quinta-feira, outubro 15, 2015

O Império dos Dragões

No ano 260 d.C., a cidade romana de Edessa, na Anatólia (correspondente a parte da atual Turquia) está sob cerco do exército persa. Dentro de suas muralhas, o bom imperador Valeriano espera por reforços, quatro legiões que estão vindo do oeste, conduzidas por seu filho Galieno, mas acaba por ficar evidente que o socorro não chegará a tempo de evitar que a população e as tropas aquarteladas na cidade pereçam devido à fome. Então chega uma mensagem de Shapur I, rei dos persas, propondo um encontro para discutir condições para o fim do cerco e a instauração da paz na região. Contrariando os conselhos do experiente legado Marco Metelo Áquila (o "Comandante Águia", como é chamado por seus homens), o imperador aceita o convite. Uma vez que suas advertências não deram resultado, Metelo insiste para que Valeriano lhe permita acompanhá-lo, no que é atendido.

Infelizmente, Metelo Áquila estava certo em desconfiar: o convite era uma armadilha. O imperador cai prisioneiro dos persas, e, com ele, Metelo e mais dez homens de sua legião, a Segunda Augusta (não tenho certeza se a presença da Augusta na Anatólia na segunda metade do século III é histórica; não encontrei registros nesse sentido, mas também nenhuma evidência em contrário). Não se sabe mais nada de Valeriano depois disso; ele pode ter sido executado pelos persas logo em seguida, ou pode ter vivido anos no cativeiro.

Tal como já o fizera em A Última Legião, Valerius Maximus Manfredus… perdão, Valerio Massimo Manfredi aproveita-se do final reticente da biografia de um imperador romano para explorar possibilidades surpreendentes numa obra de ficção. Porém, diferente do que acontecia naquele livro, neste o imperador em questão não vê o fim da jornada. O grupo é levado para uma mina de turquesas no coração do Império Persa – e ir para uma mina era um dos piores destinos que alguém podia ter na época. As condições insalubres, a alimentação miserável e os maus-tratos cobram seu preço de todos, mas Valeriano, devido à idade, sofre mais, e acaba não resistindo – ele e um soldado cuja fé cristã atrai a antipatia dos feitores persas, valendo-lhe uma dose extra de castigos físicos. À parte essas duas baixas, o restante do grupo insiste em agarrar-se à vida, até que, quando se dão conta, estão trabalhando na mina há mais de um ano, o que já é bem mais do que a maioria sobrevive em tal lugar. Quando conseguem fugir, isso é um feito inédito, só alcançado graças à ajuda de um prisioneiro veterano, o único que está lá há mais tempo que eles. Os conselhos do velho de nome Uxal e seu conhecimento do terreno, aliados à determinação dos romanos e sua capacidade para agir em equipe, permitem ao grupo escapar da mina, mas isso é apenas o começo de sua odisseia, que segue com uma exaustiva e perigosa fuga pelo deserto, caçados pelos persas. Num entreposto comercial, perto de onde o rio Khaboras (hoje conhecido como Khabur, na Síria) deságua no legendário Tigre, encontram um mercador indiano que os contrata como escolta para sua caravana, que, a partir daí, segue viagem pelo rio. Em tal companhia, Metelo e os outros chegam à foz do Tigre, no Golfo Pérsico, e, mais tarde, ao Oceano Índico, em cujas águas, até então, pouquíssimos europeus navegaram.

O plano original é separarem-se aí; os romanos esperam encontrar um navio que os leve rumo ao oeste e de volta para casa, enquanto Daruma, o indiano, seguirá ainda mais para o oriente, rumo ao misterioso país da seda, que, nos mapas romanos, é designado, de forma vaga, como Sera Maior – um lugar sobre o qual Roma, e o ocidente em geral, sabem muito pouco. Porém, é época de monção: durante os seis meses seguintes, ventos fortes e constantes soprando rumo ao leste tornarão impossível navegar em qualquer outra direção; Metelo e seus companheiros teriam que escolher entre ficar esse tempo esperando em alguma vila litorânea, sem conhecer o idioma local e quase sem dinheiro, ou tentar fazer o trajeto por terra, o que levaria talvez um ano ou mais, sem mencionar os incontáveis perigos, o fato de não conhecerem o caminho e, é claro, a vigilância dos persas. Daruma, então, lhes propõe o seguinte: os dez romanos podem continuar em sua função de escolta até que a caravana chegue a seu destino; promete-lhes pagamento generoso e, ao final, providenciar-lhes a viagem de volta. Considerando as poucas opções de que dispõem, Metelo e os outros aceitam.

