quinta-feira, janeiro 13, 2022

The Videssos Cycle, vol. I: The Misplaced Legion

Já não sou propriamente jovem, pois nasci na década de 70, e, sendo assim, tenho idade suficiente para me lembrar bem de como era frustrante ser um leitor voraz e apaixonado por fantasia e aventuras épicas no Brasil durante os anos 80 e início dos 90 (já comentei isso antes). Não havia interesse por parte dos editores nacionais em publicar esse tipo de material, e nem mesmo saber inglês resolvia o problema (não que eu já soubesse na época), pois não tínhamos a internet para fuçar em busca de raridades; então, quando líamos em algum lugar uma referência e a breve descrição de alguma obra fascinante e jamais publicada no país, geralmente só podíamos ficar imaginando e chupando o dedo. Algumas existiam em edições portuguesas, mas consegui-las era trabalhoso e caro – como ainda é, só que esses empecilhos, que hoje em dia não me detêm quando se trata de adquirir algo que realmente me interesse, eram intransponíveis para um mero estudante que dependia de mesada. As coisas começaram gradualmente a melhorar a partir de meados dos anos 90, quando saiu uma nova edição de O Senhor dos Anéis, que há muito estava fora de catálogo, e suas boas vendagens fizeram as editoras abrirem os olhos para o fato de que havia, sim, público para a literatura de fantasia no Brasil. De lá para cá, a coisa deslanchou, chegando ao ponto de eu me perguntar se a oferta de títulos desse tipo não se tornou um tanto excessiva… É claro que cada leitor é livre para escolher o que comprar e o que ler, porém a grande quantidade traz no meio muita coisa de baixa qualidade.

Agora que comprei um Kindle, os últimos limites caíram: dá para adquirir praticamente qualquer coisa, publicada em qualquer lugar, sem esbarrar em problemas como edições esgotadas ou a dificuldade logística de importar um livro físico que teria que vir do outro lado do mundo. Se o que você quer estiver no catálogo de e-books da Amazon (e, pelo menos até o momento, tudo em que consegui pensar estava lá), basta selecionar, digitar o número do seu cartão de crédito, e voilà: tão logo o pagamento seja confirmado, o livro estará disponível para ser lido por meio dessa maquineta milagrosa, ou no seu computador, se lhe for mais conveniente. Isso não significa que, de agora em diante, eu só pretenda comprar livros desse jeito: sou em essência um tradicionalista, e sempre continuarei apreciando o contato físico com o livro, o cheiro do papel e da tinta, o som das páginas virando, o prazer de organizar uma estante e depois olhar para ela com aquela satisfação que só os leitores apaixonados conhecem. Além disso, não quero que as livrarias tradicionais deixem de existir, então continuarei contribuindo com a minha parte para mantê-las abertas. Ainda assim, o Kindle é muito bem-vindo, por tornar acessíveis muitas obras que seria praticamente impossível conseguir de outra forma.

E uma das primeiras coisas que me lembrei de adquirir por esse novo meio foi o Ciclo de Videssos, do norte-americano Harry Turtledove (1949-). Fiquei sabendo da existência dessa saga graças ao GURPS Império Romano, um suplemento para o RPG GURPS (sigla de Generic Universal Roleplaying System), publicado no Brasil pela editora Devir, pelo menos, desde os anos 90. Muitos RPGistas não gostam do GURPS por causa de suas regras muito complexas e detalhistas, que, do ponto de vista deles, comprometem a agilidade e a fluidez do jogo, mas ele tem o grande mérito de permitir a criação de aventuras com praticamente qualquer ambientação imaginável, de fantasia medieval até faroeste e de horror gótico até espionagem moderna, sem que seja necessário aprender um novo conjunto de regras para cada cenário desses: basta aplicar as regras contidas no "módulo básico", combinadas às informações trazidas em qualquer um dos suplementos disponíveis. Nos Estados Unidos existem literalmente dezenas desses suplementos; no Brasil, a Devir publicou um punhado deles. Tive pouca experiência com RPG e nenhuma com o GURPS especificamente, mas comprei esse suplemento por estar recheado de informações sobre a Roma antiga que eram e são interessantes independentemente de seu eventual uso no jogo. Perto do final do livro, o autor C. J. Carella fornece uma série de sugestões para que os game masters que o estiverem lendo criem suas próprias aventuras, além de indicar várias obras de ficção que podem servir de inspiração. Uma delas era justamente o Ciclo de Videssos, que, como informava Carella, narra as peripécias de uma legião romana que, por efeitos de um acidente de magia, é transportada para um mundo paralelo onde a referida magia é comum – ou seja, um crossover tentador entre ficção histórica e fantasia. São ao todo quatro livros, que, na Amazon, estão disponíveis em dois volumes (pode-se falar em "volumes" quando se trata de livros virtuais?), o primeiro contendo The Misplaced Legion e An Emperor for the Legion, e o segundo, The Legion of Videssos e Swords of the Legion. Acabo de ler o primeiro livro, e ele é ainda mais empolgante do que eu imaginava!

