domingo, maio 29, 2016

Os Livros da Selva

Já havia algumas edições, tanto brasileiras quanto portuguesas, intituladas O Livro da Selva, circulando por aí antes, que incluíam apenas o conteúdo do primeiro The Jungle Book, publicado originalmente em 1894, e uma única edição, da Companhia das Letras (dentro de sua coleção traduzida dos famosos Clássicos Penguin) que trazia os dois (The Second Jungle Book é de 1895), mas, mais uma vez, temos que agradecer, mesmo que um tanto a contragosto, a Hollywood pelo retorno às livrarias, em grande estilo, de uma obra e de um autor que todo mundo deveria ter a chance de conhecer. No embalo do novo filme Mogli, o Menino-Lobo, a editora Zahar lança esta nova edição, chamada Os Livros da Selva (notem o plural!) e com o subtítulo Contos de Mowgli e Outras Histórias. Trata-se de uma tradução nova e, de modo geral, OK (com algumas falhas), mas confesso que teria ficado muito feliz se, ao abrir o livro, tivesse reencontrado a velha tradução de Monteiro Lobato, a primeira que tivemos publicada no Brasil, e que li quando criança.

Rudyard Kipling, o criador de Mowgli e de tantos outros personagens memoráveis, foi, em tudo, um autor inglês, mas nutriu durante toda a vida um grande amor e interesse pela Índia, então colônia britânica, e terra de seu nascimento. Começou no jornalismo, profissão que exerceu durante a maior parte da vida, mas sem nunca deixar de encontrar tempo para a literatura. Além de contos de aventuras como os que encontramos n'Os Livros da Selva, também escreveu romances e poemas – um dos quais, If ('Se'), é, sem a menor dúvida, um dos mais reproduzidos de todos os tempos (todo mundo já o recebeu por e-mail pelo menos uma vez, nem sempre com o nome do autor corretamente creditado). Ganhou o Prêmio Nobel de Literatura em 1907, tornando-se o primeiro autor de língua inglesa a receber tal distinção. Embora muitos o acusem de ter sido uma voz do imperialismo britânico – e, por sinal, uma das mais influentes –, Kipling recusou os títulos de Cavaleiro e de Poeta Laureado do Império Britânico, duas das maiores honrarias que podem ser oferecidas a um cidadão inglês; provavelmente, porque não queria ter que ficar se preocupando com o que poderia ou não dizer em suas obras, uma vez que os tivesse aceito.

Kipling esteve no Brasil em 1927, escrevendo uma série de crônicas especiais para o jornal londrino The Morning Post, dando ênfase às atividades da firma inglesa São Paulo Railway e ao dia a dia de centenas de cidadãos britânicos que trabalhavam para ela em solo brasileiro. A Railway cuidava da operação e da manutenção das estradas de ferro que conectavam o interior do estado de São Paulo ao porto de Santos, um caminho que era vital para o transporte do café, na época o principal produto de exportação do Brasil. Para servir de posto de controle e também de acomodação para seus funcionários, a companhia criou a vila de Paranapiacaba, hoje um distrito do município paulista de Santo André. Ao chegar lá, Kipling (como todos os ingleses que vieram antes) deve ter-se surpreendido com a sensação de estar praticamente em casa, pois, além da típica arquitetura britânica, o próprio clima do lugar – frio, úmido e nevoento – faz pensar na velha Inglaterra. Paranapiacaba, aliás, parece ter mudado muito pouco nos últimos noventa ou cem anos, e recomendo-a como destino para um passeio muito curioso. Em especial, não se pode deixar de visitar o "Castelo", um casarão situado bem no topo de um morro, de onde se avista toda a vila. Era a residência do engenheiro-chefe, então é provável que Kipling tenha-se hospedado ali. Quanto às crônicas, foram publicadas no The Morning Post, durante os meses de novembro e dezembro de 1927, e hoje estão disponíveis em livro, com o título Crônicas do Brasil.


Embora sua obra seja muito maior que isso, não há dúvida de que é por ter criado Mowgli, o menino-lobo, que Kipling é mais famoso. As aventuras do personagem divertem e empolgam hoje tal como o faziam no século XIX, e fizeram parte do imaginário e até da educação de várias gerações, em grande parte por serem adotadas pelo escotismo internacional como uma espécie de guia e fonte de inspiração para meninos e meninas de sete a onze anos, os "lobinhos". É fácil ver por que: essas histórias ensinam (sem deixar demasiado óbvio que estão ensinando) lições sobre amizade, disciplina, respeito aos mestres e às instituições, amor à família, e sobre como a inteligência pode triunfar sobre a força bruta. Para a criação de Mowgli, Kipling parece ter tomado como base histórias que ouviu na Índia durante sua infância e juventude, histórias essas que merecem um olhar atento, e que ele complementou com a própria imaginação.

Histórias de crianças órfãs ou abandonadas, acolhidas por animais selvagens, são contadas desde a Antiguidade (lembram-se de Rômulo e Remo?); por alguma razão, para cada história dessas envolvendo outros tipos de animais, há pelo menos umas dez sobre lobos, e a Índia é, de longe, o país com o maior número de casos relatados. Talvez isso tenha a ver com seu clima quente, já que, em lugares como a Rússia ou o Canadá, uma criança vivendo entre animais dificilmente sobreviveria ao primeiro inverno na floresta, de modo que sua história ficaria sem ser conhecida. Kipling, com certeza, ouviu falar muito no assunto, e encontrou aí a ideia de que precisava para criar um personagem por meio do qual poderia narrar diversas aventuras ambientadas nas misteriosas selvas de sua terra natal.

Quando Shere Khan, o tigre, ataca um acampamento nas montanhas de Seeonee, na região central da Índia, os humanos que lá estavam se dispersam, fugindo cada qual para um lado. Um menino – um bebê que há pouco começou a andar – vai parar na toca de uma família de lobos, onde Shere Khan acaba por localizá-lo, mas não pode entrar por ser muito grande. A mãe-loba, por nome Raksha ('a Demônia'), declara ao tigre que o "filhote" agora pertence a ela e, mais, profetiza que, quando ele crescer, irá caçar Shere Khan e matá-lo. O tigre se retira furioso, e ninguém ignora que, daí em diante, matar o menino vai tornar-se uma obsessão para ele. Algum tempo depois, o casal de lobos leva o bebê, ao qual deram o nome de Mowgli, ao conselho da alcateia, junto com seus próprios filhotes, para que seja apresentado à sociedade dos lobos. O chefe da alcateia, Akela (pronuncie Ákela) é um líder forte e justo, rígido no cumprimento da lei, mas não incapaz de ter misericórdia. Duas vozes, além das dos pais adotivos, se elevam a favor do filhote de homem. A primeira é a de Baloo, o urso-pardo, que há muito desempenha as funções de professor dos filhotes da alcateia, ensinandolhes a Lei da Selva; a outra é a de Bagheera, a pantera negra, um dos predadores mais temidos e respeitados da região. Embora não tendo direito a falar no conselho da alcateia, Bagheera oferece um preço pela vida do menino: um touro que acaba de matar. O arranjo é aceito e Mowgli fica vivendo com seus novos pais e irmãos. Durante os anos seguintes, sua vida entre os lobos é feliz e despreocupada; Shere Khan mudou seus campos de caça para outra região, e Mowgli vai sendo educado e instruído não só por Baloo, mas também por Bagheera e Akela, além, é claro, dos próprios pais. Naturalmente, os filhotes de Pai Lobo e Mãe Loba crescem muito mais depressa que ele, mas, conforme eles vão ficando adultos e seguindo sua vida na alcateia, novas ninhadas nascem, de modo que o garoto nunca fica sem irmãos. Ele se considera um lobo tal como os outros, mas, com exceção dos jovens da alcateia, tão ingênuos quanto ele, ninguém mais cultiva tal ilusão. Baloo se orgulha da inteligência de seu discípulo, mas não deixa de notar que, enquanto os lobinhos só precisam ouvir uma lição uma vez para que ela fique em suas mentes para toda a vida, no caso de Mowgli o aprendizado tem uma tendência a entrar por um ouvido e sair pelo outro. Coisas de homem. Apesar disso, o garoto tem facilidade para aprender e, infelizmente, sabe disso, o que acaba por torná-lo orgulhoso e excessivamente autoconfiante – dois defeitos que só a experiência o ensinará a corrigir, como a história A Caçada de Kaa ilustra bem.

Porém, esse tempo feliz, como sempre acontece, chega ao fim. Shere Khan retorna a Seeonee, e Akela, já velho, vê sua liderança se enfraquecer dia a dia conforme o tigre, traiçoeiro, vai-se fazendo "amigo" de muitos dos jovens lobos, engambelando-os com palavras lisonjeiras e comprando-os com os restos das presas que mata – uma desonra por si só, já que caçar o próprio alimento é um dos mais importantes pilares sobre os quais repousa o orgulho de qualquer lobo que se preze. Se mais alguém tiver visto nisso algum tipo de crítica social, que bom: é sinal de que eu não devo estar louco, afinal de contas. Aliás, mais de um estudioso mais abalizado que eu já manifestou a opinião de que parte do segredo da longevidade da obra de Kipling está nos diferentes níveis de leitura possíveis: uma criança pode ler a coisa toda como simples histórias de aventura, e, ao relê-la anos ou décadas mais tarde, perceber que há símbolos a serem interpretados, e que, onde se fala em animais, o autor pode estar retratando comportamentos humanos.

O resultado do relaxamento da disciplina é o que seria de se esperar: a alcateia se esfacela, dividida por rivalidades sem sentido e com cada lobo caçando e vagueando como bem entende, muitos deles caindo em armadilhas ou adotando modos de vida que os envergonham. Diante disso, o grupo dos que mais se importam com Mowgli chega a uma conclusão: não podem protegê-lo sempre e em toda parte, e todos sabem que basta um pequeno descuido para que Shere Khan cumpra sua vingança há tanto tempo esperada. A solução é mandá-lo de volta para os homens, e o menino, agora quase adolescente, muito a contragosto, dirige-se para a aldeia mais próxima, aquela onde seus pais biológicos possivelmente ainda vivem. Isso, de certa forma, representa o início do conflito que define a própria existência de Mowgli: nascido dos homens, mas criado entre os animais, ele não pertence de fato a nenhum dos dois mundos, e a sombra desse destino vai persegui-lo até a última de suas aventuras a ser narrada nestes livros.

