terça-feira, outubro 18, 2011

Harry Potter e o Enigma do Príncipe

Tudo bem, Harry Potter é literatura mainstream – mas por que isso é necessariamente um demérito? Certo, seria hipócrita negar que, para o viciado em literatura, existe um tipo de satisfação egoísta em conhecer livros magníficos dos quais pouca gente ouviu falar, mas a radicalização desse prazer leva o tal viciado, por vezes, a torcer automaticamente o nariz para obras que estão na boca do povo, que fazem furor, vendem exemplares às toneladas e viram fenômenos de mídia. Nem tanto ao céu, nem tanto à terra, eu diria: achar que algo deve ser bom só porque todo mundo está comentando é um comportamento burro – mas não é menos burro achar que algo tem que ser ruim pelo mesmo motivo.

E Harry Potter, fenômeno de mídia ou não, é uma das mais interessantes séries de fantasia surgidas entre o final do século passado e o início deste. Quem não conhece realmente a saga, apenas ouviu falar, viu imagens aqui e ali e talvez tenha assistido – sem prestar atenção – a um segmento de um dos filmes quando passou na TV, acha que trata-se de "literatura infantil", e dá o assunto por encerrado. Grande erro. Muitas crianças podem achar legal usar uns óculos sem lente, pintar uma cicatriz na testa com caneta hidrocor e gritar "Vingardium Leviosa!" agitando um espanador de pó, mas eu não conheço ninguém com menos de 16, 17 anos (e bem pouca gente acima dessa idade) que tenha encarado do início ao fim as mais de 3000 páginas que compõem os sete volumes da série escrita pela inglesa Joanne Kathleen Rowling. Sem contar que esses livros podem facilmente prender a atenção de qualquer leitor que disponha da necessária dose de imaginação, independentemente da idade. Pois trata-se de uma história de magia e heroísmo calcada em valores atemporais, que nunca deixarão de tocar e comover qualquer ser humano saudável: amor, amizade, lealdade e coragem.

A autora parece ter planejado que uma geração de leitores fosse crescendo junto com o herói: dos enredos simples e textos relativamente breves do início, a série foi aumentando em número de páginas e em grau de complexidade a cada novo volume: o quinto, Harry Potter e a Ordem da Fênix, tem mais de 700 páginas, mas, daí em diante, houve uma ligeira redução. Ao mesmo tempo, a própria Rowling também experimentou uma evolução: os últimos volumes são barbaramente melhor escritos que os primeiros. Como há muita informação sobre a série espalhada pela internet, acho desnecessário resumir o enredo geral: quem já conhece HP não precisará disso, e quem ainda não o conhece, não é por meio deste humilde post que ficará conhecendo. Tudo o que farei será comentar o livro que acabo de ler, o sexto volume, Harry Potter e o Enigma do Príncipe, introduzindo apenas as informações necessárias à compreensão do que irei dizer... O que, receio, dará praticamente no mesmo!

Para começar, o título é discutível: por que Harry Potter and the Half-blood Prince virou Harry Potter e o Enigma do Príncipe em vez de Harry Potter e o Príncipe Mestiço, como seria o correto? Como já disse antes neste blog, não devemos ser apressados ao culpar o tradutor em casos assim (embora eu realmente discorde em muitos pontos da tradução de Lia Wyler): muitas vezes a decisão final sobre o título parte do setor de publicidade da editora, quando alguém lá é de opinião que a tradução literal do título original não soaria bem ou não seria suficientemente chamativa. Desconfio que, no presente caso, a proeza tenha sido de alguém que não sabia muito sobre a série e achou que a palavra "mestiço" não seria bem compreendida pelas "crianças". Se é que não foi resultado da neurose politicamente correta, uma tentativa de evitar qualquer alusão que pudesse, mesmo remotamente, ser considerada "racista".