Estamos na Gália, provavelmente um pouco antes do ano 50 a.C., durante a campanha romana, liderada por Júlio César, que terminaria com a conquista desse país e sua transformação em província de Roma. Sob o comando do tribuno Marco Emílio Escauro, um destacamento composto por três coortes é enviado numa missão de reconhecimento até o território da tribo Lexovii, na região do delta do Sena. Escauro é jovem, mas não parece tão cru quanto o tribuno Lúcio Túbero, da Trilogia das Águias, além de ser muito mais cordato e inteligente. Parece já estar em serviço há alguns anos e deve andar pelos seus vinte e poucos ou perto dos trinta; seu segundo em comando, o centurião Caio Filipo, gosta mais dele que de qualquer outro jovem oficial com quem tenha servido em sua longa carreira.

Escauro está um tanto apreensivo com sua missão: já tem experiência para saber que o número de homens que ele comanda (três coortes seriam algo entre 1500 e 1800 legionários) é plenamente suficiente para chamar a atenção dos gauleses, mas pode ser pouco para enfrentá-los no caso de um ataque. E o ataque vem: um caótico e inflamado exército gaulês com aproximadamente o dobro do número de homens do destacamento romano os cerca numa clareira em meio às densas florestas daquela região, e uma desesperada batalha tem início. Os gauleses, como se sabe, estavam longe de ter a mesma disciplina e habilidades táticas dos romanos (nenhum povo da época tinha), mas, ainda assim, eram oponentes temíveis. Já à noite, depois de horas de luta com muitas baixas de ambos os lados, o chefe gaulês se adianta e desafia o líder dos romanos para um combate singular. Marco não se considera nenhum herói, na verdade admite que está no exército basicamente para acumular um currículo que o ajude no futuro a alcançar suas ambições políticas (como, aliás, era o caso da maioria dos tribunos militares), mas também não é um covarde, e não recua diante do desafio.

Um detalhe que até aí parecia apenas pitoresco vai assumir agora uma importância imprevista. Marco Escauro vem de uma família originária de Mediolanum (a atual Milão), bem no norte da Itália, e parece que, em algum momento, seus ancestrais misturaram seu sangue ao de seus vizinhos gauleses, pois ele é alto e loiro, bem diferente do romano típico, de estatura mediana e cabelos escuros. E, devido a sua altura incomum, escolheu uma arma também incomum para um oficial romano: uma espada longa gaulesa, tirada de um druida que ele matou em combate algum tempo antes; essa arma é mais adequada ao comprimento de seu braço que um gládio, a espada curta que era padrão nas legiões. A espada tem uma série de sinais gravados em sua lâmina, que, considerando quem era seu proprietário anterior, sem dúvida possuem algum significado mágico para os celtas, mas isso não importa para Escauro… Até ele verificar que o chefe gaulês contra quem vai lutar também empunha uma espada com símbolos semelhantes.

Quando as duas espadas se encontram, algo inconcebível acontece. O choque das lâminas encantadas faz com que Escauro e todos os seus homens – e, junto com eles, o chefe gaulês, que se chama Viridovix – sejam subitamente arrebatados por uma gigantesca cúpula luminosa e transportados de forma instantânea através do tempo, espaço ou seja o que for, até um mundo diferente, onde logo descobrem estar nos domínios do Império de Videssos. O mundo em si parece ser uma versão alternativa da Terra; as estrelas vistas no céu e a configuração dos continentes são totalmente diferentes, mas os habitantes são seres humanos perfeitamente comuns (embora com línguas e culturas diferentes), e a vida animal e vegetal também é familiar.

