terça-feira, setembro 25, 2018

Os Olhos do Dragão

Cheguei a possuir o livro Os Olhos do Dragão na edição da Francisco Alves, lançada como parte da coleção Mestres do Horror e da Fantasia, mas o exemplar sumiu de casa antes que eu chegasse a lê-lo. Entretanto, naturalmente que dei uma folheada logo ao adquiri-lo, e lembro que incluía uma nota introdutória (ausente da edição que tenho hoje, da editora Objetiva) na qual Stephen King explicava a origem dessa obra um tanto diferente das coisas que ele em geral escreve. O livro foi publicado pela primeira vez em 1984, tendo sido escrito pouco antes, motivado pelo desejo de contar uma história que sua filha, Naomi, pudesse ler e apreciar: a garota era pré-adolescente na época e não gostava de terror (e que sina não gostar de terror e ser filha de Stephen King!). O resultado foi esta aventura de fantasia medieval, finamente sintonizada com o gosto dos leitores mais jovens… mas, como todo mundo já teve 13 anos, ninguém que goste desse tipo de literatura deixará de se empolgar. Mesmo tendo, por uma questão de aptidão natural, favorecido mais as narrativas horripilantes ao longo de sua carreira, King sempre teve um grande respeito pela literatura de fantasia (declarou em mais de uma ocasião que considera O Senhor dos Anéis um dos melhores livros já escritos), e mostra-se perfeitamente capaz de produzir coisas desse tipo quando quer. Apontar a influência de Tolkien é fácil demais, pois, por mais que a fantasia já tivesse uma antiga e rica tradição antes dele, o impacto de sua obra foi tamanho, que é muito difícil hoje (e nesse "hoje" incluo a década de 80) escrever qualquer narrativa épica envolvendo magia e/ou seres fabulosos sem ficar devendo algo ao Professor. Não é tão óbvio observar que Os Olhos do Dragão também tem um clima que remete a algumas histórias de Lord Dunsany, provavelmente o autor de fantasia mais injustamente desconhecido de todos os tempos.

A história é narrada no melhor estilo dos contos de fadas, com direito a "era uma vez" e a frequentes intervenções do narrador dirigindo-se diretamente ao leitor, como se fosse alguém contando histórias a uma pequena mas empolgada audiência de crianças junto à lareira. Conta-nos sobre um reino chamado Delain, sobre seu rei, Rolando, sua rainha, Sacha, e sobre os príncipes Pedro e Tomás. Rolando não é nenhum pilar de majestade; não é o rei mais valente nem o mais sábio que o reino já teve, e, embora tenha uma índole essencialmente boa, nunca conseguiu fazer grandes coisas em favor de seu povo, por não ser, tampouco, um governante de grandes capacidades – até casar-se, muito tarde na vida, com a jovem Sacha, que, além de bondosa, possui o espírito prático para realizar boas ações, em vez de ficar só nas intenções. Sacha é muito amada pelo marido, pelo povo e pelo pequeno Pedro, mas, infelizmente, perde a vida ao dar à luz o segundo filho, quando o mais velho está com apenas seis anos. Morte de parto é um risco que todas as mulheres correm, sejam camponesas ou rainhas, e, como estamos falando de um reino medieval, sem os recursos da medicina moderna, era uma fatalidade muito mais comum do que hoje em dia, razão pela qual, embora todos lamentem, ninguém acha o incidente realmente estranho… Mas a verdade é que a morte da rainha não foi nenhum acaso. Flagg, o feiticeiro da corte, lançou mão de suas artes misteriosas para livrar-se de Sacha, que estava minando o controle que o mago sempre havia exercido sobre Rolando e, antes dele, sobre a velha rainha-mãe durante o longo reinado dela.