Já li comentários sobre a obra de Kipling criticando-o por retratar animais comportando-se de maneiras descaradamente humanas – uma crítica, a meu ver, sem sentido; é óbvio que o autor nunca teve a intenção de descrever o comportamento das criaturas selvagens com rigor científico, ou que cabimento teria colocar Baloo como mestre dos filhotes da alcateia? Ursos e lobos são rivais naturais, que competem por território e caça em todos os ecossistemas onde convivem, seja na gelada Sibéria ou na Índia tropical. O que Kipling fazia era uma espécie de fábula, com ação empolgante e personagens inesquecíveis. Mesmo assim, ele frisa de forma insistente a diferença essencial e irremediável entre Mowgli e seus irmãos selvagens: cada animal da selva, seja lobo, urso, pantera, tigre, elefante ou outro qualquer, age sempre de acordo com sua natureza, e pode-se ter a certeza de que sempre farão isso, porque não há outro caminho possível para eles; são seres retos e sem contradições, que nunca enfrentam dúvidas sobre o que fazer diante de determinada situação. Mowgli é diferente, porque, por mais que tente esquecer o fato, é homem – e ele bem que tenta, muitas vezes, especialmente depois de ter tido contato com os humanos e ver o quanto eles podem ser tolos, cruéis e ilógicos; porém, por ser homem, ele é incomparavelmente mais complexo que qualquer animal, e, consequentemente, contraditório, e isso é algo sobre o qual não tem poder. Costuma ofender-se quando o chamam de homem, mas não hesita em recorrer a uma certa autoridade natural que sua condição humana lhe confere até mesmo sobre aqueles com quem aprendeu tudo, como Bagheera e Baloo. Não há animal na selva que consiga encará-lo sem desviar o olhar, e a combinação do "ser homem" com o conhecimento profundo da vida selvagem, dos costumes e da língua de cada espécie, acaba por fazer dele o senhor absoluto da selva e de todos os que nela habitam – o que não impede que sofra momentos de incerteza e insegurança. Sua ambivalência em relação à humanidade fica mais evidente na história O Avanço da Selva, na qual, já se acostumando a seu papel de senhor, ele decide que a aldeia não deve continuar a existir, e consegue a ajuda de diferentes animais, passando a destruir sistematicamente as colheitas e danificar as construções, até que o povo seja obrigado a ir embora e a selva retome o lugar – mas faz tudo isso sem matar ninguém.


Esta nova edição d'Os Livros da Selva traz as histórias na ordem em que aparecem nas publicações originais, diferentemente da edição que li na infância, que apresentava primeiro todas as aventuras de Mowgli, e depois as outras histórias. Isso nos permite observar que o primeiro The Jungle Book incluía apenas três histórias sobre o menino-lobo, e quatro com outros temas; provavelmente o fato de Mowgli ter-se tornado seu personagem mais querido levou Kipling a dar-lhe maior destaque no The Second Jungle Book, no qual, de oito histórias, cinco o têm como protagonista. Também é importante notar que as aventuras de Mowgli estão numa ordem cronológica aproximada, mas não rigorosa: a primeira, Os Irmãos de Mowgli, fala de sua adoção pelos lobos e, depois, de sua primeira ida para os homens, aquela da qual ele voltaria; a última, A Corrida da Primavera (que, na tradução de Lobato, chamava-se A Embriaguez da Primavera; o título original era The Spring Running, que permite diferentes interpretações, mais ou menos literais) é sobre sua ida definitiva. Por outro lado, A Caçada de Kaa, por exemplo, fica em algum lugar entre o início e o fim de Os Irmãos de Mowgli, sendo uma das inúmeras aventuras que o autor "pula", dizendo ao leitor que ele deve "simplesmente imaginar a vida magnífica que Mowgli teve entre os lobos, pois se isso fosse escrito preencheria uma infinidade de livros". Como apêndice, temos ainda Dentro do Rukh, publicada em 1893, a primeira história na qual Mowgli aparece – só que, nela, ele já é adulto e deixou a selva (apesar de ainda parecer muito ligado a ela), de modo que seria na verdade a última por ordem cronológica.

Não se pode negar que as aventuras de Mowgli são a parte mais apetitosa de Os Livros da Selva, mas estão longe de ser a única coisa interessante. No primeiro The Jungle Book, temos A Foca Branca, uma das duas únicas histórias não ambientadas na Índia. Embora Kipling se refira aos animais ali apresentados pelo nome de "focas", trata-se claramente de leões-marinhos, como as notas de rodapé da nova edição esclarecem. A foca branca do título é Kotick, um jovem macho nascido nas praias do mar de Bering, que, inconformado com o assassinato de milhares de seu povo a cada ano por caçadores de peles, decide dedicar a vida a procurar por um lugar onde as "focas" possam viver em paz, e o relato de suas viagens pelos quatro cantos dos oceanos é algo digno de acompanhar – e tanto mais admirável por sabermos que esses incríveis mamíferos marinhos são mesmo capazes de tais deslocamentos, nadando por milhares de quilômetros e passando meses a fio sem tocar terra firme. Temos também Rikki-tikki-tavi, sobre a inimizade mortal entre mangustos e serpentes. Servos de Sua Majestade é uma fábula que tem como personagens diferentes animais do exército indo-britânico: cavalos, camelos, mulas, bois de tração, elefantes e outros, todos conversando entre si, e que nos leva à conclusão de que cada um "luta" conforme sua natureza e suas capacidades, o que não significa que um tenha mais valor que outro. E, ainda no primeiro The Jungle Book, encontramos o que talvez seja a melhor história sem Mowgli de ambos os livros: Toomai dos Elefantes, sobre a vida dos homens que trabalhavam com os referidos paquidermes na Índia, na época da ocupação britânica. Um desses homens é o Grande Toomai, filho e neto de famosos mahouts (tratadores e condutores de elefantes), que alcançou um cargo bem remunerado e de certo prestígio a serviço do governo britânico na Índia, e, naturalmente, espera que seu filho, o Pequeno Toomai, siga seus passos... Só que o menino de dez anos gosta é da vida na selva, e sonha em tornar-se um dos homens que se dedicam a capturar e domar elefantes selvagens, o que, na opinião do pai, seria um retrocesso de vida.

No segundo The Jungle Book, temos O Milagre de Purun Bhagat, uma história diferente, com pouca ação, mas também interessante a seu modo, que trata de um homem originário de uma das famílias mais conceituadas da casta dos brâmanes, a mais alta da Índia, e que vem a ser um alto funcionário do governo, com excelentes conexões tanto em Délhi e Bombaim quanto na própria Inglaterra, o que lhe garantiria uma vida de poder e riqueza... Só que ele decide abandonar tudo para tornar-se um homem santo errante, passando a percorrer a pé as estradas poeirentas do interior da Índia e a viver da caridade dos que encontra.

A outra história não ambientada na Índia, como referi ao falar sobre A Foca Branca, também está em The Second Jungle Book; é Quiquern, uma aventura esquimó fortemente marcada pela estranha e macabra mitologia desse povo. Os Agentes Funerários narra a Revolta dos Sipaios, de 1857, através das memórias de um velho crocodilo que conta suas histórias a um marabu e um chacal; o réptil interpreta as reviravoltas da sociedade dos humanos de acordo com a quantidade de cadáveres que encontra boiando no rio, e que lhe poupam o trabalho de caçar. Trata-se de uma fábula também, projetando um pouco do pior da humanidade (prepotência, vaidade, servilismo, covardia) sobre as figuras dos três animais. O título parece enigmático à primeira vista, mas torna-se claro quando o leitor se dá conta de que os personagens são dois animais necrófagos por excelência (o chacal e o marabu) e um que parece bem adaptado a essa vida (o crocodilo).

O Livro da Selva chegou às telas pela primeira vez em 1942, com direção de Zoltán Korda e o ator indiano Sabu Dastagir no papel de Mowgli, mas essa produção é pouco lembrada hoje em dia; a versão mais famosa é, sem dúvida, o longa-metragem de animação da Disney, lançado em 1967, cujo roteiro, entretanto, tinha pouco a ver com as histórias originais de Mowgli escritas por Rudyard Kipling. A nova versão, também da Disney, que acaba de ser lançada, responsável pelo hype que possibilitou o surgimento desta nova edição, combina atores reais (na verdade, praticamente só o garoto Neel Sethi) com animais criados por computação gráfica; é visualmente magnífico, mas tem praticamente o mesmo roteiro que o desenho animado, deixando de fora quase todas as partes mais significativas e emocionantes das aventuras de Mowgli e pintando os personagens Baloo e Kaa, a serpente, de formas totalmente deturpadas: Baloo, que, nos livros, é um mestre austero, virou um urso bonachão e boa-vida; Kaa, que salva a vida de Mowgli na história A Caçada de Kaa e, daí por diante, torna-se sua amiga e mestra, assim como Baloo e Bagheera, nos filmes da Disney só está interessada em comer o garoto (o filme de 1942 era mais justo com ela). Para não dizer que o novo filme não traz nenhuma melhoria em relação ao desenho, ele mostra um dos momentos mais interessantes das histórias, a Trégua da Água, que tem início quando a Pedra da Paz emerge das águas do rio, o que só acontece em tempos de grande seca; enquanto essa pedra estiver exposta, é proibido aos animais carnívoros caçar junto ao rio, porque "beber é mais importante que comer". Em condições normais, os bebedouros estão entre os melhores lugares para um predador espreitar sua presa; enquanto dura a trégua, Bagheera, Shere Khan e os lobos bebem lado a lado com cervos e antílopes. Lei é Lei!

Para finalizar, uma nota de rodapé sobre as imagens: a edição da Zahar traz algumas ilustrações das primeiras edições de ambos os The Jungle Book, feitas por ninguém menos que John Lockwood Kipling, pai do autor – mas, embora eu ache isso formidável, optei por não reproduzi-las aqui, porque foi impossível resistir à tentação de usar as ilustrações da edição francesa, que são do grande Pierre Joubert, tal como a capa da mesma edição, que também estou incluindo.

