quarta-feira, junho 29, 2011

Uma Paixão por Cultura

Como é a trajetória de uma pessoa que "acorda" para o mundo da cultura? Que um belo dia (ou gradualmente, ao longo do tempo) percebe que há mais na vida que cerveja, futebol e música pop de FM? Essa é uma metamorfose, infelizmente, rara, mas, sim, é possível: já testemunhei um caso ou dois. E é um testemunho desse tipo que Carlos Eduardo Paletta Guedes nos oferece neste livro extremamente interessante e (não muito) disfarçadamente autobiográfico.

O protagonista Fábio é um jovem comum no sentido mais comum do termo, do tipo que cada um de vocês deve conhecer pelo menos uma dúzia: com cerca de 30 anos, carreira profissional começando a decolar, vai levando sua vida do modo óbvio. Torce por seu time, trabalha, namora, sai, e ignora a existência de coisas como poesia, filosofia, artes plásticas, teatro ou música clássica. Livros, só os de Direito, sua área profissional, e nada mais. E, como a dúzia de caras parecidos que todos nós conhecemos, sente-se cômodo e satisfeito dessa forma. Embora seu melhor amigo, Felipe Marco, o "Turco", seja um professor universitário e muito culto, a amizade dos dois parece ser do tipo "cada um no seu quadrado": nada que agite a superfície do lago plácido (um lago que só tem mesmo superfície...) que é a vida de Fábio.

Nosso herói começa a sentir que algo está faltando quando sua namorada de três anos, Maria Lúcia, larga-o, sob a alegação de que ele não preenche os anseios intelectuais dela - aliás, tive que rir ao ler o trecho onde Fábio diz que M.L., como ele a chama, decidiu começar a tratá-lo como intelectualmente inferior depois de ler um livro de filosofia para adolescentes: não consegui deixar de ter a forte impressão de que ele só não citou o título (O Mundo de Sofia, é claro) para não ferir suscetibilidades. É então que, vendo como o amigo anda "pra baixo" desde o fim da relação, Turco, na intenção de distraí-lo um pouco, convida-o para uma festa que dará em sua casa, apenas para alguns alunos que são membros de um grupo de estudos que ele dirige. Fábio não se anima muito, imaginando, com alguma razão, que sua pouca bagagem e quase nenhum interesse cultural fará dele um peixe fora d'água nessa reunião, mas, mesmo assim, acaba indo. E é lá que, numa dessas surpresas que o destino nos arma, ele conhece a mulher de sua vida: uma estudante de Jornalismo, a linda e inteligentíssima Thaís.

Apaixonado e determinado a ganhar a gata de qualquer maneira, Fábio começa imediatamente a representar para ela o papel de um homem culto, sensível, conhecedor e admirador da arte em todas as suas manifestações - algo muito distante de seu verdadeiro perfil. E, como Thaís é uma dessas mulheres uma-em-um-milhão que não vão adiante com um homem se ele não demonstrar inteligência (pois, verdade seja dita, a imensa maioria não liga a mínima para isso - como a maioria dos homens também não, sejamos justos), Fábio tem pela frente um verdadeiro trabalho de Hércules... Ou melhor, os doze de uma vez. Sob a orientação do amigo Turco, começa a toque de caixa a tentar assimilar conhecimentos sobre música (não o pop-rock a que estava acostumado, e sim figuras como Bach, Mozart e companhia), cinema (nada de Duro de Matar e congêneres: aqui o papo é filme de arte europeu) e outras formas de expressão que não tinha o costume de prestigiar nem sequer em suas manifestações mais triviais, como literatura e pintura. E, para sua própria surpresa, começa a perceber-se envolvido e fascinado pelo universo da arte e da beleza, a sentir um interesse genuíno por tudo de grandioso que o gênio humano já produziu. De tal forma que, mesmo quando suas chances de ficar ao lado de Thaís parecem ter-se reduzido a zero, ele não abandona seus esforços para adquirir cultura: sem perceber, Fábio aprendeu a lição mais importante de todas, a de que cultivar o próprio intelecto e sensibilidade é algo que deve fazer por si mesmo, e não para agradar seja a quem for. Aos poucos, ele se dá conta de que não está mais fingindo.

