A escritora britânica Mary Renault (1905-1983) foi durante décadas a grande dama da ficção histórica de língua inglesa. Para dar uma ideia de sua importância, hoje ela é citada como influência por sujeitos como Steven Pressfield, Conn Iggulden, Simon Scarrow e outros desse calibre. Sobre ela, a crítica chegou a dizer que era capaz de escrever sobre a Grécia antiga como se nela tivesse vivido. Deve ser verdade, pois suas narrativas têm o poder de nos dar a sensação de que nós, leitores, é que estamos vivendo lá.
Dos quatro livros da autora que li até hoje, Rei Morto, Rei Posto (no original, The King Must Die, literalmente 'O Rei Deve Morrer') é sem dúvida o meu favorito; lido na adolescência, foi relido agora por nenhum motivo em especial, a não ser a vontade de curtir novamente a história envolvente e o estilo narrativo agradavelmente trabalhado que caracteriza a autora. Suas frases são por vezes tortuosas, dizendo as coisas de maneiras não óbvias, mas sem cair num pedantismo cansativo. O texto é pontilhado por longas metáforas que lembram irresistivelmente o estilo de Homero, de quem Renault era sem dúvida uma profunda conhecedora. Este livro em particular, ambientado nos primórdios da civilização helênica, antes mesmo da Guerra de Troia, é uma versão romanceada da lenda do herói Teseu, que procura dar aos elementos míticos tradicionais uma interpretação histórica crível.
Teseu é um dos heróis mais importantes da mitologia grega clássica. Embora seus feitos não rivalizem em número nem em grandeza com os de Hércules - de quem, segundo algumas fontes, teria sido contemporâneo -, pode-se dizer que deixou um legado bem mais importante. Sim, pode-se falar em legado, pois tudo aponta para a probabilidade de ter havido um Teseu de carne e osso, que só não se pode dizer "histórico" porque viveu antes que a escrita fosse introduzida na Grécia. Seu papel, afora muitas façanhas guerreiras, foi o de libertar os gregos do domínio cretense e unificar as diversas pequenas cidades da região da Ática num Estado forte, tendo Atenas como capital.
Obs.: Em Rei Morto, Rei Posto há algumas menções à escrita, inclusive uma parte em que Teseu escreve do próprio punho uma carta a seu pai. Não sei dizer se isso teria sido uma falha da autora - coisa pouco provável em se tratando de alguém que tão evidentemente possuía vasto conhecimento sobre a Antiguidade - ou se apenas estaria de acordo com as informações que a arqueologia podia oferecer na época em que o livro foi escrito (década de 50). Em todo caso, isso pode ser relevado, e de modo algum tira o mérito da história.
A narrativa de Renault é em primeira pessoa e segue a lenda de perto. Teseu, rei de Atenas e já de idade avançada, rememora sua vida, desde sua infância na cidade de Trezena, onde nasceu, neto do rei local, Piteu. A princesa Etra, mãe de Teseu, foi a única filha legítima que restou ao rei, que perdeu os outros, bem como a esposa, vitimados por uma epidemia - e filhos bastardos, embora ele os tenha em quantidade, não contam para fins de sucessão, de modo que o pequeno Teseu é o presumível herdeiro do trono. Além de princesa, Etra é uma alta sacerdotisa; nunca se casou e há quem acredite que o pai de seu filho não é outro senão Poseidon, deus do mar. Teseu, é claro, gosta dessa ideia, mas, à medida em que cresce, vai achando-a cada vez mais improvável. Embora a questão de sua paternidade vá ter implicações bem mais sérias que essa em sua vida futura, por muito tempo a coisa que mais o preocupa é o fato de ser menor que a maioria dos rapazes de sua idade, enquanto era crença geral que os filhos de deuses distinguiam-se por serem muito mais altos que os outros homens - e, na Grécia da época, todo jovem desejava ser alto, o que representava uma vantagem na maioria das modalidades atléticas, além de deixá-los mais impressionantes no campo de batalha, portando elmo, escudo e lança.