Como dissemos antes, Rolando não é um rei que inspire admiração instintiva, seja por sua aparência (baixote, de pernas tortas) ou por suas qualidades (não é particularmente inteligente, nem um guerreiro notável, embora tenha certa vez praticado um feito heroico, ao abater um dragão com uma flechada certeira). Em resumo, o narrador pinta-o basicamente como um homem vulgar que, por acaso, herdou uma coroa. Como também foi dito, casou tarde, unindo-se a Sacha quando ele já tinha por volta de 50 anos e ela era uma adolescente, e, por essa razão, o rei chega à velhice enquanto seus filhos ainda são garotos. Pedro tem a beleza, a perspicácia e a bondade da mãe; é um jovem alto, esguio, de muitos talentos. Tomás, por outro lado, puxou ao pai, tanto na aparência comum quanto no intelecto medíocre – com o agravante de, por vezes, praticar atos de inegável maldade. Ainda assim, o narrador se esforça para que seus leitores não odeiem o príncipe mais jovem, garantindo reiteradamente que, no fundo, ele não é ruim. O fato é que Tomás se sente negligenciado, já que Pedro é o favorito de todo mundo, desde o rei até os serviçais do palácio, por ser o herdeiro do trono, além de ser bonito, corajoso e bom. Não dá para não sentir pena do irmão mais novo quando lemos sobre seus repetidos esforços para agradar e dar orgulho ao pai, que geralmente reage com um comentário distraído, do tipo "ah, muito bem, filho", para em seguida retornar a sua adoração incessante ao filho mais velho. Pedro nitidamente não queria que fosse assim, chegando a tentar ajudar o irmão – o que só faz com que Tomás o odeie mais, ao mesmo tempo que também o ama e admira. Muitos de nós já passamos por situações parecidas e sabemos que não é agradável estar nem de um lado, nem do outro. Para piorar, embora (até onde sabemos) ninguém jamais tenha sequer tocado no assunto em sua presença, Tomás acha que todos o odeiam por ter, involuntariamente, causado a morte da mãe, que, como ele bem sabe apesar de não tê-la conhecido, foi a rainha mais amada que Delain já teve. Enquanto os dois príncipes crescem, o rei envelhece e esse pequeno drama familiar se desenrola, Flagg observa tudo atentamente. Acaba chegando à conclusão de que precisa livrar-se de Pedro tal como se livrou da mãe dele, já que o rapaz dá todos os sinais de que, uma vez no trono, não sera um rei fácil de controlar como o pai. Seria bem melhor para o bruxo se a coroa passasse para Tomás, pois este ele tem certeza de que conseguirá manipular.

(Embora desta vez esteja escrevendo fantasia, King não renega totalmente seu pendor para o soturno: o laboratório de Flagg está repleto de objetos sinistros e sua mascote é um grotesco papagaio de duas cabeças. E, curiosamente, embora Delain seja um reino fictício, e pareça situado num mundo igualmente fictício, com geografia, cultura e mitologia próprias, a certa altura encontramos este trecho: "Sentou-se, emborcou uma ampulheta e se pôs a ler um enorme livro de encantamentos. Flagg vinha lendo esse livro – que era encadernado em pele humana – havia mil anos, e só percorrera uma quarta parte dele. Ler demais esse livro, escrito nas altas e longínquas planícies de Leng por um louco chamado Alhazred, seria arriscar-se a enlouquecer." Ou seja, Flagg possui um exemplar do Necronomicon!)

O motivo do título Os Olhos do Dragão é esclarecido quando Flagg, movido por seu "instinto para a maldade" (sobre o qual o narrador tece uma teoria) revela um segredo a Tomás. Na verdade, o bruxo procura, sempre que vê uma oportunidade, fazer coisas que levem o jovem príncipe a sentir-se em dívida com ele (e a temê-lo também), já que espera colocá-lo no trono e, quando isso acontecer, tornar-se, na qualidade de seu conselheiro, o verdadeiro detentor do poder em Delain. Acontece que uma das dependências particulares do rei Rolando no castelo consiste numa grande sala de estar em cujas paredes estão expostos os mais imponentes dentre os muitos troféus de caça que ele acumulou ao longo dos anos – pois em Delain, como em muitos reinos, a caça é tradicionalmente o lazer favorito de reis e nobres. E ali, entre tantas cabeças de ursos, alces, javalis e outros animais, figura em posição de destaque a cabeça da mais formidável presa que Rolando já abateu: a de Niner, o último dragão visto em Delain. O que ninguém parece saber a não ser Flagg (e, agora, Tomás) é que a cabeça do dragão foi montada na frente de uma câmara secreta embutida numa das grossas paredes do castelo; quem souber como entrar nessa câmara pode espiar através das lentes de vidro colorido que substituíram os olhos da fera, e assim ver e ouvir tudo o que acontece na sala de estar real. Flagg adverte a Tomás que ele não deve fazer uso desse segredo com muita frequência, para reduzir o risco de que seja apanhado – e que, caso isso aconteça, deve dizer que descobriu a câmara sozinho, por acaso, pois, do contrário, Flagg cuidará para que ele se arrependa.

