quinta-feira, outubro 16, 2014

Hércules


Ir ao cinema para ver um desses filmes baseados em mitologia que andam surgindo nos últimos anos é um grande risco para criaturas como eu, que adoram mitologia desde sempre. O espectador comum, que pouco entende do assunto e não se importa especialmente com ele, não tem o que temer… Já nós, estamos sujeitos a ter um fim de semana estragado e uma crise de nervos pela falta de uma fuça que possamos socar pelo sacrilégio. E é mesmo uma loteria: você pode ver desde coisas legais como A Odisseia (a versão com Armand Assante, de 1997) ou Fúria de Titãs (o de 1981) até horrores como Troia, Fúria de Titãs 2010 ou Imortais - para falar a verdade, esse eu nem tive coragem de ver, depois do que ouvi de alguns amigos. Felizmente, Hércules não se inclui na categoria dos desastres, aqueles a que o velho Zeus responderia com certeiros raios na cabeça do diretor e do roteirista. Não é um grande filme, mas também não é revoltante. E me fez achar que essa poderia ser uma ótima deixa para outro texto nos moldes do que escrevi sobre Perseu: um olhar geral à lenda e, dentro disso, comentários sobre o filme. Talvez algum de meus leitores ache interessante - e, independente disso, sem a menor dúvida, eu me divertirei muito escrevendo-o!

Eu naturalmente já tinha lido alguma coisa sobre Hércules antes, provavelmente algum resumo bem sucinto de sua vida e principais façanhas, em algum livro sobre mitologia, mas meu primeiro contato mais minucioso com o herói foi por meio do livro Os Doze Trabalhos de Hércules, de Monteiro Lobato, que li quando tinha uns dez ou onze anos de idade. Em várias de suas obras além dessa, é fácil perceber que Lobato era um admirador apaixonado da cultura helênica - sua história, mitologia, instituições e legados. Hoje, me parece que ele tinha uma visão um tanto idealizada demais: parecia crer que os gregos foram a única civilização que "acertou", que nada antes deles se comparava e que tudo o que veio depois foi retrocesso. O autor apresentava como fato indiscutível que tudo da Grécia era superior, desde o sistema de governo até o vestuário, e, como escrevia em plenos tempos da Segunda Guerra Mundial, também dava vazão a sua indignação ante as notícias que chegavam da Europa dando conta de milhares de mortes sem sentido - e fazia isso pintando a Grécia antiga como um lugar onde a verdadeira sabedoria havia criado a paz perfeita. À luz do que sei agora, acho muito estranho que alguém que estudou tanto o mundo antigo quanto Lobato obviamente o fez, aparentemente não conhecesse o outro lado da moeda. Enxergar a Grécia apenas pelo que tinha de belo e grandioso é tão ingênuo quanto a ideia que muita gente tem de um "paraíso terrestre" no Brasil, ou nas Américas em geral, antes da chegada dos europeus. Os índios não eram perfeitos e os gregos também não: tanto os primeiros quanto os últimos eram simplesmente humanos, que lutaram guerras terríveis uns contra os outros e tinham costumes que nos deixariam horrorizados. Mas isso não é o mais importante aqui.