domingo, abril 17, 2016

A Espada do Destino

Pegar um volume das aventuras do bruxo Geralt de Rívia, de Andrzej Sapkowski, é sempre garantia de encontrar boas narrativas de fantasia, que agradarão em cheio aos fãs dos clássicos do gênero, mas com um estilo próprio, capaz de garantir que a série não vire um mero sub-Senhor dos Anéis. Agora que o leitor já teve um vislumbre do mundo da saga e travou conhecimento com seus principais personagens, a leitura deste segundo livro flui mais fácil que a do primeiro, e, se bem que tanto aquele livro quanto este tenham altos e baixos (coisa absolutamente natural), em média a qualidade das histórias não decaiu nada em relação àquele esplêndido início.
No começo do primeiro conto deste segundo volume, intitulado O Limite do Possível, encontramos Geralt caçando um basilisco, a pedido da população de uma vila qualquer; por acaso, ou assim parece, ele vem a conhecer um simpático sujeito que diz chamar-se Borch, apelidado Três Gralhas, que viaja (sabe-se lá com qual objetivo) acompanhado de dois guarda-costas, que, vejam só, são Tea e Vea, duas sensuais e sanguinárias guerreiras zerricanas, que honram a fama de seu povo, de falar pouco e manejar a espada com a velocidade de um raio. Os quatro seguem viagem juntos, até chegarem a uma ponte que está interditada por ordem de Niedamir, o rei adolescente de Caingorn. Motivo: o rei e seu séquito estão perseguindo um dragão, que parece ter se refugiado nas montanhas do outro lado, e não querem que ninguém venha a competir com eles pela glória da caçada – uma glória um tanto duvidosa, já que o monstro foi envenenado e tudo indica que já esteja nas últimas. Geralt, por princípio, não mata dragões, mas fica interessado ao saber que há dois feiticeiros acompanhando o rei, e que um deles é ninguém menos que sua antiga amante, Yennefer. A relação dos dois parece ser bem tempestuosa… No primeiro volume narra-se como foi que se conheceram, e, ao final dele, o romance parecia ir bem; já aqui, ficamos sabendo que se separaram de forma quase violenta quatro anos antes, e Geralt, por mais de uma vez, pede a Yennefer que o perdoe de alguma coisa, que não sabemos o que é, o que ela recusa obstinadamente. Tanto a caçada ao dragão quanto o relacionamento complicado entre o bruxo e a feiticeira servem de eixos à história daí em diante, mas talvez a melhor parte seja a variada galeria de personagens que se juntam a Niedamir na perseguição ao dragão – desde um paladino idealista que o rei Artur teria orgulho de ter em sua Távola Redonda, até os Rachadores, três mercenários que matam qualquer coisa que lhes ordenem matar, desde que a recompensa seja boa.
A história seguinte é Um Fragmento de Gelo. Geralt e Yennefer, aparentemente com as pazes feitas (mas a toda hora tendo pequenas discussões, ou nem tão pequenas assim), estão hospedados numa cidade chamada Aedd Gynvael, nome originário da língua dos elfos, e que, traduzido, dá título ao conto. Para Geralt, trata-se de uma ironia desagradável que a cidade tenha um nome tão belo e etéreo, pois, para ele, ela não passa de um pardieiro infecto – embora essa opinião pouco lisonjeira tenha sido influenciada pelo fato de que, logo ao chegar, ele foi contratado para matar um monstro repelente que se escondia no lixão, e desde então tem a nítida impressão de que o fedor do lugar se estende pela cidade toda. Se dependesse de Geralt, ele e Yennefer já teriam ido embora, mas ela insiste em permanecer, e o motivo para isso não agrada mais ao bruxo que a história do lixão: ela tem visitado regularmente outro feiticeiro, um tal Istredd, com quem já teve um relacionamento no passado, e Geralt tem lá suas dúvidas de que o objetivo dessas visitas seja apenas a troca de conhecimentos profissionais. É noção corrente que os bruxos não têm sentimentos, mas aqui está um deles que positivamente sente ciúme, além de ter todas as reações normais de um homem que tem a desventura de ser completamente louco por uma mulher de cujos verdadeiros sentimentos nunca se pode ter certeza – talvez nem mesmo ela saiba ao certo quais são. Apesar de ser provavelmente muito mais velha do que sua estonteante aparência permite imaginar, Yennefer, não raro, comporta-se como uma adolescente marrenta, e quem já passou pela dolorosa experiência de se apaixonar por uma dessas (não necessariamente uma adolescente, mas uma mulher que age desse jeito, seja qual for sua idade) compreende bem os estados de espírito vividos por Geralt nesse conto: depressão e raiva (inclusive as duas ao mesmo tempo). Entre outras coisas, é a primeira vez que vemos o bruxo ficar bêbado de cair. O conto também contribui com pelo menos mais um momento a ser registrado na galeria dos diálogos deliciosos que caracterizam a saga:
– (…) Pelo que ouvi falar, nem adianta tentar determinados feitiços sem o sangue de uma donzela, de preferência morta por um raio em noite de lua cheia. Em que ele difere do sangue de uma mulher da vida que, bêbada, caiu sobre uma paliçada?
– Em nada – concordou o feiticeiro, com um sorriso amável. – No entanto, se fosse revelado que a tarefa poderia ser feita igualmente com o sangue de um porco, tão fácil de encontrar, o povaréu todo começaria a se envolver em feitiçaria. De outro lado, se a ralé tivesse de colher e usar esse sangue de donzela que tanto o fascina, lágrimas de dragão, veneno de tarântulas brancas, sopa feita de mãos decepadas de recém-nascidos ou de um cadáver exumado à meia-noite, pensaria duas vezes antes de se aventurar em tal mundo.
Não é mesmo uma explicação convincente para o fato de nove entre dez supostas fórmulas mágicas exigirem o uso de ingredientes quase impossíveis de se conseguir??
Na terceira história, O Fogo Eterno, Geralt está em Novigrad, uma das maiores cidades do continente, levado pela prosaica necessidade de fazer compras, quando topa com o bardo Jaskier, que, esqueci de dizer, também aparece em O Limite do Possível. Em ambas o encontro parece ser casual, mas, sei lá, coisas casuais não costumam ser tão frequentes… Seja como for, e apesar de falar feito uma matraca (a ponto de, por vezes, quase enlouquecer o sisudo e introspectivo bruxo), de beber vinho ou cerveja até no café da manhã, e de ter uma capacidade inesgotável para arrumar encrenca (especialmente quando há um rabo-de-saia envolvido), Jaskier é o melhor amigo de Geralt, e é também um bardo extremamente talentoso. Faz parte de sua filosofia que, embora seja possível compor uma balada com base num relato, as melhores, aquelas que caem na boca do povo e continuam a ser cantadas séculos depois da morte de seus autores, são feitas por quem testemunhou em primeira mão os acontecimentos – mas não por uma questão de fidelidade aos fatos: se for necessário mudar uma coisa aqui e outra ali para dar um sabor mais romântico e poético, ele o faz sem cerimônia, como os bardos do mundo real também faziam.
Em Novigrad, como seria inevitável numa grande cidade de um mundo multirracial, convivem humanos, elfos, anões e mais um punhado de raças minoritárias; uma delas é a dos "ananicos" (palavra que eu nunca tinha visto), que, embora tenham esse nome que sugere alguma relação com anões, lembram irresistivelmente os hobbits de J. R. R. Tolkien: são pequenos, têm pés peludos, gostam de uma vida pacata e de boa comida… Ou seja, se esses tais ananicos não são hobbits, então têm muito azar de se parecer tanto com eles (risos). Um deles, de nome Biberveldt, é conhecido de Jaskier e um comerciante próspero e conceituado na cidade, e, no momento, está às voltas com um problema embaraçoso: uma criatura transmórfica, de uma raça já tida por muitos como extinta, resolveu assumir sua aparência e anda se intrometendo em seus negócios, passando-se por ele com tanta habilidade, que até seus parceiros comerciais de muitos anos são enganados. Sobra para Geralt e Jaskier o desafio de achar um jeito de ajudá-lo a sair dessa. Quem vê Supernatural deve ter lembrado dos metamorfos da série, e talvez tenha achado a coisa meio sinistra, mas a verdade é que o conto é engraçadíssimo! Além de todas as suas outras qualidades como escritor, Sapkowski demonstra que também é versátil.
Em outra história, Um Pequeno Sacrifício, Geralt está envolvido com uma empreitada que deve ser insólita até mesmo para ele: está servindo como intérprete entre o príncipe Agloval, que governa uma cidade portuária, e a, aham, bem, "moça" por quem ele está apaixonado, a sereia Sh'eenaz. É claro que a barreira linguística não é nem de longe o maior obstáculo no caminho desse romance tão pouco convencional. O relacionamento encontra-se num impasse, já que nenhum dos dois está disposto a abandonar o meio vital onde cresceu – leia-se: o príncipe não quer se transformar num tritão, e a sereia tampouco quer se converter numa mulher humana, embora, pelo que se diz, existam meios mágicos capazes de realizar ambas as coisas. Exceto pela roupagem de fantasia, parece haver pouca diferença entre as picuinhas desse casal e as de vários que eu conheço, e vocês, provavelmente, também… É Sapkowski dando seguimento a sua curiosa experiência de imaginar como os contos de fadas seriam, caso o mundo onde eles têm lugar fosse habitado por pessoas de carne e osso. Para dar um vislumbre de como a realidade vira conto de fadas, Jaskier descreve a Geralt a balada que está compondo sobre o episódio – e que é nada mais, nada menos que o famoso conto de fadas A Pequena Sereia, de Hans Christian Andersen (mas esqueçam o desenho da Disney: leiam o conto original de Andersen, que é muito forte e não tem final feliz).


