quinta-feira, setembro 25, 2014

Inverno do Mundo

Foi longa a espera pelo segundo volume da trilogia O Século, e, mesmo depois de o livro ser lançado, motivos diversos (leia-se: tempo escasso e livros que estavam na fila há muito tempo) fizeram com que eu demorasse a pegá-lo de fato, mas, uma vez que peguei, a leitura progrediu com uma velocidade que me surpreendeu, pois nunca fui um leitor rápido. A prosa de Ken Follett realmente transporta o leitor, e, se este for, além disso, um interessado em História, aí sim é que a "viagem" está garantida.

Diferente de Queda de Gigantes, no qual era difícil apontar um único personagem central, Inverno do Mun­do tem como protagonista Lloyd Williams, filho da ex-criada, depois jornalista, militante socialista e deputa­da Ethel Williams e (embora não saiba) do conde Edward Fitzherbert. Lloyd pensa que seu pai biológico morreu na Grande Guerra (que era como a Primeira Guerra Mundial era conhecida então), e, no que lhe con­cerne, o único pai que conhece, e a quem adora, é Bernie Leckwith, também um militante socialista, com quem Ethel se casou quando ele era pequeno. Lloyd vive no East End, a parte proletária de Londres, com a mãe, o pa­drasto e a meia-irmã, Millie. Porém, a história começa de fato em Berlim, onde Walter Von Ulrich e Maud Fitzherbert (agora Maud Von Ulrich) vi­vem com seus filhos pré-adolescentes, Erik e Carla. O ano é 1933, e o NSDAP (Nationalsozialistische Deutsche Ar­beiterpartei)  o Partido Nacional-Socialista dos Traba­lhadores Alemães, popularmente conhecido como Par­tido Nazista – está ganhando poder e apoio popular num ritmo assusta­dor. Assustador, claro, para gente como Walter, Maud e seus amigos, que valorizam a paz e a demo­cracia e sabem até onde uma ideologia ex­tremista como a dos nazistas pode levar uma nação. Já para grande parte da população da Alemanha, os na­zistas são os heróis que devolveram ao país uma aparên­cia de ordem, elimi­nando o desemprego e pondo fim ao caos econômico que se seguiu à derrota na Grande Guerra. Adolf Hitler, re­cém-nomeado chanceler, e seus correligionários, agora têm em mira outra ambição: a aprovação da Lei Ple­nipotenciária, que dará ao Partido o poder de baixar novas leis e decretos sem precisar da aprovação do Rei­chstag, o Parlamento alemão. E estão em meio a uma furiosa campanha para isso quando Ethel chega a Ber­lim, acompanhada do filho Lloyd, de 18 anos, a convite de sua grande amiga Maud, para proferir uma sé­rie de palestras e colher dados para um livro que está escrevendo, e que espera que sirva para alertar a po­pulação dos outros países europeus contra a perigosa sedução do nazifascismo.

Essa primeira parte do livro pinta um quadro atordoante do que era a sociedade alemã naqueles dias, quando os membros do Partido Nazista podiam fazer o que quisessem, enquanto os não-membros eram praticamente párias. A SS – Schutzstaffel ('Tropa de Proteção', uma organização paramilitar ligada ao Partido) tinha os mes­mos poderes que a polícia regular, poderes esses dos quais muitos de seus integrantes abusavam cons­tantemente, prendendo, espancando e às vezes matando qualquer um de quem não gostassem. Quem ousas­se con­testá-los tornava-se um "inimigo do Estado", e sua vida, a partir daí, não valia mais nada.