Os Doze Trabalhos de Hércules parece ter nascido de um "gancho" que Monteiro Lobato forneceu a si mesmo em O Minotauro, um livro mais curto e que também colocava os personagens do Sítio do Pica-pau Amarelo na Grécia antiga. Por essa ocasião, Pedrinho, Emília e o Visconde de Sabugosa teriam assistido a um dos Doze Trabalhos do herói, a destruição da hidra de Lerna, e daí em diante, naturalmente, não sossegariam enquanto não assistissem aos outros onze. E assim foi que o trio voltou aos tempos heroicos da Grécia por meio do "pó de pirlimpimpim" - por falar nisso, um dos maiores problemas que os editores de hoje encontram na hora de apresentar a obra de Monteiro Lobato a novas gerações de crianças. O tal pó tinha que ser aspirado pelo nariz, causava inconsciência, e, quando a pessoa acordava, estava em outro lugar e/ou outra época - tudo lembrando perigosamente outro pó e outras "viagens". Mas, dizia eu, Pedrinho, Emília e o Visconde vão novamente à Grécia antiga, desta vez com o objetivo expresso de acompanhar Hércules em seus famosos trabalhos. Rapidamente fazem amizade com o herói e passam a ser seus companheiros indispensáveis, eles os três e mais um jovem centauro a quem Emília põe o nome tipicamente "emiliano" de Meioameio. De modo que não é um Hércules solitário, e sim esse curiosíssimo quinteto que atravessa diversas vezes a Grécia e terras vizinhas para cumprir os trabalhos determinados pelo rei Euristeu, que detesta o herói e fica decepcionado cada vez que o vê voltar com vida. Lobato apresenta um Hércules que facilmente cativa o jovem leitor: além de sua coragem e da força proverbial, ele tem um coração de ouro, mas não um cérebro no mesmo nível - o autor declara-o "burrão de nascença como todos os grandes atletas" (hoje isso seria considerado preconceituoso!). Se formos analisar a lenda em uma de suas versões clássicas, a questão da inteligência, ou falta dela, de Hércules, é controvertida - afinal, nem todos os Doze Trabalhos poderiam ter sido levados a bom termo só na base da força bruta: alguns deles foram completados graças a boas ideias. Na versão de Lobato, essas ideias vêm de Emília e às vezes de Pedrinho, com a contribuição científica do Visconde; sem a presença deles, só se pode imaginar que, ou Hércules, afinal, tinha alguns neurônios, ou então que devia contar com a ajuda constante de sua meia-irmã, a deusa Atena, de quem era protegido. Talvez as duas coisas.

O Maior dos Heróis…

Hércules nasceu em Micenas (e não em Atenas, como dito no filme recente), no palácio onde reinava a mesma dinastia outrora fundada por Perseu. O rei Anfitrião tinha duas esposas, que, casualmente, estavam grávidas ao mesmo tempo - uma, dele mesmo, enquanto a outra, a bela Alcmena, esperava um filho de (adivinhem…) Zeus. A gravidez de Alcmena estava um pouco mais adiantada, de modo que tudo indicava que o filho de Zeus nasceria primeiro e seria o herdeiro do trono, mas a deusa Hera, esposa de Zeus, que sempre fazia o que podia para infernizar a vida dos inúmeros filhos que seu marido tinha com suas também inúmeras amantes, enviou uma serpente que pregou um tremendo susto na outra esposa do rei, causando o nascimento prematuro de seu filho - Euristeu. Com isso, o filho de Alcmena ficou relegado à posição de um príncipe inferior. Quando ele nasceu, a mãe, sabendo que o menino estaria na mira de Hera, tentou apaziguar a deusa dando a ele o nome de Héracles ('glória de Hera' - Hércules é a forma latinizada). Não adiantou: o primeiro ataque de Hera contra o pequeno Hércules aconteceu quando ele ainda estava no berço, e também envolveu serpentes. Duas delas, robustas e venenosas, apareceram nos aposentos de Alcmena quando ela estava ausente e atacaram o menino; quando a mãe retornou, encontrou o bebê brincando com as cobras mortas: tinha-as estrangulado, cada uma com uma mão.