O mistério de sua origem é esclarecido quando Teseu faz 17 anos: sua mãe conta-lhe que seu pai (que ela ainda se recusa a dizer quem é) ocultou algo sob uma grande pedra, que ele, Teseu, ao atingir a idade adulta, deveria ser capaz de erguer sozinho. Se o jovem se mostrasse à altura do desafio e recuperasse o que estava escondido, ela deveria mandá-lo ao pai; caso contrário, ele poderia terminar seus dias em Trezena. E Teseu não decepciona: cumpre a tarefa não com força bruta, mas com inteligência, usando o princípio da alavanca, e encontra sob a rocha a espada e as sandálias que pertenceram a seu pai. Finalmente é chegada a hora das respostas: a mãe e o avô revelam-lhe que ele é filho de Egeu, rei de Atenas, a quem a então adolescente Etra entregou a virgindade num ato cerimonial, obedecendo à determinação de um oráculo. Na ocasião, Egeu insistiu em que, se dessa breve união resultasse um filho homem, este deveria ser mantido na ignorância de sua origem até que tivesse crescido e demonstrado sua capacidade, pois, caso se tornasse público que era seu filho, o menino correria o risco, mesmo ali em Trezena, de tornar-se um alvo para os ambiciosos parentes da casa real ateniense.
Teseu parte para Atenas pela perigosa Estrada do Istmo, e pelo caminho elimina uma série de bandidos - essa, conforme a lenda, foi a primeira façanha a dar algum destaque a seu nome, mas Renault não entra em detalhes nem se alonga a respeito (leiam aqui sobre um certo Procusto, cuja história vale a pena conhecer). Quando Teseu chega à cidade de Elêusis, aí sim, a autora por fim o tem onde o queria desde o início. Essa cidade segue a religião antiga, a do "povo da costa", que ocupava a Grécia antes da chegada dos helenos, e por quem estes últimos parecem sentir um incômodo misto de desprezo e fascínio (posso estar enganado - se alguém puder retificar ou ratificar minha teoria, agradeço -, mas pela descrição física desse povo, mais o fato de eles chamarem a si mesmos de "mínios", suponho que fossem um ramo da civilização minoica, e, portanto, aparentados com os cretenses, embora muito menos poderosos que eles na época. Na verdade, "minoico" é um nome cunhado pelos arqueólogos, pois não se sabe como esse povo chamava a si mesmo, mas Renault naturalmente precisava designá-los de algum modo).
A "religião antiga" mencionada é essencialmente matriarcal. A principal sacerdotisa é também a rainha, e é quem de fato governa: o rei não passa de seu marido, pouco mais que uma figura decorativa, além de um acessório indispensável se ela pretende ter filhos. É muitíssimo bem tratado e altamente honrado por todos - só que seu reinado é extremamente curto. Depois de um ano, deve ser sacrificado e substituído por outro, que se casa com a mesma rainha, e assim sucessivamente. O sacrifício anual do rei é considerado essencial para que a terra produza e as mulheres concebam. É a morte gerando a vida, e vice-versa: a serpente Ouroboros, com a cauda na boca. O círculo infinito.
Quanto à escolha do novo rei, ela é deixada nas mãos dos deuses: será o primeiro forasteiro que entrar na cidade no dia determinado. No caso, Teseu. Suponho que para proporcionar um espetáculo melhor, ou apenas por questão de tradição local, a fórmula do sacrifício é um tanto diferente da comum. Em vez de ser colocado numa ara e ter o pescoço cortado por um sacerdote, o "antigo" rei enfrenta seu sucessor presumido numa luta até a morte. Não fica claro o que aconteceria se o primeiro vencesse; na verdade, na narração da cena, a sensação que se tem é a de que o rei se deixa vencer, como num sacrifício mesmo. Assim que ele morre, é como se jamais tivesse existido, e Teseu torna-se o novo queridinho da rainha e do povo de Elêusis - mas, mesmo com 17 anos de idade, ele mantém a perspectiva das coisas, e não esquece em momento algum que a areia na ampulheta já está correndo também para ele.
Terei falado demais?? Então, melhor dizer que quem quiser saber de que maneira Teseu irá escapar da ratoeira real onde se enfiou terá que ler o livro. Daqui até o fim do post, abordarei alguns dos motivos da importância da figura de Teseu para a nação grega e o modo como esses pontos são abordados por Mary Renault.
