Thomas Harris, poderíamos dizer, criou um novo subgênero dentro do suspense, o que lhe garantiu reconhecimento tanto na literatura quanto por meio das adaptações de suas obras para as telas do cinema e da TV. Seu personagem mais famoso, o Dr. Hannibal Lecter, foi colocado em evidência pela primeira vez com o filme O Silêncio dos Inocentes, em 1991 (baseado no livro publicado apenas três anos antes), tornando-se conhecido do grande público, e não mais apenas dos leitores de Harris: o rosto do ator Anthony Hopkins usando a máscara-mordaça do personagem virou um ícone do cinema dos anos 90. Hannibal sempre foi uma figura diabolicamente única (eu, pelo menos, não conheço nada parecido), e a magistral interpretação de Hopkins o tornou ainda mais marcante. Nesse filme, Lecter já nos é apresentado preso, sob fortíssima segurança, numa instituição para criminosos insanos, mas ficamos sabendo que, antes de ser apanhado, ele conciliou com sucesso durante anos as atividades de psiquiatra forense e assassino em série. Trata-se de um homem de brilhante inteligência e cultura, refinado e elegante, apreciador de arte, música erudita, literatura e alta gastronomia – sendo que, nesse último campo, tinha o hábito, quando em liberdade, de incorporar aos sofisticados pratos que preparava certos "cortes especiais" retirados dos corpos de suas vítimas, fosse apenas para seu próprio deleite ou para servir aos amigos (sem revelar os ingredientes usados, é claro!) em agradabilíssimos jantares que oferecia periodicamente, em geral reunindo pessoas selecionadas da comunidade da alta cultura de Baltimore, Maryland, onde morava e clinicava.
Em O Silêncio dos Inocentes (tanto o livro quanto o filme), o mistério em torno de como Hannibal se tornou o que é faz parte do fascínio exercido pelo personagem; esse é o segundo livro, em ordem de publicação, no qual ele aparece, sendo o primeiro Dragão Vermelho (1981) e o terceiro, Hannibal (1999). Dragão Vermelho já havia recebido uma adaptação livre, de pouca repercussão, em 1986, sob o título de Manhunter (no Brasil, Caçador de Assassinos), com rápida aparição de Hannibal, interpretado por Brian Cox. O Silêncio dos Inocentes, como já vimos, chegou aos cinemas em 1991, mas, apesar do sucesso, não parece ter havido interesse, na época, em filmar seu predecessor: Hollywood preferiu esperar pela publicação de Hannibal, cuja versão para as telas estreou em 2001, novamente com Anthony Hopkins. Como esse filme também foi bem recebido pelo público, Dragão Vermelho pôde, por fim, ganhar nova versão, mais fiel ao livro e com o título original. Nessa versão, produzida logo a seguir e lançada em 2002, Hopkins encarnou o psiquiatra canibal pela última vez até o presente momento.
Harris cedeu aos muitos pedidos de seus leitores e voltou a escrever sobre Hannibal Lecter depois de ter deixado o personagem no ostracismo durante longo tempo. Hannibal Rising, ou Hannibal: a Origem do Mal, foi publicado em 2006 e transformado em filme no ano seguinte, com o francês Gaspard Ulliel interpretando o jovem Hannibal. Essa prequel revela detalhes da origem do personagem (que mesmo quem leu os outros livros só conhecia por meio de referências curtas e enigmáticas) e sobre sua infância e adolescência, dando finalmente a dimensão completa do trauma que ele sofreu ainda pequeno (e que recebera uma menção fugidia no livro Hannibal) e que pode explicar como veio a desenvolver inclinações antropofágicas. Portanto, se quiserem ler a saga na cronologia correta, ignorem a ordem em que os livros e/ou filmes foram lançados e leiam assim: 01) Hannibal: a Origem do Mal; 02) Dragão Vermelho; 03) O Silêncio dos Inocentes; 04) Hannibal.