À medida em que Hércules crescia, ficou logo evidente que o elemento sobre-humano estava presente nele em maior grau que nos outros semideuses: sua força era prodigiosa, sua coragem, extraordinária, e seu apetite, insaciável. Como muitos outros heróis gregos, antes e depois dele, teve como mestre o sábio centauro Quíron (sim, Quíron acumulou um currículo extenso antes de ir para o Acampamento Meio-Sangue), que fez dele um exímio arqueiro. Já para o combate corpo a corpo, Hércules elegeu a clava como arma favorita; ao contrário da maioria dos outros heróis, nunca teve grande afinidade com espadas. Praticou muitas façanhas formidáveis, algumas delas responsáveis (conforme a antiga crença popular) até mesmo por alterar a geografia: acreditava-se que o mar Mediterrâneo tivesse sido originalmente um lago, com a Europa e a África se tocando, até que o herói, com um pontapé (!), abriu o estreito de Gibraltar, que, não por acaso, os gregos, e, depois deles, os romanos, chamavam de "Colunas de Hércules". Conta-se também que, na disputa pela mão de Dejanira, sua segunda esposa, Hércules derrotou o rio-deus Aquelau, que tinha o poder de transformar-se num touro, e, durante a luta, quebrou-lhe um dos chifres: isso provavelmente é uma alegoria mitológica. Deve significar que o rio Aquelau, a certa altura de seu curso, dividia-se em dois; Hércules, ou quem quer que esteja na origem de sua lenda, pode ter construído uma barragem - obra ambiciosa para os padrões da época -, secando um dos leitos, ou seja, simbolicamente "quebrando um chifre" do deus que personificava o rio. Por fim, as terras que formavam esse leito se mostrariam muito férteis, devido ao lodo deixado pelo rio, o que daria origem à lenda da Cornucópia, o chifre miraculoso que se enchia de qualquer coisa que seu possuidor desejasse. Esses são apenas dois dentre inúmeros exemplos que a mitologia oferece, mas ilustram bem a maneira como os antigos pensavam em Hércules: um super-homem, capaz de proezas que seriam impensáveis não só para os homens comuns, mas até mesmo para a maioria dos outros heróis.

Não obstante, embora haja muitas, as aventuras mais famosas da carreira do filho de Alcmena são, sem dúvida, aquelas que ficaram conhecidas como os Doze Trabalhos de Hércules. Segundo a lenda, a deusa Hera, que parecia nunca se cansar de perseguir o enteado, certa vez lançou sobre ele uma praga de loucura, que, embora temporária, durou o suficiente para que Hércules praticasse o crime que por pouco não arruinou sua vida: descontrolado, ele assassinou a primeira esposa, Mégara, e os três (ou sete; depende da fonte) filhos do casal. Ao voltar a si e ver o que havia feito, o herói, como diríamos hoje, entrou em depressão. Recolheu-se a uma região selvagem, onde passou a viver isolado, alimentando-se do que caçava e evitando todo contato humano. Foi resgatado por seu amigo Teseu, que, depois de uma extensa busca, conseguiu localizá-lo e o convenceu a consultar o oráculo de Apolo, em Delfos, para saber qual penitência poderia livrá-lo de sua culpa. Quando ele assim fez, ouviu em resposta que devia prestar doze anos de serviços a seu irmão de criação, o rei Euristeu. É interessante registrar que, também dependendo da versão (é sempre assim em mitologia), o nome que o herói recebeu da mãe ao nascer foi Alcides, que significa apenas "descendente de Alceu", em referência a um de seus ancestrais. Segundo essa versão, o nome Héracles foi dado pela pitonisa - a sacerdotisa que servia de voz ao deus no oráculo - justamente por ocasião dessa consulta, e assim ele seria conhecido daí em diante.

Talvez Euristeu tenha recebido ajuda de Hera para selecionar as tarefas mais difíceis e perigosas que pudesse haver no mundo da época; ou isso, ou ele realmente se esmerou na escolha. A ordem de realização dos trabalhos, como não poderia deixar de ser, varia conforme a fonte, mas, de um modo geral, é como segue…