Ainda em Um Pequeno Sacrifício, Geralt experimenta um lance inesperado em sua sofrida vida amorosa ao conhecer a poetisa Essi, a "Olhuda" – encantadora, inteligente e cheia de personalidade. Só é um tanto difícil explicar o fato de que Jaskier, que a conhece há anos, consiga interagir com ela em termos de pura amizade e coleguismo: embora este seja apenas o segundo volume da saga, já deu para perceber que o bardo não é o tipo de homem de ter amigas. Talvez seja algum tipo de ética profissional: vai ver, ele prefere não se envolver com uma colega de profissão, que, dependendo da situação, pode ser para ele tanto uma colaboradora quanto uma concorrente. Seja como for, o conto, que tem momentos engraçados e outros cheios de ação, termina com um lirismo melancólico, até agora inédito nas aventuras de Geralt. O que eu dizia há pouco sobre a versatilidade de Sapkowski torna-se mais verdadeiro ainda.
A história seguinte é a que dá título ao livro, e, nela, Geralt se envolve num conflito territorial entre humanos e dríades (que os humanos, em alguns lugares, chamam de "pantânamas"). Novamente, a fantasia serve de tela para apresentar problemas do mundo real, neste caso o fato de que todo conflito por espaço vital entre diferentes povos é também um conflito de culturas e visões de mundo. Aqui, os humanos, com seu ímpeto de expansão, representam a civilização moderna, baseada na indústria, no comércio e no "progresso", enquanto as dríades simbolizam os povos selvagens, que ainda vivem na dependência da natureza e, no fundo, não têm chance de resistir ao avanço da civilização, restando-lhes a escolha entre integrar-se a ela ou desaparecer. Para tornar as coisas ainda mais difíceis para as dríades, elas dependem dos humanos para se perpetuarem: como são todas mulheres, precisam acasalar com homens para poderem procriar – e parece que, nos últimos tempos, têm apelado também para o simples expediente de raptar meninas humanas para criá-las entre elas; uma vez crescidas, essas meninas são consideradas dríades, tanto quanto as outras. E, claro, esses raptos tornam-se um fator de conflito a mais. As aventuras de Geralt de Rívia acontecem numa época em que seu mundo está em pleno processo de transformação, com o crescimento da civilização humana gradualmente causando a extinção dos seres fantásticos, ou obrigando-os a buscar refúgio nos poucos cantos inacessíveis que ainda restam. Geralt conta que existem lugares onde elfos e outros povos fizeram acordos com os humanos e puderam continuar vivendo em relativa tranquilidade – ainda que sua cultura, provavelmente, tenha sido profundamente modificada (e é claro que isso só é possível para espécies dotadas de inteligência e capacidade de contemporizar; para monstros irracionais como os que Geralt caça, parece não haver alternativa à extinção). As dríades poderiam fazer o mesmo, mas estão irredutíveis em sua recusa de qualquer acordo, o que leva o bruxo a não ter expectativas muito otimistas em relação ao seu futuro. Eithné, a líder da comunidade das dríades, inevitavelmente nos faz lembrar a rainha élfica Galadriel, de O Senhor dos Anéis, com a diferença de ser teimosa e não ter a mínima empatia ou simpatia para com os seres humanos. Por fim, A Espada do Destino (o conto) também marca o aparecimento da pequena princesa Ciri, uma personagem cuja origem está entrelaçada com uma antiga aventura de Geralt, narrada em O Último Desejo, e que provavelmente terá um papel importante em acontecimentos ainda por vir.
Há uma observação que fatalmente me arrastará para uma longa digressão, e que, portanto, talvez eu devesse me abster de fazer, mas não adianta, não resisto (risos). Na terra das dríades, Geralt reencontra um sujeito de nome Freixenet, que lhe manifesta gratidão por havê-lo livrado, tempos antes, de um feitiço que o transformara num pelicano. O curioso é que, antes do bruxo lançar seu contrafeitiço bem-sucedido, a irmã de Freixenet – uma jovem linda e bobinha, casada com um rei – havia tentado inutilmente desenfeitiçá-lo utilizando um manto feito de urtigas. Durante o diálogo dos dois, Geralt conta a Freixenet que sua história ganhou o mundo, está sendo contada e recontada (e cantada, pois os bardos não ficariam de fora), mas, é claro, com algumas modificações. Parece que alguém achou que o pelicano era um pássaro pouco romântico e o substituiu por um cisne, além de dar a Freixenet um lote de dez irmãos, que teriam, todos, sofrido a mesma maldição que ele. Nessa versão, Geralt nem aparece: os onze rapazes-cisnes são efetivamente salvos pelos mantos de urtigas feitos por sua irmã. Em resumo, o que temos aí é o enredo de outro conto de Hans Christian Andersen, Os Cisnes Selvagens! Pelo visto, Sapkowski, neste volume, estava decidido a homenagear o escritor dinamarquês. No tempo de Andersen (que viveu de 1805 a 1875), os contos de fadas haviam-se tornado muito populares, graças, principalmente, ao trabalho dos irmãos Grimm, que compilaram, redigiram e publicaram muitos deles, levando também a uma revivescência do interesse pela obra de Charles Perrault (1628-1703). Por causa dessa popularidade, muitos escritores do século XIX tentaram criar histórias originais no mesmo estilo desses contos, mas, embora alguns tenham até feito certo sucesso em sua época, Andersen (por sinal, amigo pessoal dos Grimm) foi o único que conseguiu criar novos contos de fadas que perduraram. Vale lembrar que os Grimm não inventaram histórias – apenas puseram por escrito contos folclóricos, a maioria deles de provável origem medieval, que circulavam oralmente nas regiões rurais de seu país natal, a Alemanha.
A última história chama-se Algo Mais. Outro detalhe interessante da escrita de Sapkowski é que o título de cada conto costuma aparecer diversas vezes nos diálogos dos personagens, não raro assumindo diferentes significados, todos importantes para a trama. E aqui não é diferente: o conto trata da ideia de que, mesmo que o destino seja real (coisa na qual Geralt não acredita, mas muita gente em seu mundo, sim), o fato de alguma coisa estar predestinada não basta – é preciso algo mais. Tudo começa quando Geralt, percorrendo uma região selvagem e perigosa, encontra-se por acaso (?) com Yurga, um mercador que está em sérios apuros: sua carroça sofreu um acidente no meio de uma ponte e, com a aproximação da noite, os dois empregados que o acompanhavam deram no pé, aterrorizados com os sons vindos da floresta circundante. Sons esses que não são um alarme falso: a região é o lar de uma raça de criaturas diminutas, porém malignas, e que compensam seu pequeno tamanho atacando sempre em bandos numerosos. Geralt concorda em proteger e auxiliar o comerciante, frisando que não pode dar garantia alguma de que o episódio não vá terminar com ambos mortos – e, como vai arriscar a vida, pede uma recompensa muito especial. Nada de dinheiro: o que o bruxo quer em troca de seus serviços é a promessa de Yurga de que lhe dará "aquilo que encontrar em casa ao retornar e que não esperava". Isso, é claro, costuma significar uma criança, e é assim que os bruxos normalmente asseguram a continuidade de sua ordem, já que não podem constituir famílias e são estéreis… Não vou entregar mais detalhes do conto, exceto um: ferido, Geralt toma um elixir misterioso dentre os vários que sempre leva consigo, e que, ao mesmo tempo em que tem poderes curativos, age de forma estranha sobre a mente, levando-o a sonhar com diferentes momentos de seu passado, desde um encontro melancólico com Yennefer até a ocasião em que testemunhou o desesperado êxodo dos sobreviventes da cidade de Cintra, destruída por invasores vindos de Nilfgaard. Tudo isso antes de um final pra lá de inesperado.
A Espada do Destino é o segundo volume da série sobre as aventuras de Geralt de Rívia, e o último a ter o formato de uma coletânea de contos às vezes (aparentemente) soltos, outras vezes interligados entre si; o próximo, O Sangue dos Elfos, marca uma mudança de rumo, ou, pelo menos, de método, pois, daí em diante, a série prossegue com romances. É fácil imaginar como a coisa se deu: Sapkowski começou pelos contos, que podiam ser publicados em revistas e, mais tarde, caso houvesse demanda por isso, reunidos em livros, que foi o que de fato ocorreu; com a boa recepção que sua criação teve por parte do público, o escritor e seu editor devem ter tido uma conversa e decidido por essa mudança – e eu realmente espero que Sapkowski tenha recebido gordos adiantamentos por todos os volumes seguintes, bem como uma boa participação em suas vendas, na cessão dos direitos para a TV e para a série de videogames The Witcher, e assim por diante. O cara merece.

sábado, março 19, 2016

Dança Macabra

Embora eu seja um fã de Stephen King (como quem acompanha este blog, se é que alguém acompanha, já deve ter percebido), não tenho a pretensão de ser um grande conhecedor de sua obra… E vamos concordar, ser um grande conhecedor de King é uma empreitada que requer um tremendo investimento em termos de tempo, dinheiro e espaço na estante: vai ser prolífico assim lá no Maine! Portanto, não estou (muito) envergonhado de só agora ter lido Dança Macabra, cuja publicação original é de 1981.

Trata-se de uma leitura muito interessante, além de muito útil para todos os aficionados do terror em qualquer de suas apresentações: literatura, cinema, TV, quadrinhos e o que mais imaginarmos. H. P. Lovecraft escreveu O Horror Sobrenatural na Literatura, sobre o qual já falei aqui uma pá de vezes, mas que nunca me senti à vontade para transformar em assunto de um post próprio; já Dança Macabra, tão logo percorri suas 20 ou 30 primeiras páginas, já deixou claro o fato de que eu teria que escrever sobre ele. Por quê? Não sei. Talvez (e isso não passa de um palpite) porque já tenha lido mais coisas de King que de Lovecraft, e por isso tenha a sensação de entender melhor como funciona a cabeça do autor. No mais, acredito que o paralelo (não é uma comparação) procede: cada um procurou apresentar um panorama da tradição que o precedeu na ficção fantástica. Lovecraft, em sua época, praticamente só tinha a literatura da qual tratar, e, nesse campo, cobriu quase três séculos de obras e autores europeus e norte-americanos. Já King, escrevendo entre o fim da década de 70 e o começo da de 80, precisava cobrir uma gama muito maior de mídias, e, talvez por isso, optou por restringir o arco de tempo a ser abrangido pelo ensaio: seu assunto propriamente dito é a produção de terror das décadas de 50, 60 e 70, embora seja impossível evitar, vez por outra, uma incursão no passado em busca das origens de determinados horrores. Também à diferença de Lovecraft, King não se detém apenas em obras de terror, dando alguma atenção também à fantasia e à ficção científica, em especial a segunda, já que, durante o período que ele analisa, ficção científica e terror frequentemente interagiram, dialogaram e se interpenetraram, na literatura e sobretudo no cinema.

Já que estamos falando de gêneros, peço a indulgência de meus leitores para também expor um pouco de teoria de minha própria lavra. Gosto de agrupar ficção científica, terror e fantasia (na literatura, claro está) debaixo de um mesmo e enorme guarda-chuva que chamo de "literatura de imaginação". Os três têm em comum o fato de não terem suas temáticas limitadas pelas amarras do "possível" (para não falar no fato de, muitas vezes, serem produzidos e/ou consumidos pelas mesmas criaturas estranhas), mas também têm entre si grandes e importantes diferenças. Desse trio, a ficção científica é a que mantém maior distância em relação a seus "irmãos" terror e fantasia, os quais, por sua vez, são muito próximos um do outro – King chega a dizer que o terror não é propriamente um gênero, e sim um subgênero dentro da fantasia, uma asserção com a qual eu não sei se concordo. E o que é que causa essa distância? Bem, a ficção científica é um gênero jovem, não no sentido de atrair o público jovem, mas no de existir há pouco tempo mesmo: seus primeiros expoentes dignos de nota são do século XIX. O terror e a fantasia, por outro lado, são muito antigos; nem sequer é possível fixar um marco exato de onde começam, herdeiros diretos que são da mitologia e do folclore – coisas que acompanham nossa espécie desde que ela passou a merecer o nome de humana. E, se a ficção científica teve um início recente, isso foi porque ela só pôde aparecer quando a ciência em si já estava madura a ponto de poder servir de inspiração para um gênero literário. Temos, então, que histórias de ficção científica são aquelas baseadas na ciência, ou, ao menos, em uma imitação aceitável de ciência; é um gênero que precisa oferecer explicações. A fantasia e o terror não precisam de explicações: sua matéria é a magia, o misticismo e o sobrenatural. Numa palavra, o inexplicável.


É claro que isso não significa que não possam ocorrer crossovers entre esses gêneros – e aqui devolvo o microfone a King. Obrigado, mestre. Logo no começo do livro, ele usa a miríade de filmes sobre invasões alienígenas que o cinema norte-americano produzia e exibia durante seus tempos de infância como ponto de partida para tecer uma reflexão. King, que nasceu em 1947, frequentemente se refere a sua própria geração como os "filhos da guerra" – a geração que colheu os frutos da vitória na Segunda Guerra Mundial. Todos os frutos. Por um lado, essa geração de norte-americanos cresceu em meio a uma prosperidade econômica com a qual seus pais e avós só poderiam ter sonhado; por outro, também cresceu em plena Guerra Fria, cercada pela paranoia constante da "ameaça comunista" (pois a União Soviética, outrora a mais importante aliada dos Estados Unidos contra as potências do Eixo, lideradas pela Alemanha nazista, era agora o inimigo a ser temido) e, pior ainda, convivendo com o fato de que uma guerra nuclear de extermínio total poderia estar à distância de um apertar de botão. A pergunta é inevitável: o que metia medo naquelas crianças e jovens? Por muito tempo, foram esses filmes (em geral toscos, é verdade) sobre invasores do espaço, que resultavam numa alegoria sobre a possível investida do inimigo – e, como bem observa o autor, a alegoria estava lá, pouco importa que o diretor tivesse feito a coisa de propósito ou que (nas palavras de King) o subtexto tivesse simplesmente acontecido. O resultado final de tudo era que, embora esses filmes partissem de elementos da ficção científica – civilizações extraterrestres, espaçonaves –, o efeito obtido era de terror. Em outro exemplo semelhante, King nos apresenta a lenda do "maníaco da mão de gancho", que era contada ao redor de muitas fogueiras de acampamento quando ele era garoto (e antes, e depois) e explica por que ela não deixaria de ser terror, mesmo que alguém decidisse recontá-la substituindo o maníaco por um ser de outro planeta ou de outra dimensão.

