
quarta-feira, dezembro 12, 2012
Chamado Selvagem

sexta-feira, novembro 30, 2012
Góticos

Bram Stoker é representado por O Hóspede de Drácula, história curta que é quase presença obrigatória em antologias de contos vampirescos, e também uma boa pedida para coletâneas voltadas para o sobrenatural em geral, como esta. Esse conto, a propósito, até hoje gera controvérsia entre fãs e estudiosos da obra de Bram Stoker: enquanto uns o consideram um trecho excluído de Drácula, outros creem que foi concebido desde o início como um conto independente, embora ambientado no mesmo universo. Luiz Antônio Aguiar expõe a interessante hipótese de que o texto teria sido escrito para ser o capítulo inicial do romance, mas que Stoker o cortou ao perceber que havia ido muito fundo, logo de cara, no clima sobrenatural: o autor acabou preferindo que a imersão do leitor no ambiente tenebroso da história fosse gradual, efeito que conseguiu ao dar aos primeiros capítulos da versão definitiva uma aparência de normalidade que ia aos poucos sendo modificada por meio de sugestões sombrias. O leitor atento notará que a frase que Jonathan Harker (pois está na cara que é ele o viajante inglês sem nome que protagoniza o conto) encontra gravada num túmulo ("Os mortos viajam depressa"), e que não aparece no romance, foi resgatada por Francis Ford Coppola em seu filme Bram Stoker's Dracula (1992), bem como alguns outros detalhes do conto. É pena que Aguiar prejudique a boa impressão que seu posfácio à história de Stoker causa ao leitor, ao cometer um dos erros mais vergonha-alheia que me lembro de já ter encontrado impressos em livro: "...vemos Jonathan chegando ao castelo do conde-vampiro, na Pensilvânia". Transilvânia, Aguiar, Transilvânia, que fica na Romênia, pelo amor de Deus! O estado norte-americano da Pensilvânia nada tem a ver com isso; até onde sabemos, Drácula nunca pôs o pé lá.

(Julgo necessário fazer um parêntese para esclarecer aos não iniciados em mitologia que o Prometeu do título nada tem a ver com o verbo "prometer"; refere-se ao titã Prometeu, que, no mito grego, roubou dos deuses o segredo do fogo para dá-lo aos homens, o que arrancou estes últimos da animalidade e tornou possível o surgimento da civilização. Como castigo, Zeus acorrentou Prometeu ao topo de uma montanha, onde diariamente um gigantesco abutre ia devorar-lhe o fígado, que crescia novamente durante a noite, de modo que seu tormento jamais tivesse fim - mas teve, séculos mais tarde, quando o herói Hércules subiu a montanha, matou o abutre e libertou Prometeu. O que nos interessa diretamente aqui, porém, é notar o paralelo que Mary Shelley traça entre o titã e seu herói Victor Frankenstein: ambos metem-se com segredos que não deveriam conhecer e pagam o preço de sua ousadia. Um ponto de vista tipicamente romântico - pois o gótico, é bom não esquecermos, nada mais foi do que uma ramificação do movimento artístico designado genericamente como Romantismo. Aliás, embora isso seja uma definição um tanto simplista, pode-se dizer que o gótico caracterizava-se precisamente por levar aos extremos certos elementos que outras correntes românticas cultivavam de forma mais moderada.)
Voltando a falar de Polidori, ele só publicou uma outra obra digna de nota, um poema intitulado The Fall of the Angels, com claras influências de Byron, em 1821. Morreu nesse mesmo ano, sem ter completado 26 anos. Nas páginas de Góticos, podemos ter o prazer de ler The Vampyre, conto que, mesmo com muitas marcas do amadorismo de seu autor (que, embora já então formado em medicina, tinha meros 20 anos quando o escreveu), demonstra um inegável dom para criar a atmosfera tenebrosa necessária ao bom horror gótico, e dá uma ideia do formidável escritor que Polidori poderia ter-se tornado, caso vivesse o suficiente. É interessante notar que o vampiro dessa história não mora em nenhum castelo isolado - em vez disso, transita livremente pela alta sociedade inglesa - e não se alimenta apenas de sangue, mas também de atos perversos em geral, comprazendo-se em espalhar ruína, degradação e morte por onde passa.
