domingo, abril 29, 2007

300



Logo que ele estreou, algumas semanas atrás, corri ao cinema para ver o novo filme sobre a batalha das Termópilas, sobre o qual até quem não tem especial inclinação por épicos da Antigüidade andava curioso – imagine-se então como eu estava. E, para começar com a impressão geral que tive, posso dizer que 300 não me decepcionou, embora também não seja exatamente o que eu estava esperando.

Antes de mais nada, é preciso deixar claro que, apesar de inspirado num acontecimento histórico real – e extremamente importante –, e de o roteiro seguir os fatos nos pontos principais, 300 é uma fantasia, o que fica evidenciado por uma série de elementos que claramente pertencem ao universo da imaginação: criaturas semi-humanas, como um homem-fera que os Imortais persas atiçam contra os espartanos; um inusitado "rinoceronte de guerra" (elefantes de guerra, tudo bem, realmente existiam e o exército persa os tinha, embora não haja registro de terem sido usados nessa batalha, mas o rinoceronte nem mesmo é suficientemente inteligente para ser domado ou treinado), e por aí vai. E como não mencionar o rei Xerxes, interpretado pelo brasileiro Rodrigo Santoro, que, graças ao milagre dos efeitos visuais, aparece em cena com três metros de altura? Talvez seja melhor dizer que o filme é uma trama histórica temperada com elementos de fantasia, e tudo arquitetado com extrema competência. O elenco corresponde às exigências da história e a sombria fotografia em sépia ajuda a configurar o clima de "armagedom". O que realmente não gostei foi da anêmica e desnecessária trama paralela protagonizada pela rainha Gorgo (Lena Headey), esposa do rei Leônidas (Gerard Butler), que serve apenas para causar irritantes quebras de ritmo e de clima, a cada vez que a ação é transferida do local da batalha para a cidade de Esparta. Mas algo do tipo já era previsível, considerando a completa impossibilidade de Hollywood produzir um filme de grandes proporções sem colocar um romance, ainda que periférico, na trama. A culpa não cabe a Headey, que, além de bonita, é boa atriz.

300, o filme, baseou-se diretamente numa graphic novel – para os não familiarizados com esse termo, trata-se de um "romance gráfico" (numa tradução bem literal, mas não muito acurada), ou seja, um livro em quadrinhos, de autoria de Frank Miller, um nome coroado nesse meio, embora, de momento, eu só me lembre de seu trabalho na Marvel, com o super-herói cego Demolidor. Na adolescência, eu gostava tanto de quadrinhos quanto de livros, já nos últimos anos tenho andado desligado desse universo. Gostaria muito de ler essa graphic novel em particular, espero que agora, aproveitando o embalo do filme, seja relançada. Para ver como é curioso o processo de realimentação que a arte sofre através dos tempos, Miller foi inspirado, para fazer a graphic novel, por um outro filme sobre o mesmo assunto, Os Trezentos de Esparta (1962), baseado diretamente no relato do historiador grego Heródoto (484-425 a.C.).

E sobre o que é tudo isso, afinal de contas? Bem... O evento central é a batalha das Termópilas, ocorrida no desfiladeiro de mesmo nome no verão de 480 a.C., na qual uma força de cerca de 4000 gregos, tendo como ponta-de-lança uma elite de 300 espartanos, enfrentou o exército invasor de Xerxes, rei da Pérsia – um exército de dimensões inconcebíveis para a época, cujo número exato é até hoje alvo de controvérsia, mas certamente não menos de 200 mil soldados; há autores que falam em um ou dois milhões. Embora não tenha sido o primeiro nem o último enfrentamento entre gregos e persas, essa batalha revestiu-se de um significado especial para os gregos daí em diante; Alexandre, ao aniquilar o Império Persa um século e meio depois, dedicou sua vitória aos Trezentos, como uma vingança tardia. E o que teve essa batalha de tão especial?... É uma longa História (com H maiúsculo, mesmo).

A noção que a maioria das pessoas tem a respeito da Grécia é a de uma civilização sábia, totalmente voltada para a razão, a ciência, a arte e a beleza, que nos legou uma herança inestimável de filosofia, monumentos deslumbrantes, uma mitologia fascinante e conceitos sem os quais não é possível imaginar o mundo moderno. E tudo isso é verdade, de modo que a noção não é errônea – é meramente incompleta. A civilização grega tinha um outro lado, talvez não tão belo, mas que da mesma forma fazia parte do que ela era. 300, assim como o episódio histórico que lhe deu origem, mostra um pouco desse outro lado.

A Grécia antiga nunca foi uma nação unificada. Estava dividida em inúmeras cidades-estado, que, apesar de compartilharem a mesma língua, origem étnica e base cultural, eram politicamente independentes umas das outras, e, não raro, rivais entre si. Enquanto outras cidades gregas eram famosas por sua arte, filosofia, ciência, e por seus avançados sistemas políticos, havia uma que era um Estado eminentemente militarista: Esparta.


A partir das reformas realizadas por um certo Licurgo por volta de 700 a.C., tudo na sociedade espartana passou a ser feito em função da guerra. Os meninos nascidos de pais livres eram separados das famílias aos oito anos de idade e ficavam sob a responsabilidade do Estado, sendo submetidos a um duríssimo treinamento que se prolongava até os 21 anos e fazia deles guerreiros praticamente imbatíveis. Como hoplitas (assim chamados por causa do hoplon, grande e pesado escudo circular), integravam as falanges, certamente as mais disciplinadas e bem treinadas unidades militares da Antiguidade até então, e que, como tais, não seriam superadas até o advento das legiões romanas, séculos mais tarde. Nelas, os guerreiros lutavam em linha, lado a lado, cada um protegido em parte pelo próprio escudo, em parte pelo do companheiro à direita; combatendo assim, eram muito poderosos, mas bastava que se abrisse uma brecha na linha para levar toda a tropa ao desastre. Em resumo: se um fraquejasse, punha todos os companheiros em risco. Os soldados espartanos precisavam confiar totalmente uns nos outros. Quanto aos outros gregos, lutavam de forma parecida, mas, ao contrário dos espartanos, não tinham a vantagem de serem treinados para isso durante toda a vida. E eis aí um aspecto não tão glorioso da civilização grega: os espartanos cidadãos só podiam dedicar-se de corpo e alma ao treinamento militar porque o trabalho que mantinha a cidade funcionando era todo feito por escravos (ninguém deve supor que isso queira dizer que nas outras cidades gregas não havia escravidão; de maneira nenhuma!).

Como é fácil imaginar, o ressurgimento da ameaça persa nos anos imediatamente anteriores a 480 a.C. inspirou os gregos divididos a porem de lado suas rivalidades e unirem forças, mas, mesmo assim, naquele verão, a Grécia ainda não estava preparada para enfrentar o invasor. A menos que fosse encontrada uma maneira de atrasar os persas por tempo suficiente para que os exércitos de todas as cidades gregas pudessem se reunir, não haveria como evitar que o país fosse conquistado e passasse a ser mais uma província do vasto Império Persa, que já se estendia do Egito à Índia. Leônidas, rei de Esparta, ouvira uma profecia que dizia que ou sua cidade cairia, ou perderia um rei. Preparou então uma expedição, reunindo trezentos de seus melhores soldados, e certificando-se de que todos tivessem filhos vivos do sexo masculino, para que suas linhagens não fossem extintas  pois sabia que nenhum deles voltaria vivo dessa missão. Nem ele, Leônidas, tampouco.

O lugar chamado Termópilas, ao norte da Grécia, só era conhecido até então por ser um inocente balneário, procurado por pessoas de todo o país por causa de suas fontes de águas termais  aliás, foi daí que lhe veio o nome: Thermopylae, em grego, quer dizer 'Portões Quentes'  no filme, os atores se referem ao lugar como the Hot Gates, versão perfeita e fiel para o inglês; não me perguntem por que a pessoa responsável pelas legendas decidiu traduzir (?) Hot Gates por 'Boca do Inferno'. Leônidas escolheu esse lugar para fazer frente ao inimigo devido à existência de um desfiladeiro estreito que anularia a vantagem numérica dos persas: não importava quantos eles fossem, apenas algumas centenas poderiam entrar de cada vez. Ali os quatro mil gregos lutaram praticamente sem descanso, durante sete dias, contra sucessivas levas de atacantes, matando até suas armas se desmancharem em suas mãos  segundo a narrativa de Heródoto. Talvez tivessem resistido ainda mais tempo, não fosse por um morador da região que, subornado pelos persas, mostrou-lhes uma trilha íngreme pelas montanhas, através da qual parte do exército persa flanqueou os espartanos, que assim ficaram cercados. Quando isso aconteceu, os aliados gregos se retiraram, com a aprovação de Leônidas, que, com os que ainda restavam de seus Trezentos, permaneceu no local, sem ceder uma polegada de terreno, até serem exterminados até o último homem.