Quando esse acordo é feito, Metelo já percebeu que Daruma não é um comerciante comum. A carga mais preciosa a viajar em sua caravana e em seus navios não é a mercadoria que leva, e sim um jovem cuja aparência só não é mais exótica que seus modos. Ele diz chamar-se Dan Qing e ser um príncipe chinês, que, depois de um bom tempo como refém dos persas, está retornando a seu país, onde o trono que seria seu por direito foi usurpado. Mesmo sozinho, o príncipe espera retomar o que lhe pertence e devolver a paz a seu império dividido. Dan Qing foi educado em certas misteriosas artes orientais, que combinam filosofia e combate, possuindo habilidades que, aos olhos dos soldados romanos, parecem quase sobre-humanas. Entre ele e Metelo, a despeito de uma interação, a princípio, muito fria e formal, vai gradualmente surgindo o mútuo e natural respeito entre dois homens bravos, semelhantes em essência, apesar de virem praticamente de mundos diferentes, com um abismo de distância e de cultura a separá-los. Acompanhando Dan Qing, Daruma e seus homens, o pequeno grupo de legionários desgarrados irá entrar num mundo exótico, além de sua imaginação, ver inúmeras maravilhas da natureza e da arte, e, também, envolver-se em conflitos de poder e em diversos outros tipos de perigos. Já contei o suficiente, mais que isso seria spoiler, mas podem ter certeza de que as possibilidades abertas por esse enredo são tão enormes e empolgantes, que facilmente renderiam uma série em vez de um único livro.

O Império dos Dragões é mais uma bela história de Valerio Massimo Manfredi, sem dúvida um excelente entretenimento, e também me ensinou um pouco sobre a situação do Império Romano no século III, período do qual não se fala muito… Mas qual será a probabilidade de que essa ficção esteja calcada em algo de verídico? O que Roma e a China sabiam uma da outra nessa época? Será possível que os dois impérios tenham interagido de algum modo?

Por tudo o que sabemos de seguro, com base em registros fiáveis, tanto do ocidente quanto do oriente, parece que os romanos tinham noções muito vagas a respeito da China, e vice-versa – cada uma dessas civilizações pensava na outra como pouco mais que um lugar lendário, inimaginavelmente distante, que podia existir ou não. Apesar disso, a interação acontecia, embora de modo indireto. Sabe-se que os mercados mais refinados de Roma ofereciam especiarias, seda e jade trazidos da China, o que não significa que algum mercador tivesse feito todo o percurso – esses produtos, provavelmente, eram comprados e vendidos pelo menos meia dúzia de vezes desde o seu local de origem até a venda ao consumidor final, o que era mais um motivo para que seus preços fossem proibitivos para todos com exceção dos mais ricos. Entretanto, não é impossível que, em algum momento da Antiguidade, uma conspiração de eventos, jamais prevista por ninguém, tenha levado esses dois mundos distantes a entrarem em contato de outras formas.


