terça-feira, fevereiro 19, 2013

Rhóor, o Invencível

Ah, ser um leitor pré-adolescente, cheio de inocência, mas já muito consciente de todo o bem que os livros podiam fazer a quem lhes dedicasse um pouco de tempo e atenção… E, ao mesmo tempo, não estar (ainda) preocupado com coisas "sérias" como adquirir cultura, de modo que encarava o ato de ler exatamente do modo como toda criança deveria encará-lo: como uma grande e inesgotável brincadeira, melhor que qualquer outra - embora já estivesse, sim, construindo minha cultura, sem saber, enquanto acreditava que tudo o que estava fazendo era me divertir. Para completar, tinha a sorte de não depender apenas da biblioteca da escola e dos livros que existiam em casa: ao lado do condomínio onde morava na época, ficava uma unidade do SESI (Serviço Social da Indústria), onde havia, entre muitas outras coisas, uma biblioteca, não muito grande, mas recheada de itens empolgantes para um garoto-leitor com o meu perfil.

Foi lá que vi pela primeira vez a coleção Safári, publicada em Portugal durante os anos 70, pela editora Verbo, mediante acordo com a francesa Alsatia. Tratava-se de romances de aventuras com temas e estilos variados, todos escritos por nomes consagrados da literatura juvenil na França. Ao longo do ano que se seguiu a essa descoberta, li vários dos títulos da coleção, e todos os que li me ficaram na memória: O Passageiro da Noite, de Jean-Paul Benoit, com seu clima de mistério e heroísmo em meio à paisagem majestosa dos Alpes franceses; as aventuras de escotismo O Bando dos Ayacks e O Castelo dos Vendavais, ambas escritas por Jean-Louis Foncine e transbordantes de otimismo e fé no poder transformador da juventude (ah, como devia ser bom viver numa época e num lugar onde era possível acreditar nisso); e a ficção científica Nascido no Espaço, de Geoffrey X. Passover (também francês, apesar do pseudônimo). Com exceção deste último, todos eram abrilhantados pela arte do legendário Pierre Joubert, um ilustrador tão querido na época, que chegava a ser citado pelos próprios personagens de O Castelo dos Vendavais.

Não obstante, o primeiro volume da coleção que li foi a aventura pré-histórica Rhóor, o Invencível, por um certo Michel Grimaud, sobre quem eu nada sabia até o dia de hoje: quando garoto, só a obra em si é que me interessava, de modo que não me preocupava com informações sobre o autor - e, mesmo que assim não fosse, pouco teria podido fazer, já que o livro nada dizia sobre o tal Grimaud, e na época não havia Google nem Wikipédia. Hoje, então, ao me sentar para escrever este post, lembrei de lançar mão dessas maravilhas modernas, e descobri, não sem surpresa, que "Michel Grimaud" era o pseudônimo coletivo de um casal de escritores: Jean-Louis Fraysse (1946-2011) e Marcelle Perriod (1937-2011), e que eles possuem uma obra extensa, tanto no campo da literatura para adultos quanto para jovens, sendo, ainda, uma referência da ficção científica em seu país. Além de tudo, eis dois afortunados seres humanos: encontrar um amor e uma parceria criativa ao mesmo tempo é felicidade reservada a poucos.

Mas creio que já é hora de começar a falar do livro!

A história aqui narrada faz lembrar a do Êxodo, pois, como no segundo livro da Bíblia, há um povo em busca de uma terra prometida. Os Rhóors são uma das tribos de caçadores-coletores que tentam sobreviver numa Europa selvagem, que ainda esperaria dezenas de milênios para ser apresentada às primeiras civilizações. Anos antes do início dos acontecimentos relatados no romance, transformações climáticas, do tipo que era comum naqueles tempos pós-Era Glacial, causaram mudanças ecológicas que privaram a tribo das fontes de sustento de que estava acostumada a depender, nas terras que até então habitava, obrigando-a a vagar por regiões inóspitas, dominadas por povos nem sempre amistosos, em busca de um lugar onde possam viver e, quem sabe, reencontrar a antiga prosperidade. Seu chefe, Rhóor, o Vesgo, decide tomar sobre si o ônus da busca, e parte, acompanhado apenas pela própria família, enquanto a tribo espera, lutando contra a fome, o frio e diversos tipos de perigos. Eventualmente, a busca alcança êxito: em paragens muito distantes, Rhóor descobre uma região ampla e verdejante, com clima ameno e caça abundante, e ainda não reclamada por nenhuma outra tribo. O líder, então, incumbe o filho mais velho de fazer o longo caminho de volta e guiar seu povo até a nova pátria.

O jovem de 17 anos tem o mesmo nome que sua tribo e seu pai. Já é um caçador experiente, muito hábil no manejo do arco - arma que representa um trunfo para os Rhóors na competição pela sobrevivência, já que as outras tribos não a conhecem -, e sua velocidade e destreza valeram-lhe o cognome de O Ágil. Além desses talentos, ele confia, para o sucesso de sua arriscada missão, na ajuda de uma aliada muito especial: Táa, uma fêmea de lobo-tigre (um sinônimo hoje em desuso para guepardo ou cheetah), pois, nessa época em que alguns grupos humanos estavam apenas começando a domesticar cães para caça, guarda e companhia, outra peculiaridade dos Rhóors é a de preferirem os guepardos para essas funções. Juntos, os dois amigos deverão percorrer milhares de quilômetros, atravessando planícies desoladas, montanhas e florestas, precavendo-se contra animais perigosos, tribos hostis e, sim, contra o meio-termo entre as duas coisas: assustadores homens-fera, remanescentes de estágios mais primitivos da evolução humana, que ainda perambulam pelo planeta, também eles lutando para sobreviver - uma luta que, fatalmente, teria vencedores e perdedores.

Rhóor, o Invencível, por sinal, retrata uma era em que todas as ambições da humanidade resumiam-se ao simples feito de sobreviver: riqueza, poder e outras tentações que obcecariam gerações futuras, mal eram concebidas pela mente do homem pré-histórico. A cada amanhecer, esse homem renovava sua determinação de mobilizar todas as forças que pudesse, com o único objetivo de manter-se vivo, a si e aos que dele dependiam, até o pôr-do-sol, e, se o conseguisse, isso era a melhor coisa que poderia esperar (sem contar que ficar vivo entre o pôr e o nascer do sol podia ser ainda mais difícil). Todo o tempo, energia e inteligência que os seres humanos possuíssem tinham que ser direcionados a essa única finalidade, apenas para que houvesse uma chance. Sabendo que as condições eram essas, podemos, a princípio, achar estranha a informação de que também foi nessa época que surgiram a música, a dança, as artes plásticas, a literatura, as competições atléticas, e diversas outras atividades nas quais estamos acostumados a pensar como sendo de lazer, desporto ou enriquecimento cultural - "luxos" que o homem só pode se permitir depois que a bendita sobrevivência já está assegurada. Porém, existe uma explicação bastante simples para essa aparente contradição.

Não fiquem demasiado surpresos se digo que a literatura nasceu na pré-história: por mais curioso que isso pareça, ela é muitíssimo mais antiga que a invenção da escrita. Pessoas que se sentavam à volta de uma fogueira à noite e contavam histórias, já estavam fazendo literatura, embora com objetivos a princípio muito pragmáticos: as histórias serviam para que os caçadores trocassem informações úteis entre si e as transmitissem aos membros mais jovens da tribo, que, a seu tempo, também seriam caçadores. O mesmo se dava com as outras atividades: cantos e danças destinavam-se a agradar aos espíritos da natureza (a primeira noção que o homem teve a respeito da divindade) para ganhar suas boas graças, a fim de que propiciassem boas caçadas e protegessem o povo contra doenças e desastres; desafios de corrida, lutas, arremesso de pesos e assim por diante, eram para aprimorar força e habilidade para a caça e o combate. É claro que, com o tempo, as tribos foram desenvolvendo o gosto por tais coisas, descobrindo o prazer que existia em ouvir boas histórias, em assistir a uma dança ou a uma competição, ou em delas participar, e também foi ficando evidente que algumas pessoas tinham um talento acima da média para alguma dessas atividades, e com isso foram começando a granjear popularidade e admiração - e é graças a isso que hoje temos Homero, Shakespeare, Beethoven, os Jogos Olímpicos, e outras riquezas inestimáveis que fazem parte de uma herança cultural que pertence a toda a humanidade; porém, o importante para nós, no momento, é compreender que as artes, em suas origens, tinham uma função prática, e, como tudo o que se fazia naquela época, eram um esforço a mais na luta constante pela sobrevivência. Isso incluía, naturalmente, as artes plásticas, como Rhóor, o Invencível, nos mostra de maneira interessante.