Também no terreno do vampirismo, embora de maneira mais lírica, situa-se o conto A Amante Morta, de Théopile Gautier, que aparece em outras coletâneas como A Morte Amorosa, A Morta Apaixonada, entre outros títulos, todos com alguma sutil diferença em relação uns aos outros. Nele, um jovem padre se vê desviado, ainda que apenas na esfera dos sonhos e pensamentos (ou assim ele acredita) de sua vocação virtuosa ao apaixonar-se pela misteriosa Clarimonde, a mais bela das mulheres, cujo único defeito, aparentemente, é o de não pertencer ao mundo dos vivos.
Um autor essencial para a literatura vampiresca, mas que, no conto aqui presente, decidiu seguir outro rumo, é o irlandês Joseph Sheridan Le Fanu, cujo Carmilla (1872) plasmou várias das características que hoje associamos automaticamente aos vampiros, além de ter sido, juntamente com o já citado The Vampyre de John Polidori, a mais direta influência para que o igualmente irlandês Bram Stoker - contemporâneo, conhecido e admirador de Le Fanu - viesse a dar à luz (ou às trevas?) o mais famoso livro de vampiros de todos os tempos, cujo título acho desnecessário repetir. Le Fanu deve ter causado certa comoção, em sua época, ao descrever em Carmilla a paixão sentimental e erótica entre uma bela vampira e sua igualmente bela vítima - do sexo feminino. Aqui em Góticos, entretanto, o que o organizador nos oferece é um conto curto no qual Le Fanu preferiu ousar menos: Dickon, o Diabo, é uma história de fantasmas tradicional, sem nada de muito surpreendente, mas, ainda assim, de uma tremenda força ao descrever a aparição do falecido senhor de uma antiga mansão campestre, com uma sutileza que arrepia muito mais que o horror escancarado de grande parte da ficção espectral moderna, seja literária ou cinematográfica.
Retornando por um instante a Mary Shelley, em Góticos tive uma agradável surpresa ao ler um conto seu que não conhecia, Transformação, que apresenta um protagonista totalmente típico do Romantismo - um jovem fidalgo impetuoso, de espírito rebelde (está bem, vá: um playboy renascentista desmiolado), que dilapida a fortuna da família numa vida boêmia e, com isso, arruína suas chances de desposar a jovem que ama. Para não fugir a nenhum chavão romântico, esse personagem é italiano de Gênova e chama-se Guido. O tempero macabro nesse até aí manjadíssimo plot surge quando ele encontra um anão demoníaco e decide aceitar sua proposta para uma troca temporária de corpos, acreditando que isso lhe dará os meios de consertar as bobagens que fez... Não é preciso dizer que as coisas não serão tão fáceis.
Góticos pode ser recomendado sem medo (ou com ele...), já que cumpre bem aquilo a que se propõe, tendo a vantagem de juntar num só lugar um expressivo punhado dos autores e obras mais indispensáveis a quem pretende começar a se arriscar em meio às trevas da melhor ficção de horror. Como, além da qualidade de seus textos, é uma edição de baixo custo, tem tudo para alcançar boas vendagens, e não seria má ideia se isso encorajasse seu coordenador e seus editores a organizar novos volumes: o lançamento de Góticos II, III e assim por diante não seria nenhum exagero, pois ainda há uma enormidade de excelentes textos e autores do mesmo gênero merecendo tornar-se acessíveis a um maior número de leitores. Tendo apenas o cuidado de corrigir as pequenas falhas citadas acima, Luiz Antônio Aguiar ainda poderá nos guiar através de muitas horas e páginas cheias dos mais deliciosos calafrios.
segunda-feira, setembro 03, 2012
O Cavaleiro da Morte
O mundo começou no caos e vai terminar no caos. Os deuses o trouxeram à existência e vão acabar com ele quando lutarem entre si, mas no tempo entre o caos do nascimento do mundo e o caos da morte do mundo existe ordem, e a ordem é feita de juramentos, e os juramentos nos unem como as fivelas de um arreio.
