Como é a trajetória de uma pessoa que "acorda" para o mundo da cultura? Que um belo dia (ou gradualmente, ao longo do tempo) percebe que há mais na vida que cerveja, futebol e música pop de FM? Essa é uma metamorfose, infelizmente, rara, mas, sim, é possível: já testemunhei um caso ou dois. E é um testemunho desse tipo que Carlos Eduardo Paletta Guedes nos oferece neste livro extremamente interessante e (não muito) disfarçadamente autobiográfico.
O protagonista Fábio é um jovem comum no sentido mais comum do termo, do tipo que cada um de vocês deve conhecer pelo menos uma dúzia: com cerca de 30 anos, carreira profissional começando a decolar, vai levando sua vida do modo óbvio. Torce por seu time, trabalha, namora, sai, e ignora a existência de coisas como poesia, filosofia, artes plásticas, teatro ou música clássica. Livros, só os de Direito, sua área profissional, e nada mais. E, como a dúzia de caras parecidos que todos nós conhecemos, sente-se cômodo e satisfeito dessa forma. Embora seu melhor amigo, Felipe Marco, o "Turco", seja um professor universitário e muito culto, a amizade dos dois parece ser do tipo "cada um no seu quadrado": nada que agite a superfície do lago plácido (um lago que só tem mesmo superfície...) que é a vida de Fábio.
Nosso herói começa a sentir que algo está faltando quando sua namorada de três anos, Maria Lúcia, larga-o, sob a alegação de que ele não preenche os anseios intelectuais dela - aliás, tive que rir ao ler o trecho onde Fábio diz que M.L., como ele a chama, decidiu começar a tratá-lo como intelectualmente inferior depois de ler um livro de filosofia para adolescentes: não consegui deixar de ter a forte impressão de que ele só não citou o título (O Mundo de Sofia, é claro) para não ferir suscetibilidades. É então que, vendo como o amigo anda "pra baixo" desde o fim da relação, Turco, na intenção de distraí-lo um pouco, convida-o para uma festa que dará em sua casa, apenas para alguns alunos que são membros de um grupo de estudos que ele dirige. Fábio não se anima muito, imaginando, com alguma razão, que sua pouca bagagem e quase nenhum interesse cultural fará dele um peixe fora d'água nessa reunião, mas, mesmo assim, acaba indo. E é lá que, numa dessas surpresas que o destino nos arma, ele conhece a mulher de sua vida: uma estudante de Jornalismo, a linda e inteligentíssima Thaís.
Apaixonado e determinado a ganhar a gata de qualquer maneira, Fábio começa imediatamente a representar para ela o papel de um homem culto, sensível, conhecedor e admirador da arte em todas as suas manifestações - algo muito distante de seu verdadeiro perfil. E, como Thaís é uma dessas mulheres uma-em-um-milhão que não vão adiante com um homem se ele não demonstrar inteligência (pois, verdade seja dita, a imensa maioria não liga a mínima para isso - como a maioria dos homens também não, sejamos justos), Fábio tem pela frente um verdadeiro trabalho de Hércules... Ou melhor, os doze de uma vez. Sob a orientação do amigo Turco, começa a toque de caixa a tentar assimilar conhecimentos sobre música (não o pop-rock a que estava acostumado, e sim figuras como Bach, Mozart e companhia), cinema (nada de Duro de Matar e congêneres: aqui o papo é filme de arte europeu) e outras formas de expressão que não tinha o costume de prestigiar nem sequer em suas manifestações mais triviais, como literatura e pintura. E, para sua própria surpresa, começa a perceber-se envolvido e fascinado pelo universo da arte e da beleza, a sentir um interesse genuíno por tudo de grandioso que o gênio humano já produziu. De tal forma que, mesmo quando suas chances de ficar ao lado de Thaís parecem ter-se reduzido a zero, ele não abandona seus esforços para adquirir cultura: sem perceber, Fábio aprendeu a lição mais importante de todas, a de que cultivar o próprio intelecto e sensibilidade é algo que deve fazer por si mesmo, e não para agradar seja a quem for. Aos poucos, ele se dá conta de que não está mais fingindo.