Dos quatro livros da autora que li até hoje, Rei Morto, Rei Posto (no original, The King Must Die, literalmente 'O Rei Deve Morrer') é sem dúvida o meu favorito; lido na adolescência, foi relido agora por nenhum motivo em especial, a não ser a vontade de curtir novamente a história envolvente e o estilo narrativo agradavelmente trabalhado que caracteriza a autora. Suas frases são por vezes tortuosas, dizendo as coisas de maneiras não óbvias, mas sem cair num pedantismo cansativo. O texto é pontilhado por longas metáforas que lembram irresistivelmente o estilo de Homero, de quem Renault era sem dúvida uma profunda conhecedora. Este livro em particular, ambientado nos primórdios da civilização helênica, antes mesmo da Guerra de Troia, é uma versão romanceada da lenda do herói Teseu, que procura dar aos elementos míticos tradicionais uma interpretação histórica crível.
Teseu é um dos heróis mais importantes da mitologia grega clássica. Embora seus feitos não rivalizem em número nem em grandeza com os de Hércules - de quem, segundo algumas fontes, teria sido contemporâneo -, pode-se dizer que deixou um legado bem mais importante. Sim, pode-se falar em legado, pois tudo aponta para a probabilidade de ter havido um Teseu de carne e osso, que só não se pode dizer "histórico" porque viveu antes que a escrita fosse introduzida na Grécia. Seu papel, afora muitas façanhas guerreiras, foi o de libertar os gregos do domínio cretense e unificar as diversas pequenas cidades da região da Ática num Estado forte, tendo Atenas como capital.
Obs.: Em Rei Morto, Rei Posto há algumas menções à escrita, inclusive uma parte em que Teseu escreve do próprio punho uma carta a seu pai. Não sei dizer se isso teria sido uma falha da autora - coisa pouco provável em se tratando de alguém que tão evidentemente possuía vasto conhecimento sobre a Antiguidade - ou se apenas estaria de acordo com as informações que a arqueologia podia oferecer na época em que o livro foi escrito (década de 50). Em todo caso, isso pode ser relevado, e de modo algum tira o mérito da história.
A narrativa de Renault é em primeira pessoa e segue a lenda de perto. Teseu, rei de Atenas e já de idade avançada, rememora sua vida, desde sua infância na cidade de Trezena, onde nasceu, neto do rei local, Piteu. A princesa Etra, mãe de Teseu, foi a única filha legítima que restou ao rei, que perdeu os outros, bem como a esposa, vitimados por uma epidemia - e filhos bastardos, embora ele os tenha em quantidade, não contam para fins de sucessão, de modo que o pequeno Teseu é o presumível herdeiro do trono. Além de princesa, Etra é uma alta sacerdotisa; nunca se casou e há quem acredite que o pai de seu filho não é outro senão Poseidon, deus do mar. Teseu, é claro, gosta dessa ideia, mas, à medida em que cresce, vai achando-a cada vez mais improvável. Embora a questão de sua paternidade vá ter implicações bem mais sérias que essa em sua vida futura, por muito tempo a coisa que mais o preocupa é o fato de ser menor que a maioria dos rapazes de sua idade, enquanto era crença geral que os filhos de deuses distinguiam-se por serem muito mais altos que os outros homens - e, na Grécia da época, todo jovem desejava ser alto, o que representava uma vantagem na maioria das modalidades atléticas, além de deixá-los mais impressionantes no campo de batalha, portando elmo, escudo e lança.
O mistério de sua origem é esclarecido quando Teseu faz 17 anos: sua mãe conta-lhe que seu pai (que ela ainda se recusa a dizer quem é) ocultou algo sob uma grande pedra, que ele, Teseu, ao atingir a idade adulta, deveria ser capaz de erguer sozinho. Se o jovem se mostrasse à altura do desafio e recuperasse o que estava escondido, ela deveria mandá-lo ao pai; caso contrário, ele poderia terminar seus dias em Trezena. E Teseu não decepciona: cumpre a tarefa não com força bruta, mas com inteligência, usando o princípio da alavanca, e encontra sob a rocha a espada e as sandálias que pertenceram a seu pai. Finalmente é chegada a hora das respostas: a mãe e o avô revelam-lhe que ele é filho de Egeu, rei de Atenas, a quem a então adolescente Etra entregou a virgindade num ato cerimonial, obedecendo à determinação de um oráculo. Na ocasião, Egeu insistiu em que, se dessa breve união resultasse um filho homem, este deveria ser mantido na ignorância de sua origem até que tivesse crescido e demonstrado sua capacidade, pois, caso se tornasse público que era seu filho, o menino correria o risco, mesmo ali em Trezena, de tornar-se um alvo para os ambiciosos parentes da casa real ateniense.