Não vou entrar, aqui, em especulações sobre que tipo de determinação sobre-humana pode ter levado todos esses homens a sacrificarem deliberadamente suas vidas numa batalha que desde o início era impossível de ser vencida. Digamos apenas que cada um ali esforçou-se ao máximo por vender a sua vida tão caro quanto possível, e, de fato, calculou-se que cada espartano não tombou sem levar consigo pelo menos vinte persas, ainda que, diante da vastidão do exército inimigo, isso representasse umas poucas folhas arrancadas de uma floresta. O mais importante, portanto, não foi o número de inimigos eliminados, mas os preciosos sete dias que a batalha durou, e que permitiram que o restante do exército espartano, bem como os exércitos das outras cidades gregas, ocupassem posições estratégicas e, durante os meses seguintes, infligissem aos persas um revés após outro, até derrotá-los definitivamente na batalha de Plateia, obrigando-os a abandonar o plano de conquistar a Grécia. A batalha das Termópilas foi um daqueles momentos que podemos considerar verdadeiras "encruzilhadas" na História, pois, se o desfecho tivesse sido outro, tudo o que veio depois poderia ter sido diferente. Se os persas tivessem conquistado a Grécia, coisas como democracia ou o conceito de liberdade individual só nasceriam séculos ou milênios depois  ou, talvez, nunca. É raro, mas há momentos na História em que verdadeiramente o destino de uma civilização inteira repousa nas mãos de um punhado de homens; esse foi um deles, e a civilização a que me refiro não é apenas a Grécia, mas todo o Ocidente. Paradoxalmente, Esparta, a menos democrática das cidades gregas, impediu que a democracia morresse no berço e tornou possível o nascimento das sociedades modernas – que podem não ser perfeitas, mas sem a menor dúvida seriam muito piores sem os legados que a Grécia nos deixou.

Lembrar dessa batalha sempre me faz voltar àquela questão: vale a pena morrer pela liberdade? Acho que a resposta que se espera receber de qualquer pessoa que preze a dignidade humana só pode ser que sim, que, em se tratando da liberdade  a nossa e a dos outros, e a das gerações futuras , nenhum sacrifício é grande demais. Só que a pergunta talvez precise ser reformulada: será que continua valendo a pena, quando você sabe que a maioria das pessoas pelas quais você estará dando sua vida para que elas tenham liberdade, não fará nada que preste com ela?... Se refletirmos mais um pouco nessa direção, acho que acabaremos concluindo que cada um de nós, hoje, tem uma dívida pessoal para com aqueles bravos soldados mortos há quase 2500 anos, e que a única maneira de saldar essa dívida é procurando fazer de nossas vidas a coisa mais digna, útil e interessante que pudermos.

terça-feira, fevereiro 20, 2007

O Marechal das Trevas

Gilles de Rais (1404-1440), barão de Laval, é um dos personagens mais curiosos – e mais assustadores – da história da França. Seus feitos medonhos, ecoando pelo universo da cultura popular através de histórias contadas em tabernas e ao pé do fogo, deram origem à lenda que o grande escritor Charles Perrault (1628-1703) poria por escrito em seu clássico livro Histórias ou Contos de Outrora, com o título A História de Barba-Azul – uma nota tenebrosa em meio a histórias encantadoras ou engraçadas, como A Bela Adormecida do Bosque ou O Gato de Botas. Se bem que tanto Perrault quanto os irmãos Grimm, e outros autores que recolheram e redigiram tais contos populares, suavizaram grandemente essas histórias, muitas das quais, tal como eram na origem, seriam consideradas hoje pouco apropriadas para se contar a crianças... Mas isso é assunto para outro artigo.

Em O Marechal das Trevas, o jornalista e escritor espanhol Juan Antonio Cébrian, usando de uma prosa ágil em tom de reportagem – que ele prova ser compatível com uma análise histórica apurada, ainda que não tão aprofundada – reconstrói a trajetória do "verdadeiro" Barba-Azul, tendo o cuidado de situar o leitor por meio de uma breve história da Guerra dos Cem Anos, conflito no qual De Rais se destacou como soldado antes de ganhar reputação bem mais sombria graças a seus crimes.

O autor nos informa, por exemplo, dos feitos do rei inglês Henrique V, que, aparentado com os reis franceses (depois de séculos de casamentos políticos, quase todas as famílias reais da Europa eram aparentadas entre si), decidiu fazer valer seu suposto direito ao trono da França e, em 1415, invadiu o país, derrotando o exército francês na histórica batalha de Azincourt. Henrique obrigou o então rei da França, Carlos VI, a reconhecer seus direitos de herdeiro e a dar-lhe sua filha em casamento, de modo que, se Carlos morresse, Henrique seria o próximo a ocupar o trono francês, acumulando-o com o da Inglaterra (o que praticamente faria dele um imperador) e preterindo o direito do filho do rei, o delfim, também chamado Carlos. A propósito desse episódio da Guerra dos Cem Anos, vejam o magnífico filme Henrique V (1989), baseado na peça homônima de Shakespeare, e dirigido e estrelado por Kenneth Branagh.

Inesperadamente, porém, Carlos VI sobreviveu a Henrique V, ainda que por um espaço de poucos meses: o rei inglês faleceu em agosto de 1422, e o francês, em outubro do mesmo ano. Isso criou um impasse: os ingleses, e parte da França que estava do seu lado, coroaram como novo rei (da Inglaterra e da França) o filho de Henrique, então ainda uma criança de colo, com o nome de Henrique VI; já os franceses nacionalistas queriam declarar rei o delfim, como Carlos VII. Havia um empecilho: por uma tradição de séculos, todo rei francês deveria ser coroado na catedral da cidade de Reims, sob pena de não ter sua legitimidade reconhecida pelo povo e pelos nobres – e Reims, como várias outras partes da França, estava nas mãos dos ingleses. O delfim, então, aquartelou-se em seu castelo na cidade de Chinon, juntamente com todo o exército que pôde reunir e os nobres ainda dispostos a lutar por ele – e entre estes, estava Gilles de Rais.

De Rais, durante alguns anos, foi um dos cavaleiros mais admirados da França, e parecia um homem destinado à grandeza. Bonito, culto, guerreiro formidável (com apenas 25 anos de idade, alcançou o altíssimo posto de Marechal da França) e dono de uma das maiores fortunas pessoais da Europa, celebrizou-se pela bravura demonstrada no campo de batalha e ganhou um lugar de honra na corte do delfim. E foi na corte, em Chinon, num dia qualquer de 1429, que Gilles e os outros nobres viram aparecer uma camponesa analfabeta de 17 anos chamada Joana d'Arc, declarando-se enviada pelo próprio Deus para garantir que o delfim fosse coroado rei como era seu direito. Por mais absurdo que isso parecesse, Joana já havia feito profecias que deram certo, o que impediu que suas pretensões fossem sumariamente rejeitadas.

Entre os que desde o início acreditaram nela esteve Gilles de Rais, que mais tarde, em seu julgamento, contaria que só enquanto esteve junto de Joana conheceu a paz de espírito e sentiu a presença de Deus; a pureza e a fé inquebrantável da donzela trouxeram alívio à alma do marechal, já então ensombrecida pelo mal. Gilles lutou ao lado de Joana na batalha de Orléans, pouco depois, e foram as mãos dele que, diante dos olhos dela, puseram a coroa da França na cabeça do delfim, um mês mais tarde, em Reims, recuperada dos ingleses graças ao inexplicável ardor que a liderança daquela garota inspirava aos soldados.

De Rais foi seguidor e protetor de Joana por mais algum tempo, até que o recém-coroado Carlos VII os separasse, designando a cada um diferentes missões. A verdade é que, depois de ter retomado Orléans, tornado possível a coroação do rei, e causado uma reviravolta na guerra a favor da França, Joana tornou-se um incômodo para Carlos e sua corte, de modo que, quando ela foi capturada pelos borgonheses (da região francesa de Borgonha, aliada à Inglaterra), em maio de 1430, o rei não esboçou nenhum esforço para salvá-la, nem mesmo diante da enérgica intercessão do marechal Gilles de Rais. Embora tenha-se tentado dar ao julgamento e à execução de Joana d'Arc a aparência de um processo por crimes religiosos, a verdade é que a Donzela de Domrémy morreu por razões políticas. Depois de um ano de julgamento sob acusação de heresia, a pressão da coroa inglesa fez com que Joana fosse condenada à morte na fogueira, sentença que foi executada na cidade de Rouen, em 30 de maio de 1431. Tinha 19 anos de idade.

Isso foi, de certa forma, o fim para Gilles de Rais; qualquer chance que ele tivesse de dar à sua vida um rumo positivo morreu com Joana. De acordo com o levantamento biográfico feito por Cébrian, Gilles era filho de um casamento político: seus pais nunca coabitaram de fato e deram pouquíssima atenção a ele e a seu irmão, René. Ambos foram criados pelo avô materno, o conde Jean de Craon, que lhes incutiu a noção de que a crueldade era parte integrante da força e da masculinidade. Isso, somado à falta de uma verdadeira família, pode em parte explicar, embora nunca justificar, sua conduta posterior.