* * *
O primeiro volume das Crônicas Saxônicas, intitulado O Último Reino, terminava com a Batalha de Cynuit, na qual Uhtred de Bebbanburg, de apenas 20 anos, liderou uma pequena força saxã contra um exército de dinamarqueses, e não só obteve uma vitória improvável, como ainda matou em combate singular o terrível Ubba Lothbrokson, o último ainda vivo dos três notáveis chefes vikings filhos do lendário Ragnar Lothbrok. Isso poderia ser seu passaporte para uma alta posição na corte do rei Alfredo, já que essa vitória pode ter salvo, ao menos por algum tempo, o reino de Wessex, o último na Inglaterra que ainda resiste aos invasores nórdicos (na época, a Inglaterra estava dividida em quatro pequenos reinos; os outros três eram Ânglia Oriental, Mércia e Nortúmbria, este último a terra natal de Uhtred). Acontece que, como o velho Uhtred que está contando a história reconhece, quando jovem ele era tolo, orgulhoso e teimoso – como quase todos os jovens, só que num grau pior que o da maioria. Este segundo volume começa quando o rapaz contraria os conselhos de seus companheiros mais velhos e, em vez de ir imediatamente até Alfredo e colocar aos pés do rei o estandarte de Ubba, vai primeiro ver sua esposa e filho. Quando, no dia seguinte, ele finalmente chega ao acampamento de Alfredo, é para descobrir que seu desafeto Odda, o Jovem, filho de Odda, o Velho, chegou primeiro e contou uma história diferente.
Uhtred tem algum respeito por Odda, o Velho, que lutou ao seu lado em Cynuit e está agora moribundo devido aos ferimentos sofridos, mas Odda, o Jovem, que ele considera um covarde, mal participou da batalha. Compreensivelmente enfurecido, Uhtred invade a igreja improvisada do acampamento, onde o devoto Alfredo está orando, para reclamar o crédito por sua façanha, e, esquentado como sempre, acaba desembainhando sua espada na presença do rei – o que, conforme uma lei recentemente promulgada em Wessex, pode ser punido com a morte. Alfredo, imbuído de espírito cristão, o perdoa, só que Uhtred, com o mesmo ato, tornou-se culpado também de outro delito, que foi o de perturbar o andamento do serviço religioso, e esse quem tem que perdoar é Deus. Assim, Uhtred acaba obrigado a vestir um manto de penitente e arrastar-se de joelhos pelo chão enlameado do acampamento até o altar – o que para ele, criado entre os dinamarqueses, é uma humilhação grave. Ele nunca gostou muito do rei, a quem considera um carola manipulado por padres (embora seja impossível negar sua sagacidade), e, depois desse incidente, a antipatia ganha contornos de ódio. Isso faz com que volte a pensar em juntar-se aos dinamarqueses, mesmo tendo passado os últimos dois anos lutando contra eles. Poderíamos falar em lealdades conflitantes, mas a verdade é que Uhtred nunca foi realmente leal a lado nenhum – somente a homens específicos, e, até esse momento de sua vida, esses homens, além de poucos, eram quase todos dinamarqueses.
Como dito, Uhtred é nortúmbrio (ou nortumbriano? Hum…), mas, antes de mais nada, é saxão; e, como sua terra natal é agora uma província dos dinamarqueses, governada por um rei-fantoche, é apenas lógico que, como um saxão livre, ele se submeta ao único rei saxônico de verdade que resta na Inglaterra – e esse é Alfredo de Wessex. Além disso, a esposa de Uhtred é de Wessex, e o casamento fez dele senhor de terras herdadas da família dela. Dessa forma, por menos que goste, ele é súdito de Alfredo, e se vê forçado a acomodar-se em suas terras, tentando, sem muita habilidade, fazê-las prosperar, e lutando contra um enorme tédio.