Ocorre que o artista pré-histórico que dedicava longas horas de trabalho a pintar figuras de animais nas paredes da caverna onde sua tribo vivia, muito provavelmente não o fazia movido por um simples desejo de morar num lugar mais bonito. Antropólogos acreditam que essas imagens tivessem finalidades mágicas: desenhar um animal, da maneira mais vívida e acurada possível, era considerado uma forma de capturar-lhe o espírito, reduzindo suas defesas e tornando-o mais fácil de abater. Isso explica, inclusive, por que a figura humana aparece tão raramente na arte rupestre, e, quando aparece, é de forma tosca, num contraste gritante com as minuciosas e coloridas representações de bisões, cavalos, cervos e outros animais de caça. Saber pintar, portanto, significava ter poder. O jovem Rhóor aprende essa arte com um ancião de uma tribo que encontra durante suas andanças. Mais tarde, é feito prisioneiro por outra tribo não tão amigável, liderada por Bisão Furioso, um gigante embrutecido em quem esse nome cai perfeitamente. A tribo de Bisão Furioso especializou-se em viver de rapina, chegando ao ponto de depender mais, para sua sobrevivência, de saques e extorsões do que da própria caça. Aprisionado entre eles, e com pouca perspectiva de escapar vivo, Rhóor propõe trocar sua liberdade pelo segredo do poder das imagens - mas antes, terá que convencer os salteadores de que a magia funciona.

Mesmo sem disporem de embasamento científico comparável, por exemplo, ao de uma Jean M. Auel, Fraysse e Perriod escreveram uma saga pré-histórica cativante e eficiente, capaz de apresentar ao leitor jovem um painel convincente (ainda que um tanto romantizado) do mundo da época. Todos os pontos principais que uma pessoa precisa saber para adquirir a compreensão do que foi a pré-história são abordados: o fato de que, durante a maior parte de sua existência, o homem adaptou-se aos ritmos e regras da natureza para sobreviver, vendo-se como parte dela, não como seu dono; os graus diversos de desenvolvimento técnico e cultural observáveis entre as diferentes tribos (já que o progresso humano não se deu de maneira simultânea e uniforme em toda parte); a importância essencial que tiveram a cooperação e a solidariedade para impedir que a humanidade fosse extinta no confronto desigual com o meio ambiente hostil; e, é claro, a já citada luta incessante pela sobrevivência. O ponto mais discutível que encontrei foi a questão do arco: é verdade que em lugar algum do livro é explicitado o período exato em que a história estaria ambientada, mas, se for o que as evidências parecem apontar - até alguns milênios depois do fim da última Era Glacial -, então o arco é um anacronismo, pois só seria inventado bem mais tarde. Também não parece muito plausível que ele fosse a "arma secreta" de uma única tribo, e encarado com assombro por todas as outras, como se fosse algo além de sua compreensão, quase uma habilidade sobrenatural. É claro que fabricar e manejar um arco não são coisas fáceis, exigem uma série de conhecimentos e muita, muita prática, mas, ainda assim, trata-se de uma arma conceitualmente simples: mesmo para uma pessoa que não o conhecesse, bastaria observar alguém utilizando-o para compreender o princípio e poder tentar imitar. As primeiras tentativas, fatalmente, seriam desastrosas, mas nada que persistência e paciência não resolvessem. E pronto: o "monopólio Rhóor do arco" estaria quebrado. Se a intenção (muito natural) dos autores era que a tribo do herói possuísse um diferencial em relação às outras, essa foi uma escolha um tanto ingênua. Porém, isso não tira os méritos de Rhóor, o Invencível, que continua sendo diversão de primeira.

Em tempo: a capa e as duas ilustrações do livro que aqui reproduzo são de Pierre Joubert, só para dar a meus leitores uma pequena amostra do trabalho desse admirável artista.

terça-feira, janeiro 15, 2013

O Hobbit: Uma Jornada Inesperada


Eu quis reler O Hobbit, de propósito, durante os últimos dias antes da estreia do primeiro filme da nova trilogia cinematográfica de Peter Jackson, porque desejava ter a chance de, por uma última vez, reviver a história com as minhas próprias imagens, aquelas que um leitor vai construindo na imaginação à medida em que percorre as páginas de um livro de que gosta. Não tinha qualquer dúvida de que Jackson, mais uma vez, não iria frustrar as expectativas (inevitavelmente, altas) que todos nós, fãs de Tolkien espalhados pelo mundo, estávamos depositando nele; mas, ao mesmo tempo, as minhas visões pessoais de O Hobbit eram-me, e ainda me são, muito caras. Afinal, foram as primeiras visões que tive da Terra-média, nos meus já distantes 17 anos, quando só havia a tosca e hoje quase esquecida edição da Artenova (confiram a capa logo abaixo) e, no Brasil, apenas os raros iniciados em literatura de fantasia sabiam o que diabos vinha a ser um hobbit ou quem foi John Ronald Reuel Tolkien.

Não me considero um grande conhecedor da obra do Professor, li apenas O Hobbit e O Senhor dos Anéis – o suficiente para me apaixonar, mas não para ficar à vontade em qualquer desses fóruns em que até o mais neófito participante sabe tudo sobre as diferentes eras da história de Arda, sobre os Valar, os Noldor e assim por diante. Tentei os Contos Inacabados e, depois de um bocado de esforço, tive que admitir que mesmo os fragmentos propriamente ditos deixados pelo mestre pressupunham um nível de conhecimento bem superior ao que eu possuía. Já as introduções e notas redigidas por Christopher Tolkien na qualidade de compilador da obra do pai, revelaram-se um inextricável emaranhado de referências misteriosas e nomes exóticos (por vezes, até mesmo determinar se tais nomes referiam-se a pessoas ou a lugares era difícil). Concluí que esse é o livro que o fã deve deixar para ler por último, como uma espécie de doutorado em Tolkien. Talvez um dia eu esteja à altura do desafio. Para não dizer que não consegui aproveitar nada, há um fragmento muito interessante que quem leu O Hobbit e O Senhor dos Anéis não terá dificuldade em acompanhar: chama-se À Procura de Erebor e seu lugar na cronologia seria dentro de O Retorno do Rei, embora trate basicamente de fatos anteriores ou simultâneos aos narrados em O Hobbit. Enquanto todos descansam em Valfenda ('Rivendell') após os lances finais da Guerra do Anel, Gandalf finalmente abre o jogo com Frodo, Merry, Pippin e Gimli sobre os acontecimentos que cercaram o início daquela jornada mais de 60 anos antes, em especial sobre o porquê de ele próprio haver considerado tão indispensável, na época, fazer com que Bilbo estivesse junto de Thorin e seus companheiros em sua busca pelo antigo tesouro dos anões.

Se Contos Inacabados é o livro que deve ficar por último, O Hobbit é a iniciação ideal ao universo de Tolkien, e, depois de ver a primeira parte de sua adaptação para a tela, ficou evidente que o voto de confiança dado a Peter Jackson não foi baldado... Embora eu não possa negar que fiquei seriamente receoso (e duvido que eu tenha sido o único) ao ouvir a notícia de que não seria um, mas dois filmes – e, mais tarde, a da mudança de planos: não seriam dois, não... Seriam três! Por Júpiter! Depois de suar para comprimir as cerca de 1200 páginas (variando conforme a edição) e a espantosa complexidade de O Senhor dos Anéis em três filmes com pouco menos de três horas cada – e tê-lo feito com tanta competência, a ponto de merecer o aplauso da maioria dos apaixonados e sabidamente exigentes fãs de Tolkien –, iria Jackson rebaixar-se a fazer o inverso, espichando artificialmente a modesta extensão e o enredo simples de O Hobbit, até conseguir fazer com que preenchesse uma quantidade equivalente de película?

Agora já temos a resposta, e a resposta, para infinito alívio de toda a nação tolkienmaníaca, é: não, Jackson não fez isso. Pelo contrário, continuou tratando a obra do Professor com o devido e merecido respeito, como já o fizera em seus filmes anteriores. Mais ainda, ele e seus roteiristas demonstram uma compreensão profunda do lugar que O Hobbit ocupa e do papel que desempenha dentro desse intrincado e apaixonante universo, de modo que as adições feitas tratam-se, quase todas (ou, ao menos, na grande maioria) de coisas tomadas de empréstimo a outras obras do autor, ou de desdobramentos lógicos de situações por ele delineadas.

