“O brasileiro é um Narciso às avessas, que cospe na própria imagem. Nossa tragédia é que não temos um mínimo de auto-estima.” (Nelson Rodrigues)
Em primeiro lugar, não, eu não sou fã de Nelson Rodrigues. Concordo que todo escritor que tenha a pretensão de dar alguma profundidade ao que escreve não pode furtar-se, por vezes, a ter de retratar as torpezas e o mal inerente aos seres humanos, mas tenho para mim que isso deve ser feito quando necessário. No meu entender, um escritor que escolhe sempre e deliberadamente como tema o que existe de pior na humanidade, não está contribuindo para criar nada de bom, e não terá a minha admiração. Excesso de idealismo? Talvez; podem chamar do que quiserem.
Mas, mesmo não simpatizando com o dramaturgo carioca, não vou tirar os méritos que ele tenha, e um deles é o de ter forjado um punhado de frases certeiras e perfeitas sobre vários assuntos. A que escolhi para abrir este artigo é minha preferida, e tem a ver com meu tema.
Dias atrás, visitando a Feira do Livro de Porto Alegre, tive a grata surpresa de encontrar numa caixa de saldos o livro Construtores de Continentes, do autor norte-americano L. Sprague de Camp, que já havia lido nos meus saudosos 14 ou 15 anos, época do meu maior furor no que se referia à ficção científica. Batido pela nostalgia, comprei o livro por um valor simbólico qualquer e, no trem mesmo, durante a viagem de volta para São Leopoldo, comecei a relê-lo, experimentando uma sensação muito semelhante à de reencontrar um velho amigo.
Dá um certo desespero perceber que, não bastasse o fato de que não viverei o suficiente para ler todos os livros que gostaria (e ver todos os filmes, estudar todos os assuntos, visitar todos os lugares...), ainda há esse outro fato: o de que muitos livros, dentre os que já li, mereceriam, se fosse possível, uma segunda leitura, à luz de tudo o que aprendi e vivi desde meu primeiro contato com eles. É o caso de Construtores de Continentes, pois a nova leitura me levou a pensar coisas que não ocorreram ao garoto que eu era 20 anos atrás.
Lyon Sprague de Camp (1907-2000) foi o que poderíamos chamar de escritor polivalente, pois, além de ficção científica, escreveu fantasia, romance histórico, mistérios, poesia e sabe Deus o que mais. Foi um nome importante durante a Era de Ouro da ficção científica, e amigo pessoal de vários outros autores famosos, entre eles Isaac Asimov, que, aliás, prefaciou este livro. Construtores de Continentes não é um romance - inclui duas novelas independentes entre si, embora ambientadas no mesmo futuro imaginário. A primeira passa-se em 2137, chama-se Moto-contínuo, e narra as aventuras de Felix Borel, um trambiqueiro profissional que decide tentar a sorte em Krishna, um planeta de descoberta relativamente recente, habitado por uma raça espantosamente semelhante aos terráqueos, só que com algumas características insectóides, e com um nível tecnológico pouco mais que medieval. Justamente por terem, até então, convivido pouco com os terráqueos, os krishnianos ainda são passíveis de serem enganados por golpes em que, na Terra, ninguém mais cai há muito tempo - ou seja, o planeta é um paraíso para trapaceiros como Borel, que, no entanto, vai descobrir, às suas próprias custas, que nada é tão fácil quanto parece.
A segunda novela, que dá título ao livro, começa em 2153 e fala sobre um projeto que está sendo implementado para criar um novo continente no Atlântico, entre a América do Sul e a África. Por meio de engenharia tectônica, os cientistas e técnicos do século XXII esperam aumentar o espaço vital disponível para a humanidade na Terra, independentemente da eventual migração para outros planetas.
Agora é que chegamos ao ponto verdadeiramente importante... Por mais interessantes que sejam os enredos dessas duas histórias, não são elas que mais chamam a atenção dos leitores brasileiros, e sim um "detalhe" do pano-de-fundo: no futuro imaginado por De Camp, os Estados Unidos decaíram de sua posição de liderança mundial, que passou a ser exercida por uma nova superpotência... Imaginam qual? Sim, meus amigos, o Brasil.
Ao contrário de muitos outros escritores (e dos norte-americanos em geral), De Camp realmente conhecia alguma coisa sobre o Brasil - no texto original em inglês apareciam diversas palavras em português, que o tradutor teve a boa idéia de assinalar para nossa referência. O departamento de abrangência mundial que cuida das idas e vindas dos viajantes espaciais chama-se Viagens Interplanetárias - assim mesmo, em português, porque a coisa toda é controlada e administrada por brasileiros. De Camp não teria incluído isso em seus livros se não acreditasse pelo menos na possibilidade de tais coisas - e ele era norte-americano... E nós, que somos brasileiros? Nós acreditamos que possamos chegar lá??
É difícil dizer até que ponto o nosso povo criou o autoconceito que tem, e até que ponto simplesmente comprou a imagem de si mesmo que é vendida pelos "gringos", mas o que se observa é que o brasileiro, quase sempre, acredita que sua função no mundo é simplesmente a de ser o cara alegre, hospitaleiro e "caloroso", e que a vocação do Brasil é a de um "país-colônia de férias", para onde americanos, europeus, japoneses e demais habitantes do "Primeiro Mundo" vêm quando querem praia, sol e festa - porque, tanto na visão desses estrangeiros quanto, infelizmente, na dos próprios brasileiros, tudo o que o nosso país tem para oferecer são praia, sol e festa! Tem sido assim por tanto tempo, que é difícil para a maioria dos brasileiros encarar a possibilidade de fazerem parte de algo sério e importante, ou de que seu país possa um dia ocupar uma posição de destaque no cenário mundial. Pois isso exigiria um esforço sério e comprometido, cujos resultados só seriam visíveis a longo prazo, e, ainda mais importante, exigiria que acreditássemos ser capazes. Seria necessário que víssemos em nós mesmos força de vontade e inteligência (qualidades que, infelizmente, não estamos acostumados a associar ao nosso próprio povo como um todo), e capacidade latente para fazer mais do que apenas organizar o maior carnaval do mundo. Quero muito acreditar que, se não a nossa geração, a de nossos filhos ou netos há de acordar desse torpor de séculos e se dar conta de que tudo o que qualquer outro povo foi (ou será) capaz de realizar, também está ao nosso alcance, desde que queiramos e acreditemos.