Como também já insinuado em outros lugares, Hannibal escolheu os Estados Unidos para viver, mas é, por nascimento, um legítimo representante da velha aristocracia europeia. Seu ancestral, Hannibal, o Terrível, que viveu nos séculos XIV e XV, é um herói semilendário para a população da Lituânia (acho que o autor criou esse ancestral inspirando-se livremente em Vlad III da Valáquia), e o "nosso" Hannibal, nascido por volta de 1933 no vetusto Castelo Lecter, é o oitavo de sua linhagem a usar o nome. Seu pai, que tinha o título de conde, casou-se com uma dama de tradicional família italiana; a influência da mãe pode ter sido, em grande parte, o que despertou no garoto o amor pela música e pela arte. Sua prodigiosa inteligência já se anunciava desde tenra idade, mas aqueles não eram tempos fáceis para uma pessoa viver sua infância: em 1941, quando Hannibal está com oito anos, e sua irmã, Mischa, com três, as forças da Alemanha nazista varrem o leste europeu numa preparação para a invasão da União Soviética. É a Operação Barbarossa, que marca o rompimento do pacto de não agressão que vigorava entre as duas potências desde o início da Segunda Guerra. O Conde Lecter, então, decide tirar a família do castelo, e vão todos viver numa antiga cabana de caça escondida em meio às densas florestas que cobrem suas terras. O plano parece funcionar durante bastante tempo: os Lecter e alguns de seus criados (entre eles o Sr. Jakov, um velho judeu de enorme erudição que serve de tutor a Hannibal) vivem ali durante os três anos e meio que a Lituânia permanece sob domínio nazista, sem serem achados. A sorte os abandona já no final da ocupação: numa das últimas batalhas entre russos e alemães a serem travadas em solo lituano, todos, com exceção de Hannibal e Mischa, perdem a vida. As duas crianças são achadas por um grupo de ex-Hiwis – nome dado aos colaboradores voluntários dos nazistas – liderados pelo asqueroso Vladis Grutas. Embora tenham ajudado os invasores a subjugar e rapinar seu próprio país, esses homens não conseguiram concretizar sua esperança de ganhar um lugar nas SS, e, de qualquer forma, como já é 1945 e a derrota alemã é questão de tempo, essa ambição perdeu o sentido; assim, os celerados tiram a vantagem que ainda podem, aproveitando-se do caos gerado pelo estado de guerra para ganhar a vida como saqueadores, e não escolhem o lado de quem pilham e assassinam.
Abrigados no pavilhão de caça dos Lecter, com Hannibal e Mischa como prisioneiros, e isolados em meio ao rigoroso inverno lituano, Grutas e os outros se veem ameaçados pela fome… E a memória de Hannibal apresenta uma lacuna (mais provavelmente, um bloqueio) nesse ponto. A coisa seguinte de que ele se lembra é de ter sido encontrado por soldados russos, sozinho e semimorto, num campo deserto. Em 1946, com 13 anos de idade, ele está vivendo num orfanato que, numa triste ironia, foi estabelecido no antigo Castelo Lecter; a Lituânia é agora uma república soviética e já não há aristocratas: são todos "camaradas". Os terríveis acontecimentos no pavilhão de caça, quaisquer que tenham sido, cobraram seu preço: Hannibal ficou incapaz de falar, embora à noite, durante seus pesadelos, chame em desespero pela irmã, que não sabe que fim levou. Apesar de sua incapacidade de se comunicar e de se enturmar com os outros garotos no orfanato, a inteligência de Hannibal é óbvia; isso e o modo penetrante como observa tudo à sua volta o tornam temido e hostilizado – e ele sempre encontra meios surpreendentes para fazer com que as pessoas se arrependam de lhe ter causado algum mal.