Aos não iniciados em Tolkien que porventura me estejam lendo, é importante esclarecer que, por mais bizarro que isso pareça, o próprio Tolkien, a exemplo de seu herói Bilbo ao encontrar o Um Anel, ainda não sabia o que tinha em mãos enquanto escrevia O Hobbit ou logo após a sua publicação; ele nem imaginava as dimensões, o nível de complexidade, e menos ainda a importância e influência que sua criação chegaria a ter: como diz o prefácio de O Senhor dos Anéis, a história "cresceu conforme foi sendo contada". Tudo indica que, ao começar O Hobbit, o Professor nada mais pretendia que divertir-se contando uma boa história para (pensava ele) crianças e adolescentes, e, com sorte, colher alguma merecida recompensa material, caso conseguisse interessar algum editor no projeto. Mesmo assim, já se nota sua preocupação em dar um background para a história, em inseri-la num contexto convincente, num mundo com história e geografia próprias, ainda que de forma rudimentar em comparação ao que faria mais tarde. O essencial, aqui, é notar que, quando O Hobbit foi escrito, o SdA ainda não existia e seu mundo estava apenas tomando forma (se bem que a Terra-média continuaria a tomar forma até o fim da vida de Tolkien...); já ao transformar o livro em filme, Peter Jackson precisava ter em mente que o público dessa nova produção já teria visto, e, parte dele, também lido o SdA, e esperaria ver conexões entre ambos. Também não devemos esquecer que a Terra-média e toda a sua história surgiram da vontade de Tolkien de criar um background, ainda que fictício, para as línguas élficas, que ele, um linguista de mão cheia, havia inventado por puro prazer. Isso mesmo: nas horas vagas, o cara se divertia inventando línguas.

A primeira conexão entre este novo filme e a trilogia do SdA é criada com a adoção de uma narrativa em flashback: o filme inicia exatamente no mesmo ponto que A Sociedade do Anel, isto é, em plenos preparativos da festa de arromba que celebrará o aniversário de "onzenta e um" anos de Bilbo Bolseiro, o que permitiu que os atores Elijah Wood e Ian Holm retornassem a seus velhos papéis como Frodo e Bilbo. Holm quase não mudou nada, mas até para o melhor maquiador do mundo é tarefa complicada fazer com que Wood, aos 31 anos, volte a ter a cara que tinha aos 19!... Bilbo, então, começa a escrever as memórias de sua aventura, para que Frodo as leia depois que ele tiver partido para Valfenda, e é nessas memórias que a história propriamente dita do filme se desenvolve, começando com a substituição de Holm por Martin Freeman, que encarna Bilbo quando mais jovem.

E, por mais que já saibamos o que são os hobbits e qual o tipo de vida que lhes agrada, é sempre um prazer reler uma vez mais a singela e, ao mesmo tempo, certeira descrição do início do livro. É fácil perceber que essa pequena e pacata raça teve como modelo direto os camponeses do interior da Inglaterra – uma gente simples, que pouco sabe ou se interessa pelo mundo lá fora, gosta do trabalho rotineiro, das coisas que já conhece, de boa comida e de festas, mas que, quando necessário, pode também demonstrar um grau insuspeitado de resistência e coragem, como Tolkien teve ocasião de verificar pessoalmente, ao ver muitos desses camponeses virarem soldados na Primeira Guerra. Bilbo, o hobbit do título, é um tanto diferente de seus vizinhos da Vila dos Hobbits, principalmente devido a seus pendores intelectuais, e, sendo rico, pode dispor de seu tempo como melhor lhe aprouver, em geral lidando com livros e mapas, o que aponta para uma grande e bem pouco hobbitesca curiosidade sobre o mundo... Só que Bilbo nunca havia cogitado a sério a possibilidade de um dia sair para ver com os próprios olhos as coisas sobre as quais tanto já leu, até que Gandalf entra em cena, Gandalf, o mago (no filme, Sir Ian McKellen, também de volta a seu antigo papel, continua dando o mesmo show de mais de uma década atrás), que era amigo do avô de Bilbo quando este era criança, e parece não ter mudado nada desde então. Por intermédio dele, e de um jeito engraçadíssimo, o hobbit vem a conhecer uma companhia de 13 anões liderados por Thorin Escudo-de-Carvalho, neto do rei Thror, que outrora governou o rico e poderoso reino anão situado dentro e embaixo de Erebor, a Montanha Solitária, de onde ele e seu povo foram expulsos há muitos anos pelo ataque de Smaug, o dragão. E agora Thorin e seu bando planejam justamente retornar a Erebor, tomar de volta o lar ancestral de seu povo e o fabuloso tesouro acumulado pelos antigos anões ao longo de séculos de mineração. Para o bom êxito desse plano, na opinião de Gandalf, os anões não podem prescindir da participação de Bilbo, que ele recomenda como um gatuno de vasta habilidade e audácia – e, tendo em vista a índole e a vida pregressa do hobbit, é difícil dizer quem é que encara essa afirmação com maior ceticismo, se os anões ou o próprio Bilbo. De qualquer forma, Thorin não discute com um conselho direto de Gandalf, e, além disso, uma expedição com 13 membros não atrairia boa sorte, de modo que Bilbo é efetivamente incorporado à comitiva, que parte no dia seguinte.



(Mais um dos meus parênteses: fiquei encantado ao ver que Peter Jackson e/ou um de seus roteiristas fez questão de incluir as duas canções entoadas pelos anões na toca de Bilbo – a alegre e despretensiosa "canção de lavar pratos", e a canção solene e nostálgica sobre seu lar perdido, embora esta última apareça de forma bem compacta, enquanto, no livro, tratava-se de um poema de extensão considerável. Aliás, embora a tradução antiga, da Artenova, feita por Luiz Alberto Monjardim, seja realmente tosca, com erros de português que não seriam admissíveis numa redação da sexta série, é preciso conceder-lhe isso: a tradução desse poema ficou, em minha opinião, bem mais bonita e tocante que aquela que aparece na edição da Martins Fontes atualmente encontrada nas livrarias. Aliás, fiquei com a curiosidade de saber se a canção, tal como está no filme, traz os versos originais de Tolkien ou se eles foram adaptados. Se alguém tiver O Hobbit em inglês e puder me tirar essa dúvida, agradeço.)

Como, a essas alturas do campeonato, quem estiver me lendo terá, na certa, visto ao menos o filme, creio que não é necessário me alongar falando das peripécias que o grupo enfrenta e das criaturas fantásticas que encontra; prefiro aproveitar o espaço que me resta para comentar o modo como a história começou a ser contada nas telas.

O Hobbit, em sua versão para o cinema, teve uma história bastante atribulada. As primeiras notícias já eram de que Peter Jackson seria o diretor, o que foi recebido com satisfação pela maioria dos fãs. Mais tarde, soube-se que Jackson deixara o projeto e que a direção seria assumida por Guillermo del Toro; não ouvi grandes coisas sobre a repercussão disso, mas, de minha parte, embora lamentando a saída de Jackson, considerei o diretor mexicano uma das melhores substituições possíveis, devido à sólida carreira que já construiu no cinema de fantasia. Mas, por fim, como o mundo dá voltas!... Jackson retornou e a direção do filme acabou mesmo levando sua assinatura, sendo preservadas as contribuições de Del Toro para o roteiro, e resultando disso que O Hobbit teve quatro roteiristas: Jackson, Fran Walsh, Philippa Boyens (ou seja, o mesmo trio de O Senhor dos Anéis) e Del Toro. Um quarteto cujo trabalho não decepciona: souberam cumprir as exigências inerentes a qualquer história que esteja sendo transcrita das páginas para a tela, deixando intacta a essência do livro.

Não custa lembrar, como sei que já fiz em outros posts, que literatura e cinema são linguagens diferentes, e que, por isso, é impossível transformar um livro em filme sem mudar nada. E as grandes "mexidas" que Jackson e sua gangue deram em O Hobbit, pelo que foi possível ver nessa primeira parte, foram duas. Em primeiro lugar, como já referi, eles introduziram um monte de coisas que o próprio Tolkien ainda não sabia quando escreveu o livro, mas que hoje todos os seus leitores sabem (mesmo os que ainda não fizeram o doutorado) e estariam esperando ver. Isso explica as aparições de Saruman e Galadriel, personagens que, nos livros, o leitor só viria a conhecer em O Senhor dos Anéis. Também explica a notável atenção dispensada à descoberta das atividades do "Necromante" pelo mago Radagast – o Necromante, que obviamente é Sauron, só era mencionado muito de passagem no livro O Hobbit; seu futuro papel como grande vilão ainda estava numa fase embrionária na cabeça do autor. Por falar em Radagast, sua aparição e a parte relativamente importante que desempenha na ação do filme são uma surpresa: também ele só figurava no livro como uma menção fugidia durante uma conversa entre Gandalf e Beorn, o homem-urso. Pareceu-me o inverso do que ocorreu com Tom Bombadil, excluído do filme A Sociedade do Anel por não ser absolutamente essencial num enredo onde já havia tanta coisa que não podia ser deixada de fora. Já em O Hobbit, há tempo para o não-essencial.

