sexta-feira, agosto 17, 2012

O Livro de Areia

Antes tarde do que nunca! Perdoem a frase surrada, mas a absoluta falta de premeditação que costuma reger as minhas incursões ao mundo dos livros acaba por vezes gerando situações embaraçosas, como o fato de eu ter demorado mais de quatro anos a fazer uma lição de casa (detalhes aqui). Mas o importante é que finalmente li O Livro de Areia, último volume de contos publicado pelo mito das Letras argentinas que atendia pelo nome de Jorge Luís Borges (1899-1986), autor que não me era totalmente desconhecido, mas de quem só havia lido até agora um ou outro prólogo, artigo ou conto isolado. Este foi o primeiro livro do homem que li de cabo a rabo.

Permitam-me uma pequena digressão (ao menos prometo tentar mantê-la pequena...). Em minha primeira e, até o momento, única visita a Buenos Aires, várias coisas me chamaram a atenção. Embora eu pudesse facilmente passar vários parágrafos discorrendo sobre a beleza da cidade, seus infinitos lugares interessantes e seu astral todo especial, acho que é mais pertinente aqui mencionar o fato de que lá, aparentemente, todo mundo lê, ou, pelo menos, os leitores são a regra, e os não-leitores, a exceção – precisamente o inverso do que ocorre aqui no Brasil. Duas caras estão por toda parte: livrarias, bancas de jornal, pontos de interesse cultural (dos quais a cidade está cheia) e simples cartazes afixados aparentemente a esmo pelas ruas. Uma dessas caras é a da Mafalda, aquela menininha cheia de espírito crítico e sempre preocupada em entender como o complicado mundo dos anos 60 funcionava. Criada pelo cartunista Joaquín Salvador Lavado, o Quino, ela já foi chamada de "um Calvin de saias" – uma boa definição, de certa forma, embora eu, pessoalmente, goste mais da Mafalda! A outra cara onipresente é justamente a do Borges. E se era para eleger dois ícones de sua cultura para lhes servirem de representantes perante o resto do mundo, nossos hermanos dificilmente poderiam ter escolhido melhor.

A importância de Jorge Luís Borges para a literatura latino-americana já foi suficientemente sublinhada por muitos estudiosos e comentaristas, dos mais abalizados aos mais amadores, e é uma alegria para nós, apreciadores da literatura do insólito, constatar que também aqui, ao sul do equador, o preconceito mofado de que a "boa literatura" deveria ser obrigatoriamente pautada pela "verossimilhança" está desabando. Borges foi um intelectual do mais alto calibre e um escritor versátil que se aventurou por muitos temas e gêneros, mas é como autor de contos fantásticos que ele é mais frequente e reverentemente lembrado. E, depois de percorrer as páginas deste pequeno volume, que não toma mais de duas horas de leitura, fica fácil entender o porquê.

Todos nós, latino-americanos, temos muitas coisas em comum uns com os outros, uns mais, outros menos. No meu caso, sou um gaúcho "dos quatro costados", como dizemos aqui: neto de uma avó uruguaia, filho de pais nascidos na fronteira, e vindo de uma família na qual qualquer memória de imigração já desapareceu há séculos, o que significa que posso, modéstia à parte, considerar-me, com justiça, mais gaúcho que meus vizinhos cujos avós nasceram na Alemanha ou na Itália. Com essa bagagem histórica e cultural sobre os ombros, devo dizer que muitas coisas na escrita de Borges e em sua visão de mundo soaram-me bem familiares – um claro sinal de que, apesar de estarmos em países diferentes, nós, gaúchos (ao menos os gaúchos "de raiz", conforme a definição acima) estamos muito mais próximos, culturalmente falando, dos argentinos e uruguaios, que dos nossos próprios compatriotas do norte ou nordeste, por exemplo. Ao mesmo tempo, acho estimulante notar nas obras de Borges a ausência daquela obsessão com o regionalismo que pontua os trabalhos de tantos escritores da nossa parte do mundo – não raro tornando-os enfadonhos por baterem sempre na mesma tecla. A latinidade, em Borges, tem sempre um bom motivo para existir. Não é forçada, não é artificial: ele não demonstrava qualquer preocupação de levantar bandeiras para ser bem visto em certos círculos. Tanto assim, que não tinha o menor pudor de mostrar o quanto era fascinado pela cultura dos povos nórdicos, germânicos e célticos, tendo chegado ao ponto de estudar o idioma anglo-saxão, o ancestral do inglês moderno. O conto O Espelho e a Máscara, por exemplo, começa assim: 

