segunda-feira, abril 11, 2011

O Chamado de Cthulhu

O poeta português Fernando Pessoa costumava dizer de si próprio que, sozinho, era uma inteira literatura, declaração imodesta, talvez, mas, sem dúvida, verdadeira. Há outros poucos autores (de diferentes lugares, épocas e gêneros) aos quais essa sentença também se aplica. São autores cujo conjunto da obra forma algo tão grandioso, impressionante e complexo, que acaba por influenciar gerações inteiras de outros escritores e, de certa forma, construir lendas.

Um desses autores foi o norte-americano Howard Phillips Lovecraft (1890-1937), criador do ciclo de horror e fantasia que hoje milhares de fãs espalhados pelo mundo conhecem como "os Mitos de Cthulhu". Pouco dado ao convívio social e com a saúde sempre frágil, Lovecraft teve uma vida reclusa e uma história familiar bastante tumultuada, fato que se estendeu para seu casamento, que durou apenas dois anos. Ao separar-se, retornou a sua cidade natal, Providence, no estado americano de Rhode Island, e foi morar com duas velhas tias. Foi a partir dessa época (aproximadamente 1926) que Lovecraft começou a produzir as obras que lhe dariam fama – fama essa que chegou tarde demais para o escritor: ao morrer, embora tivesse tido muitos contos e artigos impressos em revistas, só tivera um único livro publicado (numa edição tosca e de tiragem minúscula) e alcançara pouca coisa em matéria de retorno financeiro ou fama. Em resumo, Lovecraft morreu achando-se um fracasso, sem ter ideia do grau de importância que sua obra chegaria a ter.

Este pequeno livro que acabo de ler é o primeiro volume da série Os Mitos de Cthulhu, publicada alguns anos atrás pela editora Campanário e dedicada exclusivamente a reunir os contos que fazem parte desse ciclo, deixando de fora outros trabalhos com focos diferentes. O curioso é que nem sempre é fácil separar, dentro da obra de Lovecraft, o que faz e o que não faz parte dos Mitos: o livro O Chamado de Cthulhu, por exemplo, traz o conto que lhe dá título e é considerado por estudiosos e fãs como a pedra angular dos Mitos de Cthulhu, e também A Cor que Veio do Espaço, que não parece ter qualquer ligação direta com o ciclo, pois fala da queda de um meteoro com propriedades estranhas numa pequena fazenda da Nova Inglaterra, trazendo pavorosas mutações às plantas e aos animais, e causando loucura nos seres humanos.

Os Mitos de Cthulhu estão baseados numa concepção profundamente pessimista do universo, que vê a espécie humana como uma criação insignificante, acidental e transitória, numa esfera de existência cuja vastidão e antiguidade são suficientes para destruir a sanidade de uma pessoa que delas tome conhecimento. Os Mitos são estruturados em torno dos assim chamados Grandes Antigos, gigantescos deuses-monstros alienígenas que teriam chegado à Terra, vindos de constelações distantes, milhões de anos atrás. Quando Lovecraft dizia que os Grandes Antigos eram gigantescos, queria dizer gigantescos mesmo, com quilômetros de altura, para não mencionar poderes de diversos tipos, que pareceriam mágicos  ou divinos – aos olhos humanos. O rei deles era o Grande Cthulhu, figura central de um culto sinistro que existiria secretamente há milhares de anos, e cujos integrantes acreditam que Cthulhu e seus súditos jazem adormecidos  de certa forma, mortos, mas não permanentemente  em suas fabulosas cidades de pedra, erigidas em eras desconhecidas pela humanidade e hoje ocultas nas profundezas da terra ou dos mares. A explicação disso é que, apesar de todo o seu poder, os Grandes Antigos também teriam seus limites e estariam submetidos a certas leis; por exemplo, só poderiam viver e mover-se quando a configuração das estrelas fosse propícia a isso. Quando assim não fosse, teriam de permanecer "mortos" durante eras inteiras, aguardando que os astros novamente se posicionassem da forma correta, para então ressurgirem. Toda a história da humanidade  aliás, quase toda a história da vida na Terra  estaria compreendida num desses períodos de latência dos Grandes Antigos. Período esse que estaria agora se aproximando do fim...



