quinta-feira, dezembro 29, 2016

Rogue One: Uma História Star Wars


Fomos, Cintia e eu, ver o novo filme da franquia Star Wars, anteontem, no Cinépolis 4D do Shopping JK Iguatemi, em São Paulo – o mesmo cinema onde vimos Episódio VII: O Despertar da Força, exatamente um ano atrás. Para quem não conhece, trata-se de um cinema muito especial, com poltronas que se movem acompanhando o que acontece no filme, efeitos de vento, e até borrifos de água quando a cena assim exige. É tão legal que a gente até esquece essa bobagem de "4D" no nome! E esse filme, em especial, tornou a experiência bem divertida, fazendo valer os (bons) reais pagos a mais no ingresso. Mas vamos falar do que realmente importa.

Embora só tenhamos sabido disso no dia seguinte, vimos Rogue One no mesmo dia em que faleceu a atriz Carrie Fisher, que interpretou a Princesa Leia na trilogia clássica, nos anos 70 e 80, e também em O Despertar da Força. Fisher, de apenas 60 anos, sofreu um ataque cardíaco durante um voo da Inglaterra para os Estados Unidos, vindo a morrer horas depois no hospital da Universidade da Califórnia, em Los Angeles – e, como minha namorada observou de forma tão sagaz, a vida não é justa mesmo, pois a atriz deixa este mundo bem no momento em que começava a voltar a chover em sua horta. Com a compra da Lucasfilm (detentora dos direitos de Star Wars) pela Disney, em 2012, a promessa feita foi a de que os fãs seriam brindados com um novo filme da franquia todo ano – já que a Disney, sendo a Disney, dispõe de pessoal, estrutura e recursos para tanto. E, depois do necessário período de ajustes de pouco mais de dois anos, a promessa vem sendo mantida: O Despertar da Força dava sequência a O Retorno de Jedi, lançado no distante 1983, e, embora ainda estejamos aguardando pelo Episódio VIII, Rogue One vem para suavizar a espera. Trata-se de um spin-off, ou seja, uma história que não propriamente faz parte da saga, mas ambienta-se no mesmo universo e está, de alguma forma, relacionada a ela.

Outra observação de Cintia: Star Wars nunca esteve tão na moda quanto agora, e os filmes são apenas uma fração do fenômeno. Nas livrarias há, literalmente, dezenas de títulos disponíveis, romances ambientados nesse universo, indo desde as adaptações dos filmes até extrapolações que exploram as muitas lacunas que eles deixam, isso sem falar, é claro, nos milhares de produtos licenciados de todos os tipos. O logo de Star Wars e as caras dos principais personagens estão em qualquer lugar para onde olhemos! Isso, somado ao fato de Leia ter, muito provavelmente, lugar de destaque em todos os episódios da nova trilogia, representaria uma mina de ouro e um salto em termos de fama para Fisher, bem como para seus colegas de elenco, dos quais apenas Harrison "Han Solo" Ford consolidou uma carreira de sucesso no cinema depois de sua participação na franquia (não estou considerando os que já eram nomes consagrados na época, como Peter Cushing ou Alec Guiness). Infelizmente, Fisher não se beneficiará dessas novas oportunidades… Parece que parte de suas cenas destinadas ao Episódio VIII já haviam sido gravadas; resta-nos esperar para ver qual a mágica que o diretor e o roteirista irão fazer para suprir sua falta no restante do filme.


Rogue One, entre outras coisas, responde a uma questão que os fãs mais detalhistas de Star Wars vêm levantando desde 1977, ano em que foi lançado o filme que hoje chamamos de Episódio IV: Uma Nova Esperança, mas que por muito tempo foi conhecido apenas como Star Wars, ou, no Brasil, Guerra nas Estrelas. A questão é: como é possível que a Estrela da Morte, projetada para ser a arma definitiva do Império Galáctico, capaz de destruir planetas inteiros, e que demandou um volume absurdo de recursos e mão de obra, tivesse uma brecha em suas defesas, que Luke Skywalker e os outros pilotos da Aliança Rebelde puderam usar para destruí-la? Nesse novo filme, que se passa imediatamente antes do Episódio IV, ficamos sabendo que o principal responsável pelo projeto da superarma foi o cientista imperial Galen Erso (Mads Mikkelsen, da série Hannibal), que, no entanto, não concordava com a política tirânica do imperador Palpatine, e, por isso, tentou abandonar a posição que tinha, exilando-se, com a esposa e a filha pequena, num planeta primitivo, onde passou a viver como fazendeiro. Porém, agentes do Império acabam por conseguir localizá-lo e o capturam para obrigá-lo a finalizar o projeto inacabado da Estrela da Morte.

Galen é levado, sua esposa é morta, mas o casal consegue salvar a filha, Jyn, que fica sob a proteção de um homem chamado Saw Gerrera (Forrest Whitaker), um líder rebelde e velho amigo de seu pai. Anos mais tarde, Jyn, já adulta (Felicity Jones), está numa prisão do Império por causa de uma série de pequenas infrações não relacionadas à rebelião, quando é resgatada pelos rebeldes, que sabem quem ela é e planejam usá-la para encontrar Galen – e matá-lo, embora não contem a ela essa última parte. Escoltada pelos rebeldes, Jyn reencontra seu antigo tutor Saw Gerrera, que lhe mostra uma mensagem holográfica que Galen Erso gravou e enviou secretamente. No holograma, entre outras coisas, o cientista revela um segredo: embora tenha sido forçado a colaborar no desenvolvimento da Estrela da Morte, não queria ser responsável por dar ao imperador uma arma que seria usada para fortalecer sua tirania. Então, propositalmente, deixou um ponto fraco, que um piloto hábil e com conhecimento das plantas da Estrela da Morte poderia usar para destruí-la. Rogue One é a história de como os rebeldes obtiveram essas plantas, o que possibilitou aquela vitória épica ao final do Episódio IV, que sagrou o jovem Luke Skywalker como um guerreiro admirado. Para ir em busca dessas preciosas informações, Jyn é acompanhada por um curioso time de combatentes rebeldes sob a liderança do comandante Cassian Andor (Diego Luna). Todos os que compõem esse grupo são personagens cativantes, que certamente ficarão na memória dos fãs, mas já há muitos textos e vídeos pela internet afora tratando deles, de modo que prefiro adotar um foco diferente para o restante deste post. Não que o que vou dizer também já não tenha sido escrito, muito provavelmente, mas são considerações mais pessoais. Vamos a isso…

O que preciso comentar são as surpresas (e o contentamento) que essa nova fase de Star Wars tem trazido para os fãs da velha guarda como eu, proporcionando uma carga de emoção como não experimentávamos desde a trilogia clássica, formada por Episódio IV: Uma Nova Esperança (1977), Episódio V: O Império Contra-ataca (1980) e Episódio VI: O Retorno de Jedi (1983), que marcou época no cinema de ficção científica… Na verdade, classificá-la dessa forma é controverso; eu mesmo sou da opinião de que "fantasia espacial" chega mais perto de definir o que Star Wars é – mas aqui não é o lugar de discutir isso. O importante é que a trilogia clássica marcou época e inaugurou o que hoje é praticamente uma nova mitologia, um universo vastíssimo, cheio de tramas entrelaçadas, aventuras épicas e personagens inesquecíveis. Não que esses primeiros filmes tivessem enredos complexos ou muito inovadores: era a boa e velha luta do bem contra o mal, e pouco mais que isso. Talvez essa simplicidade seja parte da magia, juntando-se à ação vertiginosa, ao visual marcante e aos personagens carismáticos para explicar o que nos fascina tanto. Star Wars nunca terá a mesma complexidade nos roteiros que Star Trek, e dificilmente se prestará tão bem a estimular reflexões sobre questões do mundo real – o que não significa que um seja melhor que o outro: são propostas completamente diferentes (daí por que nós, nerds, ficamos tão contrariados quando um leigo confunde os dois!), e há muita gente que adora ambos, como eu, por exemplo.

Justamente o fato de Star Wars, como regra, tender para a simplicidade nos enredos, faz com que Episódio VII: O Despertar da Força e Rogue One sejam surpreendentes: pela primeira vez na saga, há sugestões de que nem o Império Galáctico nem a Aliança Rebelde são blocos monolíticos, nos quais todos pensam igual. No Episódio VII, conhecemos Finn, um stormtrooper (soldado de infantaria do Império) que tem dúvidas sobre a validade moral da causa que defende, passa a questionar as ordens que recebe, e acaba por desertar e juntar-se aos rebeldes; em Rogue One, descobrimos que dentro da Aliança Rebelde existem dissidências, facções que discordam entre si e membros ambiciosos que não desejam apenas trazer de volta a paz e a justiça dos tempos da Velha República, mas também subir na cadeia de comando e obter poder para si próprios. E pensar que, quando soubemos que Lucasfilm agora pertencia à Disney, chegamos a ter receio de que os novos filmes viessem com argumentos mais infantis!… Até agora, tem sido o contrário. No mesmo rumo vai o final surpreendente e um tanto chocante de Rogue One, que, se alguém me perguntasse antes de eu tê-lo visto, eu diria ser impensável para um filme de Star Wars.


(Parêntese 1: Enquanto assistia a Rogue One, meu queixo caiu lá embaixo ao ver o legendário Peter Cushing – astro de terror dos anos 50, 60 e 70, falecido em 1994 – de volta ao papel de Grand Moff Tarkin, comandante da Estrela da Morte, que havia interpretado no Episódio IV. É claro que eu sabia que a computação gráfica já atingiu um grau de desenvolvimento que torna possível criar imagens extremamente realistas, mas há diferença entre saber isso na teoria e ver um cidadão morto há mais de 20 anos atuando num filme recém-lançado, de tal jeito que quem não soubesse do que se trata poderia pensar que ele não só continua vivo, como não envelheceu nada nos últimos 39 anos, feito os vampiros que matava em seus antigos filmes. Nesse passo, logo não serão mais necessários atores! Também graças aos milagres da computação gráfica, uma Carrie Fisher com pouco mais de 20 anos de idade faz uma rapidíssima aparição bem no final do filme. Pensando bem, o falecimento da atriz de carne e osso não deverá ser um empecilho tão grande assim.)

(Parêntese 2: Eu disse há pouco que Star Wars virou quase uma nova mitologia, o que, entre outros efeitos práticos, faz com que nós, fãs de toda a vida, tenhamos a saga tão entranhada no nosso imaginário, que nos parece impossível que algumas pessoas realmente não saibam de certas coisas. Isso causou um incidente engraçado quando Cintia, uma neófita nesse universo, quis ver as duas primeiras trilogias. Levei meus DVDs dos episódios I a VI para a casa dela, e assistimos a tudo juntos – primeiro a trilogia clássica, é claro, e depois a mais recente… Só que, durante aqueles comentários que são de praxe entre um filme e outro, eu deixei escapar a informação de que Darth Vader era pai de Luke e Leia! Claro que ela ficou danada por eu ter estragado a surpresa, mas que culpa eu tenho?! "Luke, eu sou seu pai" já virou uma expressão proverbial, a cena em que essa fala é dita foi reproduzida centenas de vezes em comédias, charges etc… O assunto já rendeu até livros de humor! Como é possível que alguém ainda não saiba??)