Aos fatores políticos, sociais e econômicos, estava-se juntando na época uma série de noções "científicas" de­rivadas de uma interpretação distorcida da teoria de Darwin. Agremiações como a Sociedade Thule e outras menos famosas postulavam a superioridade da "raça ariana", à qual pertenciam os alemães "puros", e prega­vam que essa raça tinha tanto o direito quanto o dever de proteger-se da "contaminação" trazida pela misci­genação com outras – sendo que alguns grupos étnicos eram bem mais execrados que outros. O sentimento antissemita já existia entre os alemães (como, de resto, entre outros povos) há séculos, e sua origem não é fá­cil de rastrear; existem aí componentes históricos, religiosos e de outros tipos. Como a Sociedade Thule tinha estreitas ligações com o NSDAP – ou, melhor dizendo, o NSDAP foi mais ou menos apropriado pela Thule, passando a atuar como seu braço político –, não deve surpreender a ninguém que o Partido tenha-se aprovei­tado da antipatia que muitos alemães já nutriam contra os judeus e açulado a opinião pública contra eles, usando-os como bode expiatório para todo o sofrimento que a Alemanha tinha enfrentado desde a derrota em 1918. Hitler, brilhante orador que era, e apoiado por uma gigantesca máquina de propaganda, convenceu a opinião pública alemã de que a coalizão de nações que havia vencido a Grande Guerra era controlada por uma conspiração judaica que visava destruir a Alemanha. Além disso, conseguiu que os alemães partilhassem de seu sonho megalomaníaco de uma "Grande Alemanha", que, além do povo alemão propriamente dito, en­globaria as populações de língua e etnia germânicas espalhadas por vários países da Europa. Para isso, a Alemanha precisava do que os intelectuais nazistas chamavam de Lebensraum ('espaço vital'), o que, segundo a propaganda oficial, justificava a invasão de países vizinhos – outra ideia que Hitler e a mídia a seu serviço conseguiram que a maior parte da população alemã comprasse.


Com a ascensão dos nazistas ao poder, o significado de "democracia" virou uma simples lembrança na Ale­manha. Quem ainda não tem muito conhecimento da matéria pode ficar confuso com o fato de que uma ideo­logia de extrema direita como a do NSDAP pudesse se intitular Nacional-Socialismo; acontece que os nazis­tas atribuíam à palavra "socialismo" um significado totalmente diferente do que conhecemos. Para eles, esse termo queria dizer que a sociedade – Estado, nação, coletividade – devia ter prioridade absoluta, enquanto os direitos e interesses dos indivíduos ficavam em segundo plano, ou nem isso. Enfim, o "socialismo" de Hi­tler e seus companheiros era, no fim das contas, uma das formas daquilo que passaria à História com o nome de totalitarismo. E totalitarismo, como se sabe, pode ser de direita ou de esquerda, tanto faz – e nunca resultou em bem para as pessoas comuns.

É mais ou menos o que Lloyd Williams descobre ao alistar-se como voluntário para lutar na Guerra Civil Es­panhola (1936-1939), conflito que historiadores consideram um dentre vários "prelúdios" que antecederam a Segunda Guerra Mundial propriamente dita. Essa guerra estourou, basicamente, porque a Espanha, na época dando seus primeiros passos como país republicano, havia eleito um governo de esquerda, o que os fascistas do país não aceitaram. O conflito, então, envolvia as tropas leais ao governo socialista, de um lado, e rebeldes de direita do outro. Na prática, foi uma "guerra por procuração", pois, enquanto a Alemanha nazista de Hitler e a Itália fascista de Mussolini forneciam armas, suprimentos e treinamento aos rebeldes, a União Soviética fazia o mesmo pelas tropas do governo. Enquanto durou a guerra, muitos voluntários vindos de vários países se apresentaram – "lutar na Espanha" foi muito romantizado, era visto como o ato supremo de idealismo por muitos jovens, e outros nem tão jovens assim, que viviam o sonho do socialismo. Só para dar um exemplo, um desses voluntários foi o inglês Eric Arthur Blair, mais tarde imortalizado com o nome de George Orwell, que retratou a guerra em Homage to Catalonia (publicado no Brasil como Lutando na Espanha), um de seus livros mais aclamados.