A outra grande mexida de que falei está no fato de a história, no cinema, ter ficado muito mais "épica" – ou, no mínimo, muito mais violenta. Há muitas cenas de batalha, incomparavelmente mais que no livro, mas são batalhas totalmente antissépticas: por mais que machados e espadas trabalhem, não se vê uma gota de sangue (li em algum lugar que, com isso, consegue-se baixar a classificação indicativa do filme em dois anos, o que significa o acréscimo de uma expressiva fatia de público em potencial). Tirando isso, as batalhas são visualmente perfeitas, empolgantes, e o personagem Thorin (belíssima atuação de Richard Armitage) ganha uma dimensão nova, de heroísmo, que estava pouco presente no livro. O episódio que explica a origem de seu apelido Escudo-de-Carvalho é, numa palavra, emocionante, embora envolva uma infidelidade à história da Terra-média tal como delineada por Tolkien: o chefe orc Azog, que matou em batalha o avô de Thorin, foi, por sua vez, morto por um outro parente, Dain, muito antes da época retratada em O Hobbit, mas, no filme, os roteiristas optaram por ignorar esse fato e colocar Azog em cena, para ser o arqui-inimigo que Thorin, como herói guerreiro, precisava ter. E já que falamos de guerras envolvendo anões, aqui vai uma observação digna do mais nerd dos tolkienmaníacos: gostei muito do design das espadas dos anões, que se parecem deveras com armas que anões forjariam – angulosas, robustas, feitas muito mais para usar do que para exibir.

No filme, além do mais, é dada uma individualidade a cada anão, com variados níveis de profundidade, é claro, mas muito mais do que no livro, no qual apenas três ou quatro dos companheiros de Thorin tinham alguma característica marcante ou faziam algo que os destacasse do grupo. Nesse quesito, depois do próprio Thorin, o anão mais carismático é sem dúvida o velho Balin, o primeiro a reconhecer o valor de Bilbo e fazer-se amigo do hobbit, e que mais tarde se tornaria lorde de Moria, onde... Opa, melhor parar. Talvez haja alguém que ainda não leu O Senhor dos Anéis me lendo. Alguns dos anões estão muito bem caracterizados – troncudos, pesados, de aparência resistente, ombros muito largos e vastas barbas –, enquanto outros parecem apenas humanos baixinhos, sendo que, como durante a maior parte do tempo contracenam apenas com outros anões e com o hobbit, sua altura passa despercebida. Agora, alguém entendeu qual é a do anão Kili? Até mesmo um iniciante em Tolkien sabe que qualquer anão que já tenha deixado a infância tem invariavelmente uma vistosa barba (na verdade, algumas fontes informam que eles já nascem barbudos), então por que esse indivíduo mal tem uma ligeira penugem no queixo? Talvez para melhor exibir os traços apolíneos do ator irlandês Aidan Turner, que o interpreta, e assim chamar um pouco a atenção do público feminino. Um anão galã, pois sim.

Num balanço final, O Hobbit: uma Jornada Inesperada é mais uma demonstração de que, sempre que a adaptação de uma obra de J. R. R. Tolkien estiver entregue às mãos de Peter Jackson, podemos ficar absolutamente tranquilos, pois trata-se de alguém que a ama tanto quanto nós; é mais um mergulho feito com extrema competência por Jackson no universo criado pelo Professor, e tão bem-sucedido em capturar a magia única desse universo quanto o foram as três partes de sua já clássica filmagem de O Senhor dos Anéis, embora, naturalmente, com características diferentes. Tem defeitos, é claro, mas isso não impede que tudo o que amamos na obra de Tolkien esteja lá: a aventura, o humor, o drama, a fantasia, os momentos evocativos e melancólicos, a celebração da amizade e dos valores humanos, tudo embalado por um visual que é positivamente de encher os olhos – um coquetel que não falha em nos fazer sair do cinema com o coração mais leve e um início de nostalgia por nossa pátria espiritual, a Terra-média. Nostalgia essa que sempre podemos satisfazer com uma releitura dos livros de Tolkien ou uma reprise em casa dos filmes de O Senhor dos Anéis, enquanto encaramos a longa espera de um ano pela segunda parte, que deverá chamar-se O Hobbit: a Desolação de Smaug. Vejo vocês em Erebor!

quarta-feira, dezembro 12, 2012

Chamado Selvagem

Jack London (1876-1916) foi mais um autor que marcou minha infância, embora eu tenha lido realmente pouca coisa de sua obra naquela época - que me lembre, este próprio livro e uma história curta chamada Luta com os Dentes, que aparecia numa antologia intitulada Animais Selvagens: aventuras e histórias famosas, e que, como mais tarde descobri, era na verdade um trecho de seu romance Caninos Brancos (menos mal que, sendo assim, London é inocente desse título pra lá de ruim dado a uma boa história). Já adulto, li O Andarilho das Estrelas, um de seus últimos livros, e que me pareceu ser uma coisa um tanto à parte do resto de sua obra, embora também seja uma derivação natural dos interesses e convicções que o autor cultivou durante os últimos anos de sua curta vida. Mas poderei retornar oportunamente a esse livro. Por hoje, vamos focar em Chamado Selvagem - e um pouco em seu autor.

John Griffith Chaney nasceu em San Francisco, Califórnia, e compartilhou muitas características com outros grandes escritores norte-americanos, antes e depois dele: como Herman Melville, foi um jovem irrequieto, que correu o mundo e viu com os próprios olhos as coisas e os lugares que depois retrataria em romances de aventuras que empolgariam gerações; como Ernest Hemingway, celebrou em seus escritos a força, a coragem, a virilidade, e a natureza no que ela tinha de mais grandioso e indomável... E, como Edgar Allan Poe, morreu aos 40 anos de idade, no auge de suas capacidades, privando seus fãs das muitas obras memoráveis que ainda poderia ter produzido. Fãs, aliás, ao contrário de Poe, ele tinha muitos: foi um dos raros escritores a gozarem de popularidade ainda em vida. Seus romances e os contos publicados em revistas de grande circulação fizeram-no rico e admirado - um notável progresso de vida para alguém que teve um início difícil. Filho de um astrólogo itinerante e de uma professora de música, nunca conheceu o pai. Quando o pequeno John ainda não tinha um ano, sua mãe casou-se com John London, um veterano da Guerra Civil, que daria ao enteado tanto seu sobrenome quanto o apelido de Jack. Depois de uma adolescência que teve de tudo, de um prosaico emprego numa fábrica (no regime semiescravo de 16 horas por dia, seis dias por semana, como era comum naqueles tempos pós-Revolução Industrial) até perigosas pescarias de ostras, além de um único ano na Universidade da Califórnia, em 1897 decidiu juntar-se à Corrida do Ouro no Alasca, onde conheceria todas as durezas da vida no Ártico, travando contato na prática com aquela que seria a ambientação de pelo menos dois de seus livros mais famosos: The Call of the Wild (Chamado Selvagem, 1903) e White Fang (Caninos Brancos, 1906).

Embora seja geralmente citado como um romance, Chamado Selvagem não seria assim definido pela Teoria Literária, por ter um único núcleo narrativo; é mais como se fosse um longo conto. A história é a de um cão, Buck, que leva uma vida de rei no sítio do Juiz Miller, na ensolarada Califórnia, até estourar a notícia da descoberta de ouro na região de Klondike, na fronteira Alasca/Canadá. Com milhares de homens deslocando-se para o norte em busca do sonho da riqueza, a demanda por cães grandes, fortes e peludos torna-se frenética, e, para azar de Buck, ele possui todas essas características: mestiço de um pai são-bernardo e de uma mãe collie, é um animal magnífico. E por ser assim, acaba sendo roubado e vendido por um dos próprios empregados de seu dono, levado para San Francisco e, de lá, direto para o norte, onde mergulha numa nova e brutal existência na qual o carinho e a consideração com que era tratado em seu antigo lar transformam-se apenas em vagas lembranças que parecem vir de outra vida. Sua "doma" por um sinistro "homem de suéter vermelho" é uma passagem dolorosa de ser lida, embora o autor demonstre, ao final dela, que esse homem não é realmente cruel: há método e objetivo por trás de sua brutalidade, e os cães que passam por suas mãos têm a chance, se forem espertos, de aprender uma ou duas coisas que talvez os ajudem a sobreviver nas condições inclementes sob as quais terão de trabalhar.

E inclemente é sem dúvida a palavra que melhor descreve o mundo no qual Buck está entrando. Uma vez chegado às geladas terras do norte, bem depressa ele compreende que não deve esperar misericórdia dos que ali encontrará, sejam homens ou cães - e que tampouco deve oferecê-la, caso pretenda ser respeitado. Um gesto casual qualquer, que, entre os cães de sua terra natal, seria visto como uma tentativa de contato cordial, é muitas vezes interpretado pelos cães de trilha do Alasca (mais próximos de lobos que dos cães que Buck até então conhecia) como uma provocação, que pode levar a uma luta de consequências fatais. Ao mesmo tempo em que sua inexperiência o coloca em desvantagem, Buck tem a seu favor o tamanho e a força: pesando 63 quilos - dado esse que o autor parece considerar muito importante, pois repete-o diversas vezes -, ele é consideravelmente maior que um lobo, e também que os cães nativos. Isso faz com que algumas brigas sejam evitadas.