A história de amor de Fábio e Thaís é um fio condutor criativo para introduzir o leitor ao universo da alta cultura: entremeadas na história há ótimas listas de sugestões para quem deseja se iniciar na música clássica, no cinema "cabeça" e na literatura (se bem que nesse último campo eu apontaria uma lacuna: a lista dos livros essenciais não inclui nenhum clássico da Antiguidade), e também instigantes discussões sobre o papel da cultura na sociedade e na vida do indivíduo. Há pontos onde concordo e outros onde não concordo - o que é ótimo: que valor teria um debate onde todo mundo pensasse igual? Por exemplo, não concordo com o personagem (um professor palestrante) que, embora fazendo apologia à cultura e ao conhecimento, reconhece que "ler não faz de ninguém um ser humano melhor. O filósofo Francis Bacon, por exemplo, casou por interesse e morreu com 65 anos, devendo mais de 20 mil libras esterlinas (...). Tenho certeza que (sic) ele leu tudo o que havia de mais profundo e sábio". Eu digo que sim, ler faz de nós pessoas melhores; talvez não no aspecto moral ou ético, mas nos enriquece, abre nossa mente, faz-nos capazes de ter visões diferentes, livres dos antolhos que limitam o olhar das pessoas comuns, torna-nos mais sábios, mais capazes de conviver com as diferenças e com situações de incerteza. Leonardo da Vinci falava do sfumato (literalmente, "enfumaçado"), nome de uma técnica usada em pintura para dar aos objetos contornos imprecisos, como se vistos através de uma névoa; Leonardo e seus seguidores (incluo-me, ainda que correndo o risco de parecer pretensioso) também usavam, usam isso como uma metáfora para a capacidade de lidar com ideias e situações onde não são possíveis regras rígidas, onde nada é muito claro, onde a incerteza faz parte da própria essência das coisas. E, a menos que me engane, pessoas que leem mais e, por consequência, sabem mais, estão bem mais preparadas para isso. Pessoas incultas tendem a ver o mundo em apenas duas cores.

O cientista espanhol Santiago Ramon y Cajal dizia que cada pessoa pode ser escultora do próprio cérebro, caso realmente se proponha a isso, e essa frase seria um excelente resumo para a temática de Uma Paixão por Cultura, mas, como Turco não deixa de alertar Fábio, quem opta por se tornar culto está, ao mesmo tempo, abraçando uma existência essencialmente solitária. Por mais democrático que seja (e por mais conflitos que evite) dizer que "gosto não se discute", fica bem mais difícil continuar concordando com essa velha máxima quando se está andando pela rua e passa ao nosso lado um carro repleto de alto-falantes berrando o último sucesso do funk carioca a 240 decibéis... O fato é que a vasta maioria das pessoas nunca vai compreender o que existe de fascinante numa boa peça de teatro, nem experimentar aquela sensação de ter um balão inflando no peito ao ouvir um concerto de Bach, nem se maravilhar diante de uma pintura ou de um desenho de Da Vinci... Aliás, a maioria nem mesmo compreende qual o sentido de abrir um livro se o conhecimento que ele oferece não puder ser usado em seu trabalho. Sempre viveremos no meio dessa maioria rasa e enfadonha, que, por sua vez, sempre irá encarar os poucos que dão valor à cultura como chatos, esnobes ou simplesmente esquisitos. Optar pela cultura é uma decisão pessoal, que garante a quem a toma uma vida inimaginavelmente mais cheia, rica, bela, interessante, instigante que a dos que se contentam em habitar o espaço do óbvio - mas, ao mesmo tempo, uma vida bem menos confortável, repleta de inquietações e dúvidas que os "outros" não conhecem. E isso não é coisa para gente fraca. Para levar uma vida assim, a pessoa precisa ter fé verdadeira de que as recompensas oferecidas fazem tudo valer a pena: a escassez de interlocutores, a necessidade de procurar por seus prazeres, por vezes com esforço, enquanto os outros encontram os deles a toda hora e em toda parte, e a ocasional marginalização que irá sofrer. E, na minha opinião pessoal, ter acesso a cinco mil anos de história, conhecimento e arte vale muito mais do que ficar à vontade no meio da "galera" que só conhece futebol, cerveja e música pop de FM.

quarta-feira, junho 01, 2011

Thor


Para quem já foi durante muito tempo (ou o que para um adolescente pareceu ser muito tempo) um entusiasta de quadrinhos, mas já não os lê, a não ser ocasionalmente, há uns bons anos, não será tarefa das mais fáceis comentar este novo filme, mas já observei que os textos mais difíceis de começar costumam ser os que, depois que deslancham, acabam tendo os resultados mais interessantes. Então peço paciência a meus leitores se este post demorar um pouco a "decolar". ☺

Quando Stan Lee, fundador e, na época, principal argumentista da Marvel Comics Group, escreveu a primeira história tendo como protagonista o deus nórdico Thor (publicada na revista Journey Into Mystery n.º 83, de agosto de 1962), estava fazendo algo de inaudito para a época: buscar inspiração no passado da humanidade, em suas religiões antigas e lendas ancestrais, para contar histórias com uma roupagem moderna, que atraísse os jovens. Para aproximar mais o personagem de seus leitores e também poder fazê-lo interagir com os demais astros dos quadrinhos de seu selo, como o Hulk, Homem de Ferro, Capitão América e outros, Lee teria que trazer Thor para o século XX. Conseguiu isso criando para ele um alter ego, o Dr. Donald Blake, um cirurgião (americano, é óbvio) manco, que, durante uma viagem à Noruega, encontraria numa caverna um velho bastão de madeira e, ao batê-lo acidentalmente nas pedras, ver-se-ia transformado no poderoso Deus do Trovão, tendo o bastão virado o mítico martelo Mjolnir (o j pronuncia-se como i semivogal). Daí em diante, Blake levaria a vida dupla típica de quase todos os super-heróis, exercendo a medicina como rotina e ocasionalmente encarnando o deus para salvar o mundo daquelas boas e velhas ameaças cósmicas que todo argumentista do gênero é craque em tirar da manga.