Teseu parte para Atenas pela perigosa Estrada do Istmo, e pelo caminho elimina uma série de bandidos - essa, conforme a lenda, foi a primeira façanha a dar algum destaque a seu nome, mas Renault não entra em detalhes nem se alonga a respeito (leiam aqui sobre um certo Procusto, cuja história vale a pena conhecer). Quando Teseu chega à cidade de Elêusis, aí sim, a autora por fim o tem onde o queria desde o início. Essa cidade segue a religião antiga, a do "povo da costa", que ocupava a Grécia antes da chegada dos helenos, e por quem estes últimos parecem sentir um incômodo misto de desprezo e fascínio (posso estar enganado - se alguém puder retificar ou ratificar minha teoria, agradeço -, mas pela descrição física desse povo, mais o fato de eles chamarem a si mesmos de "mínios", suponho que fossem um ramo da civilização minoica, e, portanto, aparentados com os cretenses, embora muito menos poderosos que eles na época. Na verdade, "minoico" é um nome cunhado pelos arqueólogos, pois não se sabe como esse povo chamava a si mesmo, mas Renault naturalmente precisava designá-los de algum modo).
A "religião antiga" mencionada é essencialmente matriarcal. A principal sacerdotisa é também a rainha, e é quem de fato governa: o rei não passa de seu marido, pouco mais que uma figura decorativa, além de um acessório indispensável se ela pretende ter filhos. É muitíssimo bem tratado e altamente honrado por todos - só que seu reinado é extremamente curto. Depois de um ano, deve ser sacrificado e substituído por outro, que se casa com a mesma rainha, e assim sucessivamente. O sacrifício anual do rei é considerado essencial para que a terra produza e as mulheres concebam. É a morte gerando a vida, e vice-versa: a serpente Ouroboros, com a cauda na boca. O círculo infinito.
Quanto à escolha do novo rei, ela é deixada nas mãos dos deuses: será o primeiro forasteiro que entrar na cidade no dia determinado. No caso, Teseu. Suponho que para proporcionar um espetáculo melhor, ou apenas por questão de tradição local, a fórmula do sacrifício é um tanto diferente da comum. Em vez de ser colocado numa ara e ter o pescoço cortado por um sacerdote, o "antigo" rei enfrenta seu sucessor presumido numa luta até a morte. Não fica claro o que aconteceria se o primeiro vencesse; na verdade, na narração da cena, a sensação que se tem é a de que o rei se deixa vencer, como num sacrifício mesmo. Assim que ele morre, é como se jamais tivesse existido, e Teseu torna-se o novo queridinho da rainha e do povo de Elêusis - mas, mesmo com 17 anos de idade, ele mantém a perspectiva das coisas, e não esquece em momento algum que a areia na ampulheta já está correndo também para ele.
Terei falado demais?? Então, melhor dizer que quem quiser saber de que maneira Teseu irá escapar da ratoeira real onde se enfiou terá que ler o livro. Daqui até o fim do post, abordarei alguns dos motivos da importância da figura de Teseu para a nação grega e o modo como esses pontos são abordados por Mary Renault.
Cnossos em sua glória
A Grécia foi durante séculos a civilização mais pujante do Mediterrâneo e de todo o ocidente, embora, por causa de suas divisões, nunca tenha possuído uma estatura política que igualasse suas realizações culturais - a menos que consideremos a época de Alexandre, mas, mesmo então, o que houve foi uma unificação forçada e artificial, que durou pouquíssimo tempo. De todo modo, antes dos gregos, um outro povo detinha a supremacia na região: os cretenses.