É verdade que nem tudo nesse mundo é violência. Os primeiros amos a quem Buck serve são François e Perrault, experimentados agentes do governo canadense e calejados viajantes das trilhas árticas, que, sempre incumbidos do transporte de importantes documentos oficiais, não podem abrir mão da celeridade, e por isso precisam sempre certificar-se de ter a melhor equipe de cães que lhes seja possível reunir e treinar. Nas mãos dos dois homens, Buck conhece uma disciplina dura, mas justa, e começa a aprender todo o necessário para ser um bom cão de trenó. As lições vêm tanto dos dois condutores quanto de seus novos companheiros, principalmente Dave e Sol-leks, cães mais velhos, com longa experiência como puxadores. Com o líder Spitz, em compensação, a coexistência não é tão harmônica: entre ele e Buck instala-se logo uma inimizade instantânea e irreconciliável.

É a princípio um tanto chocante (e provavelmente o será mais se o leitor for um amante de cães) ver como Perrault e François se abstêm de tentar apartar as brigas entre os animais, salvo quando elas ocorrem durante o trabalho; mais tarde compreendemos que os condutores agem assim porque estão cientes de estarem lidando com animais apenas precariamente domesticados, de modo que não podem esperar ter sobre eles o mesmo grau de controle que têm os donos ou tratadores que lidam com outros tipos de cachorros. A definição da cadeia de comando da matilha é assunto a ser decidido exclusivamente entre os cães, só cabendo aos homens o papel de observadores neutros das acirradas "disputas políticas" que ocorrem entre os animais. Também não escapará aos leitores mais atentos que, à semelhança de Rudyard Kipling e outros escritores que costumam colocar em cena personagens animais, Jack London é um mestre em usá-los para retratar comportamentos humanos: Buck acaba mostrando talento para a sedição, encorajando os companheiros a desafiar a autoridade de Spitz, a fim de desestabilizar o rival - mas, quando por fim o derrota e conquista a liderança, ele não tolera qualquer insubordinação. Isso lembra certas pessoas que vocês conhecem, ou sobre as quais já leram? Qualquer semelhança não é mera coincidência.

De qualquer forma, a carreira de Buck como cão-líder pouco dura. Trocar de condutores com frequência parece fazer parte da sina dos cães de trilha a serviço do governo, e, depois de deixarem François e Perrault, ele e os companheiros sobreviventes passam às mãos de outro agente, que, embora também se mostre um patrão justo e sensato, vê-se obrigado por ordens superiores a forçá-los em duas longas e exaustivas viagens, quase sem descanso. Ao final desse périplo, os cães esgotados são descartados, postos à venda. A partir daí, ainda que apenas por um breve período, as coisas ficam realmente feias. Buck e os outros têm o azar de ser comprados por Hal e Charles - dois personagens nos quais London retrata um tipo que, sem dúvida, conheceu bem durante sua própria aventura no Alasca: o dos que achavam que meter-se pelo norte em busca de ouro era para qualquer um. Os dois não sabem coisa alguma sobre viagens no Ártico, nem parecem dispostos a "perder tempo" aprendendo. Depois de passar maus, aliás, péssimos pedaços com esses sujeitos, Buck tem a vida salva por aquele que se tornará seu verdadeiro dono: John Thornton.

Thornton é um minerador como tantos outros, mas, além disso, é também um homem que realmente entende e gosta de cães; trata os seus como amigos, não como meros instrumentos de trabalho, e Buck logo toma-se de uma adoração por ele que toca as raias da idolatria, algo que não sentira nem mesmo no sítio do Juiz Miller. Com Thornton, conhece uma vida diferente, na qual a tração do trenó é apenas um dos papéis que desempenha; também lhe cabe acompanhar o dono na caça, guardar o acampamento, e, principalmente, ser um amigo e companheiro. Mesmo com tudo isso, Buck dispõe de tempo livre pela primeira vez desde sua chegada ao norte: enquanto John Thornton e seus sócios estão prospectando ouro num local, os cães têm pouco o que fazer. Com isso, Buck começa a passar cada vez mais tempo a vagar solitário pela floresta, chegando a ficar fora dias a fio, sem qualquer contato humano. Do fundo da mata (ou seria das profundezas de si próprio?) vem um chamado que ele não tem certeza se ouve ou apenas sente, mas que intensifica a atração pela vida selvagem que já vinha experimentando desde que deixou as terras civilizadas onde nasceu. Em momentos entre a vigília e o sono, Buck chega a ter visões de outro tempo e outro lugar, enxergando através dos olhos de um ancestral distante, que foi provavelmente um dos primeiros cães a andarem em companhia humana: no caso, a trêmula companhia de um assustado homem primitivo que ainda não aprendera a encarar a natureza tal como um monarca olhando para seu reino, vendo-a, em vez disso, com medo, muito medo - e encontrando certo conforto na presença do cão, por saber que os sentidos aguçados, os instintos e a coragem do aliado de quatro patas podem contribuir para sua sobrevivência.

O desejo de Buck de unir-se à floresta passa por momentos de euforia e de melancolia, pontuados por uma estranha saudade de algo que nunca conheceu - ao menos, não por experiência própria. Além disso, existe a ligação de afeto e lealdade que o prende a John Thornton, e que ele se sente incapaz de romper. Devo dizer, aliás, que sempre achei muito intrigante essa devoção de vida e morte, de um cão para com seu dono. De onde viria tamanha dedicação? Em geral, todo comportamento de um animal doméstico é uma adaptação de algum hábito ou tendência que seus ancestrais selvagens já tinham, e é claro que já se tentou dar uma explicação desse tipo para o caso: mais de um livro sobre cães que li quando garoto dizia que o cão simplesmente transfere para o dono a lealdade que o lobo dedica ao líder da alcateia, mas essa versão desmorona quando se sabe como são as coisas entre os lobos. Esses animais estão sempre muito atentos às fraquezas uns dos outros, e sua lealdade é relativa e frágil; se o lobo-líder piscar um olho na hora errada, está morto. Portanto, não é aí que se encontra a explicação, se alguma explicação existir, da proverbial fidelidade canina, essa dedicação incondicional que faz um cão ser capaz de dar a própria vida por seu dono, a mesma que mantém Buck vinculado a John Thornton até o desfecho dramático de sua história.

Não sei ao certo se Chamado Selvagem é considerado pela maioria da crítica como a obra-prima de Jack London - e, quando se fala de um autor dessa importância e reconhecida qualidade, é difícil apontar uma obra que esteja indisputavelmente acima das outras -, mas não há dúvida de que é uma magnífica introdução para quem ainda não conhece seu trabalho. Creio que a melhor maneira de sintetizar toda a sua mensagem é dizer que o livro nos põe ante os olhos um fato básico, o de que vivemos num mundo sem misericórdia, um mundo violento e cruel, no qual quem quiser sobreviver e prosperar precisa, antes de mais nada, ser forte, mas, ainda assim, um mundo com espaço para a beleza e onde a verdadeira amizade é possível.

sexta-feira, novembro 30, 2012

Góticos

Quando encontrei esta antologia na Livraria Curitiba do shopping Estação, na capital paranaense, há alguns dias, vi-me diante de um pequeno dilema: praticamente metade dos contos que a integram, eu já possuía em outras coletâneas - alguns deles, em mais de uma. Mesmo assim, acabei decidindo pela compra: os textos que eu ainda não conhecia eram irresistíveis, já valendo, só eles, o valor a ser pago, aliás muito razoável. Minha namorada Cintia, que estava comigo na ocasião, observou que, a julgar pela capa, deve tratar-se de uma edição visando o público adolescente do sexo feminino - leia-se: as fãs de Crepúsculo. Se assim for, e se o alvo for atingido, ótimo: é bom que essa faixa de público tenha a chance de conhecer um pouco do melhor que a literatura gótica já produziu, e de ter um contato direto com a ficção de horror no sentido estrito do termo. Pelas páginas deste volume desfilam nomes veneráveis da literatura do sobrenatural como Bram Stoker, Mary W. Shelley, Edgar Allan Poe e Joseph Sheridan Le Fanu; outros que, embora famosos, não costumam ser imediatamente associados ao horror, como Robert Louis Stevenson (autor do clássico romance de aventura de piratas A Ilha do Tesouro, mas também da não menos clássica novela de horror O Médico e o Monstro), Sir Arthur Conan Doyle (criador do mais famoso detetive da ficção, Sherlock Holmes) e o francês Théophile Gautier, melhor conhecido por sua poesia; e, por fim, nomes que bem mereceriam ser mais conhecidos do que são, como W. W. Jacobs e a figura fascinante, mesmo que apagada pelas circunstâncias, de John William Polidori. Por fim, é preciso notar, para crédito do organizador Luiz Antônio Aguiar, que foi uma bela ideia não fazer do livro uma coletânea apenas de contos, mas de textos góticos ou sobre o movimento literário gótico de maneira geral: além dos contos, ele também inclui poemas de Byron e Goethe (seria difícil pensar em dois poetas que melhor representassem essa corrente estética) e interessantes ensaios curtos assinados por Pedro Bandeira (nome coroado da literatura teen no Brasil, criador da série Os Karas, cujo piloto é o merecidamente aclamado A Droga da Obediência), Luiz Raul Machado, Daniel Piza, e pelo próprio Aguiar. O problema com esses ensaios é que parecem ter sido escritos mediante um convite genérico feito separadamente a cada autor, sem obedecer a um plano geral para o livro, o que acaba fazendo com que alguns temas sejam abordados de forma repetitiva, enquanto outros pontos interessantes ficam sem receber atenção.