O primeiro efeito dessa espionagem é um significativo abalo no respeito de Tomás pelo pai, já que agora pode observá-lo às escondidas e ver em primeira mão como ele se comporta quando pensa que ninguém está vendo… e, vamos ser francos, acho que pouca gente ficaria confortável com a ideia de ter sua intimidade devassada dessa forma. Quando estamos sozinhos, relaxamos – o que significa, entre outras coisas, parar de policiar nossos comportamentos mais esquisitos, ridículos ou repulsivos. E fica ainda mais desconcertante ver uma pessoa metendo o dedo no nariz, soltando puns, se embriagando ou falando sozinha (esta última coisa, Rolando faz tanto sóbrio quanto embriagado) quando tal pessoa é nosso pai e, ainda por cima, nosso rei, provavelmente o ser humano que mais respeitávamos até então. Com apenas dez anos de idade, Tomás ainda não tem maturidade para separar as coisas e entender que esses comportamentos repelentes são falhas humanas, e não necessariamente diminuem a dignidade de um soberano; seu apreço por Rolando sofre uma queda, o que, aparentemente, é excelente para os planos de Flagg.

Quando Pedro está próximo de completar 17 anos, Flagg decide que está na hora de tirá-lo do caminho, e encontra um meio de fazer isso ao mesmo tempo que se livra de Rolando – envenenando o velho rei com certa substância exótica adicionada ao seu copo de vinho da noite, e plantando provas contra Pedro, que é julgado e preso, considerado culpado do assassinato do próprio pai. O que o bruxo não sabe é que, no exato momento em que ele, pessoalmente, levou ao rei o vinho envenenado, Tomás estava novamente no seu posto de observação, atrás da carranca ameaçadora de Niner. O príncipe mais jovem não é nenhum gênio, mas tampouco é tolo, e compreende que dificilmente seria coincidência o fato de seu pai morrer poucos dias depois de Flagg ter-lhe levado um copo de vinho – coisa que Pedro, e não Flagg, costumava fazer toda noite. Porém, Tomás não tem coragem de abrir a boca, receoso do que o feiticeiro poderia fazer, e Pedro é encarcerado na alta torre conhecida como "o Obelisco", tradicional local de prisão para criminosos nobres ou membros da realeza. Tomás é coroado (muito a contragosto, pois nunca desejou nem se considerou capaz de ser rei) e assume seu papel como fantoche de Flagg.

Depois de muita reflexão em sua cela solitária e desconfortável no alto do Obelisco, Pedro conclui que tem o dever de provar sua inocência, um dever não só para consigo mesmo, mas principalmente para com o reino, que Flagg parece estar deliberadamente conduzindo em direção ao caos: mesmo ali, em seu cárcere nas nuvens, notícias chegam, e elas dão conta de que o reinado de Tomás está sendo desastroso. A questão é que Pedro não pode provar coisa alguma de dentro da cela, e ninguém jamais fugiu do Obelisco em toda a história de Delain. Ainda assim, o príncipe arquiteta um plano, para o qual precisará recorrer a certos ensinamentos que recebeu da mãe quando era bem pequeno, e que exigirá dele muita persistência e paciência. Existem pessoas que acreditam em sua inocência, e com cuja lealdade ele pode contar, mesmo que, no caso de algumas delas, nem saiba disso; é em grande parte na coragem e no espírito de sacrifício desses amigos e súditos fiéis que repousa a esperança de que Pedro consiga reconquistar seus direitos e reparar a injustiça praticada – e, como ele reflete com grande nobreza de alma, o fato de uma injustiça ter ocorrido é motivo suficiente para que todos os esforços sejam feitos para corrigi-la; que a vítima da injustiça tenha sido ele, é quase irrelevante. Esta parte me pareceu particularmente importante:

A princípio, por um ou dois dias, remoeu sentimentos inúteis. O seu lado infantil insistia em lamentar-se: Não é justo! Isto não é justo! E não era mesmo, mas pensamentos dessa espécie não o levavam a lugar algum. Jejuando, começou a recobrar o domínio de si mesmo. O ventre vazio fez com que ele se desembaraçasse daquele componente de criança. Passou a sentir-se mais limpo, livre, vazio… como um copo esperando para ser enchido. (...) Ele começou a ouvir mais claramente seus verdadeiros pensamentos.

Torço retroativamente para que a jovem Naomi tenha aproveitado a chance e assimilado a lição valiosa que o pai estava tentando lhe passar, evitando ter que aprendê-la mais tarde, provavelmente de alguma maneira pior. Sem contar que esse é um ensinamento que faria muito bem a essa juventude nutella dos nossos dias.

Sempre vamos pensar em Stephen King, antes de mais nada, como um autor de terror (e não tenho dúvida de que é assim que ele prefere ser lembrado), mas ninguém pode escrever um único tipo de coisa durante toda a vida, e King já mudou de ares diversas vezes ao longo de sua carreira que já dura quase cinco décadas. Já vi pessoas que torciam o nariz à simples menção de seu nome ficarem com os olhos marejados ao falarem de filmes como Conta Comigo (1986) e Um Sonho de Liberdade (1994), e terem reações que variavam da incredulidade à teimosia agressiva quando eu lhes disse que ambos os filmes são baseados em histórias de King! (risos) Ainda assim, Os Olhos do Dragão é especial, porque sua própria origem tem uma história comovente, e, como se fosse para não deixar dúvida sobre o que (e quem) o motivou a escrevê-lo, o autor fez questão de incluir uma personagem chamada Naomi!… Em outros de seus livros, como A Hora do Vampiro e O Cemitério (principalmente), King coloca em suas páginas um bocado de reflexões bastante tenebrosas sobre a vida, a morte e o mundo de maneira geral, quase sempre atribuídas direta ou indiretamente a algum personagem, e possivelmente influenciadas pelas dificuldades e sofrimentos que eles passam ao longo da história. Em Os Olhos do Dragão, talvez porque sabia que seria lido por sua filha (que, por sinal, seria sua primeira leitora), ele adota um ponto de vista mais construtivo e, de certa forma, até otimista: não há "felizes para sempre", mas uma pessoa pode levar uma vida boa e com significado, uma vida para a qual poderá olhar com orgulho no momento da morte, se, ao longo dela, tiver enfrentado seus problemas (que inevitavelmente surgirão) com calma e determinação, e feito sempre o melhor possível. A coragem e a retidão de caráter de Pedro são o que faz dele um rei, muito mais do que sua linhagem, e essas mesmas qualidades inspiram a amizade e a lealdade de seus companheiros. Se eu tivesse filhos adolescentes, seria esse o tipo de coisa que gostaria de escrever para eles. Senti falta apenas de um pouco mais de ação, embora seja verdade que há uma cena memorável de luta – uma luta só na base dos punhos. Mais uma ou duas cenas de confronto, talvez com o uso de espadas, teriam acrescentado uma dose extra de emoção.

Os Olhos do Dragão talvez não esteja entre os melhores livros de Stephen King, e pode até mesmo ser considerado uma coisa um pouco à margem de sua produção normal, mas vale muito a leitura para quem gosta de fantasia e quiser conhecer uma face um pouco diferente do mestre do terror.