Durante certo tempo, Uhtred foi comandante da pequena frota de Alfredo; seu antigo navio, o Heahengel ('Arcanjo' em anglo-saxão), está se deteriorando numa praia próxima de sua casa, e olhar para a embarcação abandonada aumenta a depressão do guerreiro… Até que seu antigo imediato, Leofric, aparece em outro navio, trazendo a bordo um time de carpinteiros navais e a ordem de consertar o Heahengel e pô-lo novamente a flutuar. A operação deverá demorar cerca de um mês… E, enquanto os carpinteiros trabalham, Uhtred, Leofric e sua tripulação partem em busca de aventuras, sob o pretexto de "patrulhar a costa". Não por coincidência, a primeira parte do livro intitula-se simplesmente Viking, palavra que, hoje em dia, é muitas vezes usada como sinônimo de "nórdico", como designação de todo um povo, mas que, na origem, era aplicada aos homens que tomavam parte em expedições piratas – que é exatamente o que Uhtred e seus companheiros fazem. A bordo do Fyrdraca ('Dragão Flamejante'), como apelidaram seu navio, eles percorrem a costa de Cornwalum (região do sudoeste da Inglaterra, hoje chamada Cornwall em inglês, Cornualha em português), saqueando indistintamente navios dinamarqueses ou ingleses e procurando por outras maneiras de obter algum ouro e prata.
Uma dessas oportunidades se apresenta quando um certo "rei" Peredur lhes propõe que o sirvam como mercenários, o que ele espera que lhe garanta a vitória contra um "rei" vizinho (como Uhtred explica, naquela região qualquer chefe de vilarejo que pudesse juntar 50 homens armados se intitulava rei). Como o Fyrdraca recebeu como disfarce uma cabeça de dragão, como aquelas usadas nas proas dos navios dinamarqueses, Peredur toma Uhtred e seus homens por vikings de verdade. Quando Uhtred descobre que o rival de Peredur também contratou mercenários nórdicos, percebe que a coisa não será a moleza que ele estava esperando. O líder dos mercenários do lado inimigo é um homem conhecido como Svein do Cavalo Branco, cuja fama já chegara aos ouvidos de Uhtred. Os dois sabem que, se lutarem, independentemente do resultado, ambos perderão muitos homens; assim, acabam entrando num acordo: os dois bandos se unem, arrasam a vila de Peredur e dividem a pilhagem (a essa altura, não é surpresa para ninguém que Uhtred não tenha qualquer problema em trocar de lado sempre que acha conveniente).
O item mais valioso que ele obtém ao saquear a vila é Iseult, uma das esposas do agora falecido Peredur, uma jovem de surpreendente beleza que, dizem, nasceu durante um eclipse, o que faz dela uma "rainha das sombras", conforme uma tradição pagã que sobrevive entre aquele povo ainda em processo de cristianização. Segundo a crença geral, uma rainha das sombras possui poderes proféticos enquanto permanecer virgem, razão essa pela qual Peredur nunca a tocou. Quanto a Uhtred, não dá para dizer que ele não seja supersticioso (longe disso), mas parece que, em sua escala de prioridades, os impulsos masculinos têm precedência sobre as crendices: Iseult torna-se sua amante e ele a leva consigo ao voltar para casa, uma vez terminado aquele mês de aventuras.
Quando, no inverno seguinte, Uhtred é chamado a Cippanhamm (a atual Chippenham, que servia de capital) para falar com Alfredo, ele é acusado de dois crimes. O primeiro é o de ter levado os homens e um dos navios do rei à guerra sem ter recebido ordens para isso – e desse ele sabe que é culpado, embora, é claro, negue. A segunda acusação é a de ter-se juntado aos dinamarqueses para atacar Cynuit, onde estava sendo construída uma igreja para celebrar a vitória saxônica obtida no local – obtida por ele, Uhtred. A igreja em construção foi queimada, e dezenas de monges e aldeões, mortos. Desse ataque ele não participou, mas não há escapatória: ou ele será inocentado dos dois crimes, ou considerado culpado de ambos, e, no segundo caso, morre. Diante disso, Uhtred pede e obtém o direito a um julgamento por combate – uma tradição entre os saxões e outros povos germânicos, que acreditavam que Deus, ou os deuses, dariam a vitória a quem estivesse dizendo a verdade. Uhtred, naturalmente, será o seu próprio campeão; para enfrentá-lo, Odda, o Jovem, sempre ansioso por vê-lo morto, oferece como campeão o mais temido de seus homens, um guerreiro gigantesco, de estupenda força e levemente retardado chamado Steapa Snotor. A narração do duelo deixa-nos a todos com a respiração suspensa, mas ele é interrompido: exatamente quando Uhtred e Steapa estão lutando, os dinamarqueses atacam Cippanhamm.