Desgostoso após o destino que tivera Joana d'Arc, Gilles abandonou as armas e passou a dividir seu tempo entre os vários castelos que possuía, espalhados pelo interior da França, levando uma vida de luxo excessivo e promovendo quase diariamente festas suntuosas para centenas de convidados. Nem mesmo sua enorme fortuna poderia arcar indefinidamente com tais exageros, e o barão passou a enfrentar problemas financeiros. Sabe-se que procurou renovar sua riqueza tentando obter ouro por meio da alquimia, que ele próprio estudou e praticou, além de empregar especialistas, notadamente o italiano Francesco Prelati, que também se dedicava à feitiçaria. Infelizmente para De Rais, a transformação de metais comuns em ouro era algo que vinha sendo tentado desde a Antiguidade sem sucesso – e não foi com ele que essa história mudou. Chegou-se a aventar a hipótese de que as práticas alquímicas e mágicas teriam levado ao início da carreira de assassino do barão, já que o sangue de crianças era um ingrediente mencionado em inúmeras fórmulas da época, mas sua própria confissão descarta essa ideia: ele já matava por prazer bem antes de dedicar-se a tais práticas.

A última parte de O Marechal das Trevas é uma leitura penosa, pois conta sobre a prisão e o julgamento de De Rais, reproduzindo os depoimentos dele e dos criados que o assistiam em seus crimes, com fartura de detalhes capazes de causar horror até a Jack, o Estripador, que, comparado ao barão de Laval, não passava de um aprendiz. Desconhece-se o número exato de vítimas – na maioria crianças de 8 a 12 anos, de ambos os sexos – que foram raptadas, violentadas e mortas entre os anos de 1431 e 1440; sabe-se que não foram menos de 140, provavelmente cerca de 200, e há cronistas que elevam a conta até perto dos mil. O marechal confessou sem a necessidade de tortura (que na época era considerada um método legítimo de interrogatório em qualquer julgamento, e não apenas nos de bruxaria, como muita gente pensa), demonstrando arrependimento que foi considerado sincero por seus juízes, e pediu um padre para ouvi-lo em confissão, no que foi atendido. Foi levado à forca em 26 de outubro de 1440, e, antes de morrer, dirigiu suas últimas palavras à multidão que comparecera para ver sua execução, e que incluía os pais de muitas crianças que ele assassinara. Suplicou-lhes perdão e pediu que rezassem por sua alma, o que todos fizeram.

O livro tem ainda um apêndice que reproduz A História de Barba-Azul de Perrault e fornece breves resumos a respeito de alguns serial killers modernos que Cébrian considera "herdeiros" de De Rais. A meu ver, O Marechal das Trevas vale a leitura principalmente pela informação histórica que oferece (e ultimamente, não sei por que, ando com uma curiosidade louca a respeito da Guerra dos Cem Anos, de modo que veio a calhar), mas, claro, também é recomendável para os que se interessam pelo estudo dos distúrbios mentais e suas manifestações, inclusive as mais violentas e assustadoras. Mas mesmo esses precisarão ser fortes para encarar a última parte do livro.

quinta-feira, outubro 12, 2006

1984

Desejo, ao iniciar esta postagem, agradecer ao Prof. Luís Augusto Fischer por ter gentilmente autorizado a utilização do texto abaixo. Eu pensava há algum tempo em escrever um post para este blog enfocando 1984, de George Orwell, livro extremamente importante por uma série de razões. Entretanto, no último domingo, dia 08/10, ao ler o jornal Vale do Sinos, aqui da minha cidade (São Leopoldo/RS), topei com este magnífico artigo, de autoria do Prof. Fischer. Como, depois de lê-lo, nada que eu pudesse escrever sobre o mesmo assunto me pareceria bom o bastante, enviei um e-mail ao autor solicitando permissão para reproduzir o texto. Numa postagem separada, sob o título O "meu" 1984, incluí alguns comentários adicionais de minha própria autoria.




Um livro profético

Por Luís Augusto Fischer

Reli agora, adulto, um livro que não é tão bom quanto poderia, mas que mantém grande interesse para nossos dias. É o famoso 1984, de George Orwell (com tradução recente pela editora Nacional). Trata-se de uma fantasia medonha, uma utopia negativa (ou uma distopia, como alguns preferem chamar): lançado em 1949 e escrito no ano anterior, 1984 relata a história de um sujeito chamado Winston Smith, que vive em Londres num sombrio futuro (que para nós é passado, mas isso é apenas um detalhe): o mundo todo é atravessado por guerras infinitas e está dividido em três grandes blocos.

Winston vive numa cidade ocupada por cartazes gigantes do Grande Irmão – se o leitor não sabe, foi daqui, deste livro, precisamente, que nasceu a imagem do Big Brother, este ser onipresente, que para Orwell era uma caricatura do líder soviético Stálin, mas também representava qualquer ditador, muito especialmente Hitler. Big Brother que veio a ser, anos depois, caricaturado pela televisão naquele programa inventado na Holanda e espalhado por todo o mundo, no Brasil pela Globo. No mundo inventado no livro, além da imagem do Irmão que a tudo vê metaforicamente, porque está espalhado por tudo, há coisa pior, uma engenhoca chamada teletela, uma tela de televisão que despeja incessantemente, nas ruas e nos interiores, nos comércios e nas casas, toneladas de informações sempre otimistas sobre os níveis de produção do país, mesma tela que inspeciona a vida de todo mundo, como se fosse uma antecipação perversa das câmeras de vídeo que se multiplicam nas cidades atuais.

Orwell foi profético em vários sentidos, como na teletela. O mundo que o atormentava era o da falta de liberdade, o mundo da sociedade administrada, sem espaço para a criatividade, que nasce do exercício da individualidade, dos sentimentos elevados do ser humano quando vive dignamente. Seu personagem trabalha numa repartição pública que se chama Departamento de Registro; seu trabalho consiste em reescrever antigas notícias de jornal, portanto alterando dados da história, falseando fatos ocorridos, tudo segundo as conveniências do poder, que é absoluto. Se por exemplo algum sujeito, no presente da história, caiu em desgraça por ter desagradado a cúpula do poder, do Partido, os registros históricos que envolviam seu nome serão alterados, de forma que no futuro não será possível ler seu nome, nem saber que ele existiu, que fez alguma coisa, nada.

Escrever para quê?

Winston vive nesse mundo mas com algum desconforto. Não consegue formular uma crítica concatenada contra o poder, contra a opressão, a falta de liberdade, mas apenas sente que o mundo poderia ser diferente. Sabe que houve organização social diferente da que ele vive no presente, mas não consegue dizer como era. Recorda imprecisamente haver coisas como família, liberdade, amor, mas tudo em sua mente é esparso, lacunoso. E é claro que suas lembranças atrapalham sua perfeita inserção naquele mundo, que deseja que os cidadãos sejam uniformemente concordinos, que trabalhem e não pensem.

Em certa altura, ele vai ter um relacionamento com uma jovem, Júlia. Ele tem seus 40, ela vinte e tantos. Ela trabalha em outro setor, o Departamento de Ficção, encarregado de escrever novelas baratas para entreter a camada de baixo da população, os proles – naquele mundo terrível, só existe o Partido, com seus filiados, e os proles. Dentro do Partido, naturalmente, há divisões, entre a cúpula, privilegiada, e a gente mais simples, como é o caso de Winston e Júlia, que são manipulados o tempo todo.

O livro descreve o trabalho de Júlia na invenção de novelas (equivalentes às telenovelas de nosso tempo, em grande parte), que também eram administradas, desde o plano geral feito por gente de cima até os retoques finais. Ela chegara a trabalhar numa subdivisão do departamento, encarregada de escrever pornografia, sempre para entreter os “proles”. De lá saíam títulos como Contos da chibata ou Uma noite num internato de moças. O procedimento, diz Júlia, era simples: eram só seis enredos, que eram misturados e adaptados, mediante um caleidoscópio que recombinava sempre os mesmos elementos. Parecido com nossos dias?

Orwell foi uma figura interessantíssima. Seu nome de batismo era Eric Arthur Blair; nasceu na Índia, onde seus pais, ingleses, trabalhavam, em 1903; estudou na Inglaterra, lugar de excelentes escolas públicas; depois, jovem, foi trabalhar na Birmânia, como policial (é preciso lembrar que a Inglaterra era a cabeça do maior império do mundo, naquela altura, até a Primeira Guerra Mundial); e resolveu escrever profissionalmente na altura dos vinte e poucos anos, quando adotou o pseudônimo, que junta o nome do santo padroeiro de seu país com o nome de um rio. Lutou na Guerra Civil Espanhola ao lado dos republicanos, porque sempre foi um sujeito de esquerda não autoritária, e sobre essas vivências escreveu excelentes textos, hoje em dia reunidos em edição brasileira chamada Lutando na Espanha (editora Globo); fez carreira como escritor, principalmente de ensaios e reportagens, mas também de ficções, como este 1984. Morreu em 1950, muito jovem ainda, e assustadíssimo com o destino da humanidade, como se pode ver.

Deixei para o fim uma cena que está bem no começo do romance e que me levou a essa evocação: Winston, o desconfortável habitante daquele mundo totalitário, conseguiu comprar um velho caderno de notas e resolve fazer um diário. Há o perigo da teletela, que o vigia também dentro de casa, de tal forma que ele precisa esconder-se numa reentrância da parede, dentro de seu próprio lar, para então ter um mínimo de liberdade - a liberdade de anotar pensamentos, impressões, palpites, lembranças. O primeiro texto que escreve é uma sucessão desordenada de sensações sobre um filme que viu no dia anterior. A letra treme, porque ele não está à vontade; um fluxo de associações lhe passa pela mente, sem que ele consiga ajeitar frase com frase; "de repente, pôs-se a escrever por puro pânico, mal percebendo o que estava registrando", diz o narrador.