Continuando com suas teorizações, o autor apresenta a ideia – surpreendente de certa forma, mas que não deixa de fazer sentido – de que, por mais que o terror pareça um gênero transgressor (já que muitas vezes choca, seja com as alusões sexuais, ousadas para a época, de um Drácula, ou com o horror explícito de revirar o estômago de um Alien, o Oitavo Passageiro), o papel do escritor de terror, no fundo, é o de um agente do status quo, ou, se preferirem, o de um guardião da normalidade. Seguindo essa linha de raciocínio, a narrativa de terror não seria mais que uma variação da velha dicotomia "nós versus os outros". "Nós", nesse caso, significaria a sociedade e o modo de vida que conhecemos, e que talvez não propriamente amemos, mas com os quais, ao menos, nos sentimos confortáveis, rodeados pelo que nos é familiar; os "outros" seria qualquer tipo de criatura ou elemento que surgisse para subverter a ordem estabelecida dessa sociedade e desse modo de vida, quer falemos aqui de fantasmas, vampiros, serial killers ou alienígenas malvados – ou de qualquer das inúmeras coisas às quais esses seres podem servir de metáfora. Caberia ao autor, então, deixar bem marcada a distinção entre… Putz, eu estava pronto para escrever "entre o bem e o mal", mas isso é simplista demais. Talvez seja melhor dizer que o trabalho do autor de terror consiste em acumular sobre alguma figura, seja real ou imaginária, tudo aquilo que nos inquieta e atormenta, inclusive em nós mesmos, dando-nos, assim, um objeto conveniente ao qual direcionar nosso ódio, temor, ou nossa simples perplexidade. E, como o leitor mais perspicaz já deve estar pensando, isso pode ser usado de muitas maneiras. Pode nos proporcionar uma saudável catarse, permitindo que exorcizemos nossos impulsos violentos transferindo-os para um lobisomem fictício, ou pode ser usado com objetivos de controle social e político, com resultados catastróficos – vide o que aconteceu quando os nazistas conseguiram convencer o povo alemão de que eram os judeus o "monstro" que ele devia temer.

(Falar em lobisomem me fez lembrar de O Médico e o Monstro, de Robert Louis Stevenson, que King considera uma variação moderna do velho mito, e que mereceu uma análise detida e comentários elogiosos. Para o autor, o livro de Stevenson forma, com Drácula, de Bram Stoker, e Frankenstein, de Mary W. Shelley, a tríade das grandes obras da ficção gótica, sendo ainda, segundo ele, a mais bem escrita das três, por conta de sua narração fluente e concisa, o que não é uma característica das outras duas.)

Em diferentes momentos ao longo do livro, King deixa-se arrastar (de forma deliberada, não tenho dúvida) para reminiscências autobiográficas. Na época, embora já se tivesse firmado como um escritor de sucesso, ele não tinha como saber que viria um dia a ser considerado um nome-chave na história da literatura fantástica, de modo que, ao partilhar essas reminiscências, ainda não sabia da importância que elas viriam a ter, e, então, apresenta-as somente como uma espécie de testemunho pessoal – valioso, de qualquer forma. Embora o gosto pela fantasia, e, em particular, pelo seu lado mais sinistro, pareça ter feito parte dele desde sempre, o autor arrisca apontar alguns acontecimentos de sua infância que podem ter tido sua parcela de culpa. Muito para minha surpresa, fiquei sabendo que o pai de King (que abandonou a família quando o pequeno Stephen tinha dois anos de idade e nunca mais foi visto pelos filhos), marinheiro de profissão, era um fã de ficção científica e terror, gêneros que lia avidamente e nos quais chegou a tentar a sorte como escritor, embora nunca tenha conseguido publicar nada. King, que não lembra de nada sobre o pai, acredita que seu definitivo "despertar" para o terror aconteceu quando, aos dez ou onze anos, encontrou, num sótão empoeirado, um caixote contendo alguns livros que haviam pertencido a ele, com destaque para uma coletânea dos contos de H. P. Lovecraft. Anos antes disso, porém, outra "epifania" já havia acontecido, numa ocasião em que um namorado de sua mãe levou toda a família para ver O Monstro da Lagoa Negra, filme que, hoje em dia, dificilmente ainda conseguiria meter medo em alguém (os sereianos de Harry Potter são, de longe, bem mais assustadores que o tal monstro, e isso para ficar só nas criaturas aquáticas), mas que deixou uma impressão profunda na imaginação de um garoto de sete anos naqueles meados da década de 50. E antes, ainda, outro evento pode ter deixado sua marca: aos quatro anos, King talvez tenha sido testemunha ocular da morte de um vizinho da mesma idade com quem costumava brincar, e que foi atropelado por um trem (digo "talvez” porque ele afirma não se lembrar de nada, sabendo do caso somente pelo relato da mãe, que não estava presente no momento do acidente; pode ser que, afinal de contas, ele não estivesse na companhia do amigo quando o fato aconteceu, mas também é possível que sua mente tenha simplesmente bloqueado essa memória, como dizem que acontece em casos de grandes traumas). King considera rematada tolice atribuir toda uma carreira literária a um trauma de infância, como alguns tentaram fazer desde que ele contou esse caso numa palestra, mas o episódio parece ter dado origem a uma história em particular: levante a mão aí quem lembrou do belíssimo filme Conta Comigo (Stand by Me), baseado em seu conto The Body, que, no Brasil, pode ser lido na coletânea Quatro Estações.

Outra obra que sem dúvida teve o seu peso na formação de King foi Além da Imaginação (The Twilight Zone), série criada por Rod Serling e exibida pela rede de TV americana CBS de 1959 a 1964. King dedica um bom espaço a essa série, e, mesmo que o tom no qual se refere a ela nem sempre possa ser considerado reverente (ele não hesita em apontar o que considera ruim), nota-se que, de modo geral, lembra dela com carinho. Além da Imaginação tinha formato de antologia, apresentando em cada episódio uma história fechada, independente das demais, com a temática variando entre terror, fantasia e ficção científica. No começo, quase todos os roteiros levavam a assinatura de Serling, às vezes adaptando contos de autores consagrados da literatura de imaginação, como Manly Wade Wellman, Richard Matheson e Ray Bradbury, entre outros menos famosos. Ainda durante a primeira temporada, o próprio Matheson, fisgado pelo projeto, passou a colaborar, de forma mais ou menos regular, com roteiros originais. Cancelada ao final de sua quinta temporada, Além da Imaginação seria, mais tarde, retomada por duas vezes. A primeira foi na década de 80, poucos anos depois da publicação de Dança Macabra; ainda lembro de muitos episódios dessa versão, à qual assistia na adolescência. Stephen King em pessoa escreveu ao menos um episódio, Gramma ('Vovó'), estrelado pelo garoto Barret Oliver, de A História Sem Fim, e os nomes de um punhado de outros escritores de peso também podem ser encontrados nos créditos: Harlan Ellison, Theodore Sturgeon, Ray Bradbury e George R. R. Martin. O segundo revival teve 44 episódios, exibidos entre 2002 e 2003, e é considerado pelos fãs a menos inspirada das três encarnações da série. Existe, ainda, um longa-metragem de 1983, intitulado Twilight Zone: the Movie, lançado no Brasil como No Limite da Realidade. O filme traz quatro histórias independentes, cada uma com cerca de 30 minutos de duração; três são remakes de episódios da série original, e uma é inédita. A produção é de Steven Spielberg, que também dirigiu um dos segmentos. Vários atores que participaram da série reaparecem. Note-se, de passagem, que esse formato de filme (longa-metragem composto de várias histórias mais curtas, quase sempre de terror) andou bastante em voga durante os anos 80 – posso lembrar de pelo menos mais dois exemplos: Nightmares ('Pesadelos Diabólicos'), de 1987, e Tales from the Darkside ('Contos da Escuridão'), de 1990. E deve haver outros. Puxa, que nostalgia bateu agora…

Dança Macabra, vamos admitir, parece ter uma organização um tanto caótica ("organização caótica"… Isso não é uma contradição?), fato para o qual o autor, de forma absolutamente honesta, já nos havia advertido em sua introdução; parece uma mistura de caderno pessoal de anotações, trechos de roteiros de palestras, e até mesmo apontamentos de tópicos levantados em conversas com amigos que também estavam envolvidos, de uma forma ou de outra, com a ficção de terror. Há, é claro, capítulos dedicados à ficção impressa, ao cinema, à TV e até ao rádio, mas o autor parece ter achado impossível se restringir, em cada um deles, àquele que deveria ser seu assunto específico: fazer isso implicaria em perder inúmeras oportunidades de traçar paralelos e construir ligações interessantes. E, para falar a verdade, essa ligeira balbúrdia acaba por ter um efeito positivo: dá ao produto final um ar mais informal e simpático, evitando o ranço de academicismo que poderia facilmente se formar num trabalho desse tipo.

A prosa ágil e por vezes irônica de King é tão agradável de acompanhar neste ensaio quanto em qualquer de seus trabalhos de ficção, mas não dá para fechar os olhos aos defeitos, e o maior deles, ou, ao menos, eu senti assim, é algo que talvez só seja um defeito para leitores estrangeiros como nós: o tom excessivamente norte-americano do texto, em geral concretizado nas constantes menções a coisas e principalmente pessoas que não temos ideia de quem sejam. Não me refiro a escritores ou cineastas, pois, embora muitos dos autores e obras dos quais o autor fala sejam mesmo desconhecidos para nós, eles são pertinentes ao assunto, e acabam se tornando parte do nosso acervo de referências, mesmo que não os tenhamos lido ou assistido e, por consequência, só os conheçamos por meio do que King diz; o que por vezes incomoda são as pencas e mais pencas de nomes de esportistas, políticos, cantores, apresentadores, celebridades locais e outros tipos que só um norte-americano, e digo mais, em muitos casos só um norte-americano daqueles dias, poderia saber quem eram. (Calma! Eu sei quem foram Eddie Cochran e John F. Kennedy, mas há nomes muito mais obscuros que esses, que não consigo me sentir culpado por não conhecer.) Além disso, noto em King uma dificuldade que eu também tenho: é duro resistir à tentação de incluir uma informação interessante ou um comentário mordaz quando eles nos vêm à cabeça no meio de uma frase, mesmo sabendo que, por amor à concisão e à clareza, deveríamos fazer o sacrifício. Isso resulta em longas interpolações que, não raro, fazem com que o leitor perca completamente o fio da meada e precise voltar atrás, reler a parte da frase que estava antes dessa intromissão, e pular para o que está depois, para conseguir juntar os sentidos. Esse cacoete, por sua própria natureza, aparece com muito mais frequência num ensaio que num texto de ficção; felizmente, a estrutura do ensaio permite o uso de notas de rodapé (às quais King, por sinal, recorre a toda hora), o que minimiza o problema. É preciso lembrar, também, que Dança Macabra foi escrito quando King tinha apenas 33 anos – e, como escritor não é jogador de futebol, essa era uma idade bastante jovem. Mais tarde, ao longo do tempo, ele iria lixando essa aresta.

