quarta-feira, dezembro 12, 2012

Chamado Selvagem

Jack London (1876-1916) foi mais um autor que marcou minha infância, embora eu tenha lido realmente pouca coisa de sua obra naquela época - que me lembre, este próprio livro e uma história curta chamada Luta com os Dentes, que aparecia numa antologia intitulada Animais Selvagens: aventuras e histórias famosas, e que, como mais tarde descobri, era na verdade um trecho de seu romance Caninos Brancos (menos mal que, sendo assim, London é inocente desse título pra lá de ruim dado a uma boa história). Já adulto, li O Andarilho das Estrelas, um de seus últimos livros, e que me pareceu ser uma coisa um tanto à parte do resto de sua obra, embora também seja uma derivação natural dos interesses e convicções que o autor cultivou durante os últimos anos de sua curta vida. Mas poderei retornar oportunamente a esse livro. Por hoje, vamos focar em Chamado Selvagem - e um pouco em seu autor.

John Griffith Chaney nasceu em San Francisco, Califórnia, e compartilhou muitas características com outros grandes escritores norte-americanos, antes e depois dele: como Herman Melville, foi um jovem irrequieto, que correu o mundo e viu com os próprios olhos as coisas e os lugares que depois retrataria em romances de aventuras que empolgariam gerações; como Ernest Hemingway, celebrou em seus escritos a força, a coragem, a virilidade, e a natureza no que ela tinha de mais grandioso e indomável... E, como Edgar Allan Poe, morreu aos 40 anos de idade, no auge de suas capacidades, privando seus fãs das muitas obras memoráveis que ainda poderia ter produzido. Fãs, aliás, ao contrário de Poe, ele tinha muitos: foi um dos raros escritores a gozarem de popularidade ainda em vida. Seus romances e os contos publicados em revistas de grande circulação fizeram-no rico e admirado - um notável progresso de vida para alguém que teve um início difícil. Filho de um astrólogo itinerante e de uma professora de música, nunca conheceu o pai. Quando o pequeno John ainda não tinha um ano, sua mãe casou-se com John London, um veterano da Guerra Civil, que daria ao enteado tanto seu sobrenome quanto o apelido de Jack. Depois de uma adolescência que teve de tudo, de um prosaico emprego numa fábrica (no regime semiescravo de 16 horas por dia, seis dias por semana, como era comum naqueles tempos pós-Revolução Industrial) até perigosas pescarias de ostras, além de um único ano na Universidade da Califórnia, em 1897 decidiu juntar-se à Corrida do Ouro no Alasca, onde conheceria todas as durezas da vida no Ártico, travando contato na prática com aquela que seria a ambientação de pelo menos dois de seus livros mais famosos: The Call of the Wild (Chamado Selvagem, 1903) e White Fang (Caninos Brancos, 1906).

Embora seja geralmente citado como um romance, Chamado Selvagem não seria assim definido pela Teoria Literária, por ter um único núcleo narrativo; é mais como se fosse um longo conto. A história é a de um cão, Buck, que leva uma vida de rei no sítio do Juiz Miller, na ensolarada Califórnia, até estourar a notícia da descoberta de ouro na região de Klondike, na fronteira Alasca/Canadá. Com milhares de homens deslocando-se para o norte em busca do sonho da riqueza, a demanda por cães grandes, fortes e peludos torna-se frenética, e, para azar de Buck, ele possui todas essas características: mestiço de um pai são-bernardo e de uma mãe collie, é um animal magnífico. E por ser assim, acaba sendo roubado e vendido por um dos próprios empregados de seu dono, levado para San Francisco e, de lá, direto para o norte, onde mergulha numa nova e brutal existência na qual o carinho e a consideração com que era tratado em seu antigo lar transformam-se apenas em vagas lembranças que parecem vir de outra vida. Sua "doma" por um sinistro "homem de suéter vermelho" é uma passagem dolorosa de ser lida, embora o autor demonstre, ao final dela, que esse homem não é realmente cruel: há método e objetivo por trás de sua brutalidade, e os cães que passam por suas mãos têm a chance, se forem espertos, de aprender uma ou duas coisas que talvez os ajudem a sobreviver nas condições inclementes sob as quais terão de trabalhar.