Uhtred, que cresceu entre os dinamarqueses, fala a língua deles e sempre gostou de seu modo de vida, fica fortemente tentado a se aproveitar do caos para mais uma vez mudar de lado e ajudar a arrasar e pilhar a cidade, mas, talvez pensando na esposa e no filho, não o faz; em vez disso, escapa de Cippanhamm, acompanhado apenas por Leofric, Iseult e mais uma mulher, e sem ter a menor ideia se o rei Alfredo escapou também ou se foi capturado ou morto pelos pagãos. Mas a resposta é favorável: depois de penarem muito viajando a pé em pleno inverno, e de várias peripécias, Uhtred e seu grupo reencontram Alfredo nos pântanos de Sumorsӕte (Somerset), uma região vasta e traiçoeira, pouquíssimo povoada, cujos raros e espalhados habitantes, em muitos casos, nunca ouviram falar nem sequer do rei Alfredo, quanto mais dos dinamarqueses. É uma região de pântanos salobros, pântanos de maré, que durante a maior parte do tempo são rasos demais até mesmo para os navios vikings, de modo que ali o rei e seu punhado de seguidores restantes estão em relativa segurança. É a partir dessa base de operações que Alfredo planeja e começa a executar a gradual retomada de seu reino – com a ajuda de Uhtred, que o serve de má vontade, mas demonstrando capacidade, e tendo a vantagem de conhecer os dinamarqueses e seu modo de pensar: entre outras coisas, ele sabe que os invasores provavelmente conseguiriam tomar o pântano, mesmo com as dificuldades de navegação, caso agissem todos juntos, mas é difícil que isso aconteça, por causa de uma rivalidade entre Guthrum, que ficou sendo o principal chefe dinamarquês após a morte de Ubba e seus irmãos, e Svein, o mesmo que Uhtred conheceu em Cornwalum, e que reluta em submeter-se ao comando de Guthrum. É graças a essa rixa que Alfredo tem uma chance, e ele não pretende desperdiçá-la.
Como todo bom autor de ficção histórica, Bernard Cornwell demonstra habilidade na arte de entrelaçar personagens e eventos reais e fictícios, formando um todo plausível. É fato, por exemplo, que, no século IX, a Inglaterra esteve muito perto de deixar de existir devido às invasões nórdicas, e que Alfredo foi o líder que tornou possível a sua salvação: se não fosse por ele, é provável que, onde está hoje o Reino Unido, houvesse, ao invés, um ou mais países escandinavos. Entretanto, é claro que ele não fez isso sozinho, e Uhtred, mesmo tendo sido inventado, representa um dos tipos de homem com quem Alfredo precisou contar. Já que está lidando com eventos históricos (ainda que misturados com ficção), Cornwell opta por deixar de lado as idealizações: seu Uhtred, embora corajoso e bom guerreiro, dificilmente poderia ser chamado de herói, por causa de sua moralidade discutível – cujo principal exemplo é a já comentada facilidade com que ele troca de lado, não só na guerra entre saxões e dinamarqueses, mas em qualquer conflito no qual se veja envolvido. Como deve lembrar quem leu meu post sobre o primeiro volume das Crônicas Saxônicas (melhor ainda, quem leu o próprio livro), Uhtred já era um garoto crescido, com seus dez ou onze anos, quando foi capturado pelos dinamarqueses e adotado pelo chefe Ragnar (nada a ver com o legendário pai de Ubba; na verdade esse nome devia ser comum). O autor não fez a coisa dessa forma sem bons motivos: Uhtred já tinha idade suficiente para lembrar-se com clareza da vida que teve com seu próprio povo, ele já se entendia como um saxão, o que é bem diferente do que aconteceria se tivesse sido capturado ainda bebê, pois, nesse caso, na certa se consideraria simplesmente um dinamarquês – mesmo que os pais adotivos lhe contassem sobre suas origens – e agiria como tal. Com a história de vida que teve, entretanto, ele se sente ao mesmo tempo saxão e dinamarquês, o que, na prática, é a mesma coisa que não ser nenhum dos dois. Ao ler, não temos a impressão de que Uhtred seja atormentado por grandes conflitos internos, mas isso pode ser porque é ele mesmo, na velhice, quem está contando a história, e, como homem rude e prático que sempre foi, talvez ache bobagem demorar-se falando de seus próprios estados de espírito.