Travada a Batalha de Clontarf, na qual o norueguês foi humilhado, o Alto Rei falou com o poeta e disse-lhe: "As proezas mais ilustres perdem o brilho se não forem cunhadas em palavras. Quero que cantes minha vitória e em meu louvor. Eu serei Eneias; tu serás Virgílio. Julgas-te capaz de realizar essa empresa, que tornará imortais a nós dois?"

Na Batalha de Clontarf (1014), os irlandeses, liderados pelo semilendário rei Brian Boru, derrotaram os invasores vikings que haviam se estabelecido na região de Dublin. Impossível deixar de lembrar, embora não tenha nada a ver com o assunto, que também foi na mesma Clontarf que, séculos depois, nasceu Bram Stoker.

(E ainda tem uma referência a Virgílio! Esse Borges era o cara!)

A linguagem de Borges é um prazer para o leitor acostumado a textos um pouco mais elaborados. Com um vocabulário refinado e um estilo por vezes melancólico (pontuado por inesperadas demonstrações de um aguçado senso de humor), seus contos parecem, não raro, mais poemas em prosa que outra coisa qualquer, não impondo ao leitor nenhuma conclusão, deixando significados em aberto, demonstrando que o autor era da opinião de que percorrer uma história belamente narrada é mais importante que simplesmente chegar ao fim dela para saber como termina. O elemento fantástico parece estar ali para lembrar que as pessoas realmente inteligentes sabem reconhecer que seu intelecto não pode desvendar tudo: o mundo sempre nos reservará surpresas, sejam de maravilhas ou de horrores, que zombarão da noção contemporânea de que a razão pode explicar todas as coisas ― veja-se o conto There Are More Things (com o título em inglês mesmo, citando a famosa frase de Shakespeare em Hamlet), uma homenagem a H. P. Lovecraft, na verdade algo que Lovecraft poderia ter escrito se fosse latino-americano. O Outro explora o tema do duplo, que já apareceu tantas vezes na literatura, às vezes a serviço do terror, outras dando lugar a situações hilárias, mas, que eu conheça, nunca da maneira como Borges fez nesse conto, no qual ele (na história, Borges usa a si mesmo como personagem), já idoso, encontra o rapazote que foi há mais de 50 anos e constata, para sua consternação, que a primeira reação que dele obtém é a de desconfiança. Todos nós já desejamos, ao menos uma vez, encontrar nosso eu mais jovem e poder dar-lhe alguns conselhos, ou pelo menos alguns avisos, o que seria, de certa forma, consertar uma parte de nossos erros, mas o que fazer quando quem encontramos é um adolescente cético e com uma ideia exagerada da própria sabedoria, que está claramente se perguntando "o que pretende esse velho caduco"?

O conto que dá título ao livro talvez não seja considerado por todos os leitores como o melhor, mas foi o que achei mais saboroso. Nele, o autor parece usar-se novamente como personagem, embora não cite o próprio nome (o que fizera em O Outro). O personagem que parece ser Borges adquire de um errante vendedor de Bíblias o livro mais estranho que já se imaginou. Seu número de páginas é infinito: não se pode encontrar a primeira nem a última, pois novas páginas parecem brotar das contracapas conforme o volume é folheado. Uma página que foi vista uma vez nunca mais pode ser reencontrada, e a numeração parece totalmente arbitrária. À parte as muitas coisas para as quais esse livro espantoso pode servir de metáfora, o conto revela a genialidade de Borges ao descrever como o personagem (autor?) passa da fascinação ao horror enquanto percorre as páginas intermináveis, acabando por concluir que o livro é "monstruoso"... Para saber o desfecho, leiam o conto – e o livro. Vale a pena! Espero ainda ler muito mais desse autor absolutamente único.