E inclemente é sem dúvida a palavra que melhor descreve o mundo no qual Buck está entrando. Uma vez chegado às geladas terras do norte, bem depressa ele compreende que não deve esperar misericórdia dos que ali encontrará, sejam homens ou cães - e que tampouco deve oferecê-la, caso pretenda ser respeitado. Um gesto casual qualquer, que, entre os cães de sua terra natal, seria visto como uma tentativa de contato cordial, é muitas vezes interpretado pelos cães de trilha do Alasca (mais próximos de lobos que dos cães que Buck até então conhecia) como uma provocação, que pode levar a uma luta de consequências fatais. Ao mesmo tempo em que sua inexperiência o coloca em desvantagem, Buck tem a seu favor o tamanho e a força: pesando 63 quilos - dado esse que o autor parece considerar muito importante, pois repete-o diversas vezes -, ele é consideravelmente maior que um lobo, e também que os cães nativos. Isso faz com que algumas brigas sejam evitadas.

É verdade que nem tudo nesse mundo é violência. Os primeiros amos a quem Buck serve são François e Perrault, experimentados agentes do governo canadense e calejados viajantes das trilhas árticas, que, sempre incumbidos do transporte de importantes documentos oficiais, não podem abrir mão da celeridade, e por isso precisam sempre certificar-se de ter a melhor equipe de cães que lhes seja possível reunir e treinar. Nas mãos dos dois homens, Buck conhece uma disciplina dura, mas justa, e começa a aprender todo o necessário para ser um bom cão de trenó. As lições vêm tanto dos dois condutores quanto de seus novos companheiros, principalmente Dave e Sol-leks, cães mais velhos, com longa experiência como puxadores. Com o líder Spitz, em compensação, a coexistência não é tão harmônica: entre ele e Buck instala-se logo uma inimizade instantânea e irreconciliável.

É a princípio um tanto chocante (e provavelmente o será mais se o leitor for um amante de cães) ver como Perrault e François se abstêm de tentar apartar as brigas entre os animais, salvo quando elas ocorrem durante o trabalho; mais tarde compreendemos que os condutores agem assim porque estão cientes de estarem lidando com animais apenas precariamente domesticados, de modo que não podem esperar ter sobre eles o mesmo grau de controle que têm os donos ou tratadores que lidam com outros tipos de cachorros. A definição da cadeia de comando da matilha é assunto a ser decidido exclusivamente entre os cães, só cabendo aos homens o papel de observadores neutros das acirradas "disputas políticas" que ocorrem entre os animais. Também não escapará aos leitores mais atentos que, à semelhança de Rudyard Kipling e outros escritores que costumam colocar em cena personagens animais, Jack London é um mestre em usá-los para retratar comportamentos humanos: Buck acaba mostrando talento para a sedição, encorajando os companheiros a desafiar a autoridade de Spitz, a fim de desestabilizar o rival - mas, quando por fim o derrota e conquista a liderança, ele não tolera qualquer insubordinação. Isso lembra certas pessoas que vocês conhecem, ou sobre as quais já leram? Qualquer semelhança não é mera coincidência.

De qualquer forma, a carreira de Buck como cão-líder pouco dura. Trocar de condutores com frequência parece fazer parte da sina dos cães de trilha a serviço do governo, e, depois de deixarem François e Perrault, ele e os companheiros sobreviventes passam às mãos de outro agente, que, embora também se mostre um patrão justo e sensato, vê-se obrigado por ordens superiores a forçá-los em duas longas e exaustivas viagens, quase sem descanso. Ao final desse périplo, os cães esgotados são descartados, postos à venda. A partir daí, ainda que apenas por um breve período, as coisas ficam realmente feias. Buck e os outros têm o azar de ser comprados por Hal e Charles - dois personagens nos quais London retrata um tipo que, sem dúvida, conheceu bem durante sua própria aventura no Alasca: o dos que achavam que meter-se pelo norte em busca de ouro era para qualquer um. Os dois não sabem coisa alguma sobre viagens no Ártico, nem parecem dispostos a "perder tempo" aprendendo. Depois de passar maus, aliás, péssimos pedaços com esses sujeitos, Buck tem a vida salva por aquele que se tornará seu verdadeiro dono: John Thornton.