A história de amor de Fábio e Thaís é um fio condutor criativo para introduzir o leitor ao universo da alta cultura: entremeadas na história há ótimas listas de sugestões para quem deseja se iniciar na música clássica, no cinema "cabeça" e na literatura (se bem que nesse último campo eu apontaria uma lacuna: a lista dos livros essenciais não inclui nenhum clássico da Antiguidade), e também instigantes discussões sobre o papel da cultura na sociedade e na vida do indivíduo. Há pontos onde concordo e outros onde não concordo - o que é ótimo: que valor teria um debate onde todo mundo pensasse igual? Por exemplo, não concordo com o personagem (um professor palestrante) que, embora fazendo apologia à cultura e ao conhecimento, reconhece que "ler não faz de ninguém um ser humano melhor. O filósofo Francis Bacon, por exemplo, casou por interesse e morreu com 65 anos, devendo mais de 20 mil libras esterlinas (...). Tenho certeza que (sic) ele leu tudo o que havia de mais profundo e sábio". Eu digo que sim, ler faz de nós pessoas melhores; talvez não no aspecto moral ou ético, mas nos enriquece, abre nossa mente, faz-nos capazes de ter visões diferentes, livres dos antolhos que limitam o olhar das pessoas comuns, torna-nos mais sábios, mais capazes de conviver com as diferenças e com situações de incerteza. Leonardo da Vinci falava do sfumato (literalmente, "enfumaçado"), nome de uma técnica usada em pintura para dar aos objetos contornos imprecisos, como se vistos através de uma névoa; Leonardo e seus seguidores (incluo-me, ainda que correndo o risco de parecer pretensioso) também usavam, usam isso como uma metáfora para a capacidade de lidar com ideias e situações onde não são possíveis regras rígidas, onde nada é muito claro, onde a incerteza faz parte da própria essência das coisas. E, a menos que me engane, pessoas que leem mais e, por consequência, sabem mais, estão bem mais preparadas para isso. Pessoas incultas tendem a ver o mundo em apenas duas cores.
O cientista espanhol Santiago Ramon y Cajal dizia que cada pessoa pode ser escultora do próprio cérebro, caso realmente se proponha a isso, e essa frase seria um excelente resumo para a temática de Uma Paixão por Cultura, mas, como Turco não deixa de alertar Fábio, quem opta por se tornar culto está, ao mesmo tempo, abraçando uma existência essencialmente solitária. Por mais democrático que seja (e por mais conflitos que evite) dizer que "gosto não se discute", fica bem mais difícil continuar concordando com essa velha máxima quando se está andando pela rua e passa ao nosso lado um carro repleto de alto-falantes berrando o último sucesso do funk carioca a 240 decibéis... O fato é que a vasta maioria das pessoas nunca vai compreender o que existe de fascinante numa boa peça de teatro, nem experimentar aquela sensação de ter um balão inflando no peito ao ouvir um concerto de Bach, nem se maravilhar diante de uma pintura ou de um desenho de Da Vinci... Aliás, a maioria nem mesmo compreende qual o sentido de abrir um livro se o conhecimento que ele oferece não puder ser usado em seu trabalho. Sempre viveremos no meio dessa maioria rasa e enfadonha, que, por sua vez, sempre irá encarar os poucos que dão valor à cultura como chatos, esnobes ou simplesmente esquisitos. Optar pela cultura é uma decisão pessoal, que garante a quem a toma uma vida inimaginavelmente mais cheia, rica, bela, interessante, instigante que a dos que se contentam em habitar o espaço do óbvio - mas, ao mesmo tempo, uma vida bem menos confortável, repleta de inquietações e dúvidas que os "outros" não conhecem. E isso não é coisa para gente fraca. Para levar uma vida assim, a pessoa precisa ter fé verdadeira de que as recompensas oferecidas fazem tudo valer a pena: a escassez de interlocutores, a necessidade de procurar por seus prazeres, por vezes com esforço, enquanto os outros encontram os deles a toda hora e em toda parte, e a ocasional marginalização que irá sofrer. E, na minha opinião pessoal, ter acesso a cinco mil anos de história, conhecimento e arte vale muito mais do que ficar à vontade no meio da "galera" que só conhece futebol, cerveja e música pop de FM.