Góticos, portanto, tem a clara intenção de servir de porta de entrada para os jovens leitores (ou leitoras) do século XXI travarem conhecimento com os grandes nomes da literatura de horror, e isso explica por que a maioria dos autores que nele marcam presença vêm representados por trabalhos que estão entre os mais famosos que produziram - eis o motivo pelo qual muitos dos contos já são conhecidos de quem já acumulou certa experiência no gênero, como este que vos escreve. Conan Doyle, por exemplo, comparece com o delicioso e arrepiante Lote 249, também presente na coletânea Encantamentos; pouca gente sabe, mas Doyle foi o primeiro a usar uma múmia como personagem de horror. De Edgar Allan Poe, temos A Queda da Casa de Usher, clássico absoluto, a "mãe" de todas as histórias de casas assombradas. Infelizmente, esse conto, tal como aparece no livro, constitui mais um desagradável exemplo do grande problema que é a falta de cultura geral para um tradutor de literatura: no rol dos livros que o narrador anônimo lê em companhia de seu amigo em vias de enlouquecer, Roderick Usher, há uma tentativa de informar nas notas de rodapé a tradução dos títulos, que, no original, estão em diversas línguas. O tradutor Domingos Demasi meramente informa ao leitor que títulos como Belphegor e Vigiliae Mortuorum Secundum Chorum Ecclesiae Maguntinae "não têm tradução"... Ora, é claro que Belphegor não terá tradução se a pessoa simplesmente tentar achá-lo num dicionário como se fosse um substantivo comum, mas alguém com um pouco de conhecimento de ocultismo saberia que esse é o nome de um dos demônios favoritos dos satanistas medievais, um demônio identificado com o elemento fogo e que, dos Sete Pecados Capitais, presidia o da preguiça. Já o outro título, em latim, encerra um trocadilho genial e totalmente pertinente com o tema da história: numa tradução literal, significaria a "vigília dos mortos segundo o coro da igreja de Mogúncia" (cidade alemã que em latim é Moguntia, em alemão Mainz); só que vigiliae mortuorum pode tanto ter o inocente significado de uma vigília de oração na intenção das almas dos mortos, quanto pode querer dizer algo parecido com "despertar os mortos"... É um desperdício privar o leitor dessa sacada magistral de Poe. A impressão que dá é de que o senhor tradutor conclui que uma coisa "não tem tradução" quando ela não se enquadra em sua experiência anterior e tampouco é resolvida pelo Google Translator.

Bram Stoker é representado por O Hóspede de Drácula, história curta que é quase presença obrigatória em antologias de contos vampirescos, e também uma boa pedida para coletâneas voltadas para o sobrenatural em geral, como esta. Esse conto, a propósito, até hoje gera controvérsia entre fãs e estudiosos da obra de Bram Stoker: enquanto uns o consideram um trecho excluído de Drácula, outros creem que foi concebido desde o início como um conto independente, embora ambientado no mesmo universo. Luiz Antônio Aguiar expõe a interessante hipótese de que o texto teria sido escrito para ser o capítulo inicial do romance, mas que Stoker o cortou ao perceber que havia ido muito fundo, logo de cara, no clima sobrenatural: o autor acabou preferindo que a imersão do leitor no ambiente tenebroso da história fosse gradual, efeito que conseguiu ao dar aos primeiros capítulos da versão definitiva uma aparência de normalidade que ia aos poucos sendo modificada por meio de sugestões sombrias. O leitor atento notará que a frase que Jonathan Harker (pois está na cara que é ele o viajante inglês sem nome que protagoniza o conto) encontra gravada num túmulo ("Os mortos viajam depressa"), e que não aparece no romance, foi resgatada por Francis Ford Coppola em seu filme Bram Stoker's Dracula (1992), bem como alguns outros detalhes do conto. É pena que Aguiar prejudique a boa impressão que seu posfácio à história de Stoker causa ao leitor, ao cometer um dos erros mais vergonha-alheia que me lembro de já ter encontrado impressos em livro: "...vemos Jonathan chegando ao castelo do conde-vampiro, na Pensilvânia". Transilvânia, Aguiar, Transilvânia, que fica na Romênia, pelo amor de Deus! O estado norte-americano da Pensilvânia nada tem a ver com isso; até onde sabemos, Drácula nunca pôs o pé lá.

E, como é de vampiros que estamos falando, não posso deixar de dizer algumas palavras sobre John William Polidori, perfeito exemplo de um talento promissor que foi perdido sem produzir aqueles que poderiam ter sido seus melhores frutos, e hoje lembrado principalmente pelo fato de sua biografia estar estreitamente entrelaçada com as de mais de um nome essencial da literatura gótica. Nascido em Londres em 1795, filho de mãe inglesa e pai italiano, foi amigo e médico pessoal do aristocrata e poeta, barão George Gordon Byron, que passaria à posteridade simplesmente como Lord Byron e foi, poder-se-ia dizer, uma das primeiras "celebridades" da História, no sentido que damos hoje a essa palavra. Ocorreu que, durante o verão de 1816, Polidori encontrava-se numa casa de campo às margens do lago Genebra, na Suíça, em companhia de Byron, de seu amigo e também poeta Percy Bysshe Shelley, e da jovem esposa deste, Mary, quando, depois de terem lido diversas histórias de fantasmas uns para os outros, o anfitrião propôs que cada um do quarteto escrevesse também uma; essas histórias depois seriam lidas pelo grupo, e escolheriam a melhor. Byron e Shelley nunca terminaram as histórias que começaram com vistas a esse desafio, mas Polidori escreveu The Vampyre, que muitas fontes apontam como a primeira história de vampiro publicada em língua inglesa, enquanto Mary Shelley produziu um conto ao qual chamou O Moderno Prometeu, que mais tarde desenvolveria sob a forma do romance Frankenstein, hoje uma obra essencial tanto para a literatura de horror quanto para a de ficção científica.

(Julgo necessário fazer um parêntese para esclarecer aos não iniciados em mitologia que o Prometeu do título nada tem a ver com o verbo "prometer"; refere-se ao titã Prometeu, que, no mito grego, roubou dos deuses o segredo do fogo para dá-lo aos homens, o que arrancou estes últimos da animalidade e tornou possível o surgimento da civilização. Como castigo, Zeus acorrentou Prometeu ao topo de uma montanha, onde diariamente um gigantesco abutre ia devorar-lhe o fígado, que crescia novamente durante a noite, de modo que seu tormento jamais tivesse fim - mas teve, séculos mais tarde, quando o herói Hércules subiu a montanha, matou o abutre e libertou Prometeu. O que nos interessa diretamente aqui, porém, é notar o paralelo que Mary Shelley traça entre o titã e seu herói Victor Frankenstein: ambos metem-se com segredos que não deveriam conhecer e pagam o preço de sua ousadia. Um ponto de vista tipicamente romântico - pois o gótico, é bom não esquecermos, nada mais foi do que uma ramificação do movimento artístico designado genericamente como Romantismo. Aliás, embora isso seja uma definição um tanto simplista, pode-se dizer que o gótico caracterizava-se precisamente por levar aos extremos certos elementos que outras correntes românticas cultivavam de forma mais moderada.)

Voltando a falar de Polidori, ele só publicou uma outra obra digna de nota, um poema intitulado The Fall of the Angels, com claras influências de Byron, em 1821. Morreu nesse mesmo ano, sem ter completado 26 anos. Nas páginas de Góticos, podemos ter o prazer de ler The Vampyre, conto que, mesmo com muitas marcas do amadorismo de seu autor (que, embora já então formado em medicina, tinha meros 20 anos quando o escreveu), demonstra um inegável dom para criar a atmosfera tenebrosa necessária ao bom horror gótico, e dá uma ideia do formidável escritor que Polidori poderia ter-se tornado, caso vivesse o suficiente. É interessante notar que o vampiro dessa história não mora em nenhum castelo isolado - em vez disso, transita livremente pela alta sociedade inglesa - e não se alimenta apenas de sangue, mas também de atos perversos em geral, comprazendo-se em espalhar ruína, degradação e morte por onde passa.