Na Espanha, Lloyd não demora muito a perceber que a realidade da guerra é muito diferente daquilo que sua jovem cabeça idealista imaginava. Como se não bastasse o terror dos sangrentos combates, ele é defrontado com a irracionalidade da máquina bolchevique: os soviéticos, de cujo apoio ele e seus companheiros dependem, estão acorrentados a uma burocracia estatal que é um verdadeiro monstro. O ditador Josef Stalin é vis­to como uma espécie de deus, cegamente obedecido em qualquer circunstância, mesmo que todos estejam vendo que suas decisões são erros desastrosos. Pessoas sem preparo são colocadas em cargos importantes, unicamente por sua lealdade a Stalin e ao Partido Comunista. Todos são obrigados a prender-se a uma infinidade de regras inflexíveis, das quais não é permitido desviar-se um milí­metro sequer, não importa que isso custe vidas humanas. Ao menor sinal de qualquer comportamento não ortodoxo, a pessoa passa a estar na mira da NKVD, a temida polícia política russa, que, é claro, estende seus tentáculos a qualquer lugar onde os interesses da União Soviética estejam em jogo, como era o caso da Espa­nha naqueles dias. E estar na mira da NKVD significa, na melhor das hipóteses, ter toda a vida minuciosa­mente investigada e seus segredos mais íntimos irem parar numa pasta de arquivo; na pior, significa tortura e morte. Isso faz nosso herói com­preender que nenhum tipo de extremismo irá criar um mundo melhor, e o leva a concluir que o comunismo deve ser combatido com o mesmo afinco que o nazismo. Isso irá influenci­á-lo mais tarde, quando, a exemplo da mãe, torna-se deputado na Inglaterra, alinhado com os socialistas mode­rados.

Também é na Espanha que Lloyd conhece o tenente Vladimir "Volodya" Peshkov, um jovem oficial do Exérci­to Vermelho que, como ele, chama de pai alguém que não é seu pai biológico – mas, diferente de Lloyd, Vo­lodya não sabe disso: acredita ser mesmo filho de Grigori Peshkov, agora um importante general, que foi quem o criou. Na verdade, Volodya é o filho que Lev, irmão de Grigori, deixou na barriga da namorada ao sair às pressas da Rússia, no já distante ano de 1914, fugindo da polícia. Grigori casou-se com Katerina, a mãe de Volodya, e os dois têm uma filha, Anya. Lev, por sua vez, radicou-se nos Estados Unidos, onde casou-se com Olga Vyalov, filha de um gângster russo, e, graças a sua muita astúcia e poucos escrúpulos, ampliou e diversificou os negócios herdados do sogro; agora, é muito mais rico e muito mais temido do que o velho Josef Vyalov alguma vez foi. Com Olga, Lev teve uma filha, a linda Daisy, agora uma socialite cabeça-oca; com uma de suas amantes, teve um filho, Greg, um rapaz ambicioso, que admira o pai, de quem herdou a astúcia. Cir­culando em meio à alta sociedade da cidade de Buffalo, no estado de Nova York, Daisy e Greg convivem com muitos outros jovens de famílias influentes, entre eles os irmãos Woody e Chuck, filhos do agora senador Gus Dewar. Enquanto Woody sem­pre quis seguir os passos do pai na política, Chuck deseja entrar para a Mari­nha.

