quinta-feira, maio 28, 2015

Escuridão Total Sem Estrelas

Um novo livro de um autor importante sendo lançado é sempre um acontecimento empolgante para seus fãs, mesmo os que não encaram madrugadas em filas diante de livrarias para conseguir estar entre os primeiros a comprá-lo – pessoalmente, nunca consegui ser "xiita" desse jeito em relação a nada. Porém, não deixo de entender os camaradas que fazem isso: no meu caso, topei com Escuridão Total Sem Estrelas na vitrine da Livraria Digital durante uma passada pelo shopping Bourbon de Novo Hamburgo, e tive que comprá-lo na mesma hora. Ainda ia a outros lugares, seria bem mais prático se não estivesse carregando nada, e o livro certamente não iria fugir se eu deixasse para comprá-lo na semana seguinte, mas, mesmo assim, comprei, e logo comecei a lê-lo, o que implicou em deixar outros livros na fila por mais um tempo. Mas não muito tempo, pois "devorei" minha nova aquisição em questão de poucos dias.

A primeira coisa que chama atenção em Escuridão Total Sem Estrelas, antes mesmo de o abrirmos, é a bem bolada apresentação editorial: a Suma de Letras, atualmente responsável pela publicação de Stephen King no Brasil, fez um trabalho caprichado, aproveitando a sugestão do título. A capa é preta, com letras igualmente pretas, que só são legíveis por terem acabamento fosco, contrastando com a textura lustrosa do fundo, e até as bordas das páginas são pretas!... Só a lombada e a contracapa trazem letras brancas, imagino que porque o recurso da textura só tenha um resultado legível se a fonte for grande.

A publicação original de Escuridão Total Sem Estrelas é de 2010, e talvez o hiato de cinco anos explique o motivo do pouco estardalhaço em torno do lançamento nacional: a essa altura do campeonato, os fãs mais ansiosos já o leram em edições importadas, ou na internet mesmo. Para os que ainda não leram, entretanto, a espera valeu a pena, pois o livro oferece tudo o que estamos acostumados a esperar de King, ainda que seja um exagero colocá-lo entre as melhores coisas que o cara já escreveu. Trata-se de quatro histórias que exploram diferentes esferas da costumeira área de atuação do autor, variando do tradicional conto de terror sobrenatural ao suspense psicológico, por vezes com leves pinceladas de ficção policial.

A primeira e mais longa história intitula-se 1922, citando o ano em que os eventos a serem narrados teriam transcorrido. Os protagonistas são Wilfred James, um plantador de milho do Nebraska, e sua família: a esposa, Arlette, e o filho adolescente, Henry. (Talvez não esteja fora de propósito lembrar que também é no Nebraska que se desenrola o conto As Crianças do Milharal, que vocês podem ler na coletânea Sombras da Noite; trata-se de um dos estados mais rurais dos EUA, famoso justamente por seus vastos milharais.) Dá para perceber que Arlette sempre teve um gênio ruim e que provavelmente sempre desejou viver na cidade, enquanto Wilfred e o filho são homens do campo por excelência, mas o conflito de verdade tem início quando ela herda as terras do pai, vizinhas às do marido, e decide vendê-las, o que lhe proporcionaria dinheiro suficiente para começar a vida em outro lugar. Ocorre que o comprador em potencial é uma empresa que pretende instalar ali um matadouro de porcos, o que irá poluir o riacho local e obrigar os vizinhos a conviverem com mau cheiro e dejetos. A solução apresentada por Arlette é muito simples: Wilfred pode vender suas terras também, e a família toda se mudaria para a cidade – só que o fazendeiro prefere morrer a fazer isso. Segundo ele, "cidade é lugar para idiotas", e o filho concorda totalmente. A questão chega a um impasse, até que Wilfred, já em desespero, começa a ter pensamentos nefastos: e se Arlette "desaparecesse"? A ideia de que, depois de sete anos desaparecida, ela seria considerada oficialmente morta e suas terras passariam a ser dele, só surge de maneira periférica na cabeça do fazendeiro, que é o narrador da história: fica claro que o crime que ele pensa em cometer não é motivado pela cobiça, e sim pelo apego ao único modo de vida que conhece, e pelo pânico que lhe causa a ideia de uma mudança. E isso apesar de Wilfred não ser o camponês bronco que vocês talvez estejam imaginando: a maior parte do tempo livre que os afazeres agrícolas lhe deixam é preenchida por leituras, e, refletindo esse hábito, sua narrativa é salpicada de citações literárias. Embora seja uma boa história, 1922, em minha opinião, estende-se além do necessário, ocupando, só ela, mais de um terço do livro, e não traz elementos sobrenaturais, a não ser que queiramos interpretar assim certas passagens macabras que também podem ser entendidas como alucinações da mente de Wilfred, atormentado pela culpa – é provável que suscitar essa dúvida no leitor fizesse parte dos planos do autor.