Uma pena, pois racismo, ainda que sob uma roupagem de fantasia, é um dos temas mais discutidos na série. No mundo da magia por onde transitam Harry, seus amigos e inimigos, não parece haver discriminação pela cor da pele ou dos olhos, mas existem bruxos que se consideram superiores aos outros por terem o que chamam de "sangue puro" – o que consiste em ter exclusivamente ancestrais bruxos em suas árvores genealógicas. Naturalmente, há diversidade de opiniões: existem bruxos de sangue puro que não dão a mínima para isso e consideram mestiços e trouxas (os não-bruxos) como seus iguais – e há também bruxos mestiços que tentam fazer parecer que são puros-sangues para ganhar status em certos meios. O potencial de intolerância gerado nesse cenário já levou, como seria previsível, a muitos conflitos através dos séculos, e no último deles o mundo mágico assistiu à ascensão do mais temido bruxo das trevas de todos os tempos, que se autointitulava Lorde Voldemort – e tal era o pavor que ele inspirava, que a maioria dos bruxos tem medo até de pronunciar seu nome, preferindo referir-se a ele como "Você-Sabe-Quem" ou "Aquele-Que-Não-Deve-Ser-Nomeado". Esse bruxo matou os pais de Harry quando ele ainda era um bebê – mas, por razões que ninguém compreende muito bem, não conseguiu matar o próprio Harry, e teve seus poderes e corpo destruídos quando o terrível feitiço que lançara contra o menino ricocheteou e o atingiu. Harry foi criado pelos tios trouxas, sofrendo negligência e todo tipo de implicância, até os onze anos de idade, quando teve a revelação de quem era e foi levado para a prestigiosa Escola de Magia e Bruxaria de Hogwarts, onde iniciou a educação necessária para viver no mundo a que realmente pertencia. E, muito para sua surpresa, descobriu que era famoso: no mundo dos bruxos, a maioria das pessoas o considera um herói por ter (aparentemente) destruído Voldemort. Uma crença que, infelizmente, demonstrou-se errada: Voldemort estava enfraquecido e privado de um corpo, mas continuava vivo. Só agora, cinco anos e muitas aventuras depois, Harry está prestes a descobrir como isso foi possível.

Aos 16 anos, começando a cursar o sexto ano em Hogwarts, Harry está na altura da vida em que a maioria dos jovens bruxos está pensando a respeito do que fazer ao terminar a escola. Ele, porém, tem muito mais do que isso a preocupá-lo: Voldemort recuperou o corpo e a plenitude de seu poder, conseguiu reunir muitos de seus antigos seguidores, bem como recrutar novos, e o mundo mágico está em guerra. É óbvio para todos que o Lorde das Trevas fará de Harry um de seus alvos principais; o rapaz só pode continuar a levar uma vida quase (quase!) normal por estar em Hogwarts, cujo diretor é Alvo Dumbledore – tido por muitos como o maior bruxo dos tempos modernos e como a única pessoa que Voldemort teme no mundo.

A narrativa deste episódio começa durante as férias de verão: como costuma acontecer nessa época do ano, Harry está atolado na casa dos tios, contando os dias para a volta a Hogwarts, quando, para sua surpresa, o próprio Dumbledore vai pessoalmente buscá-lo, a fim de escoltá-lo até a Toca – a casa dos Weasley, a família de seu melhor amigo, Rony – para passar lá o restante das férias. Pelo caminho, os dois visitam um antigo professor, Horácio Slughorn, e o convencem a interromper sua aposentadoria e voltar a ensinar em Hogwarts. Tudo indica que Slughorn irá assumir a disciplina de Defesa Contra as Artes das Trevas, um cargo que parece estar sob algum tipo de mau-olhado, pois, desde o início da vida escolar de Harry, ninguém conseguiu permanecer nele por mais de um ano – mas, ao iniciar-se o período letivo, Harry e seus colegas têm uma surpresa: Slughorn assume a disciplina de Poções, que costumava ser ensinada por Severo Snape, um antigo desafeto do pai de Harry na época em que ambos estudaram em Hogwarts, e que tem perseguido o filho de seu rival de todas as maneiras possíveis, desde que este chegou à escola. E Snape, por sua vez, é quem passa a ensinar Defesa Contra as Artes das Trevas.

Por acaso, Harry se vê de posse de um velho livro de Poções cheio de anotações manuscritas feitas por um antigo estudante de Hogwarts que se identificava apenas como o "Príncipe Mestiço" – e essas anotações acabam se mostrando mais úteis que o conteúdo do livro propriamente dito. Além de dicas que rapidamente fazem de Harry um prodígio no preparo de poções (atividade na qual ele nunca se havia mostrado particularmente talentoso), as anotações do Príncipe incluem feitiços aparentemente inventados por ele próprio e cuja utilidade não é conhecida – coisa que pode ser bem perigosa, na opinião de Hermione Granger, a outra melhor amiga de Harry e melhor aluna de sua série. 

Paralelamente às aulas normais, Harry, de tempos em tempos, é chamado ao escritório de Dumbledore, que, por meio de lembranças colhidas de diversas pessoas, vai revelando a ele (e ao leitor) uma série de informações até então ocultas sobre o passado de Voldemort. O modo como essas lembranças são partilhadas foi uma criação particularmente brilhante de Rowling: por meio de um artefato conhecido como "Penseira", Harry e Dumbledore mergulham nas lembranças de outras pessoas e as vivenciam como se estivessem na época e no local dos acontecimentos. O diretor é da opinião de que Harry deve saber o máximo possível sobre o inimigo, a fim de preparar-se para o confronto inevitável: uma profecia feita logo após Harry nascer revelou que, no final, ele terá que matar Voldemort ou ser morto por ele.