  1. Matar o leão de Nemeia. Esse temível animal, além de ser muito maior e mais feroz que os leões comuns, era, ao que se dizia, invulnerável.
  2. Matar a hidra de Lerna, uma serpente venenosa gigante com nove cabeças, sendo que, se uma fosse cortada, duas outras cresceriam no mesmo instante.
  3. Capturar, viva, a corça de Cerínia, de chifres de ouro e cascos de bronze, que corria a uma velocidade espantosa, sem jamais se cansar.
  4. Capturar o javali de Erimanto, um verdadeiro tanque de guerra vivo, que arrasava tudo em seu caminho.
  5. Limpar as cavalariças de Áugias. Esse rei possuía milhares de cavalos, e as vastas cavalariças onde os mantinha não eram limpas havia décadas.
  6. Matar ou afugentar as aves carnívoras do lago Estínfale. Essas enormes aves de rapina devoravam indistintamente homens e animais pela região ao redor do lago, e eram cobertas por penas de bronze, o que as fazia quase invulneráveis a flechas ou lanças.
  7. Capturar o grande Touro de Creta, um animal enlouquecido que já matara muitas pessoas nessa ilha.
  8. Matar os cavalos de Diomedes, rei da Trácia, que se alimentavam de carne humana.
  9. Obter o cinturão de Hipólita, a rainha das amazonas.
  10. Roubar os bois de Gerião, um gigante de três cabeças.
  11. Obter um pomo de ouro do jardim das Hespérides.
  12. Capturar Cérbero, o cão de guarda do reino de Hades, o deus do mundo dos mortos.

É de se imaginar que passar por tão tremendas experiências mudaria qualquer pessoa, mas Hércules parece não se ter deixado afetar mais que o necessário. Terminado o período de penitência, já livre da servidão a Euristeu, retomou o modo de vida que, pensando bem, era o único possível para um homem como ele: o de aventureiro, sempre em busca de oportunidades para novos feitos heroicos. Eventualmente, ganhou o direito à mão de Dejanira - depois de derrotar Aquelau e outros rivais poderosos - e em companhia dela empreendeu a viagem de retorno a Micenas. Às margens do rio Eveno, o casal encontrou Nesso, um centauro que Hércules conhecia. O que o herói não sabia, porém, era que Nesso o odiava, por ter, anos antes, matado em combate vários parentes seus. O centauro, dissimulado, o cumprimentou afavelmente e ofereceu ajuda, prontificando-se a transportar Dejanira até a margem oposta. Uma vez fora do alcance de Hércules (ou assim pensava), tentou escapar com a moça, planejando raptá-la. Hércules, é claro, agiu depressa: atirou uma flecha que acertou Nesso em cheio. Antes de morrer, o centauro ainda teve tempo de dizer a Dejanira que seu sangue tinha um poder miraculoso. Apontando para a túnica que ela usava, e que ficara respingada de sangue, ele disse que ela devia guardá-la bem: se Hércules um dia parecesse cansado dela, tudo o que precisaria fazer seria conseguir que ele a vestisse, e teria de volta o afeto do marido, mais forte que antes. Dejanira guardou a túnica, mas durante muitos anos não voltou a se lembrar dela.

Certa ocasião, durante uma de suas expedições, Hércules salvou uma princesa de nome Iole, e pensou que seria uma boa ideia casá-la com seu filho Hilo. Levando consigo a jovem, pôs-se a caminho para a corte do rei Eurites, pai dela, a fim de propor o arranjo, e, acontecendo de passar próximo de Micenas, mandou um emissário à sua casa, para dar notícias a Dejanira e buscar algumas roupas e outros itens de que precisava. Ao encontrar a esposa do herói, o tal emissário descreveu com cores tão vivas a beleza de Iole, que Dejanira ficou mordida de ciúmes, e convenceu-se de que a intenção alegada de fazer dela sua nora não passava de um pretexto, e de que Hércules estava era apaixonado pela garota. Isso lhe trouxe de volta à memória as palavras de Nesso, e, acreditando na promessa do centauro, ela incluiu a velha túnica entre as roupas que mandou para o marido (os trajes masculinos e femininos não eram tão diferentes na época).