Na sequência, temos Gigante do Volante. A personagem principal é Tess, uma escritora que alcançou um relativo sucesso com seus romances policiais light sobre um grupo de velhinhas cujos passatempos preferidos são tricô e desvendar assassinatos (o paralelo com Miss Marple, a famosa personagem de Agatha Christie, é tão óbvio que o autor prefere citar explicitamente a semelhança, talvez para que ninguém o acuse de plágio – o que parece já ter acontecido com Tess). A escritora, entretanto, não está na mesma faixa etária de suas personagens: tem 30 e poucos anos e, além do que lhe rendem os direitos autorais de seus livros, costuma ganhar uns extras fazendo palestras em livrarias, bibliotecas e eventos. É em sua viagem de volta de uma dessas palestras que ela sofre a experiência que irá marcá-la pelo resto da vida. Ao pegar um atalho sugerido pela simpática bibliotecária que organizou a palestra, um dos pneus de seu carro é estourado por pedaços de madeira com pregos que alguém deixou cair (jogou?) na estrada. Quem aparece para oferecer ajuda é um enorme e prestativo motorista – que, em vez de trocar-lhe o pneu, acaba estuprando-a, e depois, julgando-a morta, descarta-a num lugar ermo onde jazem os restos de, no mínimo, duas outras mulheres. Ela decide não ir à polícia, mas tomar o assunto nas próprias mãos, vingar a si mesma e às vítimas que a precederam, além de poupar outras mulheres de passar pelo mesmo. Porém, essa busca por vingança acaba trazendo à tona um lado da escritora que ela até então não conhecia, e que não a faz se sentir mais tranquila consigo mesma. Também aqui não há nada sobrenatural: o horror nestas páginas é de outro tipo, e King demonstra dominá-lo igualmente bem. Como frequentemente se diz, é impossível a um homem compreender ou imaginar como fica a cabeça de uma mulher que foi estuprada, mas o autor, sem dúvida, se esforçou: deve ter lido vários depoimentos e artigos de psicologia para compor a personagem. O resultado é, no mínimo, perturbador.

O terceiro conto (enfim!) traz ao livro a presença do "estranho, bizarro e inesperado", como diria Jack Palance. Extensão Justa é a história de um homem chamado Dave Streeter, que, diagnosticado com um câncer terminal, sabe que só lhe restam alguns meses de vida, e que esse curto intervalo de tempo será muito desagradável, isso para falar eufemisticamente. Então, aparentemente por acaso, ele conhece um estranho negociante que se apresenta como Sr. Odabi (o autor dá a dica de que isso é um anagrama, e o significado das letras depois de reordenadas fica óbvio quando se toma conhecimento da natureza do negócio que ele tem a oferecer). Odabi explica que vende "extensões" – qualquer tipo de extensão de que a pessoa necessite: extensões de amor para apaixonados, extensões de crédito para os que enfrentam problemas financeiros, e até mesmo extensões de "pinto" para os insatisfeitos com seu "equipamento de fábrica". Para alguém na situação de Streeter, ele declara estar em condições de oferecer uma extensão de vida a preço módico; porém, além do preço acertado, há outro ponto a considerar. Segundo Odabi, "até mesmo coisas que não existem possuem peso. Peso negativo, que é o pior tipo". Sendo assim, o peso a ser removido dos ombros de Streeter precisa ir para algum lugar – falando sem rodeios, precisa ser transferido para alguém, e é o próprio Streeter quem precisa decidir quem será, precisa dar um nome, apontar uma pessoa específica, pois, também de acordo com Odabi, "essa história de sacrifício anônimo já foi testada e não funciona". (Se isso fez alguém lembrar do clássico conto A Caixa, de Richard Matheson, não é mera coincidência; pelo menos, não creio que seja.) Extensão Justa é o conto mais curto, o melhor e, ouso dizer, o mais "Stephen King" do livro. Deixo para cada leitor julgar se isso tem ou não a ver com o fato de ser também o único a apresentar elementos sobrenaturais.