Era um texto atropelado, uma desordem sem pontuação adequada, com palavras saindo erradas de sua caneta. Não importa: era um homem exercendo sua sofrida, pequena mas viva liberdade.

O "meu" 1984

Para quem mora na Grande Porto Alegre e mantém contato regular com o ambiente cultural/acadêmico, não há necessidade de apresentar o autor do texto acima; para os demais, aqui vai: Luís Augusto Fischer é professor da UFRGS, autor de diversos livros, e certamente uma das melhores cabeças da região para tudo quanto se refira a língua e literatura. Perdi por pouco a oportunidade de ser seu aluno, quando, em 2004, tendo sido aprovado no vestibular, estava iniciando meu segundo curso de graduação em Letras (bacharelado em tradução), mas fui obrigado a abandoná-lo depois de poucos dias de aulas para pegar o emprego burocrático onde ainda permaneço.

No artigo que acabamos de ler, Fischer nos brinda com uma análise magistral de um livro que sempre mereceu um olhar atento - e, em nossos dias, mais do que nunca. Quando li 1984, o ano que lhe dá o título já tinha passado havia cinco anos, mas, embora eu tivesse, na época, apenas 15, percebi logo que isso não significava, de forma alguma, que o risco de os horrores nele descritos se tornarem realidade tivesse sido afastado.

Aos 15 anos, eu andava mais interessado que nunca em estudos de natureza social e política, e foi isso, em grande parte, o que me levou a procurar esse livro. Mais tarde (lamento dizer), esse interesse diminuiu, creio que pelo fato de tudo à minha volta apontar para a impossibilidade de qualquer mudança real. De qualquer forma, 1984 me abriu os olhos para numerosas questões que ainda me perturbam - como sei que também perturbam a muitos outros.

O fato é que George Orwell, apesar de todo o clima de paranóia (justificada) que permeia seu romance, ficaria de cabelo em pé se pudesse, como Nostradamus, efetivamente ver o futuro e tomar conhecimento de como as coisas são nos dias de hoje. A teletela que ele descreve é aquilo que as pessoas simples do tempo do autor imaginavam que fosse a televisão (na época, uma invenção recente, e que ainda inspirava desconfiança): "eles" nos mostram as imagens que querem que vejamos, mas, ao mesmo tempo, "eles" também nos observam - o tempo todo. Entretanto, assustadora como possa parecer, essa idéia pouco representa se comparada a certas coisas que não são ficção... Hoje em dia, informações a nosso respeito são coletadas a cada passo que damos, e é impossível saber para o que estão sendo usadas. Alguns meses atrás, a revista Superinteressante publicou uma matéria sobre o assunto, que (admito) me preocupou. Imagine: você solicita um cartão numa dessas hipermegalojas de hoje - essas onde se pode comprar de tudo, de rabanetes a aviões. Graças ao cartão, obtém descontos, condições facilitadas de pagamento, e muitas vezes nem precisa mais carregar dinheiro nos bolsos - mas, em contrapartida a essas vantagens, o banco de dados da loja registra tudo o que você compra. Essas informações podem ser vendidas a outras empresas - por exemplo, uma companhia de planos de saúde, que, analisando as suas listas de compras, passa a conhecer seus hábitos alimentares, e, por conseguinte, a ter uma estimativa das chances que você tem de vir a precisar de serviços médicos. Com base nisso, a companhia calcula o preço que você terá que pagar por um plano de saúde!...

Isso é apenas um exemplo das coisas que ocorrem num mundo onde a privacidade, outrora um direito básico de todo cidadão, passou a ser um luxo nem sempre disponível. Também é tristemente irônico que o Grande Irmão - Big Brother - criado por Orwell com o objetivo de alertar a humanidade para o perigo do totalitarismo, tenha-se transformado num ícone da cultura do voyeurismo, ao ter seu nome usado para batizar um programa de TV onde pessoas absolutamente vulgares e sem conteúdo expõem sem o menor constrangimento sua mediocridade e, o que é pior, transformam-se em ídolos para uma população carente de exemplos mais construtivos ou de referências mais sólidas... Um paralelo, contudo, existe: no livro de Orwell, Winston lembra-se que o rosto do Grande Irmão nos cartazes ainda é o mesmo de quando ele era menino, 30 anos atrás - o GI não envelhece, porque não é uma pessoa de verdade, apenas um personagem, um rosto que personifica o próprio regime. Da mesma forma, as pessoas que se exibem no zoológico hi-tech que é o Big Brother da TV não são, enquanto estão ali, propriamente pessoas - apenas imagens, personagens, rostos e corpos que simbolizam algo na cabeça dos telespectadores. "Reality show"? Show, sem dúvida; de realidade, parece haver muito pouco.

O fato de a amante de Winston, Júlia, trabalhar no "Departamento de Ficção", chamou-me a atenção ao ser relembrado pelo Prof. Fischer; o paradoxo de tal detalhe me havia escapado quando li o livro - em parte, acredito, devido à minha pouca idade, e em parte ao fato de as principais mídias de então serem ainda basicamente as mesmas que Orwell conheceu em vida, ou cujo desenvolvimento já podia ser previsto em sua época: em 1989, embora os telefones já fossem coisa corriqueira, ninguém achava estranho o fato de uma família de classe média não ter um (de fato, na minha casa ele só seria instalado quatro anos depois); videocassetes, muita gente tinha, e muita gente não tinha; computadores caseiros eram raros; DVDs e celulares não existiam, e de internet, então, nem se falava. Por tudo isso, não causou estranhamento a um garoto de 15 anos que, na sociedade totalitária prevista por Orwell, o governo usasse a literatura como instrumento de lavagem cerebral. Hoje em dia só podemos ficar pensando em como seria bom se a população em geral lesse seja lá o que fosse, não importa o quão ordinária fosse essa literatura. Já foi dito, e é certo, que a leitura é uma forma de vício (um vício que deveríamos estimular nossas crianças a contrair o mais cedo possível...), e, como em outros vícios, também no caso dela o "usuário" desenvolve tolerância e passa a sentir necessidade de coisas mais fortes: quem começa hoje lendo Paulo Coelho, daqui a um ano ou dois sentirá vontade de experimentar algo mais consistente e bem escrito, e talvez passe a Sidney Sheldon, e assim, de passo em passo, quem sabe não acabe um dia tornando-se um apreciador de Tolstoi, Machado de Assis ou Shakespeare?... Mesmo que esse leitor jamais vá além do nível Sidney Sheldon, isso já será incomparavelmente melhor do que seguir pela vida sem ler nada. Sei que estou repetindo coisas já ditas milhares de vezes, mas é fato: ao contrário da televisão e de outras mídias que simplesmente nos despejam coisas prontas, a leitura estimula a imaginação, o senso crítico, e leva a pessoa a fazer-se perguntas e procurar as respostas. Não existe livro tão vagabundo que não ensine alguma coisa nova, por menor que seja, a quem o lê. A leitura, com tudo o que ela traz à vida de uma pessoa, é como uma avalanche, que, uma vez iniciada, não pode ser detida. Enfim, o Grande Irmão do século XXI jamais teria a seu serviço um Departamento de Ficção!...

sexta-feira, junho 23, 2006

Heróis de verdade

Precisamente pelo fato de sempre ter sido um apaixonado por literatura, tenho o costume de passar longe de livros do gênero conhecido como "auto-ajuda" - primeiramente porque, tendo uma razoável experiência como leitor, estou ciente de que existe um sem-número de obras realmente merecedoras de que se dedique tempo à sua leitura, ao passo que a maioria das pessoas não tem essa sorte, e (para empregar uma metáfora) come capim, simplesmente por não ter sido apresentada ao filé mignon. Em segundo lugar, os poucos livros de auto-ajuda que cheguei a ler me permitiram constatar que a maior parte dos títulos do gênero realmente merece o nome, mas não pelo motivo pretendido: são de auto-ajuda porque foram a maneira que o autor encontrou para se auto-ajudar a ganhar dinheiro.

Entretanto, como toda regra tem exceção (inclusive esta), cá estou eu para falar de um livro de auto-ajuda que não só vale a pena ler, como deveria ser objeto de reflexão e discussão séria. Em Heróis de verdade, o psiquiatra Roberto Shinyashiki mostra-nos uma radiografia implacável de uns tantos absurdos que a vida na sociedade moderna acabou fazendo-nos achar normais, e aconselha sobre as atitudes que deveríamos tomar para não entrar nesse jogo.