sexta-feira, julho 06, 2012

O Fortim

Estamos no ano de 1941, em plena Segunda Guerra Mundial – que ainda não era chamada assim, é claro. Por enquanto, tratava-se de uma guerra europeia, na qual os Estados Unidos ainda não haviam tomado partido; o pacto de não agressão entre Alemanha e União Soviética estava por um fio, mas ainda vigorava, e os alemães venciam uma batalha atrás da outra, parecendo ter chances reais e concretas de ganhar a guerra num prazo relativamente curto. Nesse cenário, o alto comando do exército alemão decide prevenir uma pouco provável ofensiva russa, em caso de quebra do tratado (o que aconteceria ainda naquele ano, mas por iniciativa alemã), e envia um destacamento para o Passo Dinu, um desfiladeiro nos Alpes da Transilvânia, a fim de guardar o acesso aos campos petrolíferos do interior da Romênia. A tropa recebe ordem de ocupar um fortim do século XV, que domina todo o desfiladeiro e constitui uma posição defensiva ideal.

O comandante desse destacamento é o capitão Klaus Woermann, veterano da Primeira Guerra Mundial, um homem que sempre se orgulhou de fazer parte do Exército alemão, e que não vê com bons olhos a ditadura de Hitler nem a ideologia do Partido Nazista em si. Como muitos soldados de sua geração, Woermann desejou essa nova guerra, que imaginava como uma revanche contra os Aliados, que não se contentaram em derrotar a Alemanha na guerra anterior, mas também a submeteram a todo tipo de humilhação, obrigando-a a concordar com tratados de paz obviamente injustos e sobrecarregando-a com exigências de indenizações impossíveis, o que instaurou o caos na economia e na sociedade alemãs. Para sua decepção, porém, quando a Alemanha tornou a se erguer, não foi em busca de uma justa reparação de sua honra como nação, e sim impulsionada por um movimento político cuja cartilha estava baseada em ódio étnico e nos projetos pessoais megalômanos de um pequeno grupo. Para piorar, parece a Woermann que ele é o único em seu destacamento a compreender isso: os soldados e suboficiais sob seu comando são, em sua maioria, jovens no início da casa dos 20 anos, recém-egressos da Juventude Hitlerista (da qual todo adolescente alemão tinha obrigatoriamente que participar), onde suas mentes ainda em formação foram submetidas a uma cuidadosa lavagem cerebral a fim de que considerassem a visão nazista como a única visão possível. Woermann, portanto, representa todos aqueles soldados que desejavam lutar pelos direitos de sua nação, mas percebem agora, amargurados, que estão sendo usados como instrumentos de um regime insano.


Tudo isso se revolve na cabeça do capitão Woermann enquanto ele e seus homens ocupam o fortim, preparando-se para no mínimo alguns meses de serviço de vigilância contra um ataque que dificilmente virá. Entretanto, suas expectativas de que esse serviço vá ser tranquilo e até tedioso não podiam estar mais equivocadas.

O fortim, curiosamente, não está ligado a qualquer acontecimento histórico conhecido; geração após geração, uma família da aldeia vizinha dedica-se à sua manutenção, tendo seus salários pagos por um fundo anônimo num banco estrangeiro; graças a isso, a estrutura se manteve como nova durante os últimos cinco séculos. Muitos dos blocos de pedra que formam suas paredes internas estão ornados com cruzes metálicas em forma de T, feitas de bronze e níquel – "quase como ouro e prata". Ninguém sabe o porquê disso, mas um dos soldados de Woermann tem a mirabolante teoria de que o fortim teria sido construído por ordem de um papa para esconder um tesouro – um tesouro que ele acredita que ainda pode estar por ali. Numa canhestra tentativa de encontrar o suposto tesouro, o soldado Lutz acaba abrindo uma câmara oculta no subsolo da fortaleza. Logo depois, seus companheiros o encontram morto – decapitado. Por mais louca que pareça tal ideia, tudo indica que, ao abrir a tal câmara, Lutz libertou algo que estava cativo há séculos.