Duas curiosidades históricas para concluir. Primeira: durante sua expedição a Cornwalum, Uhtred conhece um monge do País de Gales, de nome Asser, que, segundo ele, viria, mais tarde, a importuná-lo muito. O protagonista, que já tem pouca simpatia por cristãos em geral, e reserva uma especial má vontade para com padres e monges, parece gostar ainda menos desse monge em particular que da maioria dos outros (parece que, no texto original, ele se aproveitava do nome do cara para fazer um trocadilho nível quinta série com ass, que significa asno). Trata-se de personagem histórico, e não qualquer um: Asser viria a ser bispo de Sherborne e foi um importante cronista, sendo que a maior parte do que sabemos sobre a vida e o reinado de Alfredo vem de seus escritos. Segunda: assim como o primeiro volume, este também termina com uma batalha, mas uma de proporções e importância muito maiores, a Batalha de Ethandun, travada no ano 878 (Ethandun era o antigo nome da atual Edington, no condado de Wiltshire). Não vou contar seu desfecho: quem conhece a história da Inglaterra já sabe, e quem ainda não conhece, na certa vai preferir ler o livro, o que, sem a menor dúvida, vale a pena fazer.
sexta-feira, agosto 17, 2012
O Livro de Areia
sexta-feira, julho 06, 2012
O Fortim
O comandante desse destacamento é o capitão Klaus Woermann, veterano da Primeira Guerra Mundial, um homem que sempre se orgulhou de fazer parte do Exército alemão, e que não vê com bons olhos a ditadura de Hitler nem a ideologia do Partido Nazista em si. Como muitos soldados de sua geração, Woermann desejou essa nova guerra, que imaginava como uma revanche contra os Aliados, que não se contentaram em derrotar a Alemanha na guerra anterior, mas também a submeteram a todo tipo de humilhação, obrigando-a a concordar com tratados de paz obviamente injustos e sobrecarregando-a com exigências de indenizações impossíveis, o que instaurou o caos na economia e na sociedade alemãs. Para sua decepção, porém, quando a Alemanha tornou a se erguer, não foi em busca de uma justa reparação de sua honra como nação, e sim impulsionada por um movimento político cuja cartilha estava baseada em ódio étnico e nos projetos pessoais megalômanos de um pequeno grupo. Para piorar, parece a Woermann que ele é o único em seu destacamento a compreender isso: os soldados e suboficiais sob seu comando são, em sua maioria, jovens no início da casa dos 20 anos, recém-egressos da Juventude Hitlerista (da qual todo adolescente alemão tinha obrigatoriamente que participar), onde suas mentes ainda em formação foram submetidas a uma cuidadosa lavagem cerebral a fim de que considerassem a visão nazista como a única visão possível. Woermann, portanto, representa todos aqueles soldados que desejavam lutar pelos direitos de sua nação, mas percebem agora, amargurados, que estão sendo usados como instrumentos de um regime insano.