De forma resumida, o objetivo do livro é nos alertar para o fato de que a mídia tenta constantemente nos vender uma imagem de "sucesso" irreal e por vezes absurda. Somos bombardeados dia após dia com regras, sugestões, exigências e cobranças que podem nos levar ao desespero se tentarmos atendê-las todas: publicidades de todo tipo de gulodices altamente calóricas nos atingem ao mesmo tempo que as de marcas de roupas exigindo corpos perfeitos. Pior ainda, parece que uma pessoa só poderá se considerar "bem-sucedida" se chegar à direção de uma megaempresa, com salário na casa das dezenas de milhares de reais e poder sobre o destino de centenas, milhares de empregados... Conseqüentemente, cria-se a noção de que os 99,9 % da população que jamais chegarão nem perto disso, são nada mais que uma multidão de "fracassados". Essa mentalidade leva a um sentimento generalizado de frustração e a uma atitude de competição destrutiva - de forma totalmente desnecessária e evitável. Ao lado disso, criou-se uma cultura onde o stress é visto como uma espécie de distintivo de honra: as pessoas incham o peito para dizer que não tiram férias há cinco anos, como se isso fosse motivo de orgulho. Lembro-me dos meus tempos de faculdade e de ter ouvido muitos colegas declararem - não em tom de lamento, mas de quem se vangloria - que geralmente não lhes sobrava tempo nem para almoçar direito. Sobre tudo isso, Shinyashiki é categórico: trabalhar 16 horas por dia e levar trabalho para casa no fim de semana não é sinal de dedicação, e muito menos de competência - é meramente coisa de quem sente necessidade de se provar, quer diante dos outros ou de si mesmo. É, em última análise, o mesmo mecanismo que leva muitas pessoas a sentirem necessidade de comprar o carro do ano, apesar de ainda terem um automóvel em perfeitas condições: precisam comprar o carro para mostrar - aos outros e a si - que podem.

Para definir as pessoas que o autor vê como os "heróis de verdade" do título, eu poderia juntar as idéias do livro com algumas considerações pessoais minhas. Um "herói de verdade", então, é alguém que busca progredir em seu trabalho como um caminho para a realização pessoal, e não para provar que não é um "fracassado". Alguém que exerce suas atividades de forma dedicada, mas não permite que isso o impeça de ter uma vida. Que tira seu tempo para ficar com a família, conversar com os amigos, dar um passeio ao ar livre, ler (e não ler o que precisa para o trabalho) sem ficar se sentindo culpado por tê-lo feito. Numa palavra, alguém que não negligencia nenhum dos aspectos do seu próprio ser, sabe combinar uma atitude humilde com uma saudável admiração por si próprio, e procura levar sua vida da melhor maneira possível - quer dizer, da maneira melhor para si, e não da maneira que os outros acreditam ser a melhor. Diante dessa pequena coleção de verdades tão simples, mas por vezes tão difíceis de enxergar, só resta mesmo aplaudir Shinyashiki por ter realizado essa raridade: um livro de auto-ajuda que pode verdadeiramente ajudar alguém.

domingo, novembro 27, 2005

Os Filhos da Terra

Muitos anos atrás (eu era criança), li na revista Istoé uma crítica que nunca mais esqueci, a respeito do filme A Guerra do Fogo, do diretor francês Jean-Jacques Annaud, inspirado no romance de mesmo nome, do belga J. H. Rosny. A crítica começava com uma reflexão sobre o fenômeno da nostalgia coletiva que parecia estar atingindo a humanidade, que, vivendo num mundo cheio de engenhocas tecnológicas mirabolantes (tanto quanto se podia falar tal coisa na década de 80), passava a sentir saudades do passado, o que, depois de produções como Excalibur e Conan, o Bárbaro, fez com que A Guerra do Fogo, que vai ainda mais fundo no passado e nos leva de volta à pré-história, tivesse se tornado um grande sucesso de público. De fato, ao menos para certo tipo de pessoas (incluo-me), existe um fascínio todo especial nesse mundo primitivo por onde se deslocavam nossos ancestrais, lutando dia a dia por uma precária sobrevivência em meio a uma natureza hostil. Embora hoje pareça difícil acreditar, houve um tempo em que a humanidade era apenas mais uma espécie, ou espécies, que, como qualquer outro animal, lutava com todas as armas para escapar da implacável lei da seleção natural, que elimina sumariamente da face do planeta as espécies que não se adaptam satisfatoriamente às condições de vida de cada era. Com um agravante: por ter inteligência, o homem também buscava compreender a razão de ser disso tudo, questão essa que jamais preocupou os mamutes ou os tigres de dentes de sabre. E não havia ciência para explicar os porquês das coisas: tudo era mistério, e o homem estava perpetuamente à mercê de forças que não dominava ou sequer compreendia.

Valendo-se de uma grande quantidade de novos dados arqueológicos que não eram conhecidos na época de Rosny, a escritora norte-americana Jean M. Auel decidiu dedicar-se a um projeto extremamente ambicioso, a saga dos Filhos da Terra, do qual Ayla, a Filha das Cavernas, é o primeiro volume. O título original do livro era The Clan of the Cave Bear - literalmente, 'O Clã do Urso da Caverna'. A saga, hoje, conta com pelo menos cinco volumes, mas, a partir do segundo, O Vale dos Cavalos, já começa a descambar para o mais elementar romance sentimental, com o impressionante painel do mundo pré-histórico servindo apenas de pretexto. Ayla, a Filha das Cavernas, entretanto, contém uma das narrativas mais poderosas e convincentes que já tive oportunidade de ler, onde os terrores e mistérios do mundo pré-histórico, e o esforço heróico do homem para lidar com a realidade que esse mundo lhe impunha, assumem dimensões épicas.

Todos nós já vimos aquela clássica gravura que ilustra a evolução da espécie humana, mostrando alguns dos nossos ancestrais andando em fila. Iniciando com algo parecido com um gibão, ela apresenta várias espécies primitivas e (se a memória não me trai) passa pelo homem de Neanderthal segurando uma ferramenta de pedra, pelo Cro-Magnon de lança ao ombro, e termina com o homem moderno, novamente de mãos vazias, como a sugerir que sua mais importante arma e ferramenta é o próprio cérebro. Não se trata de uma imagem totalmente incorreta, mas tem a falha de dar a impressão de que cada espécie se sucedia à anterior em linha reta, sem desvios ou ramificações, o que, é claro, não foi o caso: por vezes, ao longo das eras, até três ou quatro espécies diferentes de seres humanos tiveram de partilhar o mesmo ambiente. Na Europa pós-Era Glacial, há cerca de 35 mil anos, onde está ambientada a narrativa de Auel, conviviam duas espécies: o homem de Cro-Magnon - praticamente idêntico a você e a mim - e o homem de Neanderthal.


Este último, que muita gente pensa que era um semimacaco, na realidade possuía uma cultura bastante complexa, o que este livro retrata magnificamente. O fio condutor é a história de Ayla, uma menina da espécie Cro-Magnon, que, após ficar órfã durante um terremoto, é encontrada e adotada por um clã de neandertalenses - o Clã do Urso da Caverna, assim autodenominado porque, na religião em que acreditam, o Urso da Caverna é o mais poderoso de todos os espíritos, e é à sua proteção que eles se confiam. Para servir de ponte entre o mundo dos homens e o dos espíritos, cada clã tem um feiticeiro - o mog-ur -, que adota como totem o próprio Urso da Caverna.

São justamente Creb, o mog-ur do clã, e sua irmã Iza, a curandeira, que passam a fazer as vezes de pais para Ayla. Creb, aleijado desde a infância, nunca foi capaz de caçar, mas esse fato, que teria significado desgraça e vergonha para a maioria dos homens daquele povo, acabou proporcionando-lhe uma posição única em sua sociedade: sem precisar preocupar-se com as atividades comuns dos outros homens, pôde dedicar todo o seu tempo à meditação e à observação da natureza, e assim tornou-se o mais poderoso feiticeiro que o clã jamais teve. Graças à sua sensibilidade privilegiada, ele logo percebe que as diferenças entre aquela estranha criança e o povo que a adotou vão muito além da aparência.

É particularmente interessante a passagem em que Creb tenta ensinar a Ayla os segredos dos números - e fica espantado ao ver a menina "pegar" instantaneamente conceitos que ele próprio só conseguiu dominar após muitos anos de meditação profunda. Ocorre que Ayla, como todos de sua espécie, tem uma conformação cerebral diferente da de Creb e seu povo: enquanto o Homem de Neanderthal tinha a parte traseira do cérebro muito desenvolvida, o de Cro-Magnon desenvolveu mais a parte frontal. O resultado disso é que o neandertalense devia ter uma memória prodigiosa, mas era fraco em raciocínio abstrato, o que tornaria muito difícil imaginar qualquer número maior do que os que pudesse contar com os dedos, e quase impossível executar operações aritméticas. Já nós, não temos tanta facilidade para memorizar, mas, em compensação, desenvolvemos a matemática e o pensamento criativo, que tornaram possíveis todas as invenções. É importante salientar, entretanto, que isso não significa que sejamos mais "inteligentes" que aqueles nossos parentes hoje extintos: simplesmente, nossa inteligência se desenvolveu numa direção, e a deles, em outra.

Ayla é ensinada a portar-se e a trabalhar como fazem as mulheres dos clãs, tendo que superar inúmeras dificuldades para adequar suas diferenças ao tipo de comportamento que é esperado dela. O livro é cheio de detalhes fascinantes sobre a vida diária entre os neandertalenses, desde a procura e o tratamento das ervas medicinais até a fabricação de artefatos de sílex. As cenas de caçadas são espetaculares - a inteligência do homem triunfando sobre a força bruta do bisão, do mamute, do urso. As cerimônias religiosas oficiadas por Creb (em geral, assistidas apenas pelos homens) transmitem um sentido indescritível de profundo mistério, que não deixa de ser impressionante nem mesmo para a mente moderna "esclarecida", desde que se tenha alguma sensibilidade e não se queira julgar por padrões atuais a mentalidade de homens que viveram há 35 mil anos.