(Parêntese 3: Garoto ainda, ao me aboletar diante da TV ao lado de meu pai ou de algum amigo para assistir pela enésima vez à reprise de qualquer dos episódios da trilogia clássica [isso foi antes do tempo do DVD, e não tínhamos videocassete, de modo que reprises eram algo que merecia importância], eu sempre ficava agoniado quando começava a passar aquele inconfundível letreiro inclinado, porque, logo no início dele, dizia Episódio IV, ou V, ou VI… Pois, se aqueles eram os episódios quatro, cinco e seis, isso devia implicar, logicamente, que existissem os episódios um, dois e três, que eu não conhecia! É claro que não podia imaginar que os primeiros episódios, até então, só existiam como uma ideia na cabeça de George Lucas, e só seriam efetivamente filmados muitos anos depois. O mais inacreditável é que, na época, ninguém além de mim jamais pareceu reparar nisso, e hoje muita gente teima comigo que os dizeres Episódio IV, V e VI não existiam nas versões originais, e que só foram introduzidos nas edições lançadas depois que a segunda trilogia já existia… Tsc, tsc.)

Enfim, é muito bom ver que, depois de tanto tempo sem novidades (no cinema, pois nos livros, quadrinhos e games os lançamentos nunca pararam), Star Wars foi retomado com qualidade e com um vigor renovado. Todos ficaremos felizes se a franquia, num futuro relativamente próximo, conseguir rivalizar com Star Trek em número de longas-metragens, e talvez nem mesmo o surgimento de séries de TV seja um sonho tão impossível. Afinal, agora a coisa está nas mãos da Disney, e, se ela continuar demonstrando a mesma competência… Bem, aí nem mesmo o espaço será mais a fronteira final (opa, isso é de Star Trek). Que a força esteja com todos (ah, agora sim!).

Obrigado por tudo, Carrie Fisher. Que a força esteja com você também, onde você estiver agora.


sábado, novembro 05, 2016

Hannibal: a Série

Da última (e primeira!) vez que escrevi sobre um trabalho de Thomas Harris, a obra que comentei foi Hannibal: a Origem do Mal, que, dos livros a respeito do personagem Hannibal Lecter, foi o último a ser escrito e publicado, embora seja o primeiro por ordem cronológica. Na ocasião, tracei vagamente o plano de ler ou reler os outros livros, e, possivelmente, comentá-los um por um. Entretanto, antes que eu efetivamente pegasse o próximo da saga, que seria Dragão Vermelho, comecei a assistir à série de TV Hannibal, produzida pela NBC, e agora acabo de chegar ao final de seus 39 episódios, distribuídos em três temporadas, exibidas de 2013 a 2015. Ela começa com o personagem vivendo seu auge em termos profissionais, como um dos psiquiatras mais conceituados da cidade de Baltimore e, provavelmente, de todo o estado de Maryland, e quando, além de clinicar em seu consultó­rio, era frequentemente chamado a colaborar com a agência local do FBI, ajudando a montar perfis psi­quiátricos que pudessem orientar os investigadores na busca a criminosos insanos. Isso, é claro, foi an­tes de suas pró­prias atividades como serial killer serem descobertas, e de seu consequente confinamen­to na insti­tuição para, bem, criminosos insanos onde vamos encontrá-lo em Dragão Vermelho e O Si­lêncio dos Inocen­tes. Porém, se vocês ainda não assistiram à série e pretendem fazê-lo, estejam avisa­dos: seu criador, Bryan Fuller, não fez questão alguma de se ater ao que os leitores de Har­ris e os espectadores dos filmes baseados em seus livros já sabiam. Trata-se de uma rei­maginação radical do mundo que ro­deia Hannibal – e dele próprio.

Só para começar, a primeira coisa que salta aos olhos é a época em que os episódios estão ambientados. Sabemos, por meio dos li­vros e filmes, que Hannibal Lecter nasceu em 1933 e que testemunhou as provações que seu país natal, a Lituânia, atra­vessou durante a Segunda Guerra Mundial e em sua posterior anexação à União Soviéti­ca; aliás, as ex­periências traumáticas que o então menino Hannibal viveu durante a guerra foram, muito provavelmen­te, o gatilho que despertou o instinto assassino latente nele e que, de outra forma, talvez ti­vesse perma­necido adormecido durante toda a sua vida. Hannibal emigrou para os Estados Unidos no início dos anos 50 e estudou na prestigio­sa Universidade Johns Hopkins, em Baltimore. Seguindo essa cronologia, seus tempos de psiquiatra fa­moso deveriam coincidir com as décadas de 60 e 70; o filme Dragão Ver­melho informa que sua prisão teria acontecido em 1980. A série, entretanto, parece trans­correr na mes­ma época em que foi produzida e exibida, ou seja, em meados desta nossa própria e assus­tadora segun­da década do século XXI: os per­sonagens acessam a internet, portam smartphones e diri­gem carros mo­dernos. Se Hannibal (aqui inter­pretado pelo ator dinamarquês Mads Mikkelsen) estiver, como aparen­ta, nos seus 40 e poucos anos, en­tão deveria ter nascido no início dos anos 70, no mínimo 25 anos de­pois do fim da Segunda Guerra. Essa inconsistência não é explicada em momento algum da série.

Falar em internet me fez lembrar de outra coisa. Em Dragão Vermelho aparece o personagem Freddie Lounds, um repórter da imprensa sensacionalista, interpretado por Philip Seymour Hoffman, que es­creve para um tabloide – um jornale­co. Na série, ele, em vez disso, tem um site, mas o curioso não é isso, e sim o fato de ele ter virado ela: aqui, "Freddie" é o apelido de Fredericka (isso mesmo!) Lounds, papel de uma tal Lara Jean Chorostecki. Esse é apenas um exemplo do grau de liberdade que a série toma em relação a tudo o que já conhece­mos ligado à história de Hannibal.

Outros persona­gens não trocaram de sexo, mas nem por isso deixaram de sofrer grandes mudanças. Um deles é Will Graham, que, junto com Hannibal, é uma das figu­ras centrais. Em Dragão Vermelho ele era inter­pretado por Edward Norton, e era um agente do FBI, o responsável pela prisão de Hannibal; na série, o papel per­tence a Hugh Dancy, e Graham não é um agente, apenas um professor que leciona criminolo­gia para os trainées do FBI, e que, teoricamente, não deveria ter qualquer envolvimento direto com in­vestigações. Acontece que o cara possui um dom raro. Ao ver-se no cenário de um crime violento, consegue re­criar mentalmente o ocorrido, colocando-se no lugar do assassino, compreendendo seu modus operan­di, sentindo suas emoções e, muitas vezes, desco­brindo suas motivações, por mais loucas que se­jam. As ce­nas em que Will faz isso fazem com que pareça quase uma habilidade sobrenatural. Minto: parece mesmo sobrenatural. Não é preciso dizer que essa capaci­dade é extremamente útil na elucidação de as­sassinatos, e por isso a ajuda de Graham é frequen­temente solicitada pelo chefe da seção de Ciên­cias do Com­portamento, Jack Crawford – que, por sinal, também sofreu uma metamorfose, aliás mais uma. Em O Silêncio dos Inocentes, Crawford, vivido por Scott Glenn, tinha a cara de um agente de escri­tório, mais acostumado ao trabalho de coordenação que a sair pessoalmente atrás de assassinos; em Dragão Ver­melho ele era interpretado por Harvey Keitel, e pare­cia um delegado de polícia às vésperas da aposentadoria; em Hanni­bal, a série, Crawford aparece em sua encarnação mais durona: o ator Laurence Fishburne deu ao per­sonagem um jeitão de ex-fuzileiro. Crawford está ci­ente do quanto essas colaborações custam a Gra­ham, ho­mem afável e bondoso, que não suporta ver cães abandonados e por isso tem uma verdadeira matilha em casa. Sua natureza terna se choca terrivel­mente com os detalhes medonhos de todos aqueles assassi­natos, o que vai gradualmente abalando sua sanidade mental. Crawford sofre ao ver isso aconte­cer, mas o fato é que a participação de Graham salva vidas, e por isso ele não pode se dar ao luxo de dis­pensá-la – e Graham, embora não sendo obrigado, não tem coragem de negá-la. Will tem uma queda evidente por uma colega de trabalho, a psiquiatra Alana Bloom (papel da linda atriz canadense Caroline Dhaver­nas), ex-aluna de Hannibal, mas, embora não seja indiferente a ele, ela parece em dúvida sobre se seria uma boa ideia os dois se envolverem. O próprio Hannibal nunca está muito longe, embora haja episó­dios em que outros personagens (geralmente Will Graham) aparecem mais que ele.

(Uma observação que pouca gente deve ter feito, mas sem dúvida curiosa, é que Hannibal marca o reencontro de Mads Mikkelsen e Hugh Dancy, que já haviam contracenado em Rei Arthur, no qual ambos interpretavam cavaleiros da Távola Redonda: Mikkelsen era Tristão, e Dancy, Galahad.)

Li em algum lu­gar que, ao aceitar o papel-título na série, Mads Mikkelsen declarou que, apesar de sua admira­ção por Anthony Hopkins, não tinha a intenção de que "seu" Hannibal fosse igual ao dele. E, pelo visto, falava sério. Não podemos saber até que ponto Mikkelsen pôde influenciar os roteiros, mas o fato é que o per­sonagem, tal como interpretado por ele, não difere da versão de Hopkins apenas por uma questão de es­tilo e jeito de ser, mas também por diversos atos que pratica ao longo da série, e que o Hannibal de Hopkins ou faria de modo diferente, ou não faria em absoluto. O Hannibal de Hopkins tem um pendor para a ironia e o deboche, e por vezes demonstra um humor sutil e ácido; o de Mikkelsen é mais sério que um capincho, como dizemos aqui no Rio Grande do Sul: se esboçou um levíssimo sorriso, quase im­perceptível, duas vezes em toda a série, foi muito. Hopkins: Hannibal mata e come pessoas, mas esses atos, quase sempre, estão ligados a um senso de justiça – extremo e estranho, mas, ainda assim, um senso de justiça; quer dizer, é claro que não podemos aprovar o que ele faz, mas o entendemos. É muito raro que pratique uma crueldade gratuita. Mikkelsen: Hannibal também não mata aleatoriamente, mas é mais comum que o faça para proteger seus segredos e interesses do que por justi­ça; além disso, por ve­zes coloca pessoas em situações enlouquecedoras, de propósito, só pela curiosida­de de ver como irão rea­gir. Reitero que é difícil saber até onde as novas características do personagem devem ser atribuídas a Mads Mikkelsen e até onde são obra de Bryan Fuller, mas que ele está radical­mente di­ferente, isso, sem dúvida, está.