Só por esse parágrafo, já deve ter dado para sentir o impressionante entrelaçamento de vidas e destinos cria­do por Ken Follett. Caramba, chega a ser difícil dar uma breve ideia geral do enredo do livro, pois falar de um personagem me obriga a falar de outro, e assim vai! É verdade que Follett, por vezes, recorre a coincidências improváveis, estilo Jane Eyre, mas, ainda assim, não dá para não admirar a engenhosidade com que ele ar­quiteta toda essa trama, conseguindo fazer com que haja sempre um personagem no lugar certo e na hora certa para lhe permitir abordar um acontecimento histórico importante. O que achei discutível, em contra­partida, foi a op­ção do autor por aumentar o número de páginas dedicadas aos dilemas pessoais (geralmente amorosos) dos personagens, em relação ao volume anterior. Compreendo que, para que se tenha uma obra de ficção históri­ca, é preciso ter personagens vivendo o momento dos acontecimentos apresentados, e que, para que haja per­sonagens, tem que haver também um background e problemas particulares para cada um deles – só fiquei um pouco decepcionado ao ver que namoros, casamentos e desilusões acabaram ocupando tanto espaço, que vários eventos importantes ou significativos da guerra, ou ligados a ela, ficaram sem ao me­nos uma menção. Posso citar, entre outros exemplos, a Noite dos Cristais, em 09 de novembro de 1938, tal­vez o primeiro regis­tro de uso de violência em caráter oficial e em grande escala, pelo governo nazista, contra os judeus; a Guerra de Inverno, entre o final de 1939 e o início de 1940, entre União Soviética e Finlândia – é interessante lemb­rar que os soviéticos só puderam dar-se ao luxo de travar essa guerra porque ainda estava em vigor o pacto de não-agressão com a Alemanha; ou o heroico episódio do Levante de Varsóvia, em 1944, no qual civis polo­neses, armados com o que puderam encontrar, lutaram nas ruas contra o bem-treinado e bem-equipado exército alemão a fim de tentar libertar sua cidade da ocupação nazista. Follett silencia total­mente sobre tudo isso – e deve haver muito mais, pois não tenho a pretensão de conhecer tudo sobre a guerra.


Por outro lado, o autor merece aplausos por não perpetuar aquela visão simplista que pinta a Segunda Guerra Mundial como uma luta entre o "bem" e o "mal", e por desconstruir alguns mitos hollywoodianos sobre ela. Alguns poderão achar chocante saber que a Alemanha, no início, limitava seus ataques aéreos à Inglater­ra a alvos militares, e que, quando começou a lançar bombas sobre áreas residenciais, foi como re­presália, pois os ingleses fizeram isso primeiro nas cidades alemãs. E essa tática fazia parte de uma estraté­gia cruel: como um personagem do livro explica a outro, a Inglaterra fazia pouco progresso na guerra ao bombardear indústrias na Alemanha, pois os alemães simplesmente as reconstruíam. Surtia muito mais efeito bombarde­ar os bairros onde se concentravam as moradias da classe operária, já que os trabalhadores mortos não podi­am ser substituídos com a mesma rapidez que prédios ou máquinas. Aterrador.

Se formos falar em mitos hollywoodianos sobre a Segunda Guerra Mundial, não há como negar que o maior deles diz respeito à relevância geral da participação norte-americana no conflito. Quem assiste aos filmes que andam por aí fica com a impressão de que os ianques foram a força vital que possibilitou a vitória dos Alia­dos, e de que os outros foram meros coadjuvantes. Por estranho que pareça em face do que foi dito poucos parágrafos acima, a realidade é que, se hoje não vivemos num mundo moldado pela ideologia nazifascista, devemos isso aos comunistas: entre os Aliados, a União Soviética foi, de longe, o país que mais fez pela vitó­ria, e também o que mais sofreu com a guerra. Há sempre dois lados na moeda, porém: os soviéticos eram combatentes corajosos, mas, ao invadirem a Alemanha, semearam o terror entre a população local com estu­pros e saques – e o pior, eram estimulados a isso pela propaganda oficial soviética, que os incitava a se "vingar" pelo que os alemães tinham feito à Rússia, como se as pessoas comuns da Alemanha fossem culpa­das. Ken Follett mostra essa realidade também.

Tirando o excesso de romance, como dito acima, Inverno do Mundo é uma digna continuação para a trilogia O Século, iniciada de forma tão magistral com Queda de Gigantes. Fico imaginando como será o próximo e último volume, A Eternidade por Um Fio, que, segundo as informações, tratará da Guerra Fria – um desdob­ramento natural da corrida armamentista entre Estados Unidos e União Soviética, cujo início é mostrado em Inverno do Mundo. Talvez esse terceiro livro não seja tão emocionante quanto os dois primeiros, já que pro­vavelmente não envolve combates propriamente ditos, mas tem tudo para ser tenso e cheio de intriga. Vamos aguardar.