É também muito digna de nota a habilidade com que Auel desenha a personalidade de Ayla, que, por mais que se esforce sinceramente para agir como uma boa mulher dos clãs, não consegue deixar de transgredir tabus, porque a natureza simplesmente não a fez para viver como vive o povo que a acolheu, e esse problema segue num crescendo, até tornar impossível a sua permanência no clã onde se criou. Talvez esse conflito cultural seja parte do que falta aos livros seguintes da série, deixando um vazio que a autora procurou preencher com problemas românticos e muitas cenas de sexo. De qualquer forma, Ayla, a Filha das Cavernas, é uma leitura que recomendo plenamente.

sábado, agosto 13, 2005

A Última Legião


O escritor italiano Valerio Massimo Manfredi escolheu como seu "chão" o mundo antigo, tendo-se notabilizado entre nós com sua belíssima trilogia Aléxandros (para quem não sabe, é sobre Alexandre, o Grande, sendo o título a forma original do nome do grande conquistador – a tônica é no e e o x pronuncia-se ks), sobre a qual ainda espero escrever meus comentários. Não obstante, foi com A Última Legião que tive meu primeiro contato com a obra de Manfredi, e foi este o livro que me levou a considerá-lo um nome no qual se deve prestar atenção entre os expoentes atuais no campo da ficção histórica.

Experimentem pegar diversos livros, ou, mais ainda, filmes, cuja ação seja ambientada na Roma antiga, e ler as sinopses nas orelhas e contracapas. Em quase todos se leem coisas como "um retrato vivo e marcante da Roma antiga da época da decadência". Isso me irrita profundamente, pois demonstra apenas que quem escreve essas sinopses não entende coisíssima alguma de História. Seja qual for o período que o livro ou filme focalize – as Guerras Púnicas, a época de Júlio César, a perseguição aos cristãos sob Nero ou o tempo de Marco Aurélio e Cômodo – as sinopses sempre falam em "época da decadência", como se a civilização romana jamais tivesse feito coisa alguma em toda a sua história a não ser "decair". E foi essa a ideia que se popularizou: Roma como uma civilização de bêbados, loucos e libertinos. Ninguém jamais ouviu falar em Horácio Cocles, que defendeu a Ponte Sublícia, sozinho, contra todo o exército etrusco, ou em Caio Cévola, que queimou a própria mão direita para não entregar ao inimigo informações que prejudicassem seus compatriotas. Mesmo no tempo de Calígula ou de Nero, as orgias e demências desses dois imperadores e de seus protegidos nenhuma diferença faziam para o legionário anônimo que arriscava a vida em alguma fronteira bárbara pela grandeza do Império.

Por outro lado, pode-se dizer que A Última Legião, sim, é um romance que realmente fala sobre a decadência do Império Romano. Não que retrate nobres embriagados ou funcionários corruptos: ele simplesmente narra os acontecimentos de 476 d.C. – ano em que foi deposto Rômulo Augusto, último imperador a governar o Império Romano do Ocidente, acontecimento esse que, por convenção, marca o fim da civilização romana e da Antiguidade, bem como o início da Idade Média (não custa lembrar que o Império Romano do Oriente, ou Império Bizantino, com sede em Constantinopla, continuaria a existir por mais mil anos).

O livro é apresentado como se fossem as memórias de Myrdin Emreis, que os romanos chamam de Meridius Ambrosinus – um druida da Bretanha, que no ano fatídico desempenhava as funções de preceptor do imperador, que tinha, à época, apenas 13 anos de idade. Rômulo é filho do general Flávio Orestes, que foi, em tempos, assessor de Átila, conseguindo amenizar, ao menos um pouco, o impulso destruidor que os hunos traziam ao invadirem o Império. Mais tarde, Orestes veio a derrubar o fraco imperador Júlio Nepote, mas, ao invés de colocar o manto imperial sobre os próprios ombros, preferiu nomear o filho, reservando para si o comando supremo do exército. Numa época em que o exército romano era formado basicamente por guerreiros bárbaros recrutados, Orestes decidiu (assim nos conta Manfredi) criar uma unidade especial, à qual chamou Legio Nova Invicta, treinada nos moldes das antigas legiões, cuja força e disciplina levaram Roma a dominar o mundo. Quando o chefe germânico Odoacro – que havia feito carreira servindo ao exército romano – decide se rebelar, a Nova Invicta, depois de lutar bravamente, é massacrada por uma multidão de guerreiros bárbaros sob as ordens do líder rebelde, quase ao mesmo tempo em que a casa de Orestes é atacada por outro bando. Quase todos são mortos, mas o jovem imperador e seu mestre Myrdin, por alguma razão, são poupados e conduzidos vivos ao exílio na ilha de Capri, onde a outrora suntuosa e agora decadente Villa Júpiter, residência de verão construída pelo imperador Tibério, torna-se seu cárcere. É historicamente sabido que Rômulo foi realmente poupado e exilado – mas essa é a última informação que os historiadores podem oferecer sobre ele. Nada mais se sabe sobre sua vida desse ponto em diante, e é precisamente esse momento nebuloso que Manfredi escolhe para começar sua narrativa.

Entre os poucos sobreviventes da Última Legião estão três bravos que ainda não desistiram de considerar a si próprios soldados romanos: o espanhol Rúfio Vatreno, o africano Cornélio Batiato, e o único italiano de nascimento entre eles, Aureliano Ambrósio, conhecido como Aurélio – e deve-se observar que as origens diversas dos três heróis lembram o fato de que ser romano não era realmente uma questão de nacionalidade, mas de cultura, de identificação com uma civilização e suas ideias. Surge então o audacioso plano de seguir o imperador até seu cativeiro em Capri e tentar libertá-lo. Ao destemido trio juntam-se os gregos Orósio e Demétrio, e a jovem Lívia Prisca, exímia arqueira vinda de uma cidade recém-fundada na laguna próxima de Ravena: uma cidade chamada Venetia (pronuncia-se Venécia), construída sobre as águas e onde o único meio de locomoção viável são os barcos. Isso lembra alguma coisa??

Está armado o palco para uma aventura de tirar o fôlego, onde lances de ação vertiginosa se revezam com passagens contemplativas em que os personagens (especialmente o jovem Rômulo, orientado por seu mestre bretão) procuram entender o que se passa com o mundo que os cerca, pois ninguém ainda conseguiu assimilar verdadeiramente a noção de que o Império Romano, que durante séculos pareceu tão perene quanto o céu, não existe mais. Myrdin conduz os companheiros à sua terra natal, na vasta e misteriosa ilha que foi outrora a província mais setentrional do Império, onde ainda os aguarda uma última batalha, e onde a memória de seus feitos, através da bruma dos séculos, irá dar origem a uma nova lenda.

Um detalhe desagradável, mas que não é culpa do autor, é o fato de que, na tradução brasileira, a tentativa de utilizar uma linguagem "de época", que correspondesse melhor ao clima da história, resultou numa infinidade de frases gramaticalmente defeituosas – a triste realidade é que, hoje em dia, praticamente ninguém mais sabe conjugar corretamente os verbos nas pessoas tu e vós.

Para finalizar, uma curiosidade: na nota de agradecimento no começo do livro, o autor "entrega" que já escreveu a história pensando numa futura adaptação para o cinema, o que torna muito lógicas as sequências de ação realmente "visuais" e "cinematográficas" de que o romance está repleto. E quando, meses depois de ter lido A Última Legião, vi no cinema o trailer de Rei Arthur, que estava prestes a ser lançado, confesso que, antes de ficar sabendo do que se tratava, pensei que já fosse o livro de Manfredi transformado em filme!... As paisagens britânicas, aquele guerreiro de elmo e armadura romanos, uma bela arqueira, tudo parecia bater. Leiam o livro e vejam se não me dão razão!... Por fim, faço votos de que o filme A Última Legião não tarde muito a surgir.

sábado, abril 30, 2005

Contos Fantásticos do Século XIX Escolhidos por Ítalo Calvino

Alguns anos atrás, li um ensaio bastante curioso, de autoria do escritor americano Howard Phillips Lovecraft (1890-1937), intitulado O Horror Sobrenatural na Literatura. Publicado postumamente em 1945, o livro pretendia ser um guia para os interessados em conhecer as obras e os autores mais importantes da moderna literatura fantástica ― campo do qual o autor podia falar com conhecimento de causa, pois, para quem não o conhece, Lovecraft, discípulo aplicado de Edgar Allan Poe, é hoje considerado um dos nomes mais importantes da literatura de terror e fantasia de todos os tempos nos Estados Unidos. Esse ensaio era uma leitura muito interessante, mas acabava deixando no leitor (ao menos no leitor brasileiro) um sentimento de frustração, já que a vasta maioria dos trabalhos citados por Lovecraft nunca tinham sido publicados por estas plagas, nem havia perspectiva próxima de que viessem a sê-lo, pois a literatura de imaginação nunca foi considerada, dentro do restrito mercado editorial brasileiro, um campo em que valesse a pena investir, já que não falava ao gosto da maioria do ainda mais restrito público leitor.