Novamente, preparem-se: o aviso de "recomenda-se discri­ção ao assistir", que aparece no início de todos os episódios, não é uma formalidade. A série é um desfile de mortes bizarras, perpetradas por serial killers tão insanos que, comparado com eles, Hannibal quase parece um cara normal. Há um sujeito que fabrica cordas para instrumentos musicais usando tripas hu­manas em vez das de animais. Outro é uma espécie de lobisomem hi-tech. Pelo menos três usam cadá­veres humanos como matéria-prima para instalações artísticas, e um, como terreno de plantio. Só em fi­car se pergun­tando se existirá mesmo tanta gente (?) com esse tipo de criatividade macabra, você já pode perder umas horas de sono. Volta e meia há uma cena de Hannibal cozinhando ao som de música clássica, mas com isso vocês vão se acostumar fácil. Para ele não parece haver diferença entre preparar um prato com ingredientes comuns adquiridos em sua delicatessen favorita, ou com pedaços de alguém.


Paralela­mente às buscas a esses assassinos (buscas essas nas quais Hannibal colabora com seu conhecimento psiquiátrico), Jack Crawford e seus subordinados nas Ciências do Comportamento lidam há anos com os crimes de um serial killer misterioso conhecido como o "Estripador de Chesapeake" (do nome do es­tuário que banha, entre outros, os estados de Maryland e Virgínia, sua área de atuação). Esse Estripa­dor, vocês adivinharam, é Hannibal em pessoa, que, como a maioria dos serial killers, tem um certo or­gulho de suas realizações, como se fossem algum tipo de obra artística, e ainda mais orgulho de fazer tudo o que faz enquanto passa boa parte do tempo convivendo com o pessoal do FBI, que o respeita, admira e tem suas opiniões em alta conta – ao mesmo tempo em que, sem saber, o caça febrilmente e sem sucesso. Mesmo precisando, por motivos óbvios, abster-se de reclamar o "mérito" de seus assassinatos, Hannibal quer receber reconhecimento por eles, e por esse motivo não fica nada satisfeito quando o Dr. Abel Gideon (outro médico psicopata, interpretado por Eddie Izzard, e interno do mesmo instituto onde Hannibal eventualmente iria parar) reivindica para si os crimes do Estripador de Chesapeake. Isso serve de estopim a uma bizarra batalha de egos entre assassinos, que é um, mas nem de longe o único conflito psicológico insólito que encontramos na série. Alguns desses conflitos são criações originais de Fuller, enquanto outros serão reconhecidos por quem leu os livros de Thomas Harris. Personagens conhecidos aparecem, embora tanto eles quanto suas histórias tenham sofrido transformações para se encaixar no universo recriado para a tela da TV.

Um desses personagens é Mason Verger, apresentado aos leito­res no último livro sobre Hannibal, intitulado apenas com o nome do personagem. Verger é um jovem milionário e inveterado abusador de crianças, que, graças ao poder e influência de sua família, escapou de qualquer pena mais severa, sendo "condenado" apenas a serviços sociais e a fazer terapia – com o Dr. Lecter. Logo fica claro para Hannibal que seu paciente não tem intenção alguma de se corrigir; Mason não apenas não leva a terapia a sério como tenta suborná-lo e, possivelmente, também seduzi-lo (há in­sinuações nesse sentido tanto no livro quanto no filme). Movido por seu já mencionado senso de justiça, Hannibal "cuida" de Mason à sua maneira; não fica cla­ro se o deixa com vida de propósito, mas o riqui­nho fica desfigurado e inválido, o que, para ele, é prova­velmente um casti­go muito pior que acabar no fogão de Lecter. Daí em diante, sua vida só tem um obje­tivo: vingar-se de Hannibal da maneira mais pa­vorosa imaginável. Não vou falar mais de Mason aqui, tanto para não dar spoiler para quem for ver a série, quanto pelo fato de que ainda tenho planos de falar do livro Hannibal, mas podem estar certos de que ele é um dos vilões mais diferentes e terríveis que já vi na literatura de suspense. No filme, Verger era interpretado pelo excelente Gary Oldman, embora fos­se impossível reco­nhecê-lo sob a maquiagem grotesca da cara desfigurada do personagem; na série, o papel é de Michael Pitt, que, a meu ver, captu­rou bem a combinação de maldade e frivolidade que carac­teriza o persona­gem antes do incidente. Já sua irmã e vítima, Margot, que existe no livro e na série, mas não no filme, é interpretada por Katharine Isabelle – e, também ela, enormemente diferente do que era na origem. Fuller chegou a dizer que tinha planos de que a agente Clarice Starling, tornada famosa pela interpretação de Jodie Foster em O Silên­cio dos Inocentes, também aparecesse, mas isso não havia se concretizado até o fim da terceira e última temporada. Também há boatos de uma possível retomada da série, mas, até o momento em que escrevo, não encontrei nenhuma informação concreta a respeito.

Acima de todas as subtramas, está sempre a relação entre Hannibal e Will Graham, uma relação cuja exata natureza nunca conseguimos descobrir. Os dois não apenas se compreendem: na ver­dade, cada um é a única pessoa ca­paz de compreender o outro, o que poderia fazer deles melhores ami­gos, quase almas gêmeas – mas nada tão simples assim acontece. Will ora se apoia totalmente em Han­nibal e pre­cisa desesperadamente dele, ora o odeia ao ponto de desejar sua morte, mesmo sem ter a confirmação das terríveis (e corretas) suspeitas que nutre. Já Hannibal é incapaz tanto de amor quanto de ódio; para ele, Will é uma pessoa digna de sua atenção, o que, pela sua cartilha, é um enorme elogio; o fato de que essa atenção, não raro, assume a forma con­creta de ciladas e tortura psicológica é para ele uma mera consideração secundária. Aqui e ali ao longo da série, e mais intensamente perto do final, há insinuações de que a relação dos dois poderia (caso as circunstâncias não o tornassem impossível) tomar um rumo homossexual; insinuações essas, a meu ver, que não contribuem em nada para a história, que poderia passar muito bem sem elas.

Sei que já fiz alertas demais para um post só, mas há mais um sem o qual não posso terminar: Hannibal não é uma série fácil de assistir, e não só por causa das ima­gens grotescas que volta e meia ocupam a tela. Muitos episódios são "psicológicos", o que significa que envolvem pouca ação de fato e, frequentemente, exibem cenas que não sabemos se são reais ou apenas as alucinações de alguém – em geral, Will Graham. Bem, pelo menos até que imagens claramente aluci­natórias se intro­metam no que até aí tinha aparência de realidade. Em seu mundo psicodélico, no qual vai se embre­nhando cada vez mais à medida em que sua sanidade vai ficando comprometida, Will vê Hannibal sim­bolizado ora por um enorme cervo negro, ora por um ser semelhante ao Deus Chifrudo da mitologia pri­mitiva – meio homem, meio cervo. O porquê da escolha do cervo, um herbívoro inofensivo, para repre­sentar um matador como Hannibal, é questão aberta à interpretação, mas tenho para mim que foi para fugir da obviedade de simbolizá-lo em um lobo ou outro animal predador. Esses episódios mais "men­tais" requerem muita atenção e paciência, e por vezes se tornam, numa palavra, cansativos. Aí vocês po­dem me perguntar: vale a pena? E a respos­ta só pode ser uma: é claro que vale. Entretanto, só recomen­do a série para cabeças fortes e tranquilas, que não achem que narrativa boa é a que aconte­ce em veloci­dade de videoclip e que, por amor a um excelen­te enredo geral, estejam dispostas a encarar alguns mo­mentos indigestos. E principalmente, desenca­nem de ficar ligando o que verão nesta série com o que já conheci­am dos livros e filmes. Aceitem que é uma recriação e mergulhem na história sem outras preocu­pações.

Um comentário prático à guisa de encerramento: cá pra nós, o jeito como Hannibal foi lançado em DVD no Brasil foi uma grande sacana­gem! Primeira temporada, volume 1, e Primeira temporada, volume 2? Pra quê? Quero dizer, pra que, além de obrigar o fã a pagar praticamente o do­bro, já que cada "volume" custa pouco menos do que cus­taria a temporada inteira, se lançada de uma vez só, numa única embalagem? O pior é que isso parece estar se tornando uma prática comum: já vi outras séries que estão sendo lançadas do mesmo jeito. De­pois, com que moral essas com­panhias vão poder reclamar se o público preferir recorrer à pirataria?

Por fim, isto agora os fãs de Arquivo X vão achar interessante: Gillian "Scully" Anderson aparece no pa­pel da Dra. Bedelia Du Mau­rier, a psiquiatra de Hannibal – que, como todo bom psiquia­tra, também tem sua própria psiquiatra. Gillian aparece primeiro de forma esporádica, para, lá pelo iní­cio da tercei­ra tempo­rada, assumir uma importância central na trama.

segunda-feira, outubro 31, 2016

Águias em Guerra

No início do primeiro século da Era Cristã, o então recém-instituído Império Romano parecia estar levando adiante com sucesso a conquista da Germânia, que, ao que tudo indicava, seguiria o mesmo caminho de muitas outras nações da Europa, Oriente Médio e norte da África: o de tornar-se mais uma província romana. Nas batalhas de Arbalo e do rio Lúpia, ambas em 11 a. C., o general romano Nero Cláudio Druso, enteado do imperador Augusto, havia obtido vitórias importantes sobre diversas tribos germânicas, as quais, desde então, polarizavam-se entre as que aceitavam o domínio de Roma e as que não o aceitavam – o que também era uma parte normal do processo de conquista. De todo modo, e muito graças a essas vitórias, a região do vale do Reno passou os vinte anos seguintes em relativa tranquilidade, experimentando um intenso desenvolvimento. Novas fortificações militares iam sendo construídas, e, em volta delas, surgiam vilas planejadas, mais limpas e seguras que os aldeamentos nativos. Boas estradas e pontes sólidas facilitavam a circulação de pessoas e mercadorias. Pela primeira vez, aquelas plagas até então selvagens ganhavam ares de civilização, e muitos dos nativos se adaptavam à nova realidade, passando a ganhar seu sustento graças às oportunidades que a presença dos romanos havia trazido, nos ramos do comércio e da indústria. Artesanias de diversos tipos, tabernas e pequenos comércios prosperavam como nunca, já que agora tinham como fregueses os soldados e os funcionários do Império Romano, que tinham salários regulares (!), o que, salvo algum imprevisto, significava dinheiro para gastar todos os meses – algo que, para os germânicos pobres, parecia coisa de outro mundo. Com isso, o padrão de vida médio da população da região sofreu uma melhora significativa, de modo que, apesar dos impostos que agora precisavam pagar a Roma, muitos não estavam descontentes. Em suma, no ano 9 d. C., a fase inicial e violenta da conquista parecia ter sido superada; daí em diante, ela se consolidaria na base da integração e da aculturação. Era o que parecia.