Com as coisas voltando ao normal depois da guerra (um "normal" que nunca mais será como antes, é claro – nem para Hannibal, nem para a Lituânia, nem para o mundo), o único parente vivo de Hannibal, seu tio Robert, consegue encontrá-lo no orfanato, e o leva para viver com ele e sua esposa, na França. Aliás, desposar estrangeiras exóticas e de origem ilustre parece ser um costume prezado entre os homens da família Lecter: a esposa de Robert é Lady Murasaki, descendente de uma antiga linhagem de samurais da região de Hiroshima, cidade onde toda a sua família pereceu, vitimada pela bomba atômica dos americanos. No filme, Lady Murasaki é interpretada pela bela atriz chinesa Gong Li, e há uma diferença importante na narrativa em relação ao livro: Hannibal foge do orfanato e atravessa sozinho vários países até chegar à França, onde procura pelo tio guiando-se pelo endereço de algumas velhas cartas que encontrou no castelo – e não chega a conhecê-lo, sendo acolhido por uma Lady Murasaki já viúva. O roteirista deve ter optado por essa mudança porque, no filme, Hannibal parece ter vivido no orfanato durante alguns anos, já está mais velho, com uns 16 ou 17 anos em vez de 13, e praticamente não conviveu com mulheres desde sua infância, o que faz com que se veja confuso, sem saber como deve se sentir diante de uma mulher mais velha, bonita e charmosa – que é sua tia. Se Robert Lecter ainda vivesse, a situação ficaria complicada. No livro não há esse problema, pois tudo é muito mais gradual. De qualquer forma, Hannibal não deixa de experimentar certos sentimentos normais para um rapaz de sua idade… Uma das poucas coisas a respeito dele que podem ser consideradas normais.
Suas reações, entretanto, não são propriamente normais. Ele comete seu primeiro assassinato antes de completar 14 anos, eliminando o açougueiro da vila próxima à mansão onde está vivendo com os tios. Esse sujeito desagradável havia insultado publicamente Lady Murasaki, o que já seria imperdoável no sistema de valores de Hannibal: como sabe quem o conhece, ele não tolera a grosseria. Para agravar a coisa, o tio Robert fica sabendo do ocorrido, vai tirar satisfações com o açougueiro e, sob o efeito da raiva, seu coração debilitado não resiste. Hannibal perpetra seu ato e não sente culpa – aliás, não sentirá isso em momento algum de sua vida.
A morte de Robert deixa Lady Murasaki e Hannibal em dificuldades. A mansão onde viviam, no interior da França, tem que ser vendida para saldar dívidas, e os dois se mudam para uma moradia mais modesta em Paris, onde Hannibal começa a cursar a escola de medicina, mostrando-se logo um aluno brilhante. Como também possui notáveis dotes artísticos, aproveita para ganhar algum dinheiro pintando imagens em estilo japonês e vendendo-as para negociantes de arte da cidade, até que, certo dia, na loja de um dos marchands com quem negocia, encontra um quadro que conhece: fazia parte da coleção de seus pais, e só pode ter sido roubado do Castelo Lecter. O quadro se torna a primeira pista de uma trilha tortuosa que Hannibal seguirá para encontrar os Hiwis que mantiveram sua irmã e ele como prisioneiros. Desses homens, ele quer algumas respostas, e, possivelmente, muito mais. E cheguei até onde podia sem dar spoiler.
Hannibal, que começa na medicina como cirurgião, mais tarde migra para a psiquiatria, mas já nesta narrativa a respeito de sua juventude nota-se nele um talento para essa área. Como aluno bolsista, uma de suas tarefas consiste em ir às prisões de Paris (onde também é aplicada a pena capital aos condenados) para buscar os corpos que serão utilizados nas aulas de anatomia. Há um capítulo no qual ele precisa conseguir que um condenado à guilhotina assine um termo autorizando o uso de seu corpo, e o sujeito está lelé, fala com ele fingindo (ou melhor, provavelmente acreditando) ser um advogado com procuração para representá-lo. Hannibal lida com a situação com enorme astúcia; é difícil dizer se isso vem de sua condição de psicopata (manipulador por natureza) ou de uma mente com um pendor para lidar com as desordens mentais de outros, apenas aplicando esse dom para alcançar o objetivo do momento.