Fechando o quarteto de histórias, Um Bom Casamento é um suspense psicológico sobre a impossibilidade de se conhecer completamente uma pessoa. Darcy Anderson é uma mulher de meia-idade, com um casamento feliz que já dura 27 anos, dois filhos adultos, e uma vida tranquila e normal, qualquer que seja o prisma por onde se olhe. Seu marido, Bob, é contador (conseguem imaginar profissão mais "normal" que essa?) e parece ser o sujeito mais centrado do mundo: bom marido, bom pai, organizado e metódico em tudo o que faz, talvez até um pouco demais. Para Darcy, ela e sua família habitam um universo confortável, previsível e à prova de abalos… Até ela descobrir, por puro acaso, um nicho oculto num canto da garagem de sua casa, onde Bob evidentemente pretendia que ela não o encontrasse. Nesse esconderijo estão os documentos pessoais de uma mulher que Darcy não conhece, mas cujo nome não lhe é estranho, e ela logo lembra por que: ouviu o nome nos telejornais. Aquela mulher foi a mais recente vítima de um misterioso serial killer conhecido como "Beadie". A horrenda conclusão que se impõe com esse achado estilhaça num único instante todas as certezas que Darcy acreditava ter, além de confrontá-la com a decisão mais dura de sua vida: o que seria pior? Denunciar o pai de seus filhos e vê-lo ser condenado à prisão perpétua? Ou continuar dormindo ao lado de um monstro, fingindo não saber de nada e deixando-o livre para seguir matando? Contar mais que isso seria dar spoiler, mas acho engraçado (ou assustador, depende do ponto de vista) mencionar a parte em que, logo após ter feito sua descoberta, Darcy fala ao telefone com o marido, que está numa viagem de trabalho. Embora ela se esforce por aparentar normalidade, Bob facilmente percebe que algo está errado, e com a mesma facilidade deduz – corretamente – do que se trata, apressando, então, seu retorno, a fim de que os dois possam ter a "conversa franca" que a situação exige. Uma inflexão diferente na voz da esposa, uma mínima alteração no padrão das pausas em relação ao costumeiro, um ligeiro gaguejar aqui e ali, e pronto: Bob já sabe o que precisa saber, e é mais do que provável que, se os papéis estivessem trocados, Darcy também soubesse. Isso apenas mostra o quanto duas pessoas se conhecem depois de tanto tempo vivendo juntas – e a questão aqui é: elas podem se conhecer muito, mas não completamente. Nunca completamente.

Quem já leu bastante Stephen King aprendeu a reconhecer a diferença entre o autor em sua melhor forma e quando ele está apenas "dentro do esperado". Pessoalmente, nunca o vi ficar abaixo disso, e, mesmo em seus momentos menos inspirados, qualquer coisa escrita por ele é garantia de, no mínimo, fazer valer o tempo e o dinheiro investidos pelo leitor. Escuridão Total Sem Estrelas não pode em hipótese alguma ser colocado no mesmo patamar de clássicos como Christine ou O Iluminado, mas, apesar da variabilidade no nível das histórias, fica, tirando uma média, pelo menos alguns degraus acima das coisas mais fraquinhas já produzidas pelo cara ao longo de sua extensa e prolífica carreira.