Preenchendo uma velha lacuna no mercado editorial brasileiro, os autores gaúchos A. S. Franchini e Carmen Seganfredo chamaram a si a tarefa de recontar numa linguagem acessível as antigas histórias, lendas e fábulas que a humanidade acumulou ao longo de milênios de experiências e sonhos. O primeiro volume a me chegar às mãos, oriundo dessa parceria, foi este As Melhores Histórias da Mitologia Nórdica. Já existem vários outros, enfocando as mitologias grega, egípcia, a Bíblia, ou sagas e ciclos específicos, como O Anel dos Nibelungos ou o recente Beowulf. Trata-se de uma sacada publicitária inteligente o fato de a capa deste livro trazer a frase "A mitologia na qual J. R. R. Tolkien se baseou para escrever O Senhor dos Anéis", pois, desde o boom de popularidade que a obra de Tolkien experimentou no Brasil após o lançamento da trilogia cinematográfica alguns anos atrás, isso tem quase o mesmo efeito que teriam, na capa de uma nova edição de algum romance brasileiro, os dizeres "Obra que deu origem à minissérie da TV Globo"... Mas vamos falar do livro.
Para quem já é familiarizado com a mitologia greco-romana, um primeiro contato com a nórdica pode causar um certo estranhamento, pois esta reflete os valores e crenças de um povo cuja mentalidade distava anos-luz da dos habitantes da bacia do Mediterrâneo ― embora curiosas semelhanças, por vezes evidentes demais para serem casuais, também existam. Franchini e Seganfredo tiveram o cuidado de traçar paralelos, sempre que necessário, entre a mitologia nórdica propriamente dita ― aquela originária dos países escandinavos ― e a germânica, das regiões que hoje correspondem à Alemanha e Holanda. Os deuses e os heróis são basicamente os mesmos, com nomes ligeiramente diferentes, e o mesmo se dá com muitas das narrativas, que diferem em pequenos ou grandes detalhes. Por exemplo, na primeira parte do livro está narrada a versão nórdica das aventuras de Sigurd ― o mesmo herói que os alemães chamam de Siegfried e que protagoniza o ciclo d'O Anel dos Nibelungos, que pode ser lido na segunda parte, permitindo que se comparem as duas versões, o que dá lugar a observações curiosíssimas. Tanto em sua versão nórdica quanto na germânica, essa narrativa orbita em torno de um anel amaldiçoado e dotado de estranhos poderes, um objeto capaz de transtornar a mente das criaturas a tal ponto que o desejo de possuí-lo supera qualquer escrúpulo moral ou da razão. Esse é o principal ponto de contato entre a obra de Tolkien e a mitologia nórdica, mas não o único: a espada que é quebrada e depois reforjada faz parte do mesmo mito, assim como o dragão que guarda um tesouro com o maior ciúme e ferocidade, embora este seja para ele completamente inútil. Além disso, as passagens em que o deus supremo Odin aparece sob disfarce humano ― na figura de um velho misterioso portando um cajado e uma espada ― lembram de forma irresistível a figura tolkieniana do mago imortal Gandalf. Coincidência? De jeito nenhum!
Deixando Tolkien um pouco de lado (mas não muito, já que tudo está interligado), também não dá para crer que seja coincidência a maneira como Sigmund, pai de Sigurd/Siegfried, vem a possuir a espada mágica Notung, que será mais tarde empunhada pelo filho: Sigmund a remove do tronco de uma imensa árvore onde fora cravada e de onde centenas de guerreiros já haviam tentado retirá-la, inutilmente, já que só um predestinado poderia possuí-la. Não lembra nada?? Pode ser impossível dizer se a lenda nórdica inspirou a britânica, se foi o contrário, ou se ambas simplesmente tiveram origem em algum arquétipo ou símbolo que está no inconsciente coletivo de todos os povos, mas que esse tema merece profundos estudos, disso não há dúvida. Talvez não se chegue a uma resposta final, mas, ao longo do caminho, esses estudos podem revelar coisas essenciais para nosso autoconhecimento e para a compreensão do mito do herói, que, direta ou indiretamente, inspirou todos os seres humanos que já realizaram algo de notável, em qualquer época.
O livro tem alguns pequenos problemas de língua portuguesa, o que é bem estranho, se considerarmos que a orelha informa que Carmen Seganfredo é "bacharelada em Letras e tradutora", mas isso é uma falha menor e perdoável, se comparada à excelente ideia em que se baseia a obra da dupla de escritores e a pesquisa cuidadosa que obviamente existe por trás de cada capítulo. Jung dizia que "os mitos são sonhos públicos, e os sonhos são mitos privados". Tal como os sonhos (tanto os que temos ao dormir quanto os que criamos de olhos abertos) são peças-chave para a compreensão da mente do indivíduo, conhecer os mitos é essencial para quem nunca se cansa de tentar (só tentar!) compreender esse oceano de contradições, esse universo de grandezas e misérias que é a condição humana.