As histórias de Thor seguiram nesse esquema durante anos, com os altos e baixos normais. Como não sou um especialista e, além disso, essas histórias foram publicadas muito antes do meu tempo, não sei dizer ao certo se foi ainda o próprio Lee ou um dos vários argumentistas por cujas mãos o herói passou quem teve a ideia de dar uma reviravolta em sua origem. Até então, Donald Blake acreditava ser apenas um mortal a quem os desígnios de alguma sabedoria superior teriam achado por bem conceder os poderes de um deus para que os usasse em defesa de causas justas. Aos poucos, eventos misteriosos que iam ocorrendo em sua vida, e imagens que surgiam inexplicavelmente em sua memória, acabaram por levá-lo a compreender a verdade: ele era o próprio deus Thor.

A explicação encontrada para isso foi bastante engenhosa e com um sabor realm
ente mitológico: calçado em sua condição de primogênito do deus supremo, Odin, e em sua reputação de grande guerreiro entre os habitantes de Asgard (o reino dos deuses), Thor ter-se-ia tornado um deus egoísta e arrogante. Para ensinar-lhe uma lição, Odin teria retirado seus poderes, apagado sua memória, e o colocado para viver na Terra sob uma identidade forjada, a do então estudante de medicina Blake. Como um jovem sem muitos recursos, e que sofria com as sequelas de uma paralisia, Thor aprenderia o valor da humildade e do trabalho duro, até estar pronto para receber de volta sua herança divina.

Foi já nos anos 80 que um sujeito chamado Walter Simonson assumiu a revista mensal de Thor nos Estados Unidos. Escritor e também desenhista, realizou uma reformulação geral no personagem e em seu ambiente, buscando reduzir ao mínimo possível as ligações com o universo super-heroístico da Marvel para investir pesado numa maior aproximação com a mitologia nórdica, que, afinal de contas, foi de onde o personagem veio. E é nítido que foi principalmente dessa fase que veio a inspiração para o primeiro filme da nova safra cinematográfica da Marvel a tratar do Deus do Trovão.

E vamos concordar, não se trata de um filme qualquer ― nenhum filme dirigido por Kenneth Branagh, responsável por nada menos que Henrique V, é um filme qualquer. Menos ainda se tiver Anthony Hopkins no papel de Odin e Natalie Portman ― rara combinação de beleza estonteante e talento admirável, capaz de se sair bem seja num filme ET (extra trash) como Marte Ataca (1996) ou num tenso thriller psicológico como o recente Cisne Negro ― como a "mocinha", no caso a cientista Jane Foster, com quem Thor, exilado na Terra, irá se envolver. O filme tem ainda Stellan Skarsgård (Rei Arthur, O Exorcista: o Início) como Dr. Erik Selvig, mentor de Jane; Tom Hiddleston como Loki; Jaimie Alexander como a deusa Sif (na mitologia, esposa de Thor, no filme aparentemente apenas uma "amiga", que nem chega a interferir na relação dele com Jane) e, curiosamente, Ray Stevenson (também de Rei Arthur e da série Roma), praticamente irreconhecível sob uma montanha de barba e cabelo, como o gordo e bonachão Volstagg, personagem criado para os quadrinhos.




O filme começa com uma cena em que Jane, Selvig e sua bolsista estão tentando observar e registrar um estranho fenômeno nos céus do deserto do Novo México, quando seu veículo de pesquisa atropela um homem que parece ter surgido do nada em meio à tempestade. Depois de o espectador ter apenas tido tempo de ver que o homem é Chris Hemsworth, que interpreta Thor, a narrativa recua para a Idade Média, nas terras do norte, e passa a ocupar-se de uma guerra entre os deuses de Asgard e os Jotun, ou gigantes de gelo ― é interessante notar que na mitologia nórdica, como na grega, os gigantes personificam forças da natureza, e que os deuses nórdicos, também como seus equivalentes gregos, têm com esses gigantes uma relação ambivalente: ao mesmo tempo em que são ligadas por estreitos laços de parentesco, as duas raças são inimigas mortais. Com os deuses saindo vitoriosos, Odin toma dos gigantes uma caixa misteriosa que dá origem aos poderes deles, e estabelece uma trégua ― que Thor, muitos anos depois, irá quebrar em busca de glória pessoal, levando Asgard à beira de uma nova guerra. No filme, é esse ato que leva o rei dos deuses a banir o filho para a Terra, tendo anulado a maior parte de seu poder, mas Thor não perde a memória, nem chega propriamente a ter um alter ego humano ― apenas usa falsamente e por um curto período de tempo o nome de Donald Blake, que, segundo Jane, é um "ex" seu. Em Asgard, Odin adormece (de acordo com a mitologia, ele precisava de longos períodos de sono para manter seus poderes) e, sem que ninguém saiba quando despertará, seu ardiloso filho adotivo, Loki, aproveita-se da ausência de Thor para fazer-se rei, o que precipitará o conflito que serve de combustível ao roteiro.


