quinta-feira, setembro 30, 2010

A Águia da Nona

Séculos de luta - Décadas de guerra ficaram para trás.
Inúmeros foram os homens que derrotamos.
Mas agora, meus irmãos, temos de enfrentar
Um inimigo mais valente que todos os outros.
A mão direita de Roma, o martelo da Espanha
A Nona Legião...


* * *

Esses versos são parte de uma música da banda alemã Suidakra, de seu álbum Caledonia (2006). Quem os conhece já sabe da fascinação que têm por histórias arturianas, mas nesse disco suas viagens líricas vão mais fundo no passado da Bretanha, até os dias da ocupação romana. E talvez tenham até se inspirado, pelo menos em parte, neste e em outros romances da autora inglesa Rosemary Sutcliff. Sei que já tinha lido o nome dela em algum lugar - pensei que pudesse ter sido na parte final do manual de RPG GURPS Império Romano, onde o autor dá inúmeras sugestões de livros, filmes e outras fontes de inspiração para a criação de aventuras, mas, por mais que procurasse, não achei menção a Sutcliff lá. Em todo caso, ao topar com este livro, o nome e o título imediatamente fizeram "tocar um sino" na memória, de modo que o interesse foi automático. E não me arrependi.

Caledônia é o nome que os romanos davam à Escócia, terra que desistiram de conquistar no século II, sob o imperador Adriano. Antes, durante o último quarto do século I, o célebre general Cneu Júlio Agrícola chegara a obter consideráveis sucessos no esforço de conquista, de modo que toda a parte do país ao sul do Firth of Forth (o estuário do rio Forth, o "grande braço de mar", como diz Sutcliff, que pode ser visto no mapa, quase separando as metades norte e sul da Escócia) veio a ser uma província romana, com o nome de Valentia (pronuncia-se Valência, curiosamente o mesmo nome da capital romana da Espanha; não sei o porquê da homonímia). Mais tarde, Adriano, que era contra a política de "conquista pela conquista" de alguns de seus predecessores, determinou o abandono de Valentia, cuja manutenção estava tendo um custo alto tanto em recursos quanto em vidas. Ordenou, então, a construção da muralha que levou seu nome e marcou, grosso modo, o que até hoje é a fronteira da Inglaterra com a Escócia. A Muralha visava proteger a província romana da Bretanha contra os ataques dos povos do norte - os pictos (do latim picti, "pintados"), um povo semisselvagem, e os escotos, um ramo dos celtas que, ao contrário de outras tribos, continuava quase intocado pela cultura romana e ferozmente obstinado em sua recusa em fazer parte do Império. E o isolamento propiciado pela construção da Muralha só fez aumentar a percepção que os habitantes da parte da ilha ao sul dela - o povo formado pela miscigenação de celtas e romanos que, aos poucos, passou a ser conhecido como bretão - tinham das terras do norte como um lugar misterioso, envolto em névoa, e não apenas a névoa natural. De acordo com Sutcliff, a Legio IX Hispana (a Nona Legião Espanhola) teria marchado para o norte a fim de dominar a insurreição de uma tribo na fronteira, e desaparecido - nenhum soldado retornou e ninguém mais teve notícias dela. Não há comprovação de que tal fato tenha realmente ocorrido, mas isto é um romance histórico, que, antes de ser histórico, é romance, ou seja, ficção; mais importante que a fidelidade férrea aos fatos é que haja uma boa história (sem H maiúsculo), e isso o livro oferece.

Só como curiosidade, a Nona Legião pode ter sido recrutada por Pompeu na própria Espanha por volta de 65 a.C., ou por Júlio César, na Gália, sete anos depois - os defensores da segunda hipótese apontam que ela só ganhou o epíteto de "Hispana" décadas mais tarde, por sua valente participação numa campanha contra certas tribos espanholas, durante a década de 20 a.C. Entre outros momentos-chave da história militar romana, a Nona apoiou César na primeira guerra civil e Augusto na segunda, tendo participado das célebres batalhas de Farsalos e Actium, e, depois, da segunda invasão da Bretanha, sob o imperador Cláudio, em 43 d.C. E na Bretanha a Nona permaneceu estacionada, como parte das forças de ocupação, durante os próximos cerca de 80 anos; depois de 120, deixa de haver registros sobre ela. Alguns indícios sugerem que tenha sido transferida para a Germânia, e lá tenha presumivelmente sido destruída num de vários confrontos com as tribos do Reno, os soldados sobreviventes incorporados a outras unidades e seu número excluído do ranqueamento oficial das legiões imperiais. Mas isso é apenas especulação.