Embora os gregos fossem conhecidos como marinheiros notáveis, os cretenses estavam ainda vários passos à frente deles nessa arte - e, numa época em que os poucos países civilizados que existiam dependiam quase completamente do tráfego marítimo para poderem interagir, dominar as rotas de navegação significava ter poder. Graças a sua invejável frota, Creta por muito tempo manteve as cidades gregas situadas na costa ou em ilhas (ou seja, quase todo o território do país!) sob um controle estreito. Por um lado, os cretenses mantinham o mar livre de piratas; por outro, cobravam pesados tributos e impunham restrições ao desenvolvimento de uma navegação independente pelos gregos. O rei de Creta, que governava de sua capital, Cnossos - sem dúvida uma das maiores e mais ricas cidades do mundo na época - era sempre chamado de Minos, o que não era um nome, e sim um título.
Até aqui, é fato histórico. Daqui para a frente, é mito - e, se eu puder deixar aqui uma nota de protesto contra a conotação negativa que muita gente atribui a esta palavra, quero fazer isso citando um dos maiores estudiosos de mitos de todos os tempos, Joseph Campbell. As frases não devem ser exatamente assim, porque estou citando de memória, mas, em essência, dizem: "O mito é a verdade do homem, pois o homem se exprime no mito: portanto, o mito não é mentiroso. Não podemos ignorar o mito se quisermos compreender o homem" (o grifo é meu). Isto posto, vamos em frente.
Conta-se que o rei Minos (um deles), após ter vencido disputas dinásticas para chegar ao trono, pediu a Poseidon um sinal: se seu reinado contasse com a aprovação dos deuses, que lhe aparecesse um touro branco, o qual ele prometia oferecer em sacrifício em seguida. Dito e feito: um grande e magnífico touro, branco como a neve, apareceu nos arredores do palácio, trazendo a confirmação que o rei desejava. Minos, porém, acabou desonrando sua promessa e, em vez de sacrificar aos deuses o valioso animal, manteve-o para si. Como castigo, a deusa Afrodite, a pedido de Poseidon, incitou na rainha Pasífae uma paixão insana pelo touro - paixão que ela, de alguma maneira, consumou. Dessa união não natural nasceu um monstro com corpo humano e cabeça de touro, que, embora tivesse recebido da mãe o nome de Astérion, ficou conhecido simplesmente como Minotauro, o "touro de Minos". Minos, aliás, sem dúvida pensou em mandar matar a criatura logo que nasceu, mas deve ter concluído que fazer isso atrairia ainda mais ira divina contra ele: os deuses haveriam de querer que Astérion permanecesse como um vergonhoso lembrete de seu crime.
Logo que o Minotauro cresceu um pouco, tornou-se evidente sua natureza feroz, e, apesar de suas afinidades bovinas, estava longe de ser um herbívoro pacífico: seu alimento favorito era carne humana. Minos, então, incumbiu o famoso arquiteto Dédalo de construir um labirinto por onde Astérion pudesse perambular à vontade sem nunca achar a saída, o que foi feito. Em seguida, pensando ao mesmo tempo numa maneira de manter seu monstruoso enteado sem ter que sacrificar seu próprio povo, e em vingar a morte do filho Androgeu, que fora assassinado em Atenas, o rei determinou que, em acréscimo ao tributo anual que já lhe pagava em metais preciosos, cereais, vinho e azeite, aquela cidade, de agora em diante, deveria enviar a cada ano sete moças e sete rapazes, que seriam conduzidos ao labirinto para servir de alimento ao Minotauro.
Essa situação já durava anos quando Teseu, tendo chegado a Atenas e sido reconhecido como filho pelo rei Egeu, decidiu que era hora de dar um basta. Ofereceu-se voluntariamente para ser uma das vítimas daquele ano, e, antes de embarcar no navio cretense, prometeu ao pai que, se voltasse vitorioso, trocaria as velas negras que a embarcação ora levava por outras brancas.