Gostaria que vocês não esquecessem que é de mitologia grega que estamos falando, e, portanto, de um mundo onde nenhuma maravilha - e nenhum horror - é fantástica demais para existir, então não se apressem em julgar Dejanira uma tonta. Como a maioria de nós, ela tinha uma tendência a acreditar no que desejava, e, além disso, um centauro com poção do amor correndo nas veias será mais inacreditável que cavalos carnívoros ou uma serpente de nove cabeças? De qualquer forma, Nesso a enganou: a única coisa que havia de especial em seu sangue era o veneno da hidra de Lerna. O centauro sabia que, depois de matar a hidra, Hércules untara as pontas de suas flechas com o veneno do monstro, e que esse era um veneno tão potente, que também tornava venenoso o sangue daqueles que matava. A mentira que contou a Dejanira foi a maneira que encontrou para, mesmo depois da morte, conseguir vingar-se do herói.

Quando Hércules vestiu a túnica, sentiu-se como se tivesse entrado numa fogueira. Tentou livrar-se dela, mas o tecido se agarrava a seu corpo e arrancava pedaços de pele e carne. Sabendo que seu fim havia chegado, ele construiu às pressas uma pira funerária, deitou-se sobre ela e ordenou a seu escudeiro, o jovem Filoctetes, que a acendesse. A clava e a pele do leão de Nemeia queimaram junto com o herói, mas Filoctetes herdou o arco e as flechas, com os quais ainda teria um papel importante a desempenhar na Guerra de Troia, décadas mais tarde. Quanto a Dejanira, ao saber do acontecido, suicidou-se. Um final trágico bem ao gosto grego, sem dúvida - mas que não é realmente o final. A lenda conta que Zeus chamou seu filho para o monte Olimpo e fez dele um deus, e a verdade é que fé em Hércules nunca faltou: templos e monumentos dedicados a ele espalhavam-se não só pela Grécia, mas também pela Albânia, Bulgária, parte da Turquia, Sicília e sul da Itália - todas regiões que os gregos conquistaram. O culto de Hércules difundiu-se ainda mais durante o período romano, e continuaria popular até o advento do cristianismo.



…em um filme banal

Talvez o principal mérito de Hércules (2014, dirigido por Brett Ratner e estrelado por Dwayne Johnson no papel do herói) esteja em ter um roteiro original: os célebres Doze Trabalhos e outros feitos conhecidos de Hércules são apenas citados, e provavelmente é melhor assim. O filme já começa com uma bola fora, embora, na certa, pouquíssima gente tenha notado: a data mencionada é 358 a.C. - o que, para os padrões da História grega, já é uma época recente e bem documentada; os monstros fabulosos e os heróis sobre-humanos pertencem a um passado muito mais remoto e misterioso. Para dar uma ideia, 358 a.C. é apenas dois anos antes do nascimento de Alexandre, que, por sinal, acreditava ser descendente (bem distante) de Hércules, cuja lenda já era antiga em sua época. Os personagens Anfiarau (Ian McShane) e Autólico (Rufus Sewell) também declaram que "quem morrer a serviço de uma causa justa irá para os Campos Elísios, onde estão os grandes heróis, como Teseu, Odisseu e Aquiles"; como já vimos, Teseu era contemporâneo de Hércules, enquanto Odisseu (também chamado Ulisses) e Aquiles lutariam na Guerra de Troia, de modo que provavelmente ainda nem haviam nascido. Ou seja, a cronologia desse filme é digna do seriado da Xena.