A partir daí, a cada noite um soldado vai sendo morto, cada corpo encontrado com a garganta estraçalhada, embora mais nenhum chegue a ter a cabeça arrancada. Depois de tentar de tudo para apanhar o assassino, sem sucesso, Woermann, sem alternativa, telegrafa ao Alto Comando solicitando permissão para mudar de local. Em vez disso, recebe a ajuda que menos desejaria no mundo: é enviado um destacamento da SS (Schutzstaffel, 'Tropa de Proteção' – a força paramilitar a serviço do Partido Nazista), composto pelos temíveis Einsatzkommandos de uniformes negros – temíveis não por serem combatentes notáveis, mas por sua especialização em massacrar civis desarmados. Esses homens representam tudo o que Woermann mais despreza na "nova Alemanha", e, para tornar sua miséria completa, quem vem no comando dos reforços é um antigo desafeto seu, o major Erich Kaempffer, que, como Woermann não ignora, tampouco gosta dele, além de temê-lo pelo que pode revelar sobre seu passado: Woermann foi a única testemunha de um ato de covardia de Kaempffer, décadas atrás, quando ambos eram recrutas adolescentes durante a Primeira Guerra.

O major Kaempffer tem certeza de que as mortes são causadas simplesmente pelas atividades de algum grupo de guerrilheiros nacionalistas romenos, e as providências que toma estão de acordo com tal convicção – todas consistindo de atos de brutalidade contra a população da aldeia, à guisa de represália. Como isso não faz pararem as mortes, Kaempffer lança mão de uma informação que obteve sob tortura do estalajadeiro local: o maior especialista vivo na história da região, e quem mais tempo passou estudando o misterioso fortim, é um professor da Universidade de Bucareste chamado Theodor Cuza. O oficial manda buscá-lo, e o professor, gravemente doente, vem acompanhado de sua filha, Magda, que lhe serve de secretária e enfermeira. O irônico nisso tudo é que o homem em quem o empedernido nazista Kaempffer se vê obrigado a depositar todas as suas esperanças é precisamente um... judeu! O que nem os alemães, nem o professor Cuza, nem o povo da aldeia imaginam, é que, no outro extremo do continente, nas praias de Portugal, um misterioso homem de cabelos vermelhos sentiu um inexplicável instinto dar o alerta quando a câmara secreta do fortim foi aberta, e agora dirige-se apressadamente ao Passo Dinu a fim de realizar uma missão de vida ou morte, que está fora do alcance das forças de qualquer pessoa que não ele...

O Fortim é um achado surpreendente, um livro extraordinário de um autor que, se produzisse em maior quantidade, poderia ter vindo a ser tão grande quanto um Stephen King! Infelizmente para nós, leitores, o norte-americano Francis Paul Wilson optou por manter a medicina como profissão e ter a literatura como atividade paralela. O Ciclo do Inimigo, iniciado com este romance, inclui cinco outros, sendo que o último, Nightworld, ainda aguarda tradução para o português. Wilson demonstra ser um mestre da narrativa tensa e do clima sombrio, e só não afirmo que o livro nos oferece isso do início ao fim, por causa das anticlimáticas partes românticas protagonizadas por Magda e pelo tal estranho ruivo – não sei se outros leitores terão sentido da mesma forma, mas essas partes me deixaram sempre impaciente, ansioso para que a narrativa voltasse logo ao horror no fortim. Mas não é esse pequeno percalço que torna o livro menos recomendável, ainda mais porque, para além de sua maestria no horror, Wilson ainda demonstra um sólido conhecimento histórico, que aparece na ambientação da narrativa durante a Segunda Guerra – até onde pude perceber, impecável.

