quarta-feira, abril 30, 2014

Guerra dos Homens Alados

Alguns séculos no futuro, o comércio é uma das principais forças a impulsionarem a exploração espacial. Planetas desconhecidos são frequentemente descobertos e explorados por missões a serviço de grandes companhias mercantis, e mesmo o contato inicial com raças alienígenas é muitas vezes feito assim, enquanto essas companhias procuram por novos mercados consumidores e novas fontes de matérias-primas.

Durante uma viagem de recreio por um planeta recentemente descoberto, a nave do rico comerciante interestelar Nicholas Van Rijn sofre um atentado: uma bomba explode e a nave cai no mar. Só três das pessoas a bordo sobrevivem: Van Rijn, seu piloto-engenheiro, Eric Wace, e Sandra Tamarin, herdeira do trono ducal do planeta Hermes, que viajava como convidada do comerciante. O trio é resgatado por um grupo de nativos do planeta - uma curiosa espécie de seres semi-­humanoides alados -, ficando numa situação que é mais a de prisioneiros do que de hóspedes, já que, embora os nativos não tenham, por enquanto, qualquer queixa contra a Terra, eles estão travando uma guerra cruel contra uma nação vizinha, e isso os torna duplamente desconfiados em relação a qualquer estranho.

O planeta é conhecido pelos terráqueos como Diomedes (acredito que o nome homenageie o herói da Guerra de Troia, e não o tirânico rei homônimo, citado na lenda de Hércules; pelo menos, acho o pri­meiro mais merecedor de homenagem!). É duas vezes maior que a Terra, mas a ausên­cia de metais pe­sados em seu solo faz com que tenha uma massa menor, o que se traduz numa gravidade relativamente baixa. Isso, combinado a uma atmosfera muito densa, permite que cria­turas de grande porte, que na Terra nunca poderiam ser capazes de voar, lá possam fazê-lo - e, de fato, em Diomedes, todas as formas de vida superiores, se não são aquáticas, são aladas, in­cluindo a única espécie inteligente do planeta. Os diomedanos são ligeiramente menores que os humanos e possuem diversas características que lembram os mamíferos carnívoros dos quais evoluíram: ao descrevê-los, o autor menciona elementos de lontra, cão e urso (não se prendam muito à imagem da capa do livro, pois o artista não fez muita questão de se ater à descrição: a criatura retratada tem orelhas externas, o que, segundo Poul Anderson, os diomeda­nos não pos­suem; quanto aos chifres, ficam totalmente por conta do ilustrador). Os que capturaram Van Rijn, Wace e Sandra pertencem à nação Drak, conhecida como "a Frota", porque seu modo de vida é fortemente ligado ao mar, que, aliás, cobre a maior parte da superfície de Diomedes. Seu inimi­go é Lannach, ou "a Revoada", tecnologicamente menos desenvolvida, mas, ainda assim, razoa­velmente avançada se com­parada a outros povos da mesma espécie, espalhados pelo planeta.

A presença humana em Diomedes tem escassos cinco anos. Só existe uma base fixa mantida pela Terra no planeta, e esta fica a uma vasta distância de onde os três náufragos foram parar - para ser exato, do outro lado de um oceano. A questão, como Delp (um Drak'ska que é impossível não admirar) explica a Wace, é simples: em toda essa vasta extensão de água não existe uma única ilha, sequer uma rocha onde um Drak'ska possa pousar e descansar, de modo que atravessar voando é impossível. Navegando, a traves­sia demoraria meio ano, e esse é um tempo de que Wace e seus companheiros não dispõem, pois os mantimentos que trazem consigo só durarão alguns meses, e, ao cabo desse tempo, eles estarão conde­nados a morrer de fome: as proteínas diome­danas têm uma composição molecular diferente das da Ter­ra, de modo que o que para um dio­medano é alimento, para um terráqueo é veneno, e vice-versa. Talvez uma solução possa ser en­contrada, mas isso demandaria trabalho e recursos, e, na atual situação, todo o trabalho e os re­cursos que os Drak'ska podem mobilizar estão sendo direcionados para a guerra.

Diante desse impasse, Van Rijn decide que, se é assim que as coisas são, então eles - os três terráqueos - irão pôr fim a essa guerra. O patrão de Wace, que, de início, parece apenas um ricaço amante do luxo, incomodado por estar numa situação em que sua fortuna de nada adianta, e que gosta de falar alto com seus subordinados, acaba por demonstrar que tem cérebro, e que não chegou por acaso à presidência de uma grande companhia de comércio. Os planos para encerrar a guerra incluem tanto a manipulação da inimizade entre Drak e Lannach quanto fazer a ciência militar diomedana progredir alguns séculos em semanas. Está garantida uma narrativa empol­gante e absolutamente "grudenta" (porque você não consegue largar o livro), exatamente como os fãs de Poul Anderson, esse grande nome da ficção científica, estão acostumados a encontrar. O final, surpreendentemente, é otimista, levando-nos a ter esperanças de que a humanidade, afi­nal, possa ser capaz de aprender alguma coisa com seus erros, e de que nem todos os encontros entre civilizações de níveis tecnológicos diferentes precisem necessariamente terminar em de­sastre para a menos avançada.