Ultimamente, entretanto, pode-se arriscar dizer que a situação está mudando. A tremenda popularidade que a obra de J. R. R. Tolkien começou a ganhar no país por volta de meados dos anos 90, e que estourou de uma vez por todas com o lançamento da vitoriosa trilogia cinematográfica O Senhor dos Anéis, trouxe em sua esteira uma ampliação radical do mercado potencial para a literatura de imaginação como um todo. O estilo que em alguns círculos é chamado de "fantasia medieval", do qual Tolkien é o maior expoente, era praticamente desconhecido no Brasil até há alguns anos ― já agora, a maioria das livrarias tem dezenas de títulos do gênero para oferecer, sendo alguns até de autores nacionais. E não causa estranheza que o leitor já acostumado com a literatura de fantasia através de Tolkien e seus seguidores, tenha maior facilidade em interessar-se pelo lado mais sombrio da ficção fantástica.

Assim, por meio da antologia Contos Fantásticos do Século XIX Escolhidos por Ítalo Calvino, eu, e presumo que um bom número de outros leitores do ensaio de Lovecraft, tive por fim o prazer de realmente conhecer diversas das histórias resenhadas com tanto entusiasmo pelo autor americano. O nome do organizador da antologia já há que ser considerado uma recomendação: Calvino, autor de uma obra mundialmente aclamada, tanto como ficcionista quanto como teórico da literatura, escreveu, entre muitas outras coisas, uma pequena pérola intitulada Por Que Ler os Clássicos, livro que deve fazer parte do arsenal de todos os que trabalham na área da literatura ou dos que simplesmente a amam, pois nos abastece com uma fartura de respostas para dar aos onipresentes imbecis (desculpem-me, mas a palavra é essa mesmo) que vêm perguntar "para que serve" ler Homero, Cervantes ou Shakespeare. Com o estofo proporcionado por sua vasta bagagem de conhecimentos sobre literatura universal, Calvino selecionou com rara felicidade uma série de textos que representam o que de melhor se produziu em matéria de ficção fantástica no século XIX.

A antologia contempla desde textos e autores famosos como os americanos Nathaniel Hawthorne (O Jovem Goodman Brown) e Edgar Allan Poe (O Coração Denunciador) até os praticamente desconhecidos, ao menos entre nós, como o polonês Jan Potocki (História do Demoníaco Pacheco), além de cobrir uma surpreendente diversidade de estilos dentro do que se convencionou chamar "horror gótico": temos oportunidade de percorrer desde os exageros emotivos e estilísticos (intencionais?) do romantismo alemão (E. T. A. Hoffmann com o seu O Homem de Areia), passando por climas sombrios como no já citado Goodman Brown de Hawthorne, e indo até coisas que dificilmente seríamos capazes de classificar como "horror", pois o efeito que produzem é bem outro, como no caso da hilária O Nariz, do russo Nikolai Gogol. Há ainda textos nos quais o macabro e o engraçado se entrecruzam de forma magistral, como em A Mão Encantada, de Gérard de Nerval ― aliás, dono de um estilo absolutamente delicioso, cheio de frases pitorescas e tiradas engraçadas. As histórias encadeiam-se umas nas outras sem a menor intenção de ilustrar uma "evolução" da literatura fantástica ao longo do século, mas antes uma variação natural de tons, conforme a índole de cada autor e o ambiente cultural onde seu talento se desenvolveu. Calvino faz questão de nos mostrar tanto autores cujos nomes são automaticamente associados ao conto fantástico ― Poe ou Guy de Maupassant, por exemplo ― quanto aqueles que se celebrizaram em outros ramos da literatura, mas que eventualmente se dedicaram a explorar o campo do insólito: Hans Christian Andersen, Balzac, Walter Scott...

Se tivesse que escolher as melhores histórias do livro, eu apontaria A Vênus de Ille, de Prosper Merimée, que expressa com tremenda força ― mas sempre com sutileza ― a sensação de um horror que ressurge depois de ter ficado adormecido desde a Antiguidade, tudo girando em torno do achado de uma antiga estátua romana; Amour Dure, em que um jovem estudioso de História se vê apaixonado por uma dama bela e terrível, morta há trezentos anos; O Demônio da Garrafa, de Robert Louis Stevenson, que consegue a proeza de manter o leitor acorrentado à narrativa, mesmo lidando com um tema tão batido quanto o que lhe dá título; quanto a Poe e Hawthorne, nem é preciso dizer que seus trabalhos estão entre os melhores.

Mas a melhor história de todas é a que Calvino, sabiamente, reservou para o fim: Em Terra de Cego, do grande H. G. Wells. O conto fala de um vale encravado no meio dos Andes, onde um grupo de exilados, mestiços de espanhóis e índios, se refugiou no século XVI, e onde existe todo o necessário para que uma pequena população humana viva em paz e fartura ― com o inconveniente de que, por alguma razão misteriosa, lá todas as crianças nascem cegas. Devido à erupção de um vulcão que fecha sua única saída, o vale acaba ficando isolado do mundo exterior, e durante três séculos só nascem lá pessoas cegas. Um dia, já no século XIX, Nuñez, um guia de alpinismo, perde-se de seu grupo e é arrastado por uma avalanche para dentro do vale. Por algum tempo ele acredita que, pelo fato de poder ver, será admirado e invejado por aquele bizarro povo cego ("Em terra de cego, quem tem um olho é rei"), mas logo se decepciona: depois de catorze gerações só de cegos, os habitantes do vale esqueceram tudo sobre o mundo exterior. Ao longo dos séculos surgiram entre eles alguns de espírito filosófico que começaram a questionar as lembranças transmitidas pelos ancestrais, passaram a considerá-las meras crendices ("Por que temos que crer em coisas que nenhum de nós nunca viu?"), e acabaram por negá-las completamente e por convencer os demais. Agora, todos ali ignoram completamente que existe um mundo lá fora: para eles, o universo é aquele vale. E não é tudo: palavras como luz e trevas, dia e noite, olhar, ver, simplesmente não existem em seu vocabulário, nem tampouco a palavra cego, pois esqueceram por completo tudo o que diz respeito ao sentido da visão. As histórias de Nuñez sobre o mundo exterior soam para eles como delírios de um louco, assim como tudo o que ele lhes diz sobre poder "ver". A história é uma alegoria extremamente inteligente que critica certos postulados filosóficos e a maneira como geralmente o conhecimento humano é construído.

É claro que nem tudo é perfeito: há coisas sem as quais o livro poderia passar muito bem, como Os Buracos da Máscara, de um tal Jean Lorrain, texto sem pé nem cabeça cujo único mérito é ser curto, e que simplesmente descreve as alucinações da mente de um drogado, ou Os Amigos dos Amigos, de Henry James ― não tenho a menor intenção de pôr em dúvida a importância ou os méritos de James, mas esse conto em particular, a meu ver, não tem por que ser considerado literatura fantástica, já que as brevíssimas menções que faz a aparições fantasmais não passam de um pretexto para páginas e mais páginas descrevendo as inseguranças sentimentais da heroína narradora.

Apesar desses tropeços, cada conto do livro reserva ao leitor uma ou várias surpresas, e, como guia nessa viagem pelo mundo da imaginação visionária, dificilmente poderíamos querer alguém melhor que Ítalo Calvino, que nos situa no contexto através de uma interessantíssima introdução, além de ter escrito para cada história um pequeno prefácio que fornece informações importantes sobre o autor ― embora seja muito incômodo o fato de o organizador, por alguma razão misteriosa, ter decidido várias vezes bancar o desmancha-prazeres, contando ao incauto leitor o final do conto que ele ainda nem começou a ler. Depois de três ou quatro dessas, passei a adotar o expediente de simplesmente pular o prefácio e depois voltar atrás para lê-lo ― após ter terminado o conto, é claro. Recomendo aos demais leitores fazer o mesmo, e basta tomar esse pequeno cuidado para ter garantidos alguns momentos de arrepios inesquecíveis.

domingo, janeiro 23, 2005

Alexandre


Ontem, sábado, fui ao cinema ver Alexandre, de Oliver Stone. Suponho que devamos agradecer a Ridley Scott e a seu excelente Gladiador pelo fato de os filmes épicos (um gênero que, poucos anos atrás, qualquer um teria dito que estava morto) terem voltado com força total, o que eu, pessoalmente, considero um acontecimento muito feliz, embora, claro, a qualidade dessas produções varie, de modo que tivemos desde os ótimos Gladiador e Rei Arthur até aberrações como Troia... Mas vamos ao que interessa.

A primeira coisa que ficou evidente após os primeiros 30 ou 40 minutos assistindo a Alexandre foi que ele dificilmente irá se tornar um campeão de bilheteria, pois não tem os ingredientes que tornam um filme palatável para o grande público: durante a exibição, várias pessoas se levantaram e foram embora. Trata-se de um filme bastante pesado, intenso (o espectador comum dirá simplesmente que é chato), e, para completar, a impressão que tive foi de que quem já não conhecesse previamente ao menos as linhas gerais da trajetória do rei da Macedônia dificilmente entenderia muito bem o que a tela estava mostrando. É óbvio que houve pesquisa séria, e, historicamente, o filme é bastante acurado, o que foi um alívio constatar, pois assim, mesmo que ele não acrescente muito, pelo menos não fará ninguém sair do cinema com noções absurdas. Sabe-se que Alexandre tinha como seu principal herói Aquiles, de quem se acreditava descendente, e confesso que eu estava com fortes receios de que o Alexandre de Colin Farrell se mostrasse digno do Aquiles de Brad Pitt, mas, graças aos "deuses", não foi o que se viu – não graças ao desempenho de Farrell, que não se mostra à altura do papel, mas, de todo jeito, se Alexandre não é um filme brilhante, também não decepciona.