Também no terreno do vampirismo, embora de maneira mais lírica, situa-se o conto A Amante Morta, de Théopile Gautier, que aparece em outras coletâneas como A Morte Amorosa, A Morta Apaixonada, entre outros títulos, todos com alguma sutil diferença em relação uns aos outros. Nele, um jovem padre se vê desviado, ainda que apenas na esfera dos sonhos e pensamentos (ou assim ele acredita) de sua vocação virtuosa ao apaixonar-se pela misteriosa Clarimonde, a mais bela das mulheres, cujo único defeito, aparentemente, é o de não pertencer ao mundo dos vivos.

Um autor essencial para a literatura vampiresca, mas que, no conto aqui presente, decidiu seguir outro rumo, é o irlandês Joseph Sheridan Le Fanu, cujo Carmilla (1872) plasmou várias das características que hoje associamos automaticamente aos vampiros, além de ter sido, juntamente com o já citado The Vampyre de John Polidori, a mais direta influência para que o igualmente irlandês Bram Stoker - contemporâneo, conhecido e admirador de Le Fanu - viesse a dar à luz (ou às trevas?) o mais famoso livro de vampiros de todos os tempos, cujo título acho desnecessário repetir. Le Fanu deve ter causado certa comoção, em sua época, ao descrever em Carmilla a paixão sentimental e erótica entre uma bela vampira e sua igualmente bela vítima - do sexo feminino. Aqui em Góticos, entretanto, o que o organizador nos oferece é um conto curto no qual Le Fanu preferiu ousar menos: Dickon, o Diabo, é uma história de fantasmas tradicional, sem nada de muito surpreendente, mas, ainda assim, de uma tremenda força ao descrever a aparição do falecido senhor de uma antiga mansão campestre, com uma sutileza que arrepia muito mais que o horror escancarado de grande parte da ficção espectral moderna, seja literária ou cinematográfica.

Retornando por um instante a Mary Shelley, em Góticos tive uma agradável surpresa ao ler um conto seu que não conhecia, Transformação, que apresenta um protagonista totalmente típico do Romantismo - um jovem fidalgo impetuoso, de espírito rebelde (está bem, vá: um playboy renascentista desmiolado), que dilapida a fortuna da família numa vida boêmia e, com isso, arruína suas chances de desposar a jovem que ama. Para não fugir a nenhum chavão romântico, esse personagem é italiano de Gênova e chama-se Guido. O tempero macabro nesse até aí manjadíssimo plot surge quando ele encontra um anão demoníaco e decide aceitar sua proposta para uma troca temporária de corpos, acreditando que isso lhe dará os meios de consertar as bobagens que fez... Não é preciso dizer que as coisas não serão tão fáceis.

Góticos pode ser recomendado sem medo (ou com ele...), já que cumpre bem aquilo a que se propõe, tendo a vantagem de juntar num só lugar um expressivo punhado dos autores e obras mais indispensáveis a quem pretende começar a se arriscar em meio às trevas da melhor ficção de horror. Como, além da qualidade de seus textos, é uma edição de baixo custo, tem tudo para alcançar boas vendagens, e não seria má ideia se isso encorajasse seu coordenador e seus editores a organizar novos volumes: o lançamento de Góticos II, III e assim por diante não seria nenhum exagero, pois ainda há uma enormidade de excelentes textos e autores do mesmo gênero merecendo tornar-se acessíveis a um maior número de leitores. Tendo apenas o cuidado de corrigir as pequenas falhas citadas acima, Luiz Antônio Aguiar ainda poderá nos guiar através de muitas horas e páginas cheias dos mais deliciosos calafrios.

segunda-feira, setembro 03, 2012

O Cavaleiro da Morte

O mundo começou no caos e vai terminar no caos. Os deuses o trouxeram à existência e vão acabar com ele quando lutarem entre si, mas no tempo entre o caos do nascimento do mundo e o caos da morte do mundo existe ordem, e a ordem é feita de juramentos, e os juramentos nos unem como as fivelas de um arreio.

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O primeiro volume das Crônicas Saxônicas, intitulado O Último Reino, terminava com a Batalha de Cynuit, na qual Uhtred de Bebbanburg, de apenas 20 anos, liderou uma pequena força saxã contra um exército de dinamarqueses, e não só obteve uma vitória improvável, como ainda matou em combate singular o terrível Ubba Lothbrokson, o último ainda vivo dos três notáveis chefes vikings filhos do lendário Ragnar Lothbrok. Isso poderia ser seu passaporte para uma alta posição na corte do rei Alfredo, já que essa vitória pode ter salvo, ao menos por algum tempo, o reino de Wessex, o último na Inglaterra que ainda resiste aos invasores nórdicos (na época, a Inglaterra estava dividida em quatro pequenos reinos; os outros três eram Ânglia Oriental, Mércia e Nortúmbria, este último a terra natal de Uhtred). Acontece que, como o velho Uhtred que está contando a história reconhece, quando jovem ele era tolo, orgulhoso e teimoso – como quase todos os jovens, só que num grau pior que o da maioria. Este segundo volume começa quando o rapaz contraria os conselhos de seus companheiros mais velhos e, em vez de ir imediatamente até Alfredo e colocar aos pés do rei o estandarte de Ubba, vai primeiro ver sua esposa e filho. Quando, no dia seguinte, ele finalmente chega ao acampamento de Alfredo, é para descobrir que seu desafeto Odda, o Jovem, filho de Odda, o Velho, chegou primeiro e contou uma história diferente.

Uhtred tem algum respeito por Odda, o Velho, que lutou ao seu lado em Cynuit e está agora moribundo devido aos ferimentos sofridos, mas Odda, o Jovem, que ele considera um covarde, mal participou da batalha. Compreensivelmente enfurecido, Uhtred invade a igreja improvisada do acampamento, onde o devoto Alfredo está orando, para reclamar o crédito por sua façanha, e, esquentado como sempre, acaba desembainhando sua espada na presença do rei – o que, conforme uma lei recentemente promulgada em Wessex, pode ser punido com a morte. Alfredo, imbuído de espírito cristão, o perdoa, só que Uhtred, com o mesmo ato, tornou-se culpado também de outro delito, que foi o de perturbar o andamento do serviço religioso, e esse quem tem que perdoar é Deus. Assim, Uhtred acaba obrigado a vestir um manto de penitente e arrastar-se de joelhos pelo chão enlameado do acampamento até o altar – o que para ele, criado entre os dinamarqueses, é uma humilhação grave. Ele nunca gostou muito do rei, a quem considera um carola manipulado por padres (embora seja impossível negar sua sagacidade), e, depois desse incidente, a antipatia ganha contornos de ódio. Isso faz com que volte a pensar em juntar-se aos dinamarqueses, mesmo tendo passado os últimos dois anos lutando contra eles. Poderíamos falar em lealdades conflitantes, mas a verdade é que Uhtred nunca foi realmente leal a lado nenhum – somente a homens específicos, e, até esse momento de sua vida, esses homens, além de poucos, eram quase todos dinamarqueses.

Como dito, Uhtred é nortúmbrio (ou nortumbriano? Hum…), mas, antes de mais nada, é saxão; e, como sua terra natal é agora uma província dos dinamarqueses, governada por um rei-fantoche, é apenas lógico que, como um saxão livre, ele se submeta ao único rei saxônico de verdade que resta na Inglaterra – e esse é Alfredo de Wessex. Além disso, a esposa de Uhtred é de Wessex, e o casamento fez dele senhor de terras herdadas da família dela. Dessa forma, por menos que goste, ele é súdito de Alfredo, e se vê forçado a acomodar-se em suas terras, tentando, sem muita habilidade, fazê-las prosperar, e lutando contra um enorme tédio.

Durante certo tempo, Uhtred foi comandante da pequena frota de Alfredo; seu antigo navio, o Heahengel ('Arcanjo' em anglo-saxão), está se deteriorando numa praia próxima de sua casa, e olhar para a embarcação abandonada aumenta a depressão do guerreiro… Até que seu antigo imediato, Leofric, aparece em outro navio, trazendo a bordo um time de carpinteiros navais e a ordem de consertar o Heahengel e pô-lo novamente a flutuar. A operação deverá demorar cerca de um mês… E, enquanto os carpinteiros trabalham, Uhtred, Leofric e sua tripulação partem em busca de aventuras, sob o pretexto de "patrulhar a costa". Não por coincidência, a primeira parte do livro intitula-se simplesmente Viking, palavra que, hoje em dia, é muitas vezes usada como sinônimo de "nórdico", como designação de todo um povo, mas que, na origem, era aplicada aos homens que tomavam parte em expedições piratas – que é exatamente o que Uhtred e seus companheiros fazem. A bordo do Fyrdraca ('Dragão Flamejante'), como apelidaram seu navio, eles percorrem a costa de Cornwalum (região do sudoeste da Inglaterra, hoje chamada Cornwall em inglês, Cornualha em português), saqueando indistintamente navios dinamarqueses ou ingleses e procurando por outras maneiras de obter algum ouro e prata.