(A propósito: Druso, depois de sua morte, ganhou do senado de Roma o título de "Germânico", em homenagem a suas vitórias na Germânia. O título foi incorporado a seu nome, que passou a ser Nero Cláudio Druso Germânico, e foi herdado por seus filhos. O mais velho deles levou o mesmo nome que o pai e foi praticamente uma segunda edição dele, pois também se tornou um general de renome e praticou façanhas notáveis na Germânia; o mais jovem, Tibério Cláudio Druso Nero Germânico, foi imperador de 41 a 54, com o nome de Cláudio.)

Da integração de que falávamos há pouco fazia parte, entre outras coisas, o costume de aceitar o alistamento de nativos no exército; eles serviriam nas auxiliae (tropas auxiliares) como cavalarianos, arqueiros, ou como infantaria leve, dotando a máquina de guerra romana com alcance e mobilidade, coisas que não eram o forte das legiões. Depois de arremessar os dois ou três dardos (pila, plural de pilum) que levavam, os legionários tinham que passar ao combate corpo a corpo; tampouco podiam mover-se muito depressa com suas pesadas armaduras e escudos. Por isso as auxiliae eram necessárias, embora, verdade seja dita, geralmente não gozassem de muito prestígio: os legionários regulares tendiam a olhar os soldados auxiliares com certo desprezo, já que, afinal, eram "bárbaros", que só ganhariam a cidadania romana – e, por consequência, o direito de ficar em pé de igualdade com eles – ao final de seu tempo de serviço, se vivessem até lá, é claro. Porém, também era tendência que esse preconceito fosse abrandando ao longo do tempo, pois, como a cidadania era extensiva aos descendentes, os filhos de soldados auxiliares podiam ser legionários, e essas novas gerações (ao menos, era o que se esperava) veriam os auxiliares com outros olhos.


Esse status mais baixo de que padeciam os soldados das auxiliae tinha exceções. Uma delas foi Ermin, ou Irmin (nome que os romanos latinizavam para Armínio, e que evoluiu para Hermann no alemão moderno), filho de Segímero, um dos líderes da tribo germânica dos Cherusci ('queruscos'). Ainda durante a fase inicial da tentativa de conquista da Germânia, o general e mais tarde imperador Tibério (irmão de Nero Cláudio Druso) tentara convencer Segímero a se aliar ao Império, e, para demonstrar benevolência, tomou Armínio, ainda menino, sob sua proteção, e o enviou para ser educado em Roma. Armínio retornou à Germânia por volta do ano 2, com cerca de 18 anos de idade, tendo ganho a cidadania romana (um caso excepcional, devido a suas origens aristocráticas e ao papel-chave que esperava-se que tivesse na política Roma/Germânia durante os próximos anos) e a patente de tribuno militar. Sua missão consistiria em liderar a cavalaria formada por seus compatriotas, apoiando as legiões em qualquer luta que fosse necessário travar contra as tribos que ainda não reconheciam a soberania de Roma. Públio Quintílio Varo, que ocupou o cargo de governador da Germânia no ano 6, repetidamente demonstrou estima pessoal pelo jovem oficial, e gostava de citá-lo como exemplo de bárbaro que se adaptara com sucesso ao modo de vida romano. Mal sabia Varo que Armínio, no íntimo, nunca havia sido sincero em sua aliança com Roma: em segredo, ele imaginava maneiras de unificar as tribos germânicas divididas por rivalidades para, aproveitando-se da confiança que os romanos agora depositavam nele, orquestrar uma insurreição que os expulsasse para sempre das terras ancestrais de seu povo.

(Tudo até aqui é histórico; de agora em diante, passo a comentar o romance Águias em Guerra, no qual o escritor queniano Ben Kane recria a história da batalha da Floresta de Teutoburgo, cujo desfecho frustrou em definitivo os planos romanos de conquista para a maior parte do território germânico.)

A narrativa do livro acompanha dois homens: um germano, Armínio, e um romano, o veterano centurião primus pilus Lúcio Comênio Tulo. Lembrando: o primus pilus (latim para 'primeira lança', às vezes traduzido como primeiro-centurião) era o comandante da primeira centúria de uma coorte, e tinha, na prática, uma patente mais alta que a dos outros centuriões, sendo responsável pela coorte toda (seis centúrias formavam uma coorte, e dez coortes formavam uma legião). Tulo é um homem enrijecido por muitas batalhas nas diferentes províncias onde já serviu, e está numa altura da vida em que a ideia de reformar-se vai assumindo contornos mais concretos. Com 40 e poucos anos, passou os últimos 25 no exército – ou seja, já poderia estar reformado, mas optou por prorrogar seu tempo de serviço, provavelmente por não conseguir imaginar-se vivendo como civil. Agora, no entanto, até seu vigor físico já não é o mesmo de outros tempos, e ele considera que pode ser uma boa ideia ir descansar, deixando as lides militares para oficiais mais jovens e ambiciosos.

O que Tulo não esperava era ser agraciado com a missão de servir de ama-seca para um desses jovens oficiais. O tribuno Lúcio Túbero acaba de chegar de Roma, tem 17 anos e está empolgado com seu primeiro comando militar. Ansioso por mostrar seu valor em combate, ele não recebe bem a notícia de que sua primeira missão será uma patrulha de rotina pela margem leste do Reno, na qual as probabilidades de ocorrer alguma luta são quase nulas: as tribos da região são aliadas de Roma, e aquelas que permanecem hostis estão, em princípio, bem distantes. Essas patrulhas, além de servirem para exercitar os soldados em longas marchas, tinham uma função eminentemente ostensiva: a visão de tropas romanas em movimento era considerada salutar mesmo para as tribos nativas já pacificadas, pois as inspirava a pagar seus impostos sem resmungar e desestimulava qualquer ideia infeliz que pudesse andar revolvendo nas cabeças dos menos satisfeitos. Nenhum incidente é esperado durante os vários dias que esse deslocamento deverá durar, mas há um fio de esperança para Túbero: nos últimos tempos, germanos Tencteri, cuja tribo ainda não aceita o domínio romano, têm feito incursões à região do rio para roubar gado de outras tribos, e há alguma chance de que a patrulha tope com um desses bandos de ladrões. Naturalmente que, embora Túbero tenha a patente mais alta, Tulo é quem de fato comanda a operação – mas o centurião percebe logo que deve ser sutil e diplomático: Túbero é afoito e arrogante. O consolo de Tulo reside no fato de que muitos tribunos que começaram desse jeito amadureceram e acabaram por tornar-se bons oficiais… O que não muda a antipatia instantânea que ele logo sente pelo moleque.

Só para esclarecer aos que não estiverem familiarizados com a hierarquia do exército romano, os tribunos militares eram os oficiais diretamente subordinados a um legado, que era o comandante de uma legião (um general podia comandar diversas legiões). Cada tribuno tinha sob suas ordens vários centuriões e, teoricamente, cerca de mil legionários, embora, na prática, fossem quase sempre menos, pois era raro que uma centúria tivesse exatamente cem homens. A questão delicada aí é que o posto de tribuno era muitas vezes ocupado por jovens oriundos das famílias patrícias (isto é, aquelas de berço nobre e normalmente ricas), formados numa academia, mas sem qualquer experiência militar real, que estavam dando seus primeiros passos no cursus honorum (detalhes aqui). Enfim, Túbero é um exemplar típico. Colocar um rapazola inexperiente numa posição de comando era uma concessão política, mas ninguém era louco de não tomar precauções para evitar que isso acabasse em desastre: os tribunos sempre tinham junto de si centuriões experientes para auxiliá-los e aconselhá-los, e, na maioria das vezes, eram espertos o suficiente para ouvir o que eles diziam. Havia um mecanismo que visava garantir isso: ao mesmo tempo em que estavam sob as ordens do tribuno, os centuriões tinham o poder de avaliá-lo. Se os relatórios que eles encaminhassem ao legado ou ao general em comando fossem continuamente desfavoráveis, o tribuno podia perder seu posto – o que seria um grande problema para sua carreira futura. Esse sistema, de modo geral, era eficiente, embora, é claro, não fosse à prova de influências e "amizades". E, como também é claro, era impossível evitar que alguns desastres efetivamente acontecessem.

Um deles tem lugar durante a patrulha pela margem leste: Túbero, acompanhado de alguns outros oficiais montados, decide explorar o caminho à frente das tropas e acaba topando com alguns guerreiros germanos que vêm conduzindo uma boiada. Assumindo logo que se trate dos ladrões Tencteri e sem falar a língua dos germanos, que tampouco falam latim, o tribuno arma uma confusão que resulta na morte de vários homens – que não são Tencteri coisa nenhuma, e sim da tribo local dos Usipeti, há muito aliados a Roma. A única maneira de evitar que a justa indignação do restante da tribo degenere numa revolta seria que o governador Varo fizesse um pedido formal de desculpas e aplicasse a Túbero uma punição exemplar… Mas o governador não se atreve a tanto, já que o rapaz é filho de um homem importante de Roma, amigo do próprio imperador. Armínio, que já antes disso vinha fazendo contatos com o objetivo de articular uma rebelião, habilmente tira proveito do ressentimento gerado pelo incidente para estimular um ânimo de rebeldia inclusive entre as tribos que até aí estavam do lado dos romanos. Tudo de forma discreta, até que chegue o momento certo para "virar a mesa". Desnecessário dizer que convencer as tribos germânicas de que tinham um inimigo comum – no caso, Roma – era o único meio factível de conseguir que cooperassem entre si, pois, sob condições normais, as relações de umas com as outras variavam da desconfiança à inimizade mortal.