É possível que, quando Rosemary Sutcliff escreveu seu livro, em meados do século XX, houvesse ainda menos informações históricas e arqueológicas disponíveis a respeito do possível destino da Nona Legião do que hoje - e, como sabiamente escreveu C. C. Humphreys, é precisamente nas lacunas que o romancista histórico encontra espaço para trabalhar. De modo que Sutcliff sentiu-se livre para adotar a versão de que a Nona teria desaparecido em direção ao norte. O protagonista do livro é Marcus Flavius Aquila (a autora não lhe deu o sobrenome "Águia" por acaso), um jovem centurião que recebe como primeira missão de comando levar uma coorte de auxiliares gauleses até uma pequena fortaleza nos arredores da cidade de Isca Dumnoniorum, no sul da Bretanha, e, chegando lá, assumir o comando do forte. Marcus vem de uma família de longa tradição militar, e é filho de um dos oficiais desaparecidos da Nona. Além de toda a empolgação de início de carreira, o fato de ter sido enviado justamente à Bretanha faz com que não consiga deixar de ter uma pequena esperança de, de alguma forma, talvez descobrir algo sobre o destino do pai. Porém, suas expectativas pouco duram: está há poucas semanas em seu posto quando estoura a rebelião de uma tribo local. Durante a batalha, num ato tão heroico quanto doido, o jovem oficial ataca a pé uma carruagem de guerra bretã na tentativa de salvar um grupo de seus companheiros. Uma de suas pernas fica praticamente moída, mas, contra toda a expectativa - inclusive a sua própria -, Marcus sobrevive.

Como tem pela frente pelo menos um ano de convalescença, e mancará pelo resto da vida, isso representa o fim de sua carreira militar - a carreira com a qual sonhava desde criança e a única na qual já se imaginara. Marcus vai então para a casa de um tio, também reformado do exército, em Calleva, para recuperar-se. É lá que, já refeito do ferimento, ouve de um oficial amigo do tio certos rumores que o inquietam: os bárbaros do extremo norte da ilha teriam em seu poder uma águia romana, que tudo indica ser a mesma que desapareceu com a Nona Legião.

É de se imaginar que a maioria dos leitores modernos não tenha a exata dimensão do que significava o estandarte da águia para um soldado romano. Tratava-se do símbolo máximo da honra de sua legião. Como o próprio Marcus explica no livro, mesmo que só reste um punhado de soldados, se a águia estiver com eles a legião ainda existirá; se a águia for perdida, a legião acaba. Esperava-se de um bom legionário que morresse antes de permitir que inimigos se aproximassem da águia. Carregá-la durante a batalha era uma grande honra, e perdê-la, uma desgraça. Há poucos registros de casos em que a águia efetivamente caiu em mãos inimigas; em diversos deles, o portador do estandarte preferiu suicidar-se ainda no campo de batalha a ter que se apresentar diante de seu comandante e dizer que perdera a águia.

E Marcus, mesmo não estando mais na ativa, não deixou de ser um soldado em sua essência. A Nona foi a legião de seu pai, o que torna a história toda uma questão profundamente pessoal para ele, que decide então arriscar-se numa louca aventura pela Caledônia, acompanhado apenas por seu escravo pessoal, o ex-gladiador Esca Mac Cunoval, para tentar recuperar a águia, resgatar a honra de seu pai e, quem sabe, conseguir que a legião seja reconstituída. Será uma viagem perigosa e talvez sem volta, por uma terra selvagem habitada por um povo orgulhoso que odeia os romanos (embora os admire como guerreiros), mas abrirá os olhos de Marcus para uma visão diferente da vida, através do contato com uma gente que vive segundo um ritmo diferente, mais próximo da natureza. Há inclusive a narração de uma cerimônia religiosa realizada pelos nativos em honra ao Chifrudo, o grande deus da natureza, à qual Marcus, sendo um adorador de Mitra - deus de origem persa que havia se tornado muito popular entre os soldados das legiões romanas na época -, assiste com o distanciamento que lhe é possível, sem conseguir evitar que emoções estranhas aflorem diante do mistério. Mas talvez o encantamento que faz de A Águia da Nona um livro que prende, seja o seu aspecto mais humano: a relação entre Marcus e Esca, que passam gradualmente a se ver e tratar como iguais - não mais senhor e escravo, mas amigos, unidos por uma lealdade que passa por cima de ódios ancestrais e diferenças de cultura. Marcus representa o que de melhor a civilização romana tinha: sua determinação a seus objetivos, a fidelidade inflexível a seus princípios e valores, o apego à honra e à família, e um olhar esclarecido, capaz de ser tolerante para com as diferenças. Esca, por sua vez, lembra muito a imagem estereotipada, mas sempre simpática, do "bom selvagem", chegando a se parecer com os heroicos guerreiros indígenas de romances como O Último dos Moicanos: um braço forte e um coração fiel, fala pouco, mas quando o faz, é com toques poéticos e uma sabedoria simples e certeira - que romanos mais arrogantes, como um ou dois personagens do livro, talvez desprezassem, mas que Marcus respeita e leva em grande consideração.

Uma observação para finalizar: na segunda orelha do livro, lê-se que "adaptado para o cinema pelo diretor Kevin Macdonald, o mesmo de O Último Rei da Escócia (...), A Águia da Nona promete arrebatar o público de todo o mundo." Ahhhh! Eu estava mesmo estranhando que um livro publicado pela primeira vez há mais de 50 anos, e para o qual as editoras brasileiras nunca deram pelota em todo esse tempo, fosse lançado por estas bandas justamente agora, assim no más, como dizemos aqui no Rio Grande do Sul. Não dá para a gente não se aborrecer ao constatar que para que nós, brasileiros, possamos ter acesso a uma joia como esta, primeiro é preciso esperar que Hollywood a descubra. Resta esperar que o filme não repita o fiasco de A Última Legião, que transformou o belo romance de Valerio Massimo Manfredi na abobrinha que se viu nas telas.