Uma dessas oportunidades se apresenta quando um certo "rei" Peredur lhes propõe que o sirvam como mercenários, o que ele espera que lhe garanta a vitória contra um "rei" vizinho (como Uhtred explica, naquela região qualquer chefe de vilarejo que pudesse juntar 50 homens armados se intitulava rei). Como o Fyrdraca recebeu como disfarce uma cabeça de dragão, como aquelas usadas nas proas dos navios dinamarqueses, Peredur toma Uhtred e seus homens por vikings de verdade. Quando Uhtred descobre que o rival de Peredur também contratou mercenários nórdicos, percebe que a coisa não será a moleza que ele estava esperando. O líder dos mercenários do lado inimigo é um homem conhecido como Svein do Cavalo Branco, cuja fama já chegara aos ouvidos de Uhtred. Os dois sabem que, se lutarem, independentemente do resultado, ambos perderão muitos homens; assim, acabam entrando num acordo: os dois bandos se unem, arrasam a vila de Peredur e dividem a pilhagem (a essa altura, não é surpresa para ninguém que Uhtred não tenha qualquer problema em trocar de lado sempre que acha conveniente).

O item mais valioso que ele obtém ao saquear a vila é Iseult, uma das esposas do agora falecido Peredur, uma jovem de surpreendente beleza que, dizem, nasceu durante um eclipse, o que faz dela uma "rainha das sombras", conforme uma tradição pagã que sobrevive entre aquele povo ainda em processo de cristianização. Segundo a crença geral, uma rainha das sombras possui poderes proféticos enquanto permanecer virgem, razão essa pela qual Peredur nunca a tocou. Quanto a Uhtred, não dá para dizer que ele não seja supersticioso (longe disso), mas parece que, em sua escala de prioridades, os impulsos masculinos têm precedência sobre as crendices: Iseult torna-se sua amante e ele a leva consigo ao voltar para casa, uma vez terminado aquele mês de aventuras.

Quando, no inverno seguinte, Uhtred é chamado a Cippanhamm (a atual Chippenham, que servia de capital) para falar com Alfredo, ele é acusado de dois crimes. O primeiro é o de ter levado os homens e um dos navios do rei à guerra sem ter recebido ordens para isso – e desse ele sabe que é culpado, embora, é claro, negue. A segunda acusação é a de ter-se juntado aos dinamarqueses para atacar Cynuit, onde estava sendo construída uma igreja para celebrar a vitória saxônica obtida no local – obtida por ele, Uhtred. A igreja em construção foi queimada, e dezenas de monges e aldeões, mortos. Desse ataque ele não participou, mas não há escapatória: ou ele será inocentado dos dois crimes, ou considerado culpado de ambos, e, no segundo caso, morre. Diante disso, Uhtred pede e obtém o direito a um julgamento por combate – uma tradição entre os saxões e outros povos germânicos, que acreditavam que Deus, ou os deuses, dariam a vitória a quem estivesse dizendo a verdade. Uhtred, naturalmente, será o seu próprio campeão; para enfrentá-lo, Odda, o Jovem, sempre ansioso por vê-lo morto, oferece como campeão o mais temido de seus homens, um guerreiro gigantesco, de estupenda força e levemente retardado chamado Steapa Snotor. A narração do duelo deixa-nos a todos com a respiração suspensa, mas ele é interrompido: exatamente quando Uhtred e Steapa estão lutando, os dinamarqueses atacam Cippanhamm.

Uhtred, que cresceu entre os dinamarqueses, fala a língua deles e sempre gostou de seu modo de vida, fica fortemente tentado a se aproveitar do caos para mais uma vez mudar de lado e ajudar a arrasar e pilhar a cidade, mas, talvez pensando na esposa e no filho, não o faz; em vez disso, escapa de Cippanhamm, acompanhado apenas por Leofric, Iseult e mais uma mulher, e sem ter a menor ideia se o rei Alfredo escapou também ou se foi capturado ou morto pelos pagãos. Mas a resposta é favorável: depois de penarem muito viajando a pé em pleno inverno, e de várias peripécias, Uhtred e seu grupo reencontram Alfredo nos pântanos de Sumorsӕte (Somerset), uma região vasta e traiçoeira, pouquíssimo povoada, cujos raros e espalhados habitantes, em muitos casos, nunca ouviram falar nem sequer do rei Alfredo, quanto mais dos dinamarqueses. É uma região de pântanos salobros, pântanos de maré, que durante a maior parte do tempo são rasos demais até mesmo para os navios vikings, de modo que ali o rei e seu punhado de seguidores restantes estão em relativa segurança. É a partir dessa base de operações que Alfredo planeja e começa a executar a gradual retomada de seu reino – com a ajuda de Uhtred, que o serve de má vontade, mas demonstrando capacidade, e tendo a vantagem de conhecer os dinamarqueses e seu modo de pensar: entre outras coisas, ele sabe que os invasores provavelmente conseguiriam tomar o pântano, mesmo com as dificuldades de navegação, caso agissem todos juntos, mas é difícil que isso aconteça, por causa de uma rivalidade entre Guthrum, que ficou sendo o principal chefe dinamarquês após a morte de Ubba e seus irmãos, e Svein, o mesmo que Uhtred conheceu em Cornwalum, e que reluta em submeter-se ao comando de Guthrum. É graças a essa rixa que Alfredo tem uma chance, e ele não pretende desperdiçá-la.

Como todo bom autor de ficção histórica, Bernard Cornwell demonstra habilidade na arte de entrelaçar personagens e eventos reais e fictícios, formando um todo plausível. É fato, por exemplo, que, no século IX, a Inglaterra esteve muito perto de deixar de existir devido às invasões nórdicas, e que Alfredo foi o líder que tornou possível a sua salvação: se não fosse por ele, é provável que, onde está hoje o Reino Unido, houvesse, ao invés, um ou mais países escandinavos. Entretanto, é claro que ele não fez isso sozinho, e Uhtred, mesmo tendo sido inventado, representa um dos tipos de homem com quem Alfredo precisou contar. Já que está lidando com eventos históricos (ainda que misturados com ficção), Cornwell opta por deixar de lado as idealizações: seu Uhtred, embora corajoso e bom guerreiro, dificilmente poderia ser chamado de herói, por causa de sua moralidade discutível – cujo principal exemplo é a já comentada facilidade com que ele troca de lado, não só na guerra entre saxões e dinamarqueses, mas em qualquer conflito no qual se veja envolvido. Como deve lembrar quem leu meu post sobre o primeiro volume das Crônicas Saxônicas (melhor ainda, quem leu o próprio livro), Uhtred já era um garoto crescido, com seus dez ou onze anos, quando foi capturado pelos dinamarqueses e adotado pelo chefe Ragnar (nada a ver com o legendário pai de Ubba; na verdade esse nome devia ser comum). O autor não fez a coisa dessa forma sem bons motivos: Uhtred já tinha idade suficiente para lembrar-se com clareza da vida que teve com seu próprio povo, ele já se entendia como um saxão, o que é bem diferente do que aconteceria se tivesse sido capturado ainda bebê, pois, nesse caso, na certa se consideraria simplesmente um dinamarquês – mesmo que os pais adotivos lhe contassem sobre suas origens – e agiria como tal. Com a história de vida que teve, entretanto, ele se sente ao mesmo tempo saxão e dinamarquês, o que, na prática, é a mesma coisa que não ser nenhum dos dois. Ao ler, não temos a impressão de que Uhtred seja atormentado por grandes conflitos internos, mas isso pode ser porque é ele mesmo, na velhice, quem está contando a história, e, como homem rude e prático que sempre foi, talvez ache bobagem demorar-se falando de seus próprios estados de espírito.

Duas curiosidades históricas para concluir. Primeira: durante sua expedição a Cornwalum, Uhtred conhece um monge do País de Gales, de nome Asser, que, segundo ele, viria, mais tarde, a importuná-lo muito. O protagonista, que já tem pouca simpatia por cristãos em geral, e reserva uma especial má vontade para com padres e monges, parece gostar ainda menos desse monge em particular que da maioria dos outros (parece que, no texto original, ele se aproveitava do nome do cara para fazer um trocadilho nível quinta série com ass, que significa asno). Trata-se de personagem histórico, e não qualquer um: Asser viria a ser bispo de Sherborne e foi um importante cronista, sendo que a maior parte do que sabemos sobre a vida e o reinado de Alfredo vem de seus escritos. Segunda: assim como o primeiro volume, este também termina com uma batalha, mas uma de proporções e importância muito maiores, a Batalha de Ethandun, travada no ano 878 (Ethandun era o antigo nome da atual Edington, no condado de Wiltshire). Não vou contar seu desfecho: quem conhece a história da Inglaterra já sabe, e quem ainda não conhece, na certa vai preferir ler o livro, o que, sem a menor dúvida, vale a pena fazer.