Dança Macabra é interessante por ao menos duas boas razões: além de nos levar a uma compreensão mais profunda do fenômeno do terror na cultura popular do século XX, também traz informações sobre o próprio King que todos os fãs do escritor certamente vão apreciar conhecer – tanto informações sobre seu background por meio das partes autobiográficas, quanto sobre seu modus operandi e o porquê de algumas características que são indissociáveis de sua obra. Pena que a qualidade da edição nacional deixe tanto a desejar: há muitos erros de concordância, e inúmeros nomes próprios estão grafados errado (o escritor de ficção científica Poul Anderson virou "Paul Andersen", e Robert W. Chambers, o autor de O Rei de Amarelo, virou "Chalmers", entre muitos outros exemplos); além de tudo, até mesmo a fonte usada não é das que tornam a leitura mais confortável, sinto dizer. Na época desta edição (2003), as obras de King eram publicadas no Brasil pela Objetiva; não sei qual é a relação entre essa editora/selo e a Suma de Letras, que as publica atualmente, mas, por ocasião da transição, vários dos livros continuaram a ser impressos com as mesmas capas e o mesmo visual, mudando apenas o selo na lombada e no canto inferior direito de cada capa. Em todo caso, tenho a impressão de que as edições mais recentes são mais bem cuidadas. Espero não me decepcionar! Bons pesadelos a todos.

quarta-feira, fevereiro 03, 2016

A Máquina de Matar

Cerca de um ano depois de ter conseguido eliminar Attel Malagate, o primeiro de sua lista negra, Kirth Gersen atravessa um período de marasmo. Suas investigações em busca dos outros Príncipes-Demônios parecem ter chegado a um beco sem saída. Nessa situação, ele aceita um convite para uma reunião com um oficial da CCPI (Companhia de Coordenação Policial Intermundos), organização para a qual já trabalhou como freelancer no passado. O oficial tem em alta conta as habilidades de Gersen, e por isso deseja enviá-lo para um planeta periférico, no qual ele tem motivos para acreditar que certo indivíduo procurado pela CCPI esteja tratando de seus próprios negócios. A tarefa de Gersen seria a de localizar o homem e trazê-lo de volta, vivo se possível. Morto também serve. Entretanto, seu mandante em potencial se recusa a fornecer qualquer informação além das estritamente necessárias ao desempenho da missão: não diz por que o sujeito está sendo procurado e nem sequer sua verdadeira identidade, designando-o apenas por "Sr. Hoskins" – obviamente um nome fictício. Gersen, que não gosta de trabalhar no escuro, está pronto para recusar a incumbência quando o outro, quase por acaso, menciona que Kokor Hekkus, vulgo "a Máquina de Matar", um dos tristemente famosos Príncipes-Demônios, pode estar envolvido nos assuntos dos quais o procurado anda tratando. Isso muda totalmente as coisas para Gersen, que, embora mantendo a aparência de desinteresse para não dar na vista, toma no mesmo instante a decisão de aceitar a missão.

No planeta designado, Gersen testemunha o encontro de "Hoskins" com um tal Billy Windle, que ele suspeita ser um agente a serviço de Kokor Hekkus. O encontro acaba mal para "Hoskins", que perde a vida; ele estava em vias de trocar certos papéis com Windle, mas a intervenção de Gersen impede que a transação se concretize e, quando tudo termina, nosso herói se vê de posse de dois documentos. Um deles, rasgado durante a luta, está incompleto, e traz certas instruções envolvendo matemática, para algum propósito misterioso. O outro, para seu assombro, consiste em nada menos que instruções sobre como se tornar um hormagaunt – uma espécie de bicho-papão desses tempos futuristas, uma classe de homens que, segundo se diz, conseguem prolongar indefinidamente a própria vida utilizando ingredientes misteriosos obtidos dos corpos de jovens ou crianças. Como toda pessoa racional, Gersen sempre viu isso como mera fábula, mas é forçado a reconsiderar ao ver-se diante das tais instruções por escrito, que "Hoskins", sem dúvida, considerava sérias. Dizendo de outra forma: a coisa em si talvez não seja real, mas Gersen sabe agora que há pessoas que acreditam que seja – o que, para muitas finalidades, dá no mesmo. Em adição a tudo isso, um garoto que ele encontra naquele planeta afirma categoricamente que Billy Windle é mesmo um homem de Kokor Hekkus, que Hekkus é um hormagaunt, e que vive no planeta Thamber. Não que isso, em princípio, torne a coisa mais crível: Thamber é o planeta das lendas e dos contos de fadas. Aqui na Terra, quando os contos de fadas surgiram, supunha-se que as maravilhas e os horrores neles descritos acontecessem em "reinos distantes", pois, naquela época, nosso mundo ainda possuía suficientes partes inexploradas para permitir o benefício da dúvida quanto à existência de lugares assim; já nos tempos pós-exploração espacial em que se desenrola a Saga dos Príncipes-Demônios, as bruxas, os dragões e as princesas encantadas "migraram" para esse planeta misterioso, de localização desconhecida e existência duvidosa. Portanto, no que diz respeito a Gersen, o assunto fica sobrestado até que novos elementos surjam; ele já viu coisas demais para fechar a mente a qualquer possibilidade, mesmo as mais fantásticas.

Gersen tem seus motivos para trabalhar ocasionalmente para a CCPI, e o pagamento oferecido por cada missão não é o principal deles; para ele, ter contatos dentro da organização é muito mais valioso, pois lhe garante acesso a informações que não estariam disponíveis a pessoas comuns, e que, para ele, podem ser de importância capital. Pouco mais de um mês depois do incidente com o "Sr. Hoskins", o Oikumene (termo que Jack Vance foi buscar no grego clássico, e que significa algo como “o universo habitado”) começa a ser assolado por uma onda de sequestros. Não que sequestros sejam tão incomuns, mas esses são todos realizados de forma muito parecida, e não visam simplesmente pessoas ricas – só as extremamente ricas, ou seus entes queridos. O resgate solicitado também é o mesmo para todos: cem milhões de UPVs (a UPV, Unidade Padrão de Valor, é a moeda corrente nos mundos humanos). Tudo parece indicar que todos os sequestros tenham sido arquitetados por um mesmo mentor, e, graças ao acesso privilegiado a informações de que falávamos há pouco, Gersen descobre que esse mentor é Kokor Hekkus. Naturalmente, a questão que se impõe é: para que teria ele necessidade de tanto dinheiro, e com tamanha urgência que não pode dispor do tempo de obtê-lo por meio das suas atividades criminosas habituais, que chamam muito menos atenção?

Este é o momento em que precisamos conhecer outra particularidade desconcertante do universo exótico de Jack Vance. Como sabe quem já leu algum dos cinco volumes da Saga dos Príncipes-Demônios, o Oikumene, apesar do nome, não é todo o universo conhecido – somente a parte dele que pode ser considerada relativamente civilizada e segura. Suas "metrópoles", por assim dizer, são o sistema do Sol (o nosso, onde fica a Terra, berço da humanidade) e os de Vega e Rigel. Nesses sistemas, e nos outros que estão sob sua influência direta, existem leis, e também os órgãos dedicados a garantir que elas sejam cumpridas, o que oferece aos cidadãos um certo grau de proteção, embora, é claro, seja impossível impedir totalmente a ação de criminosos. O Oikumene é uma região vasta, mas nem de longe tão grande quanto o "resto", quer dizer, aqueles sistemas estelares que até podem já ter sido explorados e mapeados, mas que a força da lei não alcança e onde, literalmente, vale tudo – uma espécie de Velho Oeste cósmico. Esse é o assim chamado Além-Espaço, ou, às vezes, apenas o Além. Nem é preciso dizer que nele não é difícil encontrar contrabandistas, piratas, mercadores de escravos e todo tipo de bandidos comuns e incomuns, mas não só isso. Também é no Além que certas empresas são fundadas e prosperam, e não se trata somente de facções criminosas brutais e pouco organizadas: há companhias habilmente administradas por empreendedores esclarecidos, com funcionários, estatutos, hierarquia, burocracia e tudo o mais. O motivo pelo qual os fundadores dessas empresas escolheram estabelecê-las no Além-Espaço é um só: os negócios aos quais elas se dedicam são ilegais.

Uma dessas empresas é Intercâmbio, cujo ramo de atuação consiste em intermediar sequestros. A companhia possui um complexo instalado num pequeno planeta na borda do Além-Espaço, e é para lá que sequestradores de todos os lugares levam suas vítimas, eliminando a necessidade dos trabalhosos, arriscados e pouco práticos cativeiros. Mediante uma comissão sobre o valor do resgate, Intercâmbio se encarrega da custódia dos reféns e cuida de seu conforto, saúde e segurança, além de receber o pagamento e repassá-lo ao sequestrador (que, no jargão da companhia, é chamado de "patrocinador").

Intercâmbio existe há muito tempo, goza de prestígio e pode mobilizar recursos cuja extensão ninguém conhece ao certo; nem mesmo Kokor Hekkus ousaria tentar trapaceá-lo – guardem essa informação. No atual momento, aliás, Hekkus é o principal cliente da companhia: quase todos os dias uma de suas naves chega trazendo novos reféns. Gersen decide ir até lá ver o que descobre, e, para tanto, faz um acordo com um dos figurões cujos filhos foram sequestrados; é na qualidade de agente desse homem que ele chega a Intercâmbio, onde, graças à tagarelice de um empregado (encorajada por um pouco de dinheiro), fica sabendo, por fim, o que há por trás daquilo tudo. E o que descobre o surpreende, embora, pensando bem, bata com aquilo que se sabe sobre Kokor Hekkus. O Príncipe-Demônio tem duas paixões: uma são máquinas complicadas, e a outra é a beleza. Adora antiguidades e obras de arte, que compra ou rouba por todo o Oikumene e no Além-Espaço. Aconteceu então que, levado por essa obsessão estética, ele se encantou por certa jovem cuja beleza (dizem) desafia descrições, e que (também dizem) é originária do mítico Thamber. Horrorizada ante a perspectiva de cair nas mãos de Hekkus, e sabendo que ele moveria céus e terras para apanhá-la, a moça recorreu a Intercâmbio, cujas regras, como dissemos, nem mesmo ele se atreveria a tentar burlar. Agindo como sua própria patrocinadora, ela se pôs sob a guarda de Intercâmbio, fixando o próprio resgate em inacreditáveis dez bilhões de UPVs – soma superior ao orçamento anual da maioria dos planetas do Oikumene –, e só não o fixou ainda mais alto porque as normas da empresa não permitiam. Outra dessas normas estipula que, até o final de um certo prazo, só a parte diretamente interessada, isto é, a família do refém, pode pagar o resgate; passando daí, qualquer pessoa que o pague pode "tomar posse". No caso da jovem de Thamber, o prazo já expirou, de modo que Kokor Hekkus poderá finalmente tê-la… Desde que pague os dez bilhões de UPVs, que, como o funcionário de Intercâmbio observa a Gersen, são uma soma imensa, mas também são apenas cem vezes cem milhões. De posse de todas essas informações, Gersen encara o desafio de descobrir nelas alguma fresta que lhe dê a chance de localizar Kokor Hekkus, acercar-se dele e matá-lo. Um outro refém em Intercâmbio talvez possa ser útil: Myron Patch, engenheiro e industrial da cidade de Patris, no planeta Krokinole, está ali porque aceitou uma encomenda de Hekkus, que o encarregou de construir para ele uma espécie de fortaleza ambulante sobre pernas articuladas, um gigantesco centípede de metal para disseminar o terror entre certas tribos bárbaras de Thamber, que andavam a lhe causar problemas. Patch entrou em desacordo com Hekkus por motivos financeiros, e foi assim que acabou sequestrado. Gersen irá apostar que esse sujeito pode ajudá-lo a estabelecer um contato com seu alvo – e nessa aposta vai arriscar muita coisa, inclusive a vida, o que faz parte de seu destino de vingador.