Em Creta, a princesa Ariadne, filha de Minos e meia-irmã do Minotauro, apaixonou-se à primeira vista pelo jovem grego. Em segredo, antes que Teseu fosse para o labirinto, entregou-lhe uma espada e um novelo de lã, que, amarrado firmemente junto à porta e desenrolado à medida em que fosse avançando, lhe permitiria, depois, encontrar a saída. Teseu matou o Minotauro e embarcou de volta com seus companheiros, mas esqueceu-se de mudar as velas do navio como havia prometido. Ao avistar as velas negras aproximando-se do porto, o rei Egeu, desesperado pensando que seu filho tivesse morrido, lançou-se ao mar e morreu. Daí em diante, o mar que banha o leste da Grécia recebeu seu nome, que tem até hoje.
Teseu teve muitas outras aventuras, desde raptar Helena de Esparta (mais tarde celebrizada como Helena de Troia) quando ela ainda era quase uma criança e ele já um homem de meia-idade, até raptar (também) Antíope, a rainha das ferozes amazonas da Ásia Menor, o que causou o lendário ataque delas contra Atenas. De Antíope, Teseu teve seu único filho legítimo, Hipólito, que protagonizaria uma autêntica tragédia, bem ao gosto dos gregos. Mas isso tudo daria (e talvez dê mesmo) assunto para mais uns três textos. Por ora, para finalizar este post, eu gostaria de chamar atenção para a realidade histórica por trás do mito do Minotauro e do labirinto.
Embora os gregos fossem conhecidos como marinheiros notáveis, os cretenses estavam ainda vários passos à frente deles nessa arte - e, numa época em que os poucos países civilizados que existiam dependiam quase completamente do tráfego marítimo para poderem interagir, dominar as rotas de navegação significava ter poder. Graças a sua invejável frota, Creta por muito tempo manteve as cidades gregas situadas na costa ou em ilhas (ou seja, quase todo o território do país!) sob um controle estreito. Por um lado, os cretenses mantinham o mar livre de piratas; por outro, cobravam pesados tributos e impunham restrições ao desenvolvimento de uma navegação independente pelos gregos. O rei de Creta, que governava de sua capital, Cnossos - sem dúvida uma das maiores e mais ricas cidades do mundo na época - era sempre chamado de Minos, o que não era um nome, e sim um título.
Até aqui, é fato histórico. Daqui para a frente, é mito - e, se eu puder deixar aqui uma nota de protesto contra a conotação negativa que muita gente atribui a esta palavra, quero fazer isso citando um dos maiores estudiosos de mitos de todos os tempos, Joseph Campbell. As frases não devem ser exatamente assim, porque estou citando de memória, mas, em essência, dizem: "O mito é a verdade do homem, pois o homem se exprime no mito: portanto, o mito não é mentiroso. Não podemos ignorar o mito se quisermos compreender o homem" (o grifo é meu). Isto posto, vamos em frente.
Conta-se que o rei Minos (um deles), após ter vencido disputas dinásticas para chegar ao trono, pediu a Poseidon um sinal: se seu reinado contasse com a aprovação dos deuses, que lhe aparecesse um touro branco, o qual ele prometia oferecer em sacrifício em seguida. Dito e feito: um grande e magnífico touro, branco como a neve, apareceu nos arredores do palácio, trazendo a confirmação que o rei desejava. Minos, porém, acabou desonrando sua promessa e, em vez de sacrificar aos deuses o valioso animal, manteve-o para si. Como castigo, a deusa Afrodite, a pedido de Poseidon, incitou na rainha Pasífae uma paixão insana pelo touro - paixão que ela, de alguma maneira, consumou. Dessa união não natural nasceu um monstro com corpo humano e cabeça de touro, que, embora tivesse recebido da mãe o nome de Astérion, ficou conhecido simplesmente como Minotauro, o "touro de Minos". Minos, aliás, sem dúvida pensou em mandar matar a criatura logo que nasceu, mas deve ter concluído que fazer isso atrairia ainda mais ira divina contra ele: os deuses haveriam de querer que Astérion permanecesse como um vergonhoso lembrete de seu crime.
