –, Alexandre Nevsky é obviamente uma peça de propaganda ideológica, mas trata-se de um daqueles raros exemplares dessa categoria que se mostram capazes de sobreviver ao seu momento histórico e até mesmo ao regime que os produziu, continuando a ser admirados pelas gerações seguintes, por seu valor artístico intrínseco.

O filme trata de um momento-chave da história russa. Em meados do século XIII, a Rússia, que já sofria com repetidas tentativas de invasão por parte dos tártaros ao leste, passa a conviver com outra ameaça, oriunda das pretensões expansionistas do Império Germânico. O exército alemão é encabeçado pelos célebres e temidos cavaleiros teutônicos, cujo característico manto branco adornado por uma cruz negra aparece no filme como um símbolo do Mal. Depois de diversas cidades russas terem se rendido ao invasor, os cidadãos de Novgorod enviam uma mensagem a Alexandre, príncipe de Pereslavl, pedindo que os lidere numa tentativa de resistência. Alexandre, nessa época, tinha apenas 22 anos de idade, mas já gozava de certa fama por ter derrotado os suecos na batalha do rio Neva, em 1240 – episódio que lhe valeu o apelido de Nevsky.

O enredo do filme é simples, sem grandes tortuosidades, e os fãs de épicos recentes como Coração Valente ou Gladiador devem ter em mente que, num filme produzido na Rússia e em 1938, não podem esperar ver batalhas hiper-realistas de encher os olhos como as mostradas nesses filmes; sem a ajuda de efeitos especiais ou outros recursos modernos, os atores precisavam ter muito cuidado, pois mesmo as armas cenográficas utilizadas eram capazes de causar danos sérios, e em vários momentos ao longo do filme essa precaução fica patente nas imagens – ou seja, as cenas de batalha não são espetaculares. O que seduz em Alexandre Nevsky é a solenidade quase exagerada com que celebra o amor à pátria, num momento em que a Rússia se preparava para encarar o que talvez tenha sido a maior provação de sua história: toda pessoa bem informada já estava ciente de que a Alemanha de Hitler se preparava para a guerra, e de que a União Soviética seria um de seus alvos principais, de modo que a história se repetiria. Trabalhando sob a chancela do governo soviético, Eisenstein fez deste filme um apelo para que todo cidadão russo se espelhasse no exemplo do herói semilendário para fazer sua parte no esforço de resistência durante a guerra prestes a estourar. Em vez do Niemetz, o cavaleiro teutônico, a Rússia encararia agora um inimigo ainda mais impiedoso, o nazismo; não cabem aqui considerações sobre o fato de o regime comunista soviético nada ter ficado a dever à Alemanha nazista no quesito assassinato em massa, como se sabe.


É curioso observar como a História dá voltas, e esse é um dos exemplos mais notáveis que conheço. Apenas um ano após o lançamento do filme, ele foi tirado de circulação porque o líder Josef Stalin (1878-1953) havia celebrado um pacto de não-agressão com as potências do Eixo. Ou seja, o inimigo de há pouco era agora um aliado... Mas não por muito tempo, pois em 1941 o pacto foi rompido e os exércitos do Eixo invadiram a União Soviética. A resistência ao agressor germânico voltou a estar na ordem do dia.

E parece que Santo Alexandre Nevsky (sim, ele foi canonizado em 1547 pela Igreja Ortodoxa, e mais tarde reconhecido também pela Igreja Católica) estava de fato olhando por seus compatriotas e animando-os, pois a obstinada resistência dos russos quebrou as pernas do poderoso exército do Reich 
– com alguma ajuda do clima: a exemplo do que acontecera com Napoleão um século e meio antes, também Hitler viu seus planos serem arruinados pela intervenção do "general Inverno". Sem esquecer que o contra-ataque soviético também foi essencial para a vitória dos Aliados, já que foi o exército russo que tomou Berlim em 1945, sepultando de vez as esperanças alemãs de vitória na Segunda Guerra Mundial.

Engraçado eu ter mencionado o fato de Alexandre ter sido canonizado pela Igreja Ortodoxa, pois esse era um lado do personagem que o "patrão" de Eisenstein – o governo soviético dos anos 30 –, com certeza não desejava ver enfatizado: o regime comunista era oficialmente ateu. De fato, em Alexandre Nevsky a Igreja Ortodoxa (religião majoritária na Rússia, e que manteve milhões de devotos fiéis, mesmo tendo ficado na clandestinidade por 80 anos) é "diplomaticamente" deixada de fora: os religiosos que aparecem são representantes da Igreja Católica e são apenas a cereja do bolo de crueldade preparado pelos Teutônicos, abençoando a matança de camponeses pacíficos e outros atos de brutalidade. Para o governo comunista, o ideal seria colocar toda e qualquer forma de religião ou crença no sobrenatural num mesmo e ignominioso cesto, pintando Deus como uma superstição anacrônica que seria melhor abolir de vez – mas ele deve ter percebido que, atacando a Igreja Ortodoxa, seria difícil ganhar a simpatia de muitos russos para a mensagem trazida pelo filme, pois grande parte da população continuava a ser fortemente religiosa, mesmo sendo obrigada a cultivar sua fé às escondidas
. Assim, o governo contentou-se em demonizar a Igreja Católica, que, mesmo antes da Revolução de 1917, tinha poucos fiéis no país e parecia uma coisa "distante". Pode-se considerar isso como uma concessão.


Além disso, traços (na verdade, "traços" dá a idéia de algo demasiado sutil, mas não encontro palavra melhor) do comunismo e sua visão das coisas aparecem ao longo de todo o filme: Alexandre, embora seja um príncipe, trabalha ombro a ombro com seus súditos mais humildes, pescando no lago Plestcheveio; quando ele chega a Novgorod, é recebido como herói salvador pelo povo humilde, mas repudiado pelos ricos, que de bom grado entregariam seu país aos invasores se a margem de lucro fosse suficientemente alta; durante a preparação para a guerra, um velho ferreiro doa todas as armas e armaduras que tem em sua oficina pelo bem da causa; dois guerreiros russos, Vassili e Gavrilo, que no começo são rivais pelo amor de uma mesma jovem, abraçam-se fraternalmente antes de entrarem em combate com os alemães – ou seja, o interesse da Mãe Pátria deve passar por cima de diferenças pessoais. Não há sutileza: o filme é uma obra fortemente ideológica e não faz nenhuma tentativa de ocultar isso. A própria música, por vezes exótica para ouvidos ocidentais, é claramente feita para mexer com as emoções, e em vários momentos acaba por causar uma reação empolgada no espectador, mesmo a contragosto: uma vontade de pegar uma lança e ir ajudar Alexandre e seus seguidores a expulsar o invasor.

Mesmo com todo o doutrinarismo político existente por trás de sua criação, Alexandre Nevsky ainda é um filme interessante. A história fascina por tratar de uma das infindáveis facetas da eterna questão do heroísmo, além de falar sobre esforço e superação, de modo que sempre terá o que ensinar a pessoas de qualquer lugar ou época.

Uma curiosidade: numa pesquisa realizada no ano passado por um jornal russo, apurou-se que, para a maioria da população do país, Alexandre Nevsky ainda é a personalidade mais importante de sua história, superando por uma boa margem os próprios Lenin e Stalin (!). Seria isso um sinal de que os russos não têm vergonha de reconhecer sua necessidade de ter heróis? E nós?...