Águias em Guerra é uma leitura empolgante! A recriação histórica parece perfeita aos olhos de alguém com um conhecimento bastante razoável sobre a época (modéstia à parte, esse sou eu – risos); Kane tomou umas poucas liberdades, as quais ele esclarece na nota ao final do livro. Além disso, há uma atmosfera de tensão ininterrupta, pois o autor consegue fazer o leitor sentir a enormidade do que está se preparando para acontecer. Armínio, ardiloso, esforça-se por parecer o oficial perfeito aos olhos do governador Varo: eficiente, solícito… Um pouco eficiente e solícito demais para o gosto de Tulo, que, apesar de manter relações cordiais com o germano, conserva, durante todo o tempo, uma certa reserva a respeito dele. Por mais de uma vez o centurião tenta expor sua desconfiança ao governador, mas este sempre o repreende duramente por "ousar" pôr em dúvida a lealdade de Armínio, a quem ele considera não só um fidelíssimo aliado de Roma, como seu amigo pessoal – uma opinião que Armínio trata de reforçar, repetidamente visitando o governador para longas conversas regadas a vinho e convidando-o para caçadas. Varo, apesar de também já haver exercido comandos militares, é essencialmente um político; Tulo, por outro lado, é um soldado até o último fio de cabelo, e a intuição que tantas vezes salvou sua vida (e as de seus homens) no campo de batalha, parece alertá-lo a manter um pé atrás em relação a Armínio. Enfim, se Tulo, e não Varo, fosse o governador da Germânia naqueles dias, é possível que os alemães de hoje falassem uma língua neolatina… Certo, Tulo é um personagem fictício, mas é provável que houvesse diversos homens parecidos com ele à volta do Varo histórico, e, se tivessem conseguido que ele os ouvisse, a História poderia ter tomado outro rumo. O pior é que vários indícios do que ia acontecer chegaram ao conhecimento de Varo, que os ignorou porque confiava cegamente em Armínio. E, se pensarmos bem, não havia como não vazarem informações: para conseguir a adesão de uma tribo a sua causa, Armínio precisava expor seu plano, que então era discutido entre os chefes e todos os guerreiros – e todos sabemos que um segredo que é confiado a muita gente nunca permanece secreto por muito tempo. O desastre poderia ter sido evitado se o governador tivesse sido mais esperto, o que tornou o caso todo ainda mais difícil de descer pela goela dos romanos.

Voltando ao livro, o momento que Armínio esperou durante tantos anos finalmente chega no outono do ano 9, quando a Décima Sétima, Décima Oitava e Décima Nona legiões, lideradas por Varo em pessoa, estão retornando de seu acampamento próximo à vila de Porta Westfalica para suas bases permanentes na cidade de Vetera (a atual Xanten), onde deverão passar o inverno – e onde o relativo sedentarismo imposto pelas condições do tempo durante a estação fria será um descanso mais do que bem-vindo para os soldados, depois de uma primavera e verão de marchas exaustivas e algumas lutas. Acontece que, durante a marcha, Armínio procura Varo com a notícia (falsa) de uma sublevação entre os Angrivari, uma tribo cujo território fica relativamente próximo dali. Garantindo ao governador que ele e seus cavaleiros conhecem bem os caminhos da região e sabem exatamente por onde o exército deve marchar para chegar ao local o mais depressa possível, Armínio consegue que as legiões se metam numa trilha estreita e tortuosa, por dentro da floresta de Teutoburgo, na atual Baixa Saxônia, Alemanha. Na floresta, as três legiões, totalizando cerca de 14 mil homens, seriam emboscadas por uma confederação de tribos germânicas com cerca de 20 mil. Em circunstâncias normais, esse grau de inferioridade numérica nem chegaria a preocupar as legiões romanas, acostumadas a enfrentar – e derrotar – inimigos duas, três vezes mais numerosos que elas, mas desorganizados e pouco disciplinados. O problema foi o local onde o ataque ocorreu: para poderem transitar por aquela trilha estreita, as legiões tinham sido obrigadas a se afunilar até estarem marchando quase em fila indiana; isso, mais a densa mata que as rodeava, tornou impossível aos soldados entrarem em formação com a rapidez necessária ao serem atacados de surpresa por inimigos que, ao contrário deles, estavam acostumados com a floresta e com o terreno acidentado e lamacento. Os germânicos emergiam das sombras da floresta, faziam ataques-relâmpago e tornavam a desaparecer, para, pouco mais tarde, repetirem a manobra, e assim sucessivamente, causando baixas e minando o moral dos soldados. Ou seja, tudo correu conforme os planos de Armínio, que desde o início pretendia colocar as legiões no terreno mais desfavorável possível para elas, onde seus homens pudessem atacar sem precisar enfrentar os romanos em combate direto, pois ele sabia que, se o fizessem, eles perderiam. De cada legião não restou mais que um punhado de sobreviventes, e, ainda pior que isso, suas águias caíram nas mãos dos bárbaros. O episódio entraria para a história romana com o nome de Clades Variana (o 'Desastre de Varo'). Conta-se que, ao saber do acontecido, o imperador Augusto, então já um homem idoso, chorou, e que durante meses teve pesadelos, dos quais acordava gritando: "Vare, legiones redde!" ('Varo, devolva minhas legiões!')

Um dos muitos méritos de Águias em Guerra é que o autor não cai no simplismo tolo de eleger um lado como o "bem" e o outro como o "mal": alguns romanos podem ser arrogantes e prepotentes, mas também há os que são justos; os germânicos anseiam por recuperar sua liberdade (mesmo que seja para voltarem a viver como selvagens, lutando idiotamente uns contra os outros sem qualquer motivo real), e ninguém pode culpá-los por isso, mas também cometem atos bárbaros e brutais. Como eu disse, a indignação dos Usipeti ante os assassinatos perpetrados por Túbero é mais do que justa – mas não se pode dizer o mesmo da retaliação que praticam, saqueando várias vilas (habitadas por germanos como eles), assassinando e estuprando, até serem detidos, e por quem? Pelos romanos… Enfim, nesta história as coisas são bem mais complicadas que um mero confronto entre o bem e o mal: são mais parecidas com a realidade. Seguindo o mesmo espírito, as descrições das batalhas pouco têm de glorioso: são assustadoras e, não raro, repugnantes, como uma batalha de verdade. Também é uma realização notável do autor o fato de conseguir que o leitor experimente uma sensação de suspense enquanto acompanha os eventos, apesar de já saber qual será o resultado; isso é alcançado principalmente porque, a partir de certo momento, o fato de que a causa romana na Germânia está perdida é aceito por todos, e, daí em diante, o núcleo da história não é mais esse. Em face dessa realidade, cada personagem tem a reação que lhe cai melhor: Armínio e seus germanos comemoram, Varo suicida-se, Tulo se esforça de forma heroica para tirar dali com vida o maior número possível de seus homens – e a atitude deste último assegura-nos uma linha de ação eletrizante para seguirmos com a respiração suspensa até o final do livro.

Kane menciona que a ala ('asa', nome dado a uma unidade de cavalaria) que Armínio comanda é vinculada à Décima Sétima Legião, enquanto a coorte sob as ordens de Tulo pertence à Décima Oitava, mas tem o cuidado de só designar essas legiões pelos números, nada dizendo sobre seus nomes ou seus emblemas, e por uma razão muito boa: essas informações são desconhecidas. As duas, junto com a Décima Nona, tiveram um fim que foi considerado ignominioso, e, por isso, os cronistas da época e os das gerações seguintes parecem ter achado que quanto menos falassem sobre elas, melhor. Houve, mais tarde, uma série de expedições punitivas sob o comando do já citado Germânico, filho de Druso e sobrinho de Tibério, e as águias foram recuperadas, restaurando, ao menos em parte, o orgulho ultrajado de Roma, mas, mesmo assim, os números 17, 18 e 19 nunca voltaram a ser atribuídos a nenhuma outra legião. Também não houve reconquista definitiva dos territórios perdidos como resultado do Desastre de Varo; com isso, o Reno permaneceu como fronteira, e a Germânia romana limitou-se, daí em diante, a um pequeno território a oeste desse rio, incluindo partes das atuais Holanda e Bélgica, além da região alemã da Renânia, e tendo como principais cidades Maguntiacum (pronuncie Maguncíacum), hoje Mainz, e Augusta Treverorum, hoje Trier, onde ainda pode ser vista a imponente Porta Nigra ('Porta Negra'), edificação defensiva romana do século III.


Apesar da vitória obtida contra o exército mais poderoso do mundo, as ambições de Armínio de unir os germanos numa nação (da qual ele se faria rei) fracassaram por completo. As tribos só permaneceram lado a lado durante o tempo necessário para derrotar os romanos, retomando depois o seu costume ancestral de disputas territoriais, pilhagem mútua e guerras fratricidas; os primeiros progressos mais duradouros na direção de uma unificação da Germânia só seriam alcançados oito séculos depois, pelo franco Carlos Magno. Ainda assim, Armínio era um dos vultos históricos mais prezados pelos integrantes dos movimentos intelectuais e artísticos alemães que ganharam força a partir do fim do século XVIII, como o Sturm und Drang ('Tempestade e Ímpeto') e outros que o sucederam, todos marcados por um forte sentimento nacionalista, e que formariam o substrato cultural e filosófico para o surgimento do movimento Völkisch, que, por sua vez, teria como principal desdobramento a ascensão do nazismo. Entretanto, mesmo na Alemanha atual, Armínio possui status de herói, não obstante o fato de a vitória que o imortalizou ter sido alcançada por meio da mentira e da traição; talvez o pensamento por trás disso seja que invasores não merecem lealdade.

Ben Kane é uma amostra de quanta coisa interessante se publica mundo afora e não chega às estantes das livrarias brasileiras; felizmente, a editora portuguesa Top Seller decidiu investir nele, e o resultado foi esta edição de alta qualidade. Para os olhos cansados de um leitor acostumado a se horrorizar com os absurdos gramáticos que pipocam das páginas dos livros ambientados na Antiguidade publicados no Brasil, o maior mérito consiste em algo que, para os portugueses, é normal: como eles comumente já usam o pronome tu no dia a dia, também sabem como conjugar os verbos nessa pessoa, uma "arte" que, aqui no Brasil, perdeu-se completamente; sendo assim, não têm necessidade de ficar tentando recriar nenhuma "linguagem de época", o que as edições brasileiras fazem, quase sempre, de forma tão tosca e artificial. Há sutilezas que só quem já leu muitos livros em português europeu (ou estudou essa variante da língua) percebe: o você também é empregado, mas, em Portugal, esse é um tratamento um pouco mais formal, usado com indivíduos com quem não se tem maior proximidade; nós, brasileiros, nunca nos damos conta disso, mas você é uma contração de vossa mercê, que era um tratamento bastante cerimonioso. Entre os dois, existiu a forma de transição vosmecê. E, é claro, há uma série de palavras e expressões que, para nós, não são usuais (por exemplo, não se diz que alguém levou uma surra, e sim que "tomou uma tareia"), mas nada que uma rápida pesquisa na internet não resolva, e ampliar o vocabulário é sempre bom. Sem contar que quem, como eu, cresceu lendo livros de aventuras importados de Portugal, já sente carinho por esse linguajar pitoresco, que embalou tantos momentos empolgantes de nossas vidas de leitores. O texto do livro está quase perfeito; curiosamente, por alguma razão que não imagino, "romanos" ora é escrito com letra maiúscula, ora minúscula, mas, fora isso, não encontrei mais que três ou quatro pequenos erros de digitação. Um detalhe na sinopse da contracapa entrega que, pelo visto, em Portugal, assim como aqui, esses textos "periféricos" costumam ser preparados por pessoas diferentes das responsáveis pelo livro propriamente dito, e que, muitas vezes, não entendem muito do assunto: a sinopse fala em "ano 9 a. C.", em vez de 9 d. C., como se lê no miolo do livro e é o correto. Mesmo com a diferença brutal de nível cultural médio que existe entre brasileiros e portugueses, parece que lá, como aqui, também há essa tendência ingênua de pensar que, se o assunto é a Antiguidade, então todas as datas precisam ser obrigatoriamente a. C. Mas não é uma falha banal como essa que vai pôr a perder a excelência do livro, em todos os sentidos.