Uma das coisas legais a respeito da ficção científica é que ela é um gênero, mas, ao mesmo tempo, são muitos gêneros, e qualquer pessoa que a conheça ao menos um pouco, certamente perce­be isso, mesmo que de forma intuitiva. Só quem acha que ficção científica é tudo igual, é quem não sabe nada sobre ela - particularmente os retardados que torcem o nariz e a consideram como "subliteratura". Certo, há muita porcaria sendo veiculada sob o rótulo de fic­ção científica - mas, se formos pensar, há muita porcaria sendo veiculada sob os rótulos de todos os gêneros. Felizmente, também há muita coisa boa, e para todos os gostos. Pensem na dife­rença abissal existente, por exemplo, entre Star Wars (que eu adoro, mas, vamos concordar, é mera aventura para adolescentes) e uma obra como Duna, cujas implicações psicológicas e soci­ais são tão profundas que chegam a ser perturbadoras - e, no entanto, ambos são ficção científi­ca. Enfim, esse gênero oferece a cada autor ampla liberdade para desenvolver o próprio estilo.

O estilo que Poul Anderson (1926-2001) desenvolveu, foi o de um exímio narrador de aventuras, não tão preocupado em criar grandes sagas de amplitude cósmica - não produziu nada de comparável a Duna ou Fundação -, preferindo apostar em histórias de pretensões mais modestas, mas que satisfizessem os leitores que buscam ação empolgante com enredos inteligentes e uma ambienta­ção exótica, mas com base científica. Encontramos tudo isso em Guerra dos Homens Alados.


Uma das grandes falhas de muitos autores de ficção científica (inclusive de alguns que, sob outros aspectos, são bons autores) é a de pintarem cada raça extraterrestre como sendo um bloco monolítico, com uma única língua, um único modo de vida, um único credo político, um único posicionamento em relação aos terráqueos, e assim por diante. Ora, parece apenas lógico imagi­nar que qualquer espécie dotada de inteligência seja necessariamente um saco-de-gatos tal como nós, seres humanos, o somos - uma galeria infindável de tipos raciais, culturas, costumes, religiões, ideologias... Só que, se é fácil deduzir que deve ser assim, retratar toda essa variedade numa obra de ficção já é outra conversa. É preciso ter algum conhecimento científico e muita imaginação.

Poul Anderson consegue. Para manter a coisa num nível controlável, ele descreve apenas duas nações de Diomedes, mas capricha quando se trata de marcar muito bem as diferenças de costu­mes entre ambas, buscando detalhes explicativos tanto no campo da biologia quanto no da cul­tura, sem esquecer o meio ambiente do planeta. Para começar, é preciso lembrar que metais como cobre, estanho e ferro não existem em Diomedes, o que limitou seriamente o progresso técnico dos nativos em muitos campos: suas ferramentas e armas são feitas de pedra, madeira, osso, vidro vulcânico e outros materiais, mas sabe-se que, sem o domínio dos metais, não há como ir além de um certo grau de desenvolvimento tecnológico. Por outro lado, nas áreas mais especula­tivas do conhecimento, os diomedanos, ou, ao menos, os Drak'ska, obtiveram avanços conside­ráveis: eles leem, escrevem e possuem bons conhecimentos de astronomia, ainda que voltados basicamente para o uso prático na navegação. O lar dos Drak'ska é a Frota: eles nascem, cres­cem, vivem e morrem sobre suas jangadas; não são propriamente sedentários, mas também não realizam grandes migrações anuais como as dos Lannach'ska, que, sendo menos avançados tec­nicamente, dependem mais diretamente do ciclo das estações e da variação na oferta de alimen­tos em cada região.

O mais curioso é que, embora as duas nações sejam "racialmente idênticas" (palavras do autor), seus costumes são totalmente diferentes: os Lannach'ska não têm casamento nem propriamente famílias; seus hábitos de reprodução são tal e qual os de qualquer espécie migratória. Têm um período de cio e, fora desse período, qualquer demonstração de interesse sexual é considerada um tanto vergonhosa. Alguns meses depois, nascem os filhotes - pra­ticamente todos ao mesmo tempo, num intervalo de poucos dias. Já os Drak'ska fazem mais ou menos como os terráqueos: casam-se, mantêm atividade sexual durante o ano todo, e seus filhos nascem em qualquer época. Dá para deduzir que o hábito original da espécie fosse o dos Lanna­ch'ska, e que os Drak'ska foram passando a fazer diferente à medida em que constituíram uma sociedade mais complexa, deixaram de migrar e passaram a depender menos dos caprichos da natureza. De qualquer forma, o etnocentrismo é tão instintivo entre os diomedanos quanto entre os humanos: cada nação acha que o seu jeito é o "normal" e o "certo", e encara com horror e re­pugnância os costumes da outra. Revelações interessantes sobre os porquês de tamanha diferen­ça de costumes entre dois povos que são praticamente um só aguardam o leitor antes que o livro chegue ao fim.