Deixem-me dizer, os livros de ficção científica que já li devem contar-se pelas centenas, mas, se eu for fazer uma lista dos autores que me empolgaram tanto quanto Jack Vance, ela terá uns três nomes, no máximo quatro. Seu universo é de uma complexidade quase inacreditável, mas, apesar disso, conforme vamos imergindo nele, nos dá a sensação de uma familiaridade como só lugares reais costumam conseguir fazer. Só tenho pena de que a Saga dos Príncipes-Demônios só tenha cinco volumes, pois esse universo mereceria ser muito mais explorado, aproveitado em muito mais histórias. Como observei ao escrever sobre Star King, o autor foi afinando seus instrumentos conforme progredia nas aventuras de Kirth Gersen: o primeiro livro já era ótimo, mas tinha algumas arestas que precisavam ser aparadas, o que positivamente aconteceu em A Máquina de Matar. A narrativa ficou mais fluente, as "cores" ainda mais vivas, e a personalidade do protagonista ganhou mais profundidade. Gersen, ele próprio, também é uma "máquina de matar", quase perfeito como guerreiro, espião, detetive e assassino, treinado durante toda a vida para sua missão de vingança e educado para agir de forma estritamente racional – mas nada disso consegue apagar o fato de que ele, no fundo, é um romântico incorrigível, um fato que esta segunda história irá pôr em evidência mais do que a primeira.

A capacidade de Jack Vance de urdir tramas complexas sem deixar nenhuma ponta solta é algo de admirável. Desde as primeiras páginas, ele vai jogando pedaços de informação cuja importância só iremos compreender muito depois, num desafio de lógica investigativa que tanto Gersen quanto o leitor precisam desvendar, lembrando um pouco um romance policial, mas, é claro, em clima de ficção científica, e, neste livro, também de fantasia: é uma experiência emocionante chegar a Thamber e descobrir que ele é real. Colonizado por humanos em tempos antigos, o planeta ficou por muito tempo isolado, o que levou a civilização, nele, a regredir até um estágio técnico e social que lembra a Baixa Idade Média da Terra. Vance (que faleceu em 2013, aos 96 anos de idade) parecia gostar desse conceito, pois o utilizou em pelo menos mais duas histórias: The Miracle Workers ('Os Milagreiros') e The Dragon Masters (publicado no Brasil como 'O Planeta dos Dragões'). A ideia, que poderia facilmente soar ridícula em mãos menos hábeis, dá resultados formidáveis quando quem a usa é um mestre como Vance. É inexplicável que um autor desse calibre, cultuado mundo afora e reverenciado por gente como Ernest Cline, Neil Gaiman, George R. R. Martin, entre outros, tenha tido tão poucos livros publicados no Brasil, e que mesmo esses já não sejam reimpressos há uns 30 anos ou mais, só podendo ser encontrados em sebos, e com muita sorte.

Por falar em sebos e em sorte, quero finalizar com uma curiosidade. Possuo ambas as versões de The Killing Machine existentes em português: a da editora brasileira Francisco Alves, de 1980 (dentro da coleção Mundos da Ficção Científica), intitulada A Máquina de Matar, e a da portuguesa Europa-América, sem data de publicação, chamada A Máquina Assassina. Comprei a edição portuguesa primeiro, acho que foi na Feira do Livro de Porto Alegre, nos idos dos anos 90, mas, ao encontrar a brasileira mais recentemente, e por um preço mínimo, comprei também, principalmente pela curiosidade de comparar as duas traduções – mas, até agora, só havia lido de cabo a rabo a versão portuguesa. Quando resolvi reler, ficava pulando de uma edição para a outra, não raro me surpreendendo do quanto uma tradução pode mudar um texto, e desejando ter também uma edição em inglês, para ver como certos trechos eram no original. Acabei constatando mais uma vez algo que já sabia sobre mim mesmo: não sou uma pessoa "desprendida" (sou do tipo que, quando vai a um restaurante de que gosta, tem a tendência de pedir sempre o mesmo prato; perguntem a Cintia). Voltei para a edição portuguesa, concluindo que gostava mais dela, embora isso possa ser apenas porque já a conhecia!… Além disso, por razões que ignoro, na tradução brasileira Kokor Hekkus é frequentemente chamado apenas de "Kokor", e não acho recomendável demonstrar tanta intimidade com um notório malfeitor. Em todo caso, ao escrever este texto, procurei usar as palavras da terminologia do universo de Jack Vance do modo como aparecem na edição brasileira (exemplo: UPV em vez de SVU – a edição portuguesa usa a sigla em inglês, de Standard Value Unit), já que aqueles de vocês que quiserem ler o livro e tiverem sorte o bastante para consegui-lo, provavelmente encontrarão a edição da Francisco Alves. Por outro lado, optei por ilustrar o post com a capa da edição portuguesa, que é, de longe, muito mais bonita… Aliás, para falar francamente, a capa da nacional é muito feia. Mas, seja qual for a edição, não deixem de ler se puderem.

sábado, janeiro 16, 2016

Hannibal: a Origem do Mal

Thomas Harris, poderíamos dizer, criou um novo subgênero dentro do suspense, o que lhe garantiu reconhecimento tanto na literatura quanto por meio das adaptações de suas obras para as telas do cinema e da TV. Seu personagem mais famoso, o Dr. Hannibal Lecter, foi colocado em evidência pela primeira vez com o filme O Silêncio dos Inocentes, em 1991 (baseado no livro publicado apenas três anos antes), tornando-se conhecido do grande público, e não mais apenas dos leitores de Harris: o rosto do ator Anthony Hopkins usando a máscara-mordaça do personagem virou um ícone do cinema dos anos 90. Hannibal sempre foi uma figura diabolicamente única (eu, pelo menos, não conheço nada parecido), e a magistral interpretação de Hopkins o tornou ainda mais marcante. Nesse filme, Lecter já nos é apresentado preso, sob fortíssima segurança, numa instituição para criminosos insanos, mas ficamos sabendo que, antes de ser apanhado, ele conciliou com sucesso durante anos as atividades de psiquiatra forense e assassino em série. Trata-se de um homem de brilhante inteligência e cultura, refinado e elegante, apreciador de arte, música erudita, literatura e alta gastronomia – sendo que, nesse último campo, tinha o hábito, quando em liberdade, de incorporar aos sofisticados pratos que preparava certos "cortes especiais" retirados dos corpos de suas vítimas, fosse apenas para seu próprio deleite ou para servir aos amigos (sem revelar os ingredientes usados, é claro!) em agradabilíssimos jantares que oferecia periodicamente, em geral reunindo pessoas selecionadas da comunidade da alta cultura de Baltimore, Maryland, onde morava e clinicava.

Em O Silêncio dos Inocentes (tanto o livro quanto o filme), o mistério em torno de como Hannibal se tornou o que é faz parte do fascínio exercido pelo personagem; esse é o segundo livro, em ordem de publicação, no qual ele aparece, sendo o primeiro Dragão Vermelho (1981) e o terceiro, Hannibal (1999). Dragão Vermelho já havia recebido uma adaptação livre, de pouca repercussão, em 1986, sob o título de Manhunter (no Brasil, Caçador de Assassinos), com rápida aparição de Hannibal, interpretado por Brian Cox. O Silêncio dos Inocentes, como já vimos, chegou aos cinemas em 1991, mas, apesar do sucesso, não parece ter havido interesse, na época, em filmar seu predecessor: Hollywood preferiu esperar pela publicação de Hannibal, cuja versão para as telas estreou em 2001, novamente com Anthony Hopkins. Como esse filme também foi bem recebido pelo público, Dragão Vermelho pôde, por fim, ganhar nova versão, mais fiel ao livro e com o título original. Nessa versão, produzida logo a seguir e lançada em 2002, Hopkins encarnou o psiquiatra canibal pela última vez até o presente momento.

Harris cedeu aos muitos pedidos de seus leitores e voltou a escrever sobre Hannibal Lecter depois de ter deixado o personagem no ostracismo durante longo tempo. Hannibal Rising, ou Hannibal: a Origem do Mal, foi publicado em 2006 e transformado em filme no ano seguinte, com o francês Gaspard Ulliel interpretando o jovem Hannibal. Essa prequel revela detalhes da origem do personagem (que mesmo quem leu os outros livros só conhecia por meio de referências curtas e enigmáticas) e sobre sua infância e adolescência, dando finalmente a dimensão completa do trauma que ele sofreu ainda pequeno (e que recebera uma menção fugidia no livro Hannibal) e que pode explicar como veio a desenvolver inclinações antropofágicas. Portanto, se quiserem ler a saga na cronologia correta, ignorem a ordem em que os livros e/ou filmes foram lançados e leiam assim: 01) Hannibal: a Origem do Mal; 02) Dragão Vermelho; 03) O Silêncio dos Inocentes; 04) Hannibal.