Por fim, para quem, como eu, gosta de metal, deixo duas dicas de "trilhas sonoras" perfeitas para dar ainda mais sabor à leitura de Águias em Guerra. Ambas são da banda canadense Ex Deo, e uma, chamada Teutoburg (Ambush of Varus), como o título já entrega, é diretamente inspirada no episódio. Essa é do segundo álbum dos caras, Caligvla, lançado em 2012. A outra é Legio XIII, do primeiro álbum, Romulus, de 2009; essa não tem relação direta com a batalha da Floresta de Teutoburgo, mas, pelo menos para mim, embala perfeitamente qualquer história cheia de ação protagonizada por legionários romanos, especialmente seu solo de guitarra, um dos mais empolgantes que já ouvi.

sexta-feira, setembro 16, 2016

O Tigre

Salvo por alguns inevitáveis e esporádicos acidentes de percurso, a convivência milenar entre tigres e seres huma­nos tem sido, de modo geral, pacífica, quanto mais não seja porque, durante a maior parte de sua história, os ho­mens não possuíam armas suficientemente poderosas que os encorajassem a enfrentar um animal tão perigoso sem necessidade. Como regra, enquanto os tigres não atacassem pessoas, e não cobrassem um tributo excessivo dos re­banhos domésticos, os humanos os deixavam em paz. Tem sido assim desde tempos imemoriais, das taigas geladas da Sibéria até as selvas tropicais da Indonésia, e das praias do Mar Cáspio até os confins orientais da Ásia – quer di­zer, em todas as paragens habitadas por tigres e humanos. Só o advento dos séculos XIX e XX, trazendo consigo ar­mas de fogo modernas e o conceito de "caça esportiva", é que mudou essa situação. É verdade que a medicina tradi­cional chine­sa – tão admirável em algumas coisas, tão estúpida em outras – há muito atribui poderes curativos (e sem qual­quer base em fatos) a diversos pedaços do tigre; a impressão que dá é a de que existe um raciocínio de que, se uma coisa é rara e difícil de obter, então ela necessariamente deve ter propriedades milagrosas. Em consequên­cia, o sangue do tigre, o pó de seus ossos, sua bílis, órgãos internos e várias outras partes valem um alto preço, mas, enquanto o bi­cho tinha que ser caçado com arco e flecha, lança, ou com mosquetes rudimentares de um só tiro, ha­via pou­quíssima gente disposta a encarar a bronca, por maior que fosse a recompensa em jogo. Armas mais eficien­tes mu­daram as coisas – não admira que o tigre-da-china esteja quase extinto. Não foi tão melhor na antiga União Soviéti­ca, cujo vasto território abrigava duas subespécies: o tigre-do-cáspio, extinto desde a década de 1960, e o ti­gre-da-sibéria, ou tigre-de-amur, o maior e mais possante de todos os tigres, que teve um pouco mais de sorte por habitar regiões muito re­motas e pouco populosas.

Porém, essa sorte não duraria para sempre. Nos primeiros tempos do comunismo so­viético, os tigres eram considerados uma praga, e o seu extermínio era incen­tivado pelo governo. Mais ou menos na mesma época em que o tigre-do-cáspio foi extinto, e com a população de tigres-­siberianos reduzida a poucas dezenas de exemplares na natureza, felizmente parece que alguém mais esclarecido teve acesso a um cargo no qual dispunha de poder para fazer algo a respeito, e foram promulgadas leis protegen­do os animais. Com isso, o número de tigres-siberianos subiu para algumas centenas ao longo das décadas seguin­tes, e conservacionistas do mundo inteiro já se sentiam mais tranquilos, quando chegou a década de 1990 – a déca­da da Perestroika, a reestruturação política e econômica que pôs abaixo a "Cortina de Ferro" que isolava a União Soviéti­ca do resto do mundo. A isso seguiram-se, sem muita demora, o fim da própria União Soviética e a implosão do co­munismo. Isso tudo teve duros efeitos sobre a sociedade e a economia da Rússia, com um empobrecimento ge­ral da população e um aumento drástico do desemprego. Muitos russos, sem outra alternativa de sobrevivência, passa­ram a tentar viver do que as florestas da Sibéria ofereciam, fosse por meio da caça de diferentes animais ou da ex­tração de madeira – invadindo o habitat dos tigres. Pior ainda, o relaxamento do controle das fronteiras permitiu a entra­da de caçadores ilegais vindos da China em busca dos tigres que já não existiam em seu país.

No entanto, Vladi­mir Markov, o caçador ilegal de 46 anos que foi morto por um tigre, nos arredores do vilarejo siberiano de Sobolo­nye, em de­zembro de 1997, não era chinês, e sim russo mesmo. A guarda florestal imediatamente chama a equipe local do pro­jeto conhecido como Inspec­tion Tiger, subordinado ao Departamento de Conservação e Caça. A equipe é lidera­da por Yuri Trush, ex-militar e experiente caçador, cujo trabalho, agora, consiste basica­mente em proteger os tigres contra caçadores ilegais – só que, na eventualidade de os papéis de caçador e presa se­rem troca­dos, isso tam­bém é de sua alçada. Quando Trush e seus companheiros chegam ao local, constatam que pouca coisa restou de Markov para ser vista; o mais desconcertante, entretanto, é que, a julgar pelos rastros e outros sinais deixados na cena da morte (sinais esses que um caçador experiente pode ler como se estivessem escritos num livro), o tigre não ma­tou Markov num encontro fortuito, e nem mesmo para se defender: ele o espreitou e caçou, com inteligência e paci­ência, talvez durante dias.


A primeira hipótese levantada é a de que Markov tivesse capturado um filhote a fim de vendê-lo, e sofrido a vingança da mãe, mas um dos companheiros de Trush logo descarta essa possibilida­de, por­que os rastros encontrados na neve são grandes demais para pertencerem a uma fêmea. E, como se descobre de­pois, ele está certo: o tigre responsável pela morte do caçador é um macho de cerca de seis anos – jovem, mas já adulto, e especialmente grande. No decorrer da mesma investigação, os agentes do Inspec­tion Tiger descobrem uma armadilha, obviamente instalada por Markov, e destinada à captura de tigres. Ou seja, é a prova de que o fale­cido não simplesmente lidava com incidentes ocasionais envolvendo tigres, como todo caçador da taiga está sujeito a ter: ele estava deliberadamente caçando os felinos, um crime grave perante a lei russa, mas também um negócio muito lucrativo.

Uma mente civilizada reluta em estabelecer o nexo entre Markov caçar tigres e o fato de ter sido morto por um. Afinal, nenhuma fera é capaz de desejar vingança, e tampouco de executá-la, não é mesmo? Um tigre pode atacar um caçador que atire nele, que tente roubar carne de uma presa que ele abateu, ou que ameace seus filhotes, e – embora isso seja muito raro – pode até mesmo atacar um ser humano como o faria com um ani­mal qualquer, levado simplesmente pela fome, mas todas essas situações podem ser atribuídas ao instinto de auto­preservação ou ao de defender a prole. Vingança requer compreensão de causa e consequência, capacidade de pla­nejar, e também de experimentar um sentimento semelhante ao ódio – tudo coisas demasiado complexas para um animal dito "irracional". Entretanto, a relutância em admitir essa possibilida­de não é compartilhada por povos nati­vos da Sibéria, como os nanai e os udeghe, que há séculos e milênios vivem em íntima comunhão com a taiga (um tipo de floresta característico das latitudes boreais). Para os caçadores desses povos, que tiram da floresta o susten­to de suas famílias, tal como seus ancestrais o fizeram desde tempos muito antigos, o tigre é tão inteli­gente quanto um homem, igualmente capaz de ser tanto generoso quanto cruel, de guardar rancor ou de perdoar, e, por tudo isso, é digno de ser tratado com respeito e cautela. Conversando com esses caçado­res nativos, Yuri Trush e seus ho­mens vão desenvolvendo uma compreensão diferente do incidente que tirou a vida de Markov – e que se repete al­guns dias depois: desta vez, a vítima é um jovem caçador de 20 anos, Andrei Po­chepnya, para quem Markov havia sido, além de vizinho e amigo, uma espécie de mentor. Se Pochepnya estava atrás de vingança, ou se simplesmente topou com o tigre enquanto caçava para pôr comida na mesa da família, não fica claro, mas o problema nas mãos de Trush e sua equipe fica cada vez maior. Sem alternativa, os homens dão iní­cio a uma caçada perigosa em meio a um ambiente no qual o tigre parece capaz de desaparecer sempre que assim deseja, e, embora o animal esteja ferido e pareça raivoso, age com uma sagacidade quase sobrenatural, tornan­do sua caça um desafio ainda maior, e fazendo da leitura desta história uma experiência que o leitor não esquecerá fa­cilmente.

Citar críticas elogiosas feitas por escritores de renome ou por órgãos de imprensa conceituados é uma estratégia muito comum para alavancar as vendas de livros de todos os gêneros, mas uma das que aparecem na contracapa de O Tigre me parece certeira: al­gum crítico do jornal francês Le Monde teria escrito que o livro é "o equivalente de Moby Dick para a floresta", e eu concordo, por pelo menos duas boas razões. A primeira é a combi­nação mortífera de ferocidade e inteligência, de­monstrada tanto pelo grande cachalote branco de Herman Melville quanto pelo tigre homicida caçado por Trush e seu grupo – o que confere a ambas as narrativas um clima aflitivo impossível de compreender sem lê-las. A outra é que o esquema geral de Moby Dick parece ter servido de inspira­ção a John Vaillant: Melville intercalava capítulos que narravam a caçada ao cachalote com outros de conteúdo en­ciclopédico, versando sobre cetologia, sobre a ativi­dade baleeira e assuntos afins; Vaillant alterna a investigação das mortes de Markov e Pochepnya e a perseguição ao tigre com dissertações sobre aspectos históricos, geográficos e humanos da Rússia em geral e da Sibéria em particu­lar, e com uma ampla e fascinante pesquisa na qual a antropo­logia dialoga com a história natural.