A primeira cena do filme (sem contar os pequenos trechos de narração que a antecedem) é idêntica à de O Escorpião Rei (2002), primeiro filme a garantir a Johnson uma maior exposição como ator - ele ainda usava seu nome de lutador de wrestling, The Rock. A cena, aliás, já não era propriamente a coisa mais criativa do mundo, mesmo em 2002: o amigo/parente do herói está nas mãos de inimigos, prestes a ser morto ou coisa pior, quando O Cara em pessoa aparece para salvá-lo, sempre no último momento possível. A seguir, somos apresentados ao bando de Hércules, composto por personagens tirados de várias lendas diferentes, a maioria sem ligação com a dele. Conheço bem a história de Atalanta, mas sei pouco sobre Tideu (Aksel Hennie), e nada sobre Anfiarau ou Autólico. É claro que poderia fazer uma rápida pesquisa e reunir informação sobre todos, mas receio que este texto já vai ficar enorme sem isso (risos). Então, comento apenas que Tideu é citado na Ilíada como pai de Diomedes (nada a ver com o rei que tinha os cavalos comedores de gente; este Diomedes era um herói intrépido, que se destacou na Guerra de Troia), e tendo, ele próprio, praticado feitos notáveis durante o famoso episódio dos Sete Contra Tebas - ou seja, o Tideu original devia ser muito diferente do selvagem incapaz de falar, retratado no filme. Quanto a Atalanta, sua interpretação pela atriz norueguesa Ingrid Bolsø Berdal acrescenta uma bem-vinda dose de beleza, o que não faz mal a filme algum. De toda essa turma, o único a realmente ter ligação com Hércules é seu sobrinho Iolau (Reece Ritchie), que também se consagrou como herói em "carreira solo", embora, claro, sem nunca chegar aos pés do tio. Em todo caso, participou da caçada à hidra e de outras aventuras ao lado dele, lutando - não era uma espécie de relações-públicas, como mostrado no filme.

O enredo é simples. Hércules e esse grupo de companheiros ganham a vida como mercenários, e seu mais novo empregador é um certo lorde Cotys, da Trácia (John Hurt). Esse lorde está enfrentando uma guerra civil contra um líder rebelde de nome Rhesus, que, pelo que se diz, aterroriza o interior do país, matando e pilhando, à frente de um exército de centauros. O exército de Cotys sofreu grandes perdas, e, para repô-las, só há os novos recrutas - simples camponeses sem qualquer experiência militar. A tarefa de Hércules e seus amigos consiste em treinar esses homens e depois comandá-los na campanha contra Rhesus. Enquanto a história vai sendo contada, pistas vão surgindo sobre o passado do herói, principalmente sobre o episódio triste e traumático da morte de Mégara e dos filhos - que, só para dar uma dica, não é exatamente como na lenda. Mais: também vão aparecendo as evidências de que, embora Hércules seja, sem dúvida, um dos guerreiros mais poderosos do mundo em seu tempo, pode ser que nem tudo o que se conta sobre ele seja bem como dizem. Isso levanta a indagação que talvez seja o ponto central do filme: o que faz de alguém um herói? Poder ou espírito? A dimensão de suas façanhas, ou a coragem necessária para realizá-las? Junto com isso, o desenrolar dos acontecimentos vem mostrar que a situação na Trácia é um tanto diferente do que a princípio parecia, o que irá exigir de Hércules e dos outros uma decisão difícil.

Quando Hércules acabava de estrear, li em algum lugar da internet um comentário que dizia que ele "desconstruía" a lenda, o que, na minha opinião, seria uma coisa idiota de se fazer. As lendas devem ser deixadas em paz. Entretanto, quando vi o filme, minha impressão foi bem diferente: Brett Ratner não realizou nenhuma grande obra, mas é inocente de qualquer intenção de "sabotar" a lenda de Hércules reduzindo-a a um punhado de fatos comuns. O recado que a produção procura dar é o de que o mais importante na lenda não são os detalhes fantásticos, mas a essência da história, aquilo que podemos aprender com ela. Não importa tanto se Hércules tinha a força de dez homens ou se não tinha, se ele enfrentou monstros fabulosos ou só ameaças naturais; aliás, não importa tanto nem mesmo se houve um Hércules de carne e osso ou se não houve. O importante é compreendermos que o heroísmo não reside em superforça nem em sangue divino, e sim em um determinado tipo de atitude diante de desafios ou situações adversas, quando uma pessoa está lutando por alguma coisa maior que ela própria. O heroísmo está acessível a todo ser humano, mas são poucos os que o alcançam, e, dos que alcançam, a maioria continuará anônima para sempre.