Não demora a ficar evidente que não há a menor chance de voltarem para casa, e, diante disso, o pequeno exército romano (composto, naturalmente, por homens de várias nações) precisa encontrar um meio de vida naquele mundo. Conforme vão se inteirando de mais coisas, descobrem que Videssos enfrenta ameaças intermitentes de invasão, e por isso sempre tem necessidade de bons mercenários; os romanos, então, "vendem suas espadas", como se dizia na época, a Sua Majestade, Mavrikios Gavras, imperador dos videssianos. Não se trata apenas de uma forma de ganharem seu sustento material: o serviço mercenário é também a única possibilidade de que os videssianos lhes permitam continuar todos juntos como uma unidade militar, pois, de outra forma, nenhum governante com algum juízo permitiria a permanência de uma força armada estrangeira dentro de seu território. E, naquela situação, a união e o companheirismo são ainda mais importantes para Escauro e seus homens do que normalmente já são para qualquer exército romano, já que, para cada um deles, os outros são agora o único elo com seu próprio mundo.

A primeira coisa que se nota em The Misplaced Legion é que o autor possui um conhecimento profundo de História, o que se revela, primeiramente, em suas descrições do exército romano e de elementos culturais e sociais da época, que se refletem na visão de mundo e no modo de vida dos legionários; em segundo lugar, não é difícil ver que, para a criação do mundo fictício de Videssos, Turtledove usou como modelo direto o Império Bizantino – também conhecido como Império Romano do Oriente, que tinha sua capital em Constantinopla (que antes se chamava Bizâncio e hoje é Istambul) e continuou a existir por quase mil anos depois que o Império Romano do Ocidente caiu. De fato, o Império Bizantino manteve vivas muitas tradições romanas ao longo da Idade Média, mesmo tendo como língua oficial o grego, e não o latim. O autor não procurou esconder essa inspiração: a descrição da cidade de Videssos, capital do império de mesmo nome, é claramente a de Constantinopla, com o formato aproximado de um triângulo, tendo dois lados voltados para o mar e o terceiro protegido por poderosas muralhas; fica até mesmo à margem de um estreito que a população local chama de "Travessia do Gado", o que é a tradução literal do nome Bósforo. Uma breve análise do mapa do mundo mostra que ele foi inspirado, em linhas gerais, na Eurásia e norte da África, só que de maneira espelhada: os reinos civilizados ficam no leste, e o continente vasto e pouco explorado, no oeste.

A descrição de outros povos desse mundo também remete ao Império Bizantino e sua época: a guarda imperial, por exemplo, é formada principalmente por bárbaros altos e loiros vindos do norte, os halogai (plural de haloga), numa clara alusão à Guarda Varangiana da Constantinopla histórica. "Varangianos" era como os bizantinos se referiam aos nórdicos de maneira geral, e durante muito tempo a maior ambição de todo aventureiro viking que deixava a Escandinávia em busca de glória e fortuna era juntar-se a essa guarda. "Haloga", por sinal, era o nome de uma antiga tribo da Noruega, e a região onde ela vivia é conhecida até hoje como Halogaland, ou, em português, Halogalândia. Há também povos nômades das planícies, cujos homens são famosos como exímios arqueiros e cavaleiros – a versão videssiana de hunos, tártaros etc. A ilha do Ducado de Namdalen, cuja população foi formada pela miscigenação de videssianos com invasores halogai, poderia corresponder, de forma um pouco mais livre, à Grã-Bretanha (que, é claro, pertenceu ao Império Romano do Ocidente, nunca tendo feito parte do Império Bizantino; por isso digo que essa seria uma adaptação mais livre).

De tudo isso, concluo que provavelmente a primeira ideia de Harry Turtledove foi que os romanos dos dias de César fossem transportados através do tempo até a Idade Média e vivessem suas aventuras no Império Bizantino histórico, mas, conforme amadurecia o livro, o autor deve ter pensado que incluir elementos mágicos e fantásticos deixaria a história ainda mais interessante, e que, se era para transformar o Império Bizantino numa terra de magia e monstros, era melhor afastar-se um pouco mais da historicidade e abraçar de vez a vocação de fantasia da saga, mantendo, ao mesmo tempo, as características interessantes da Constantinopla real. Um coquetel ousado, eu diria, mas que, pessoalmente, me agradou muito.