Os grandes primatas (entre eles nós, hominídeos) e os grandes felinos evoluí­ram de forma paralela, em muitos casos partilhan­do o mesmo habitat, e, durante 90 por cento do tempo, ou mais, os respectivos papéis eram muito claros: eles eram os predadores dominantes, e nós, presas eventuais. Nosso medo atávico do escuro (e quando digo "nosso", não que­ro dizer apenas dos humanos, mas dos grandes primatas em ge­ral) deve-se provavelmente ao fato de nossos ances­trais, durante pelo menos cinco milhões de anos, terem desen­volvido o hábito de buscar abrigo tão logo anoitecia, sob pena de tornarem-se o jantar de algum dentre uma longa lista de predadores noturnos, lista essa na qual leões, leopardos e outros felinos ocupavam lugar de destaque. Não tínhamos a menor chance contra essas feras: não po­díamos nem por sonhos rivalizar com sua força ou agilidade, e não tínhamos presas ou garras. Com o tempo, fomos encontrando maneiras de compensar essas desvantagens usando nossos dois principais trunfos – nosso cérebro e nossa habilidade manual. Aprendemos a fabricar armas cada vez mais eficien­tes e a agir em equipe de formas astu­tas, o que, aos poucos, equilibrou a balança, e depois a fez pender para o nosso lado. A partir daí, parece que passa­mos a merecer algum respeito da parte de nossos vizinhos felinos – pois, como Vaillant demonstra com base em di­versos estudos de especialistas, não somos os únicos animais capazes de incorporar novos conceitos e mudar nossos costumes de acordo com eles. Por muito tempo, os felinos viram os hu­manos como presas fáceis, mas, a partir do momento em que nossos ancestrais começaram a andar munidos de obje­tos pontiagudos e cortantes que podiam cau­sar sérios estragos, as feras passaram a evitá-los. Por outro lado, mes­mo que agora fosse capaz de se defender, o ho­mem primitivo não tinha qualquer desejo de procurar briga com ani­mais perigosos, a menos que fosse absoluta­mente necessário – um comportamento que foi passando de geração em geração, tanto entre felinos quanto entre humanos, até que se chegasse a um acordo de respeito mútuo, aquele do qual eu fala­va no começo do texto. Apesar disso, a escuridão, e o que quer que possa haver nela, continuaram e con­tinuam a nos intimidar, e devemos isso, em grande parte, aos ti­gres e seus parentes. Para mim, uma das coisas mais fasci­nantes a respeito da antropologia (e, mais especificamen­te, da parte dela que trata dos nossos ancestrais) é o fato de nos permitir compreender os moti­vos de sermos como somos.

O tigre-siberiano é um dos mais belos animais que alguém seria capaz de imaginar, e também um dos mais aterradores. Mais peludo e corpulento que seus paren­tes de regiões quentes, é uma perfeita má­quina de ma­tar que pode atingir (e, por vezes, ultrapassar) 300 quilos de peso e três metros de comprimen­to to­tal, medindo do fo­cinho à extremidade da cauda. Seus dentes cani­nos têm o comprimento de um dedo indica­dor, a mandíbula é pode­rosa o suficiente para partir o fêmur de um boi com uma única mordida, as garras são cur­vas como ganchos e afia­das como navalhas. Todo esse arsenal está a ser­viço de um cérebro astuto de predador: tal­vez por viverem e caça­rem sozinhos, os tigres parecem ter boa capacida­de de plane­jamento (sim!) e de lidar com situa­ções inesperadas, muito mais que seus primos, os leões. Nenhum animal da tai­ga está a salvo de seu apetite: o tigre pode se alimentar de qualquer coisa, de ratos-silvestres a bisões adultos, e, pasmem, até mesmo de animais que, em qualquer outro lugar, costumam ocupar o topo da cadeia ali­mentar, como ursos e lobos (!). Entretanto, parece que suas presas fa­voritas são cervídeos de grande porte (alce, rena, wapiti) e javalis.

Estima-se que existam hoje cerca de 500 ti­gres-siberianos em liberdade, mais uns cem em zoológicos e cen­tros de preservação em diferentes países. É o sufici­ente para que a subespécie não corra pe­rigo imediato, mas há outro fa­tor complicador a colocar em risco seu futuro: a gradual redução do espaço vital disponí­vel devido à ocupa­ção hu­mana. Foi-se o tem­po em que "Sibéria" designava uma região isolada e quase despo­voada, para onde eram mandados os prisioneiros políticos: hoje ela tem grandes ci­dades e uma população superior a 25 milhões de habi­tantes. Para complicar, o ti­gre, como todo predador de gran­de porte, necessita de um território vas­to – algo em tor­no de 450 quilômetros qua­drados para um macho adulto, sen­do que essa área pode sobrepor-se aos territórios de até duas ou três fêmeas. Embo­ra a Rússia tenha estabeleci­do reservas naturais visando tanto a preser­vação do tigre quanto de outras espéci­es, o sim­ples tamanho dessas reservas torna quase impossível um controle cem por cento efeti­vo; além disso, mais difí­cil que impedir que caçadores entrem, é impe­dir que os animais saiam. Há planos de trans­ferir certo número de ti­gres para o Par­que Pleistoceno, uma reserva natural no nordeste da Sibéria, onde biólogos estão tentando restabe­lecer as condi­ções ecológicas que lá existiam perto do final da última Era Gla­cial, por meio da reintrodução de espé­cies que habi­tavam a região na época. Mesmo antes que a área se tornasse um parque, já vi­viam nela animais como ur­sos, lobos, alces, renas e ja­valis; desde então, foram reintroduzidos com su­cesso bois-al­miscarados, bisões, wapi­tis, ca­valos selvagens, saigas e linces (e, se o projeto de clonagem que está ten­tando trazer de volta os mamutes for bem-­sucedido, o local será, sem dúvida, um lar confortável também para esses gigantes do passado – isso não seria for­midável??). Ainda estão em andamento os estudos sobre a viabilidade de ter tigres vi­vendo lá, e, de qualquer for­ma, será necessário aguardar que a popula­ção de herbívoros aumente até atingir núme­ros que permitam que sir­vam de alimento aos grandes feli­nos sem peri­go para sua própria conservação. Outra ideia, ainda mais ambiciosa, consiste em repovoar com tigres-siberianos as áreas antigamente ocupadas pelo extin­to tigre-do-cáspio, o que re­presentaria um aumento importante do espaço vi­tal disponível para a subespécie, mas isso ainda é uma possibilida­de distante. Por enquanto, o tigre-­siberiano só pode contar mesmo com as reservas que já ocupa, no extremo orien­te russo.

Acho que foi Jacques Cousteau quem declarou que ficava atônito de pensar que, durante o tempo de duração de sua vida, o homem, de­pois de milênios lutando contra a natureza pela sobrevi­vência, teve que fazer um giro de 180 graus e passar a empe­nhar-se em defendê-la, porque percebeu – e esperemos que não tenha sido tarde demais – que é preciso encontrar um equilíbrio. Continuando o pensamento de Cousteau, eu diria que o tigre é um perfeito exemplo concreto dessa ideia mais geral sobre a natureza. Junto com outras feras predadoras, ele fez parte dos nossos pesa­delos na pré-his­tória, e, ao longo de toda a construção da nossa cultura, foi sempre temido – pri­meiro, só temido; depois, temido, admirado e cobiçado de morte. Hoje, temos que nos esforçar para salvar os últi­mos deles, se não quisermos ser os responsáveis por legar às gerações futuras um mundo onde os tigres não exis­tam, um mundo, por­tanto, despojado de um pouco (na verdade, um muito) de sua beleza e terror. Eu fico pensando no quanto vai ser triste se, daqui a um ou dois séculos, uma criança de então abrir um livro, maravi­lhar-se com a ilustração represen­tando um gigan­tesco gato listrado de amarelo e preto, tão forte, majestoso, fasci­nante e terrível, e sentir a frustra­ção de saber que tal animal não existe mais, que nunca lhe será possível ver um de­les vivo e respi­rando – o mesmo tipo de frustração que eu, tanto em criança quanto ainda hoje, sentia e sinto ao abrir um livro e fi­car olhando com espanto para ima­gens de arsinotérios, gliptodontes, entelodontes, rinocerontes peludos e tantas outras feras magní­ficas que nunca vou ver a não ser em livros mesmo. Na verdade, acho que será mais triste ainda, porque essa crian­ça do futuro esta­rá olhando para fotografias, e não para pinturas; para um ani­mal cuja extinção não foi natural, e sim culpa do ho­mem. E ficará sabendo que tivemos uma chance de salvar o ti­gre, e não o fizemos. O que seria uma grande, grande vergonha.

quarta-feira, agosto 24, 2016

O Filho do Açougueiro

É sempre uma satisfação descobrir um novo autor promissor no campo da literatura de imaginação, e de modo especial se ele for brasileiro. Ainda melhor quando se trata de um coestaduano nosso, e é o caso aqui: Christian David, gaúcho de Porto Alegre, é um dos organizadores da Odisseia de Literatura Fantástica, que, ao lado do Fantaspoa (para os "estrangeiros": Festival de Cinema Fantástico de Porto Alegre), é um dos eventos que, durante alguns dias por ano, sacodem a poeira da rotina na vida dos amantes de ficção científica, fantasia e terror da capital gaúcha. E, quando me refiro a David como um "novo autor", quero meramente dizer que é novo para mim, ou quase isso: já tinha encontrado um ou dois de seus contos em coletâneas que não cheguei a comentar, mas este é o primeiro livro dele em "carreira solo" no qual tenho a oportunidade de pôr as mãos e os olhos. A publicação é de 2013, e quase todas as histórias já haviam aparecido antes em outros lugares, o que significa que o cara já deve estar em atividade há um tempo considerável.

As pessoas que leem meus textos às vezes me perguntam por que não escrevo um livro, já que (dizem elas, e até me atrevo a acreditar que não estejam de todo erradas) escrevo tão bem. Ocorre que, embora o leigo em literatura geralmente não saiba disso, escrever bem é apenas metade do negócio, ou talvez ainda menos. Sei que tenho bom domínio do idioma, bom vocabulário e, mais importante, gosto de escrever – mas a capacidade que algumas pessoas têm de criar narrativas com início, meio, fim e tudo o mais que uma boa história precisa ter, é coisa que sempre me intrigou, causou admiração, assombro e uma ponta de inveja. Sejamos francos: um iceberg de inveja, embora seja uma inveja boa, se é que isso existe. Poderíamos usar a música como comparação: qualquer pessoa que estude e pratique pode aprender a tocar razoavelmente um instrumento; algumas têm uma facilidade inata que pode fazer com que seu estudo e prática as leve a tocar muito bem; mas compor, isto é, criar músicas novas, isso é totalmente outra coisa. É uma capacidade que você simplesmente tem ou não tem. O mesmo acontece com o dom de inventar histórias, e não pensem que já não tentei, e bastante: por vezes a coisa pareceu estar indo bem, mas sempre chegava uma hora em que, por mais que quebrasse a cabeça, não sabia como continuar. Retomando a metáfora musical, o que faço neste blog é improvisar em cima de melodias alheias; considero-me um hábil instrumentista da literatura, mas sempre terei a frustração de não ser um compositor.