O fortim, curiosamente, não está ligado a qualquer acontecimento histórico conhecido; geração após geração, uma família da aldeia vizinha dedica-se à sua manutenção, tendo seus salários pagos por um fundo anônimo num banco estrangeiro; graças a isso, a estrutura se manteve como nova durante os últimos cinco séculos. Muitos dos blocos de pedra que formam suas paredes internas estão ornados com cruzes metálicas em forma de T, feitas de bronze e níquel – "quase como ouro e prata". Ninguém sabe o porquê disso, mas um dos soldados de Woermann tem a mirabolante teoria de que o fortim teria sido construído por ordem de um papa para esconder um tesouro – um tesouro que ele acredita que ainda pode estar por ali. Numa canhestra tentativa de encontrar o suposto tesouro, o soldado Lutz acaba abrindo uma câmara oculta no subsolo da fortaleza. Logo depois, seus companheiros o encontram morto – decapitado. Por mais louca que pareça tal ideia, tudo indica que, ao abrir a tal câmara, Lutz libertou algo que estava cativo há séculos.
A partir daí, a cada noite um soldado vai sendo morto, cada corpo encontrado com a garganta estraçalhada, embora mais nenhum chegue a ter a cabeça arrancada. Depois de tentar de tudo para apanhar o assassino, sem sucesso, Woermann, sem alternativa, telegrafa ao Alto Comando solicitando permissão para mudar de local. Em vez disso, recebe a ajuda que menos desejaria no mundo: é enviado um destacamento da SS (Schutzstaffel, 'Tropa de Proteção' – a força paramilitar a serviço do Partido Nazista), composto pelos temíveis Einsatzkommandos de uniformes negros – temíveis não por serem combatentes notáveis, mas por sua especialização em massacrar civis desarmados. Esses homens representam tudo o que Woermann mais despreza na "nova Alemanha", e, para tornar sua miséria completa, quem vem no comando dos reforços é um antigo desafeto seu, o major Erich Kaempffer, que, como Woermann não ignora, tampouco gosta dele, além de temê-lo pelo que pode revelar sobre seu passado: Woermann foi a única testemunha de um ato de covardia de Kaempffer, décadas atrás, quando ambos eram recrutas adolescentes durante a Primeira Guerra.
O Fortim é um achado surpreendente, um livro extraordinário de um autor que, se produzisse em maior quantidade, poderia ter vindo a ser tão grande quanto um Stephen King! Infelizmente para nós, leitores, o norte-americano Francis Paul Wilson optou por manter a medicina como profissão e ter a literatura como atividade paralela. O Ciclo do Inimigo, iniciado com este romance, inclui cinco outros, sendo que o último, Nightworld, ainda aguarda tradução para o português. Wilson demonstra ser um mestre da narrativa tensa e do clima sombrio, e só não afirmo que o livro nos oferece isso do início ao fim, por causa das anticlimáticas partes românticas protagonizadas por Magda e pelo tal estranho ruivo – não sei se outros leitores terão sentido da mesma forma, mas essas partes me deixaram sempre impaciente, ansioso para que a narrativa voltasse logo ao horror no fortim. Mas não é esse pequeno percalço que torna o livro menos recomendável, ainda mais porque, para além de sua maestria no horror, Wilson ainda demonstra um sólido conhecimento histórico, que aparece na ambientação da narrativa durante a Segunda Guerra – até onde pude perceber, impecável.
Ah: não podia deixar de destacar que, nos agradecimentos do início do livro, Wilson reconhece sua dívida para com Robert E. Howard, H. P. Lovecraft e Clark Ashton Smith. Tal é a admiração de Wilson por Lovecraft, que ele adere à tradição, já honrada por tantos mestres do horror, de homenagear o autor introduzindo o Necronomicon em sua história, embora só se refira a ele como Al-Azif, que, segundo Lovecraft, seria o título original em árabe. Uma homenagem que, realizada num romance de tal qualidade, sem dúvida deixaria Lovecraft satisfeito.
quinta-feira, junho 21, 2012
Star King - A Saga dos Príncipes-Demônios