Parte do encanto (ops!) da história está no fato de que, ao mesmo tempo em que se vê implicado em acontecimentos grandiosos e terríveis e convive com o fato de que o destino do mundo bruxo pode vir a estar em suas mãos a qualquer momento, Harry também precisa lidar com os mesmos desafios de um adolescente comum: trabalhos da escola, o time de quadribol (o esporte mais popular entre os bruxos) em que joga, e a paixão que descobre estar sentindo por Gina Weasley, a irmã mais nova de Rony. E, antes que seu sexto ano termine, ele terá mais uma vez que enfrentar provas muito mais penosas que as da escola, nas quais estará em jogo muito mais do que sua vida, e que exigirão toda a sua coragem, habilidade em magia, e a ajuda de seus fiéis amigos. Mais dramático que isso: sem ter ainda se recuperado totalmente da morte de seu padrinho, Sirius Black, que tombou no ano anterior combatendo as forças das Trevas, Harry perderá outra das pessoas mais importantes de sua vida.

Ler Harry Potter é uma daquelas experiências que me fazem sentir uma grande pena do fato de que tão poucas pessoas possuam cultura suficiente para perceber todas as alusões, alegorias e brincadeiras que vou encontrando. Muita gente aponta para a influência que J. K. Rowling recebeu de J. R. R. Tolkien, o imortal autor de O Senhor dos Anéis – mas, até aí, qual escritor moderno de fantasia não deve alguma coisa a Tolkien? É bastante óbvio, por exemplo, que Dumbledore nada mais é que a versão rowlinguiana de Gandalf – mas quantos leitores se deram conta de que este último, que no início do SdA é conhecido como Gandalf, o Cinzento, a certa altura passa a ser Gandalf, o Branco, e que o primeiro nome de Dumbledore é Alvo, ou seja, "branco"?



Saindo do assunto da influência de Tolkien, mas ainda falando de pistas escondidas nos nomes, há muito mais para descobrir: Sirius Black é um "animago", um bruxo com o poder de transformar-se em determinado animal – no caso dele, um enorme cão preto. Ora: Black, como todo mundo sabe, quer dizer preto; Sirius é uma estrela da constelação do Cão Maior. Portanto, "Sirius Black" é apenas uma maneira disfarçada de dizer "cachorro grande e preto". Remo J. Lupin é um bruxo que sofre a maldição da licantropia – e, enquanto "Lupin", em português 'lupino', quer dizer "próprio ou semelhante a lobo", Remo era o irmão gêmeo de Rômulo, o fundador de Roma, que, juntamente com ele, teria sido amamentado por uma... loba. O zelador de Hogwarts, que anda pela escola vigiando tudo o que os estudantes fazem, chama-se Argo Filch – Argo, como o gigante de cem olhos da mitologia grega. A professora de Adivinhação chama-se Sibila Trelawney e é descendente de uma famosa vidente chamada Cassandra Trelawney; Sibila era o nome dado às profetisas da Roma antiga, e Cassandra era a filha do rei de Troia, igualmente uma profetisa. O grupo musical mais popular entre os adolescentes bruxos é chamado na tradução de As Esquisitonas, mas no original o nome era The Weird Sisters – literalmente, 'as Irmãs Estranhas', uma referência ao trio de feiticeiras que aparecem na peça Macbeth, de Shakespeare... Esta lista poderia continuar por páginas e páginas.


Porém, o sentido oculto mais interessante que encontrei na série foi o paralelo – inegável quando se analisa todas as pistas – entre Lorde Voldemort e Hitler. Vamos somar dois mais dois: Voldemort é idolatrado pelos bruxos que se orgulham de seu sangue puro e consideram mestiços e trouxas ralé – embora seja, ele próprio, um mestiço, filho de mãe bruxa e pai trouxa. Já Hitler arquitetou e liderou a maior e mais terrível campanha de extermínio já movida contra um grupo étnico na história da humanidade – e, muito provavelmente, era neto de um judeu. Voldemort cerca-se de um grupo de seguidores terríveis, os Comensais da Morte, muitos dos quais também são mestiços que se declaram leais até a morte à causa da pureza do sangue bruxo; da mesma forma, seria preciso ser muito ingênuo para acreditar que todos os membros do Partido Nazista ou das SS fossem "arianos puros"... Trata-se, sem meias palavras, de uma alegoria extremamente inteligente para evidenciar a incoerência intrínseca de todas as ideologias baseadas em preconceitos; e ainda mais inteligente se torna por exigir uma certa dose de conhecimento e capacidade de raciocínio para ser detectada. Quem acha que Harry Potter é só literatura consumível ou coisa para criança poderia se surpreender muito se deixasse o preconceito de lado e experimentasse lê-lo.