Num ponto Turtledove (certamente tendo seus motivos para tanto) distanciou deliberadamente Videssos do Império Bizantino: a religião. No nosso mundo, o Império Romano do Oriente era cristão, sendo que até o século XI submetia-se à autoridade do papa; nessa época ocorreu o cisma que resultou na separação entre a Igreja Católica Romana e a Igreja Ortodoxa, que predominou no oriente a partir de então. A religião majoritária em Videssos, à primeira vista, pode parecer semelhante ao cristianismo: o deus que eles adoram é Phos, identificado com o bem e com a luz, e por isso simbolizado pelo sol; seu adversário é Skotos, o senhor das trevas e mestre do mal, e acredita-se que os homens e mulheres que, neste mundo, servirem a Phos praticando o bem, serão recompensados com vida e felicidade eternas após a morte, enquanto os que se renderem às tentações de Skotos serão atormentados para sempre numa espécie de inferno gelado. A semelhança, porém, é apenas superficial, já que a fé videssiana parece atribuir a ambas as entidades o mesmo peso no universo, talvez o mesmo grau de poder; para os cristãos, Satã se opõe a Deus, mas de maneira nenhuma tem o mesmo poder que Ele. As crenças dos videssianos se assemelham muito, isso sim, ao zoroastrismo persa. Seja como for, alguns dos sacerdotes dessa religião possuem assombrosos poderes de cura, sendo capazes de fazer com que homens com ferimentos mortais se recuperem mediante uma simples imposição das mãos – uma habilidade que Górgidas, o médico grego que acompanha a tropa romana, encara com um misto de incredulidade, admiração e despeito.

Num banquete na corte, ao qual ele e seus principais oficiais são convidados, Escauro acidentalmente derrama vinho no manto de um embaixador estrangeiro, um certo Avshar, enviado de Yezd, um reino no ocidente dominado por adoradores de Skotos. A presença de Avshar como diplomata possibilita uma precária paz entre Yezd e Videssos, mas, ao mesmo tempo, constitui um insulto, como o próprio imperador observa, já que a inimizade de facto entre os dois reinos é conhecida por todos. Avshar, truculento, não só se recusa a aceitar as desculpas de Escauro pelo acidente banal com o vinho, como ainda o insulta e esmurra. Exige um duelo, que o romano vence, embora com extrema dificuldade e, em grande parte, graças à magia presente em sua espada, já que Avshar, além de um combatente formidável, é também feiticeiro. O tribuno poupa a vida do embaixador – decisão da qual se arrependerá mais tarde. Quando, dias depois, Escauro sofre uma tentativa de assassinato, e provas inequívocas indicam que Avshar foi o mandante, o imperador declara que, com esse ato, o bruxo de Yezd perdeu o direito à proteção assegurada aos diplomatas, e ordena sua prisão. Escauro e outros vão no encalço do vilão, só para descobrir que ele escapou, deixando atrás de si armadilhas mágicas que custam as  vidas de vários homens. Mavrikios, então, declara guerra a Yezd (algo que ele sabia que teria que fazer, mais dia menos dia) e dá início à tarefa de reunir um grande exército, incluindo tanto tropas videssianas nativas quanto mercenários vindos de quase todos os cantos do mundo conhecido… E, no caso dos romanos, de mais longe ainda. Por falar neles, Escauro e seus homens são, sem comparação, a melhor infantaria de que o imperador dispõe, e por isso terão um papel-chave nessa campanha.

Assim como fiz com A Legião do Tempo, escolhi The Misplaced Legion para praticar o meu hobby/exercício de traduzir, e foi uma experiência empolgante. O texto está coalhado de referências clássicas – História, mitologia, filosofia –, e mesmo eu, que, modéstia à parte, tenho um razoável conhecimento ao menos nos dois primeiros campos, aprendi um bocado. Embatuquei um pouco na hora de dar o título: traduzir literalmente o título original resultaria em algo como A Legião Deslocada, ou, pior ainda, A Legião Extraviada – ou seja, sem chance! Passei um tempo indeciso, mas acabei ficando com A Legião Perdida; é verdade que já existe um filme com o mesmo nome, que, por sinal, é baseado no livro A Águia da Nona, de Rosemary Sutcliff, que já comentei aqui no blog – mas esse não é o primeiro e com toda a certeza não será o último caso em que duas obras sem qualquer relação direta entre si levam o mesmo título.