Christian David é um compositor. Um contador de histórias, que é o que todo escritor que se preza deveria querer e se esforçar para ser antes de mais nada. Seus contos têm aquela característica sem nome e impossível de definir, que mantém um leitor lendo, e seus temas exemplificam o quão longe a imaginação humana pode chegar, uma vez que a libertemos das amarras da preocupação com o "verossímil". Alguns contos são coisas curtas e bizarras, com aquela rara qualidade de um texto que atinge o leitor como se fosse um cruzado de direita desferido por um campeão peso-pesado, e, para mostrar logo de saída a que veio, O Filho do Açougueiro já começa com um destes, intitulado O Mercador de Cabeças, que consegue o feito de, em suas pouquíssimas linhas, criar uma expectativa no leitor e em seguida subvertê-la por completo com uma reviravolta brutal, exigindo uma pausa para recuperar o fôlego antes de passar para a próxima história. E a próxima é Aproveite o Dia, conto de terror ambientado no Velho Oeste, sobre um pistoleiro errante que chega a uma cidade quase vazia onde ainda funciona um saloon… Um saloon que tem como proprietária uma feiticeira vodu, onde as coisas não são como parecem, e, à semelhança do que acontecia com o Hades, reino dos mortos na mitologia grega, se você provar qualquer alimento lá dentro, não conseguirá mais sair. Crossovers entre gêneros que aparentemente não têm nada em comum (terror e faroeste?) produzem um efeito muito bacana quando dão certo, mas exigem bastante habilidade de quem se meta a tentar. David conseguiu.

O próximo conto é o que dá título ao livro, e o personagem que dá título ao conto é Guilherme, um pré-adolescente que vive em algum país indeterminado, em algum momento da Idade Média – ou em algum mundo fantástico inspirado nela, se levarmos em consideração a participação dos míticos trolls na história. O uso de nomes em português parece ser estratégico: o protagonista chama-se Guilherme, seus irmãos são Pedro, João e assim por diante, mas isso pode ser visto como mera consequência do fato de a história estar sendo contada em português. Ela talvez se desenrole na Inglaterra, onde os nomes originais dos personagens seriam William, Peter e John, ou na França, onde seriam Guillaume, Pierre e Jean, ou na Alemanha, e nesse caso eles se chamariam Wilhelm, Peter e Johann… Em qualquer dos casos, os nomes podem ser aportuguesados, tornando-se exatamente os que são usados na narrativa – um recurso engenhoso para manter a indefinição em relação ao local. Guilherme é o sexto dos sete filhos do açougueiro de um vilarejo qualquer desse reino medieval indeterminado. Ter uma perna defeituosa, como ele tem, seria uma coisa ruim em qualquer situação; pior num lugar e num ambiente cultural onde o valor de uma pessoa é medido pela sua capacidade para o trabalho braçal (que, apesar do nome, também costuma exigir boas pernas), e pior ainda numa família que já tem cinco filhos fortes e saudáveis. Por causa de tudo isso, os pais o veem como pouco mais que outra boca para alimentar, uma da qual eles se livrariam se pudessem. O fato de ele ser, de longe, muito mais inteligente que qualquer de seus irmãos não tem relevância para ninguém… Até o dia em que os trolls invadem o vilarejo e nenhum braço forte pode mais assegurar a sobrevivência da família – mas talvez um cérebro ágil possa.

A seguir, temos Arena, uma ficção científica num futuro distópico, depois de uma tal "quinta grande guerra", que deixou de herança resíduos radioativos que alteraram o código genético da população sobrevivente, dando nascimento tanto a criaturas bizarras e assustadoras quanto a seres de aparência humana normal, mas dotados de poderes especiais – poderes esses que podem se manifestar em qualquer fase da vida e cuja exata natureza não se pode prever até que eles efetivamente apareçam. Alguns indícios, em especial a menção à lenda do Curupira como fazendo parte dos "mitos antigos da região", apontam que os eventos narrados ocorrem no Brasil, ou, pelo menos, onde nosso país costumava ficar. A protagonista adolescente, Alena, filha da governadora das "Cidades Irmãs", recebe da mãe a missão de localizar seu tio (ou seja, o irmão da governadora), um homem cuja mutação se manifestou sob a forma de um tamanho e força absurdos, e que optou por viver como um eremita na região selvagem que cerca as Cidades. Agora, Andrélia (esse o nome da governadora) precisa da ajuda do irmão para manter-se no poder, já que três governantes regionais a desafiaram para uma disputa que será resolvida na arena (daí o título do conto), com um embate entre seus campeões. A história tem um quê de Jogos Vorazes, não por causa da parte do combate, que é muito diferente do que encontramos na obra de Suzanne Collins, mas pelo clima pós-apocalíptico mesmo. E, mais uma vez, esperem o inesperado.

Mencionar o Curupira me faz lembrar: o folclore brasileiro surge novamente em O Procedimento Z, embora de uma forma que dificilmente imaginaríamos. Curupiras, iaras e outros seres míticos da nossa cultura popular possuem, na verdade, uma civilização multirracial e altamente desenvolvida, que utiliza harmonicamente a magia e a tecnologia. Essa civilização existe oculta em cidades subterrâneas localizadas debaixo das matas, e seus integrantes se empenham muito em manter-se incógnitos aos habitantes da superfície (quer dizer, nós), mas, como algum contato ou avistamento ocasional é inevitável, eles espalharam as lendas, que os apresentam de uma maneira mais simples e como se fossem meras criações da imaginação popular. A mais prestigiosa agência policial e de inteligência do mundo subterrâneo é a Superintendência de Apoio ao Combate ao Crime Intermundos (a sigla é SACCI *gargalhadas*), cujos agentes usam uniforme preto com um capacete vermelho (*mais gargalhadas* Isso é GENIAL!). Aproveitando o ensejo, o conto presta uma merecida homenagem a Monteiro Lobato.

E o livro tem mais a oferecer: A Dona do Sorriso parece uma paráfrase em prosa (prosa poética, note-se) de um poema de Mário Quintana sobre a morte; Última Memória revisita as histórias de lobisomens, mostrando como um ponto de vista diferente pode dar uma cara nova mesmo a um conceito já tão conhecido. Dívida tem elementos sobrenaturais, que, por sinal, são a chave do enredo, mas cativa mais pelo retrato doloroso que traça da vida e dos sofrimentos de um adolescente nerd. Prometeus resgata uma história da mitologia grega (que já mencionei certa vez) e a usa para abordar um tema terrivelmente atual: os interesses econômicos por trás da indústria médica, que podem estar motivando decisões comerciais que causam a perda de milhares de vidas humanas, quando salvá-las seria possível – mas não seria lucrativo. Os personagens principais são os doutores Maurício Prometeus e Fernando Áquila (em algumas versões do mito grego, é de fato uma águia, e não um abutre, a ave que devora o fígado do titã acorrentado). A história tem um efeito geral horripilante, para o qual a citação mitológica e a abordagem contemporânea são meros ingredientes.

Sempre digo que altos e baixos são normais em livros de contos, e aqui não é diferente, mas os baixos não são nada de abissal, por assim dizer. Rinaldo é um conto de vampirismo sem nada de muito especial (eu, pelo menos, não encontrei), mas que cumpre seu propósito de entreter. Esporte Primitivo tem uma bela e sinistra premissa inicial: uma invasão alienígena totalmente diferente das convencionais, que consiste, pelo menos inicialmente, em tomar posse da mente dos seres humanos, assumindo, em consequência, o controle sobre as funções do corpo; pena que termine num anticlímax, com uma resolução, na minha opinião, bastante ingênua. Entretanto, o autor facilmente se recupera dessa pequena derrapada: mais e melhores histórias se seguem. Em Tocaia, um veterano caçador se põe à espreita do legendário chupacabras, que será (pensa ele) a coroação de sua carreira, caso consiga juntar a cabeça empalhada do monstro às tantas de feras de todos os tipos que já adornam as paredes de sua casa – mas, para não fugir ao hábito de Christian David, o desfecho será muito diferente do que o personagem espera, para não falar do leitor. Xavier e o Lobisomem reconta um importante capítulo da história do Brasil acrescentando tempero sobrenatural.

As últimas histórias são como que um retorno à realidade, pois não envolvem elementos sobrenaturais, nem de ficção científica, mas enfocam a dita realidade através do olhar e, principalmente, dos sentimentos dos personagens; ou seja, podem tratar da realidade, mas o fazem por meio de uma visão subjetiva, e todas são histórias dolorosas, cada uma de uma maneira diferente. O Esgrimista tem como protagonista um delegado de polícia, homem amargo, endurecido por tudo o que viu e passou em longos anos dedicados à profissão, e por uma vida que não foi nada fácil, mesmo antes de entrar para o serviço da lei. Eis então que, numa dessas brincadeiras que o destino nos arma, ele vê chegar algemado à sua delegacia o mais cruel dos bullies que o perseguiam em sua adolescência, justamente aquele que o "presenteou" com a cicatriz que ele agora leva no rosto. As décadas passadas desde então transformaram o garotão rico, atlético e popular (que achava tão divertido atormentar um pobre nerd) num farrapo de ser humano, arruinado pelo vício do álcool e, agora, acusado do assassinato da própria esposa. Diante disso, o que fazer? Vingar-se? Perdoar? Simplesmente agir com justiça? Não é uma decisão fácil. Na vida, geralmente sabemos qual a coisa certa a fazer numa determinada situação, mas nem sempre temos forças para fazê-la.

O penúltimo conto, Minha Alma nas Mãos de Manoela, talvez seja o que apresenta o tratamento literário mais hábil. Como dito, não tem qualquer traço fantástico ou sobrenatural: é um drama sobre amor, remorso e, eu ousaria dizer, sobre poder. Não poder no sentido político, mas o poder que as pessoas sempre acabam exercendo sobre o destino umas das outras, na intrincada teia das relações humanas. O personagem narrador (que nunca diz o próprio nome) é um médico renomado, especialista de fama internacional em cirurgia das mãos. Sua vida pessoal também parece tranquila e satisfatória, com um casamento sólido e uma filha, Manoela, uma jovem linda e com um talento notável para a música. Porém, por mais que o mundo o veja como um homem realizado e bem-sucedido, o personagem terá que tomar decisões – como médico e como pai – que poderão assombrá-lo para sempre.

Não cheguei a falar de todas as histórias: resenhar um livro de contos e tentar comentar todos eles, quase sempre acaba ficando cansativo até para quem escreve, quanto mais para quem lê, então procuro evitar, mas aqui tentei citar os que considerei mais relevantes, o que acabou fazendo com que tocasse na maioria deles. O Filho do Açougueiro faz valer magnificamente o valor desembolsado, proporcionando várias horas de deliciosa imersão em um leque de universos imaginários, na companhia de personagens muito humanos e verdadeiros. Christian David merece que todo fã brasileiro (ou não) de fantasia, ficção científica e terror observe com atenção o desenrolar de sua carreira.