Apesar da dificuldade que tinha em se relacionar com as pessoas comuns à sua volta, Lovecraft tinha seus amigos, muitos dos quais nunca viu pessoalmente, mantendo contato somente por cartas. Amigos de peso, é bom que se diga: entre eles estavam escritores do calibre de Robert E. Howard (o criador de Conan), Clark Ashton Smith, August Derleth, Frank Belknap Long, entre outros. Como seria de se esperar, o assunto forte na extensa correspondência mantida entre esse grupo era a literatura, quase sempre a literatura fantástica da qual, cada um no seu estilo, todos se ocupavam. E, talvez por sugestão do próprio Lovecraft, vários deles passaram a incluir em suas histórias algumas sutis menções a elementos da obra dos outros, o que criava nos leitores uma sensação de realidade. Afinal, se vários autores falam de uma coisa, ela deve ter alguma base em fatos... não? O caso mais extremo disso foi o Necronomicon, o "Livro dos Nomes Mortos", um grimório fictício, inventado por Lovecraft e que, segundo ele, conteria a maior parte da informação conhecida sobre os Grandes Antigos, além de outros conhecimentos ocultos, rituais sinistros e por aí afora. O livro teria sido escrito na Idade Média por Abdul Al-Hazred, um poeta árabe louco, passando de mão em mão entre estudiosos de ocultismo durante os séculos seguintes; no século XX, restariam pouquíssimos exemplares. Mais de um dos amigos escritores de Lovecraft também mencionou o Necronomicon em seus contos, e escritores posteriores continuaram e continuam a fazê-lo como uma forma de homenagem ao autor (Stephen King cita-o no conto Sei do que Você Precisa, que pode ser lido na coletânea Sombras da Noite). A coisa alcançou tais proporções, que hoje em dia não é difícil encontrar quem acredite que o Necronomicon realmente exista!...


Em O Chamado de Cthulhu, Lovecraft escreveu que os Grandes Antigos comunicam-se com a humanidade através de emanações telepáticas e principalmente de sonhos, e dessa forma instituíram seu culto, fonte direta ou indireta de todo o conhecimento que temos sobre eles. E as pessoas mais sensíveis ao chamado de Cthulhu seriam os artistas e os loucos  não foi à toa que Al-Hazred, que era as duas coisas, acabou tornando-se o profeta involuntário desse culto grotesco. Por acaso ou não, também no mundo real parece que artistas de diferentes campos têm uma particular facilidade em "ouvir o chamado", pois sentem uma atração toda especial pelo universo bizarro e aterrador de Lovecraft, o que resulta na existência de uma atordoante fartura de interpretações visuais de sua obra. Tirem a prova: basta ir ao Google, selecionar Busca Avançada de Imagens, e digitar "Cthulhu". Tem de tudo, até (acreditem!) fotos de Cthulhus de pelúcia. Só da "estatueta obscena" reverenciada pelos cultistas e descrita em O Chamado de Cthulhu, existem cinco ou seis versões. Quando fui procurar ilustrações para este post, a dificuldade foi escolher, e tanto foi assim que acabei colocando três, sem contar a imagem da capa do livro  muito mais do que costumo.

Por enquanto, minha intimidade com o universo de Lovecraft não é grande: além deste livrinho, li apenas o volume de contos Nas Montanhas da Loucura, que faz parte da coleção das obras do autor publicada pela editora Iluminuras, bem mais fácil de achar em livrarias que as edições da Campanário, e com a vantagem de que cada livro traz uma quantidade bem maior de material. A história que dá nome a esse livro é uma das mais longas escritas por Lovecraft e trata da aventura de um grupo de cientistas que descobrem nos confins da Antártica uma cidade construída em priscas eras por seres não-humanos  estes são chamados apenas de "os Antigos", sem o "Grandes", e eram criaturas de um nível mais prosaico, o que, em se tratando de Lovecraft, significa apenas que não eram divindades monstruosas, pois, de resto, nada tinham de convencional, qualquer que seja o prisma por onde se olhe: eram seres indefiníveis, com características de animal e de vegetal ao mesmo tempo, que se reproduziam por meio de esporos e podiam viver tanto em terra firme como no fundo do mar. De qualquer forma, o personagem-narrador chega a ter um momento de simpatia para com eles ao admitir que, qualquer coisa que fossem, eram os seres sencientes que existiam na época, e, portanto, eram os "homens" de então. Esse conto, embora provoque lá os seus calafrios, tem como principal atrativo a descrição pormenorizada e incrivelmente imaginosa da civilização dos Antigos.

Quem já leu Lovecraft deve ter notado que, em que pese sua vasta erudição e consideráveis conhecimentos científicos, ele tinha certas ideias, para dizer o mínimo, "discutíveis", era misantropo e racista, mas é preciso dar um desconto lembrando a época e o lugar onde ele viveu, a educação que teve e as experiências amargas que pautaram a maior parte de sua vida. Não é preciso admirá-lo como pessoa para desfrutar a experiência única de mergulhar em seu espantoso universo, imaginado com fabulosa criatividade e descrito com um talento literário inegável.

Para terminar, acho uma boa ideia sublinhar que a coleção de Lovecraft publicada pela Iluminuras inclui, além de sua produção de ficção, uma caprichada edição do ensaio O Horror Sobrenatural na Literatura, obra de referência sobre a qual já falei mais de uma vez aqui no blog (confiram aqui e aqui).