Uma coisa que se deve elogiar é o fato de o filme ter captado com eficiência alguns detalhes sutis mas importantes a respeito do personagem, particularmente seu relacionamento complicado com seus pais e a educação esmerada que recebeu. Pessoalmente, eu gostaria de ter visto o momento em que, ao receber a notícia de mais uma vitória militar de seu pai, o rei Filipe, Alexandre, ainda menino, ter-se-ia voltado para seus companheiros e lamentado: "Meu pai vai conquistar tudo, meninos, e não deixará para nós nenhum feito grandioso!" O que geralmente chama a atenção das pessoas nesse caso é a ambição demonstrada pelo jovem príncipe; a mim, o que mais impressiona é o fato de ele não ter dito "para mim", e sim "para nós", mostrando seu desejo de que seus companheiros de brinquedos de então viessem a ser, no futuro, seus seguidores nos grandes feitos que esperava realizar, pois estava perfeitamente ciente de que, sozinho, nada conseguiria fazer. É essa a maneira de pensar de um verdadeiro líder.

Comentei que o filme mostra a educação cuidadosa dada ao jovem Alexandre, mas aí existe um senão: em certo momento, seu mestre, Aristóteles (interpretado por um envelhecido Christopher Plummer) declara que "apesar de pertencerem a uma raça inferior, os persas governam quatro quintos do mundo conhecido". "Raça inferior"?! Depois dessa, fiquei antevendo a hora em que o velho sábio de Estagira iria bater os calcanhares e gritar heil Hitler! Não vou tentar exibir conhecimentos que não tenho, pois ainda não li as obras de Aristóteles e não sei se uma afirmação dessas encontraria respaldo nelas, mas, à luz de tudo o que sei sobre o pensamento greco-romano, ela é muito estranha. Para os romanos, pelo menos, racismo era um conceito alienígena – e, como eles herdaram boa parte de suas crenças e convicções dos gregos... Não quero dizer com isso que o modo de pensar deles pudesse ser considerado politicamente correto nos dias de hoje; embora não classificassem os seres humanos em superiores e inferiores pela raça, os romanos praticavam o culturalismo, que, para olhos modernos, é quase tão condenável quanto o racismo: a superioridade, para eles, não estava na cor da pele ou dos olhos, mas na educação que a pessoa recebesse. Um homem podia ser negro retinto e ter nascido numa palhoça em qualquer savana empoeirada da África: desde que tivesse uma boa educação clássica e aprendesse a portar-se como um verdadeiro "cidadão", nenhum romano esclarecido se recusaria a tratá-lo como um igual. É verdade, porém, que isso pode dever-se ao fato de os romanos terem tido muito mais contato com povos e culturas exóticas que os gregos, sendo levados pela necessidade a se tornarem mais tolerantes. Agradeço se alguém que me ler puder enviar informações a respeito.

Voltando a falar do filme, achei o elenco bem irregular. Anthony Hopkins, no papel de Ptolomeu, está, como sempre, impecável, mas aparece pouco. Colin Farrell, como Alexandre, parece perdido e desnorteado durante a maior parte do tempo. Angelina Jolie está belíssima e, por que não dizê-lo, venenosa interpretando a ardente e manipuladora rainha Olímpia, mãe de Alexandre, enquanto Val Kilmer encarnou perfeitamente o pai, Felipe, que, apesar de ter sido um bom rei, hábil general e um dos homens mais astutos de sua época, nunca deixou de ser um tipo grosseiro – um "bárbaro", como não se cansava de dizer o célebre orador ateniense Demóstenes, seu inimigo jurado. E Jared Leto, como Heféstion, é pouco mais que uma figura decorativa, apesar da óbvia pretensão do diretor de criar polêmica em torno da discutida relação entre Alexandre e esse seu companheiro de infância: seriam eles amigos fraternos ou "algo mais"? Oliver Stone aposta no "algo mais", o que é, no mínimo, uma iniciativa corajosa.

O filme também mostra o que, segundo os historiadores antigos, causou a perdição de Alexandre: as concessões cada vez maiores que começou a fazer aos costumes orientais com que foi tendo contato ao longo de suas conquistas – concessões essas que dizem respeito tanto a sua vida pessoal quanto ao modo de agir como monarca e comandante militar. Inicialmente um homem comedido em tudo, acostumado desde a infância a uma alimentação frugal, à vida ao ar livre e ao desconforto (a despeito de seu berço real), acabou adotando um modo de vida dissoluto, varando noites e mais noites em orgias e bebendo quantidades enormes de vinho, o que acabaria minando sua saúde e causando sua morte antes de completar 33 anos. Já no relacionamento com seus seguidores, o discurso do general Clito pouco antes de ser assassinado pelo rei num acesso de cólera (essa cena é histórica) traduz perfeitamente o descontentamento que foi crescendo entre os guerreiros de Alexandre: "Lembro-me do tempo em que conversávamos olho no olho, como homens! Agora temos que implorar a funcionários estrangeiros para ter uma palavra com nosso próprio rei!" De fato, Alexandre, que começara sendo tão amado por seus soldados exatamente porque eles sentiam que ele era, antes de mais nada, um deles, passou a distanciar-se cada vez mais de seus homens, exigindo, inclusive, que todos o saudassem com o tradicional ato da prosternação. Para os persas e outros asiáticos, isso era uma simples regra de etiqueta, perfeitamente natural na presença da realeza; já para macedônios e gregos, acostumados a tratar em pé de igualdade com seus líderes, ajoelhar-se diante de um homem, rei ou não, era visto como uma grave indignidade.

Apesar dos defeitos que tem, e dos quais o maior é o próprio Colin Farrell, o filme de Stone, visualmente, beira a perfeição – a cena em que Alexandre enfrenta um elefante de guerra nas florestas da Índia vai ficar impressa em minha mente até o fim dos meus dias, e o predomínio dos tons vermelhos nas tomadas seguintes parece dizer que, depois de tão terrível batalha, tudo parecia, aos olhos de Alexandre, estar envolto numa névoa de sangue. Também merece ser destacada a parte que mostra o esforço desesperado de Alexandre e seus comandantes para evitar que os soldados entrassem em pânico diante de uma carga de elefantes – monstros gigantescos e aterradores, dos quais, no máximo, tinham ouvido falar. Porém, de acordo com os historiadores, não foi essa a primeira vez que o exército de Alexandre enfrentou elefantes, pois o exército persa que já tinham enfrentado e vencido por mais de uma vez também os utilizava.

Detalhe curioso: junto ao leito de morte de Heféstion, tentando animar o amigo moribundo, Alexandre fala das conquistas que projeta para o futuro: depois de conquistar a Ásia, ele almeja a Europa (e quem pode dizer que não o teria conseguido, caso tivesse vivido mais vinte ou trinta anos?). Refere-se à Sicília e aos romanos, a quem considera bons lutadores, mas que tem certeza de poder conquistar. Naquela época, dificilmente alguém poderia imaginar que, um século e meio depois, seriam os descendentes dos mesmos romanos a quem Alexandre sonhava subjugar (e que, na época dele, não passavam de uma tribo bárbara) que conquistariam a Macedônia. A batalha de Pidna, em 168 a. C., pôs fim à Terceira Guerra Macedônica e também à própria Macedônia como reino e Estado independente, tornando-a, na prática, uma província romana. Seu último rei, Perseu (nada a ver com o herói mítico de mesmo nome) foi levado para Roma como prisioneiro e apresentado em correntes no desfile triunfal de seus inimigos vitoriosos.

Houve dois pontos, aliás, que, muito caros a Alexandre, seriam mais tarde retomados pelos romanos. O primeiro foi o sonho de um império universal, que reunisse toda a humanidade (do mundo conhecido na época, claro está) sob um único governo, o que asseguraria uma paz sólida e duradoura; Alexandre não chegou a consegui-lo, já que seu império se desfez quase imediatamente após sua morte. Os romanos chegariam mais perto desse objetivo. O outro ponto era a importância de ter um exército não apenas aguerrido, mas disciplinado e bem treinado: tanto Alexandre quanto os generais de Roma mostrariam, de forma inequívoca, que um exército poderia vencer, mesmo em inferioridade numérica, desde que fosse capaz de atuar como um grupo coeso, reagindo aos comandos como um único organismo e seguindo um plano de batalha engenhoso.

Para terminar meu comentário sobre o filme especificamente, posso dizer que ele pode ser uma experiência interessante para quem já leu sobre Alexandre e conhece sua história - mas quem não a conhece, não é através desse filme que irá conhecer. Há muitos bons livros sobre o personagem; mesmo que vocês não sejam aficionados por livros de História propriamente ditos, há uma ampla variedade de romances, alguns deles fascinantes, que apresentam a vida do jovem conquistador com maior ou menor grau de precisão histórica. Sugiro ler vários deles e confrontá-los com alguma biografia resumida de Alexandre, para ter uma noção de onde um ou outro autor permitiu-se alguma licença poética.