Além de nos oferecer uma história emocionante sobre guerra, lealdade, poder e intrigas, The Misplaced Legion apresenta uma galeria de personagens aos quais é impossível não se afeiçoar, chegando a me lembrar (atenção, isto é só um pensamento subjetivo!) Jornada nas Estrelas nesse quesito. Se Escauro for o capitão Kirk, então Górgidas (claro!) é o Dr. McCoy. Só é difícil ver algum traço de semelhança entre o lógico e racional Sr. Spock e o alegre e sangue-quente Viridovix, que, sim, acaba se tornando um amigo próximo de Marco. O gaulês adora farra e vinho, anda sempre atrás de rabos-de-saia, e ama a loucura da batalha, o que faz dele o oposto de Escauro, que é um adepto da filosofia estoica, que recomenda comedimento em tudo (bebida e sexo especialmente), e além disso, como ele mesmo reflete em certo trecho, tem em relação à guerra a mesma atitude que a maioria dos romanos: "Lutar era algo para ser feito quando necessário, e concluído o mais depressa possível." E, mesmo com tantas diferenças, os dois tornam-se amigos, o que reflete algo que já se verificava durante a batalha do começo do livro, antes de irem parar em Videssos: eles eram inimigos por força das circunstâncias, mas nunca tiveram pessoalmente nada um contra o outro, e respeitavam-se mutuamente como oponentes valorosos. Transportados para um mundo estranho, a inimizade perdeu todo o sentido. Essa amizade entre ex-inimigos é interessante e plausível; acho apenas que esse tema deveria ter sido melhor desenvolvido, o autor poderia ter-lhe dedicado mais espaço e aprofundado mais. E, como estou falando dos personagens, seria uma imperdoável injustiça não dedicar algumas linhas a Caio Filipo, que lembra inevitavelmente aquele sargento veterano de tantos filmes de guerra (especialmente os um pouco mais antigos) que todos já vimos: ríspido, durão, mas no fundo com um coração de ouro, ele dedica uma lealdade a toda prova a seu tribuno, que, como dito antes, mostra-se digno disso, diferente de outros oficiais que o velho centurião já conheceu. Mais importante que tudo isso, Caio Filipo é o personagem que melhor representa o apego à disciplina que era o próprio coração pulsante do exército romano: seus soldados sabem que pouco importa que o mundo esteja ruindo em volta, o treinamento diário acontecerá do mesmo jeito, e nenhum desleixo com o equipamento será tolerado. Sem esquecer, ainda, que as frequentes trocas de farpas verbais entre ele e Viridovix são uma diversão à parte.

A descrição da sociedade de Videssos, bem como da adaptação dos romanos a ela, acrescenta mais uma camada de interesse à trama. Há um diálogo entre Escauro e Górgidas em que o médico, mais velho e realista, faz ver ao tribuno que, com o tempo, seus homens se esquecerão de Roma – não no sentido de não se lembrarem de suas origens, mas no de gradualmente, sem perceber, irem adotando os usos, costumes e modos de pensar de sua nova pátria. Essa ideia, a princípio, choca Marco, mas, conforme passa o tempo, e quanto mais ele reflete a respeito, percebe que é verdade. Umas poucas centenas de homens jogados em meio a um povo estranho, com uma língua e uma cultura diferentes, fatalmente acabarão sendo absorvidos; deixarão sua marca, certamente, mas muito tênue e pequena num império vasto e multicultural como o de Videssos. E, como o grupo de romanos que foi transportado para esse novo mundo trata-se de uma unidade militar, são todos homens, que, não demora muito, começam a tomar companheiras locais, tal como faziam os legionários que serviam nas províncias do próprio Império Romano. Seus filhos ainda serão meio-romanos, mas cada uma das gerações seguintes terá menos de romana, até chegar um momento em que a marca de Roma já mal seja perceptível. É assim que as coisas acontecem quando povos se misturam. O próprio Escauro se apaixona por Helvis, uma bela namdalenense, e a toma como companheira. E, a respeito da vida pessoal e familiar dos legionários, acredito que, tal como no caso da amizade entre ex-inimigos, também nesse ponto faltou aprofundamento – afinal, é provável que muitos dos soldados de Escauro tivessem mulheres e talvez famílias no mundo que deixaram para trás, e devem ter sofrido com sua perda antes de aceitarem o fato e tentarem reconstruir suas vidas em Videssos. Praticamente nenhuma palavra é dedicada a isso.

Harry Turtledove, como vim a saber, possui uma extensa obra que parece oscilar entre a ficção histórica, a fantasia e a ficção científica, e este meu primeiro contato direto com uma história sua deixou a impressão mais favorável possível, apesar das pequenas omissões (bem, nem tão pequenas assim) citadas acima. É realmente uma pena ser tão improvável que seu trabalho algum dia chegue às livrarias brasileiras, mas, como observei no início, agora está disponível aos que fizerem uso das novas tecnologias e dominarem a língua inglesa. E, embora eu ainda não conheça nenhum de seus outros livros, ao menos o Ciclo de Videssos, em minha opinião, pode ser plenamente recomendado.