O filme toma diversas liberdades em relação à mitologia ― basicamente, as mesmas que os quadrinhos já tomavam, e mais algumas. Nas lendas nórdicas, por exemplo, Loki não era filho de Odin, nem mesmo por adoção, e, embora por nascimento pertencesse à raça dos gigantes, era admitido ao convívio dos deuses e geralmente considerado um deles. Tinha uma personalidade complicada, algumas vezes comportando-se como um fiel amigo dos deuses, outras como um trapaceiro compulsivo. Nos quadrinhos, essa complexidade havia sido abolida ― Loki era retratado sempre como mau-caráter ―, enquanto, no filme, ele é um personagem mais dramático, que sofre ao descobrir sua verdadeira origem, o que pode, em parte, justificar seus atos e ganhar para ele um pouco da simpatia do espectador. Loki era o deus do fogo e gerou muitos filhos, tanto humanos quanto feras, entre eles Sleipnir, o garanhão de oito patas que servia de montaria a Odin, bem como o monstruoso lobo Fenris, ou Fenrir, e a Serpente de Midgard. Midgard, aliás, era como os nórdicos chamavam o mundo onde vivemos nós, humanos. Esse nome, que significa literalmente terra média (alguém se lembra onde já vimos isso?), deve-se ao fato de que esse mundo fica no meio, abaixo do céu, onde vivem os deuses, e acima do mundo subterrâneo, habitado por trolls e outras criaturas do escuro.

O próprio Thor era uma figura à parte. Diferente do que o filme sugere, a deusa Friga, embora fosse esposa de Odin, não era a mãe de Thor, que nasceu da relação dele com uma giganta de nome Jord (que significa Terra), provavelmente antes de seu casamento com Friga. Embora Odin fosse o deus supremo, Thor era, de longe, muito mais popular e cultuado, principalmente entre os homens: era um deus-herói, guerreiro, aventureiro, exatamente a divindade adequada aos seguidores da filosofia viking de vida, que tinham no sangue a febre do desbravamento e acreditavam que a única morte digna de um homem era no campo de batalha. Em homenagem a Thor, quase todos os vikings usavam no pescoço um pingente em forma de martelo.

Por falar em morte, alguns podem ter estranhado a cena em que, prestes a partir para Jotunheim, o reino dos gigantes de gelo, Thor diz a Heimdall, o guardião dos portões de Asgard, que não tem planos de morrer naquele dia, e Heimdall replica que ninguém tem. Pode-se pensar: "Fácil para eles dizerem isso: são deuses, imortais!" Beeeem... Mais ou menos. O fato é que os deuses nórdicos não eram imortais no sentido pleno do termo. Para evitar a velhice e as doenças, precisavam comer regularmente as maçãs mágicas cultivadas pela deusa Iduna, e podiam, sim, morrer em combate da mesma forma que os homens ― embora, claro, para isso fosse preciso um adversário realmente poderoso.

Falar em Heimdall me fez lembrar de um detalhe discutível (para dizer o mínimo) do filme: esse deus é interpretado pelo ator Idris Elba ― que é negro ―, enquanto Hogun, outro personagem oriundo dos quadrinhos, é representado pelo japonês Tadanobu Asano. Pergunto: qual a lógica de colocar negros e orientais no reino dos deuses nórdicos? Não seria isso um exemplo típico da obsessão do politicamente correto prevalecendo sobre o bom senso?

Em resumo: Thor vale a pena ser visto. Tem um enredo cativante, que consegue a difícil proeza de ser interessante tanto para o inveterado leitor de quadrinhos quanto para o espectador de ocasião que pouco ou nada sabe sobre o universo da Marvel, tem ótimas atuações (com o inevitável destaque para o "imortal" Anthony Hopkins e para a boa surpresa Tom Hiddleston), tem um visual de encher os olhos, e tem o grande mérito de contribuir para despertar nas novas gerações o interesse pelo mundo fascinante e cheio de significados da mitologia.