Logo que o Minotauro cresceu um pouco, tornou-se evidente sua natureza feroz, e, apesar de suas afinidades bovinas, estava longe de ser um herbívoro pacífico: seu alimento favorito era carne humana. Minos, então, incumbiu o famoso arquiteto Dédalo de construir um labirinto por onde Astérion pudesse perambular à vontade sem nunca achar a saída, o que foi feito. Em seguida, pensando ao mesmo tempo numa maneira de manter seu monstruoso enteado sem ter que sacrificar seu próprio povo, e em vingar a morte do filho Androgeu, que fora assassinado em Atenas, o rei determinou que, em acréscimo ao tributo anual que já lhe pagava em metais preciosos, cereais, vinho e azeite, aquela cidade, de agora em diante, deveria enviar a cada ano sete moças e sete rapazes, que seriam conduzidos ao labirinto para servir de alimento ao Minotauro.
Essa situação já durava anos quando Teseu, tendo chegado a Atenas e sido reconhecido como filho pelo rei Egeu, decidiu que era hora de dar um basta. Ofereceu-se voluntariamente para ser uma das vítimas daquele ano, e, antes de embarcar no navio cretense, prometeu ao pai que, se voltasse vitorioso, trocaria as velas negras que a embarcação ora levava por outras brancas.
Em Creta, a princesa Ariadne, filha de Minos e meia-irmã do Minotauro, apaixonou-se à primeira vista pelo jovem grego. Em segredo, antes que Teseu fosse para o labirinto, entregou-lhe uma espada e um novelo de lã, que, amarrado firmemente junto à porta e desenrolado à medida em que fosse avançando, lhe permitiria, depois, encontrar a saída. Teseu matou o Minotauro e embarcou de volta com seus companheiros, mas esqueceu-se de mudar as velas do navio como havia prometido. Ao avistar as velas negras aproximando-se do porto, o rei Egeu, desesperado pensando que seu filho tivesse morrido, lançou-se ao mar e morreu. Daí em diante, o mar que banha o leste da Grécia recebeu seu nome, que tem até hoje.
Teseu teve muitas outras aventuras, desde raptar Helena de Esparta (mais tarde celebrizada como Helena de Troia) quando ela ainda era quase uma criança e ele já um homem de meia-idade, até raptar (também) Antíope, a rainha das ferozes amazonas da Ásia Menor, o que causou o lendário ataque delas contra Atenas. De Antíope, Teseu teve seu único filho legítimo, Hipólito, que protagonizaria uma autêntica tragédia, bem ao gosto dos gregos. Mas isso tudo daria (e talvez dê mesmo) assunto para mais uns três textos. Por ora, para finalizar este post, eu gostaria de chamar atenção para a realidade histórica por trás do mito do Minotauro e do labirinto.
Além de seu poderio naval, a ilha de Creta era famosa por seu gado - vacas e touros formidáveis, bem maiores e mais possantes que a raça criada pelos gregos. A figura lendária do Minotauro, que fundia homem e touro, surgiu lá, e para os cretenses tinha provavelmente um significado muito diferente do que a lenda grega mais tarde lhe daria: não um sinal de infâmia nem um monstro cruel, mas sim um símbolo de força e poder. Com essa conotação, foi adotado como uma espécie de emblema oficial pelo Estado cretense, como a águia seria mais tarde para Roma: a figura do Minotauro ornava as velas dos navios de Creta e as fachadas de seus palácios, e passou a ser associada, tanto pelos próprios cretenses quanto pelos gregos, à nação cretense em si mesma. Portanto, "matar o Minotauro" significa provavelmente que Teseu liderou os gregos numa rebelião, que derrubou o poder de Creta e transformou a ilha em possessão helênica. De fato, quem for ler a Ilíada de Homero encontrará, nessa narrativa sobre a Guerra de Troia, um personagem chamado Idomeneu, que é apresentado como rei de Creta, e é, em tudo e por tudo, um heleno. Portanto, tudo sugere que, poucas décadas depois do tempo de Teseu, Creta havia sido colonizada pelos gregos e era agora um reino helênico. O labirinto, por sua vez, pode ser uma referência ao palácio real de Cnossos, que tinha tantas salas e corredores que seria fácil perder-se dentro dele.