Como também já insinuado em outros lugares, Hannibal escolheu os Estados Unidos para viver, mas é, por nascimento, um legítimo representante da velha aristocracia europeia. Seu ancestral, Hannibal, o Terrível, que viveu nos séculos XIV e XV, é um herói semilendário para a população da Lituânia (acho que o autor criou esse ancestral inspirando-se livremente em Vlad III da Valáquia), e o "nosso" Hannibal, nascido por volta de 1933 no vetusto Castelo Lecter, é o oitavo de sua linhagem a usar o nome. Seu pai, que tinha o título de conde, casou-se com uma dama de tradicional família italiana; a influência da mãe pode ter sido, em grande parte, o que despertou no garoto o amor pela música e pela arte. Sua prodigiosa inteligência já se anunciava desde tenra idade, mas aqueles não eram tempos fáceis para uma pessoa viver sua infância: em 1941, quando Hannibal está com oito anos, e sua irmã, Mischa, com três, as forças da Alemanha nazista varrem o leste europeu numa preparação para a invasão da União Soviética. É a Operação Barbarossa, que marca o rompimento do pacto de não agressão que vigorava entre as duas potências desde o início da Segunda Guerra. O Conde Lecter, então, decide tirar a família do castelo, e vão todos viver numa antiga cabana de caça escondida em meio às densas florestas que cobrem suas terras. O plano parece funcionar durante bastante tempo: os Lecter e alguns de seus criados (entre eles o Sr. Jakov, um velho judeu de enorme erudição que serve de tutor a Hannibal) vivem ali durante os três anos e meio que a Lituânia permanece sob domínio nazista, sem serem achados. A sorte os abandona já no final da ocupação: numa das últimas batalhas entre russos e alemães a serem travadas em solo lituano, todos, com exceção de Hannibal e Mischa, perdem a vida. As duas crianças são achadas por um grupo de ex-Hiwis – nome dado aos colaboradores voluntários dos nazistas – liderados pelo asqueroso Vladis Grutas. Embora tenham ajudado os invasores a subjugar e rapinar seu próprio país, esses homens não conseguiram concretizar sua esperança de ganhar um lugar nas SS, e, de qualquer forma, como já é 1945 e a derrota alemã é questão de tempo, essa ambição perdeu o sentido; assim, os celerados tiram a vantagem que ainda podem, aproveitando-se do caos gerado pelo estado de guerra para ganhar a vida como saqueadores, e não escolhem o lado de quem pilham e assassinam.

Abrigados no pavilhão de caça dos Lecter, com Hannibal e Mischa como prisioneiros, e isolados em meio ao rigoroso inverno lituano, Grutas e os outros se veem ameaçados pela fome… E a memória de Hannibal apresenta uma lacuna (mais provavelmente, um bloqueio) nesse ponto. A coisa seguinte de que ele se lembra é de ter sido encontrado por soldados russos, sozinho e semimorto, num campo deserto. Em 1946, com 13 anos de idade, ele está vivendo num orfanato que, numa triste ironia, foi estabelecido no antigo Castelo Lecter; a Lituânia é agora uma república soviética e já não há aristocratas: são todos "camaradas". Os terríveis acontecimentos no pavilhão de caça, quaisquer que tenham sido, cobraram seu preço: Hannibal ficou incapaz de falar, embora à noite, durante seus pesadelos, chame em desespero pela irmã, que não sabe que fim levou. Apesar de sua incapacidade de se comunicar e de se enturmar com os outros garotos no orfanato, a inteligência de Hannibal é óbvia; isso e o modo penetrante como observa tudo à sua volta o tornam temido e hostilizado – e ele sempre encontra meios surpreendentes para fazer com que as pessoas se arrependam de lhe ter causado algum mal.

Com as coisas voltando ao normal depois da guerra (um "normal" que nunca mais será como antes, é claro – nem para Hannibal, nem para a Lituânia, nem para o mundo), o único parente vivo de Hannibal, seu tio Robert, consegue encontrá-lo no orfanato, e o leva para viver com ele e sua esposa, na França. Aliás, desposar estrangeiras exóticas e de origem ilustre parece ser um costume prezado entre os homens da família Lecter: a esposa de Robert é Lady Murasaki, descendente de uma antiga linhagem de samurais da região de Hiroshima, cidade onde toda a sua família pereceu, vitimada pela bomba atômica dos americanos. No filme, Lady Murasaki é interpretada pela bela atriz chinesa Gong Li, e há uma diferença importante na narrativa em relação ao livro: Hannibal foge do orfanato e atravessa sozinho vários países até chegar à França, onde procura pelo tio guiando-se pelo endereço de algumas velhas cartas que encontrou no castelo – e não chega a conhecê-lo, sendo acolhido por uma Lady Murasaki já viúva. O roteirista deve ter optado por essa mudança porque, no filme, Hannibal parece ter vivido no orfanato durante alguns anos, já está mais velho, com uns 16 ou 17 anos em vez de 13, e praticamente não conviveu com mulheres desde sua infância, o que faz com que se veja confuso, sem saber como deve se sentir diante de uma mulher mais velha, bonita e charmosa – que é sua tia. Se Robert Lecter ainda vivesse, a situação ficaria complicada. No livro não há esse problema, pois tudo é muito mais gradual. De qualquer forma, Hannibal não deixa de experimentar certos sentimentos normais para um rapaz de sua idade… Uma das poucas coisas a respeito dele que podem ser consideradas normais.


Suas reações, entretanto, não são propriamente normais. Ele comete seu primeiro assassinato antes de completar 14 anos, eliminando o açougueiro da vila próxima à mansão onde está vivendo com os tios. Esse sujeito desagradável havia insultado publicamente Lady Murasaki, o que já seria imperdoável no sistema de valores de Hannibal: como sabe quem o conhece, ele não tolera a grosseria. Para agravar a coisa, o tio Robert fica sabendo do ocorrido, vai tirar satisfações com o açougueiro e, sob o efeito da raiva, seu coração debilitado não resiste. Hannibal perpetra seu ato e não sente culpa – aliás, não sentirá isso em momento algum de sua vida.

A morte de Robert deixa Lady Murasaki e Hannibal em dificuldades. A mansão onde viviam, no interior da França, tem que ser vendida para saldar dívidas, e os dois se mudam para uma moradia mais modesta em Paris, onde Hannibal começa a cursar a escola de medicina, mostrando-se logo um aluno brilhante. Como também possui notáveis dotes artísticos, aproveita para ganhar algum dinheiro pintando imagens em estilo japonês e vendendo-as para negociantes de arte da cidade, até que, certo dia, na loja de um dos marchands com quem negocia, encontra um quadro que conhece: fazia parte da coleção de seus pais, e só pode ter sido roubado do Castelo Lecter. O quadro se torna a primeira pista de uma trilha tortuosa que Hannibal seguirá para encontrar os Hiwis que mantiveram sua irmã e ele como prisioneiros. Desses homens, ele quer algumas respostas, e, possivelmente, muito mais. E cheguei até onde podia sem dar spoiler.

Hannibal, que começa na medicina como cirurgião, mais tarde migra para a psiquiatria, mas já nesta narrativa a respeito de sua juventude nota-se nele um talento para essa área. Como aluno bolsista, uma de suas tarefas consiste em ir às prisões de Paris (onde também é aplicada a pena capital aos condenados) para buscar os corpos que serão utilizados nas aulas de anatomia. Há um capítulo no qual ele precisa conseguir que um condenado à guilhotina assine um termo autorizando o uso de seu corpo, e o sujeito está lelé, fala com ele fingindo (ou melhor, provavelmente acreditando) ser um advogado com procuração para representá-lo. Hannibal lida com a situação com enorme astúcia; é difícil dizer se isso vem de sua condição de psicopata (manipulador por natureza) ou de uma mente com um pendor para lidar com as desordens mentais de outros, apenas aplicando esse dom para alcançar o objetivo do momento.

Ainda no mesmo assunto, é muito curioso que Hannibal opte pela psiquiatria, já que ele próprio poderia servir de objeto de estudo durante muitos anos para os mais instruídos e sagazes de seus colegas. Em alguns momentos ao longo da série, ele é referido como um sociopata, em outros como um psicopata, e, pelo menos uma vez, é dito que a medicina não tem uma palavra capaz de defini-lo. Pessoalmente, não tenho qualquer conhecimento formal sobre o assunto, tudo o que sei é o que um curioso consegue descobrir aqui e ali, e, ao procurar pelas definições de sociopatia e psicopatia para tentar dar mais consistência a este texto, achei-as extremamente parecidas uma com a outra. Pelo visto, não sou o único a ter essa impressão, pois li também que há muita discussão, mesmo entre os especialistas, sobre o que distingue os dois transtornos, seja de modo geral ou em casos específicos. Parece que a tese mais aceita é a de que ambos se distinguem pela origem: o psicopata já teria nascido assim, enquanto o sociopata seria produto de um ambiente abusivo ou violento. Seja como for, uma característica que costuma estar associada a ambos os quadros, a dificuldade para controlar os impulsos, passa longe do perfil de Hannibal. Na verdade, o personagem parece possuir um autocontrole extraordinário: sabe exatamente quando pode matar e quando não pode, e nunca o faz a menos que tenha certeza de que conseguirá cobrir seus rastros com perfeição. Também não mata à toa, nem apenas por desejo de saborear uma refeição de carne humana: seus alvos preferenciais são pessoas rudes, prepotentes, ou que representem perigo para ele, ou ainda algumas sem as quais, em sua opinião, o mundo ficará melhor – há um caso anedótico, citado em Hannibal e mostrado em live action em Dragão Vermelho (que, embora filmado depois, retrata acontecimentos anteriores), no qual ele elimina um flautista ruim, que estava estragando o som da Filarmônica de Baltimore, e serve um dos órgãos do homem num jantar para o qual convida todos os membros do conselho diretor da orquestra.

Outros pontos nos quais o perfil de Hannibal não parece se ajustar à descrição-padrão de psicopata ou sociopata são a ausência de empatia e a incapacidade de formar laços afetivos: pode ser fato que ele não tem qualquer empatia nem preocupação com o bem-estar da quase totalidade da espécie humana, mas há exceções, e essas são muito importantes. Há pessoas a quem ele, sem dúvida, dedica afeto, ou ao menos um grande respeito, como Lady Murasaki e, mais tarde, Will Graham (o agente do FBI que o prendeu), Clarice Starling, e até mesmo Barney, o enfermeiro/carcereiro em quem o Dr. Lecter encontrou um discípulo atento, uma mente ávida por conhecimento (em tempo: conhecimento sobre arte e cultura, não sobre assassinato). O que me parece, enquanto leitor, é que Thomas Harris deve ter estudado a fundo as características dos transtornos psiquiátricos, mas, de propósito, deve ter feito com que seu personagem fugisse deles em alguns pontos, enquanto se encaixa em outros, o que o torna mais enigmático. Por esse motivo, entre outros, Hannibal talvez seja um dos mais interessantes anti-heróis da literatura recente: seus crimes nos horrorizam, mas também há momentos em que torcemos por ele e até o entendemos. Quem nunca teve vontade de matar uma pessoa grosseira? A diferença é que Hannibal não fica na vontade, e, como se fosse uma réplica póstuma à ofensa recebida, sempre que possível ainda faz questão de comer um pedaço do ofensor, como se insinuasse, com o humor ácido que é uma de suas marcas registradas, que para alguma coisa "boa" a pessoa acabou servindo.

Peguei Hannibal: a Origem do Mal para ler meio por acaso, era apenas um dos muitos livros que aguardavam a vez, e preciso dizer, a bem da verdade, que ele não é tão bom quanto O Silêncio dos Inocentes ou Hannibal (ainda não li Dragão Vermelho, mas, naturalmente, vi todos os filmes), mas também está longe de ser uma leitura ruim. Parece-me agora que essa pode ser uma boa oportunidade de percorrer toda a saga de Hannibal na ordem cronológica certa, então é possível que leia/releia tudo, não necessariamente um atrás do outro – posso alternar com outros, mas procurarei fazer isso, e, se assim for, retorno ao assunto em breve.