Rumores sobre a presença de contingentes militares romanos na antiga China circulam há séculos, e investigações feitas nos tempos modernos chegaram a fornecer-lhes certo respaldo, ao menos aparente. Depois da batalha de Carras, em 53 a.C. – uma das piores derrotas sofridas pelo exército romano em sua longa história –, cerca de dez mil legionários (ou seja, o equivalente a duas legiões inteiras) foram feitos prisioneiros pelos inimigos partas, e nunca mais o ocidente ouviu falar deles… Até meados do século XX, quando alguns historiadores ingleses levantaram uma hipótese, no mínimo, curiosa. Esses pesquisadores examinaram registros chineses sobre a batalha de Zhizhi, travada em 36 a.C., em algum lugar do atual Cazaquistão, entre as forças do Império do Centro (que era como a China chamava a si própria) e um povo que eles chamavam de Xiongnu, e que eram provavelmente os citas, cavaleiros nômades que habitavam as estepes de partes das atuais Rússia e Ucrânia. Nessa batalha, segundo tais registros, os Xiongnu contavam com uma infantaria pesada que lutava numa formação que os chineses nunca tinham visto; nela, os soldados posicionavam seus escudos numa configuração semelhante à de escamas de peixe. O ponto é: os citas, como outros povos acostumados a viver e morrer sobre seus cavalos, consideravam desonroso lutar a pé; seus exércitos eram compostos principalmente por arqueiros montados. Portanto, se os tais Xiongnu eram mesmo os citas – como parece ser o mais provável –, isso levanta a questão de qual seria a origem dessa infantaria. Os pesquisadores pensaram o mesmo que eu teria pensado no lugar deles: essa parte sobre os escudos dispostos "como escamas de peixe" parece uma descrição bastante boa da manobra que os legionários romanos chamavam de testudo ('tartaruga'), e, afinal, a batalha de Zhizhi foi apenas 17 anos depois da de Carras… É plausível, ao menos em tese, que os partas tivessem vendido os romanos capturados como soldados-escravos para os citas, seus vizinhos do norte, ou que ao menos parte dos legionários tivessem, de alguma forma, recuperado sua liberdade, e, ante a quase impossibilidade de voltarem para casa, passassem a ganhar a vida como mercenários.

Já se apontaram, como uma possível evidência a favor dessa teoria, as curiosas características étnicas dos habitantes da pequena cidade de Liqian, no norte da China, muitos dos quais têm olhos azuis ou esverdeados, cabelos alourados e estatura mais alta que a comum na região… Acontece que essas características nunca foram típicas dos romanos, um povo originalmente de estatura mediana, olhos e cabelos escuros. Por outro lado, as legiões não eram formadas só por romanos "da gema": para alistar-se, bastava ter cidadania romana e falar um pouco de latim. Você podia ser cidadão romano sem nunca ter posto o pé na Itália e mesmo que seu biotipo estivesse mais para celta ou germânico: bastava que seu pai, avô, bisavô ou outro ancestral tivesse sido romano, e que, desde então, tivesse havido uma linha ininterrupta de descendentes masculinos. Havia até os que eram cidadãos sem terem um pingo de sangue italiano – eram aqueles cujos pais ou avós haviam servido nas tropas auxiliares, pois, ao darem baixa, esses soldados de origem bárbara recebiam a cidadania romana, que era transmitida aos descendentes. Ou seja, as legiões tinham, sim, a sua quota de soldados altos e de olhos claros. A história da legião perdida pode ter lá o seu fundamento – ou não. Até o momento, não foram encontradas evidências materiais na região de Liqian, tais como armas ou artefatos de estilo romano, o que seria uma prova mais contundente. Por outro lado (de novo!), a ausência desses objetos não é necessariamente uma contraevidência: se os romanos que supostamente chegaram até lá estivessem entre aqueles aprisionados em Carras, seria muito natural que seus captores partas lhes tivessem tirado qualquer objeto que estivessem levando; mais tarde, ao se reequiparem, os romanos teriam que se contentar com armas e utensílios locais. Talvez alguma coisa de muito empolgante ainda esteja por ser descoberta.

Uma observação final. Eu gosto muito de Valerio Massimo Manfredi, apesar de reconhecer que ele não pode ser considerado um grande escritor do ponto de vista da técnica literária; seu métier, originalmente, eram História e arqueologia, e foi a partir disso que chegou à literatura, sem ter tido, até onde sei, um treinamento formal para tanto. Seus diálogos raramente são brilhantes, e os personagens carecem de profundidade e individualidade, mas, mesmo com essas limitações, o cara tem boas ideias e a energia necessária para fazê-las render. Para quem, como eu, é apaixonado por História em geral e pela Antiguidade em particular, seus livros sempre serão interessantes. Pena que, como já acontecia em A Última Legião, também no caso de O Império dos Dragões nem o tradutor Mario Fondelli nem seu revisor (cujo nome não é creditado) parecem ter a mínima noção acerca de como conjugar verbos nas pessoas tu e vós, de modo que a tentativa de dar um ar "de época" às falas dos personagens resulta em coisas realmente horríveis.