Thornton é um minerador como tantos outros, mas, além disso, é também um homem que realmente entende e gosta de cães; trata os seus como amigos, não como meros instrumentos de trabalho, e Buck logo toma-se de uma adoração por ele que toca as raias da idolatria, algo que não sentira nem mesmo no sítio do Juiz Miller. Com Thornton, conhece uma vida diferente, na qual a tração do trenó é apenas um dos papéis que desempenha; também lhe cabe acompanhar o dono na caça, guardar o acampamento, e, principalmente, ser um amigo e companheiro. Mesmo com tudo isso, Buck dispõe de tempo livre pela primeira vez desde sua chegada ao norte: enquanto John Thornton e seus sócios estão prospectando ouro num local, os cães têm pouco o que fazer. Com isso, Buck começa a passar cada vez mais tempo a vagar solitário pela floresta, chegando a ficar fora dias a fio, sem qualquer contato humano. Do fundo da mata (ou seria das profundezas de si próprio?) vem um chamado que ele não tem certeza se ouve ou apenas sente, mas que intensifica a atração pela vida selvagem que já vinha experimentando desde que deixou as terras civilizadas onde nasceu. Em momentos entre a vigília e o sono, Buck chega a ter visões de outro tempo e outro lugar, enxergando através dos olhos de um ancestral distante, que foi provavelmente um dos primeiros cães a andarem em companhia humana: no caso, a trêmula companhia de um assustado homem primitivo que ainda não aprendera a encarar a natureza tal como um monarca olhando para seu reino, vendo-a, em vez disso, com medo, muito medo - e encontrando certo conforto na presença do cão, por saber que os sentidos aguçados, os instintos e a coragem do aliado de quatro patas podem contribuir para sua sobrevivência.

O desejo de Buck de unir-se à floresta passa por momentos de euforia e de melancolia, pontuados por uma estranha saudade de algo que nunca conheceu - ao menos, não por experiência própria. Além disso, existe a ligação de afeto e lealdade que o prende a John Thornton, e que ele se sente incapaz de romper. Devo dizer, aliás, que sempre achei muito intrigante essa devoção de vida e morte, de um cão para com seu dono. De onde viria tamanha dedicação? Em geral, todo comportamento de um animal doméstico é uma adaptação de algum hábito ou tendência que seus ancestrais selvagens já tinham, e é claro que já se tentou dar uma explicação desse tipo para o caso: mais de um livro sobre cães que li quando garoto dizia que o cão simplesmente transfere para o dono a lealdade que o lobo dedica ao líder da alcateia, mas essa versão desmorona quando se sabe como são as coisas entre os lobos. Esses animais estão sempre muito atentos às fraquezas uns dos outros, e sua lealdade é relativa e frágil; se o lobo-líder piscar um olho na hora errada, está morto. Portanto, não é aí que se encontra a explicação, se alguma explicação existir, da proverbial fidelidade canina, essa dedicação incondicional que faz um cão ser capaz de dar a própria vida por seu dono, a mesma que mantém Buck vinculado a John Thornton até o desfecho dramático de sua história.

Não sei ao certo se Chamado Selvagem é considerado pela maioria da crítica como a obra-prima de Jack London - e, quando se fala de um autor dessa importância e reconhecida qualidade, é difícil apontar uma obra que esteja indisputavelmente acima das outras -, mas não há dúvida de que é uma magnífica introdução para quem ainda não conhece seu trabalho. Creio que a melhor maneira de sintetizar toda a sua mensagem é dizer que o livro nos põe ante os olhos um fato básico, o de que vivemos num mundo sem misericórdia, um mundo violento e cruel, no qual quem quiser sobreviver e prosperar precisa, antes de mais nada, ser forte, mas, ainda assim, um mundo com espaço para a beleza e onde a verdadeira amizade é possível.