Quanto ao sacrifício anual de sete moças e sete rapazes, Mary Renault adota a versão de que eles iriam na verdade participar de algo que era ao mesmo tempo parte de um ritual religioso e espetáculo popular: a Dança do Touro, na qual uma equipe de atletas - homens e mulheres jovens, de preferência pequenos, leves e ágeis - realizava uma exibição que era um misto de tourada com ginástica artística. Um touro furioso era solto na arena com os dançarinos, que, além de sobreviver, deviam dar um bom espetáculo, por meio de saltos, esquivas ágeis e assim por diante. A façanha suprema, que assegurava ao dançarino o respeito dos companheiros e a adoração da plateia, consistia em equilibrar-se plantando bananeira sobre o dorso ou os chifres do bicho. Nem é preciso dizer que o índice de mortalidade entre os Dançarinos do Touro devia ser altíssimo, de modo que, quando cada novo grupo chegava, deviam restar muito poucos do ano anterior ainda vivos.
Há muitos outros detalhes interessantes que quem ler Rei Morto, Rei Posto e tiver algum conhecimento sobre história e mitologia gregas perceberá, e eu bem gostaria de mencionar tudo o que encontrei, mas, mesmo que quem lê este blog já haja demonstrado que não tem medo de textos longos (risos), acho que ainda assim é bom manter um pouco de moderação, então vou colocando o ponto final por agora. Creio que os livros de Mary Renault devem estar fora de catálogo no Brasil, mas não tive dificuldade em achá-los em bons sebos. E qualquer um desses livros que caia nas mãos de vocês pode ser plenamente recomendado.
Em tempo: quando li o livro pela primeira vez, foi numa edição diferente, não lembro de que editora era, e a capa fugiu-me quase completamente da memória. O exemplar que tenho hoje foi comprado num sebo faz algum tempo e foi lançado pelo Círculo do Livro, com a capa que aparece no início deste post - capa, por sinal, péssima. Já vi chifres maiores e caras mais assustadoras num tambo de leite que visitei certa vez do que no Minotauro nela representado, e, quanto ao herói que aparece, lembra muito mais a descrição tradicional de Hércules que a de Teseu.
Quanto ao sacrifício anual de sete moças e sete rapazes, Mary Renault adota a versão de que eles iriam na verdade participar de algo que era ao mesmo tempo parte de um ritual religioso e espetáculo popular: a Dança do Touro, na qual uma equipe de atletas - homens e mulheres jovens, de preferência pequenos, leves e ágeis - realizava uma exibição que era um misto de tourada com ginástica artística. Um touro furioso era solto na arena com os dançarinos, que, além de sobreviver, deviam dar um bom espetáculo, por meio de saltos, esquivas ágeis e assim por diante. A façanha suprema, que assegurava ao dançarino o respeito dos companheiros e a adoração da plateia, consistia em equilibrar-se plantando bananeira sobre o dorso ou os chifres do bicho. Nem é preciso dizer que o índice de mortalidade entre os Dançarinos do Touro devia ser altíssimo, de modo que, quando cada novo grupo chegava, deviam restar muito poucos do ano anterior ainda vivos.
Há muitos outros detalhes interessantes que quem ler Rei Morto, Rei Posto e tiver algum conhecimento sobre história e mitologia gregas perceberá, e eu bem gostaria de mencionar tudo o que encontrei, mas, mesmo que quem lê este blog já haja demonstrado que não tem medo de textos longos (risos), acho que ainda assim é bom manter um pouco de moderação, então vou colocando o ponto final por agora. Creio que os livros de Mary Renault devem estar fora de catálogo no Brasil, mas não tive dificuldade em achá-los em bons sebos. E qualquer um desses livros que caia nas mãos de vocês pode ser plenamente recomendado.
Em tempo: quando li o livro pela primeira vez, foi numa edição diferente, não lembro de que editora era, e a capa fugiu-me quase completamente da memória. O exemplar que tenho hoje foi comprado num sebo faz algum tempo e foi lançado pelo Círculo do Livro, com a capa que aparece no início deste post - capa, por sinal, péssima. Já vi chifres maiores e caras mais assustadoras num tambo de leite que visitei certa vez do que no Minotauro nela representado, e, quanto ao herói que aparece, lembra muito mais a descrição tradicional de Hércules que a de Teseu.