Ainda no mesmo assunto, é muito curioso que Hannibal opte pela psiquiatria, já que ele próprio poderia servir de objeto de estudo durante muitos anos para os mais instruídos e sagazes de seus colegas. Em alguns momentos ao longo da série, ele é referido como um sociopata, em outros como um psicopata, e, pelo menos uma vez, é dito que a medicina não tem uma palavra capaz de defini-lo. Pessoalmente, não tenho qualquer conhecimento formal sobre o assunto, tudo o que sei é o que um curioso consegue descobrir aqui e ali, e, ao procurar pelas definições de sociopatia e psicopatia para tentar dar mais consistência a este texto, achei-as extremamente parecidas uma com a outra. Pelo visto, não sou o único a ter essa impressão, pois li também que há muita discussão, mesmo entre os especialistas, sobre o que distingue os dois transtornos, seja de modo geral ou em casos específicos. Parece que a tese mais aceita é a de que ambos se distinguem pela origem: o psicopata já teria nascido assim, enquanto o sociopata seria produto de um ambiente abusivo ou violento. Seja como for, uma característica que costuma estar associada a ambos os quadros, a dificuldade para controlar os impulsos, passa longe do perfil de Hannibal. Na verdade, o personagem parece possuir um autocontrole extraordinário: sabe exatamente quando pode matar e quando não pode, e nunca o faz a menos que tenha certeza de que conseguirá cobrir seus rastros com perfeição. Também não mata à toa, nem apenas por desejo de saborear uma refeição de carne humana: seus alvos preferenciais são pessoas rudes, prepotentes, ou que representem perigo para ele, ou ainda algumas sem as quais, em sua opinião, o mundo ficará melhor – há um caso anedótico, citado em Hannibal e mostrado em live action em Dragão Vermelho (que, embora filmado depois, retrata acontecimentos anteriores), no qual ele elimina um flautista ruim, que estava estragando o som da Filarmônica de Baltimore, e serve um dos órgãos do homem num jantar para o qual convida todos os membros do conselho diretor da orquestra.
Outros pontos nos quais o perfil de Hannibal não parece se ajustar à descrição-padrão de psicopata ou sociopata são a ausência de empatia e a incapacidade de formar laços afetivos: pode ser fato que ele não tem qualquer empatia nem preocupação com o bem-estar da quase totalidade da espécie humana, mas há exceções, e essas são muito importantes. Há pessoas a quem ele, sem dúvida, dedica afeto, ou ao menos um grande respeito, como Lady Murasaki e, mais tarde, Will Graham (o agente do FBI que o prendeu), Clarice Starling, e até mesmo Barney, o enfermeiro/carcereiro em quem o Dr. Lecter encontrou um discípulo atento, uma mente ávida por conhecimento (em tempo: conhecimento sobre arte e cultura, não sobre assassinato). O que me parece, enquanto leitor, é que Thomas Harris deve ter estudado a fundo as características dos transtornos psiquiátricos, mas, de propósito, deve ter feito com que seu personagem fugisse deles em alguns pontos, enquanto se encaixa em outros, o que o torna mais enigmático. Por esse motivo, entre outros, Hannibal talvez seja um dos mais interessantes anti-heróis da literatura recente: seus crimes nos horrorizam, mas também há momentos em que torcemos por ele e até o entendemos. Quem nunca teve vontade de matar uma pessoa grosseira? A diferença é que Hannibal não fica na vontade, e, como se fosse uma réplica póstuma à ofensa recebida, sempre que possível ainda faz questão de comer um pedaço do ofensor, como se insinuasse, com o humor ácido que é uma de suas marcas registradas, que para alguma coisa "boa" a pessoa acabou servindo.
Peguei Hannibal: a Origem do Mal para ler meio por acaso, era apenas um dos muitos livros que aguardavam a vez, e preciso dizer, a bem da verdade, que ele não é tão bom quanto O Silêncio dos Inocentes ou Hannibal (ainda não li Dragão Vermelho, mas, naturalmente, vi todos os filmes), mas também está longe de ser uma leitura ruim. Parece-me agora que essa pode ser uma boa oportunidade de percorrer toda a saga de Hannibal na ordem cronológica certa, então é possível que leia/releia tudo, não necessariamente um atrás do outro – posso alternar com outros, mas procurarei fazer isso, e, se assim for, retorno ao assunto em breve.