Ah: não podia deixar de destacar que, nos agradecimentos do início do livro, Wilson reconhece sua dívida para com Robert E. Howard, H. P.  Lovecraft e Clark Ashton Smith. Tal é a admiração de Wilson por Lovecraft, que ele adere à tradição, já honrada por tantos mestres do horror, de homenagear o autor introduzindo o Necronomicon em sua história, embora só se refira a ele como Al-Azif, que, segundo Lovecraft, seria o título original em árabe. Uma homenagem que, realizada num romance de tal qualidade, sem dúvida deixaria Lovecraft satisfeito.

quinta-feira, junho 21, 2012

Star King - A Saga dos Príncipes-Demônios

John Holbrook Vance (1916-) não está entre os nomes mais famosos da história da ficção científica, o que talvez seja compreensível, considerando que suas obras não têm a mesma amplitude de apelo que as de um Isaac Asimov ou de um Arthur C. Clarke, e também que nunca foi tão prolífico quanto esses autores, mas tem, sim, seu próprio segmento de leitores fiéis, apaixonados por seu estilo único e sua espantosa criatividade. Um número relativamente pequeno de suas obras foi publicado em português, mas não há dúvida de que os poucos livros que chegaram até nós integram a parte mais importante e relevante de seu trabalho. Embora eu não conheça tanto de Jack Vance quanto gostaria, sempre senti que a Saga dos Príncipes-Demônios, formada por cinco romances, devia ser a joia da coroa.

Mesmo na época em que Vance começou a escrever essa saga (início dos anos 60), descrições de civilizações do futuro já eram carne-de-vaca na ficção científica. Quem quisesse criar um universo realmente marcante para ambientar suas histórias, um universo que não fizesse o leitor pensar "Humm, onde foi mesmo que já vi isso antes?", tinha diante de si um desafio muito sério. Um desafio que Jack Vance superou magnificamente. Ele começa por atiçar nossa curiosidade, ao citar datas que parecem do passado: a ação de Star King inicia em 1524. Só lá pelas tantas é que ficamos sabendo que houve uma reforma na contagem do tempo, que fez do ano 2000 o ano zero - portanto, estamos no ano que chamaríamos de 3524.

Então somos apresentados ao herói Kirth Gersen - uma das personalidades mais fascinantes que já encontrei em livros de ficção científica. Sua história é trágica: ainda criança, viu a pacata cidade onde nasceu, num planeta sem muita importância, ser pilhada e arrasada por um exército de piratas espaciais comandados por cinco homens cujos nomes causam calafrios em qualquer canto da parte habitada da galáxia, homens que, pela crueldade de seus atos de pirataria, ficaram conhecidos como os Príncipes-Demônios. Os habitantes da cidade que não foram assassinados, foram levados para serem vendidos como escravos (sim, o comércio de escravos é um negócio que prospera no assim chamado Além-Espaço, onde as leis que regem a vida na Terra e nos outros mundos civilizados não alcançam). No meio do punhado de cidadãos que escaparam, encontram-se o pequeno Kirth e seu avô, tudo o que sobrou de uma outrora extensa família. O velho Rolf Gersen trata então de preparar o neto para ir em busca de vingança. Kirth é treinado não apenas em todo tipo de habilidade de combate armado e desarmado, mas também em técnicas de investigação e em toda a gama de conhecimentos necessários para mover-se com desenvoltura pelos inúmeros mundos habitados por seres humanos.

E estes (tanto os mundos quanto os seres humanos) são de uma variedade infindável. Fala-se pouco em raças alienígenas inteligentes na Saga dos Príncipes-Demônios, mas, depois de adquirir alguma familiaridade com a obra, o leitor percebe que isso nem é necessário, tão grande é a diversidade cultural que Jack Vance atribui aos habitantes humanos dos diferentes sistemas estelares. Afastados da Terra de onde vieram seus ancestrais, esses povos desenvolveram identidades próprias, tão exóticas e surpreendentes quanto poderia ser a de qualquer raça alienígena. Só para começar, na própria Terra e nos planetas que lhe são mais chegados, a moda nessa época é tingir a pele - as pessoas se pintam de verde, azul, preto, laranja ou de qualquer cor que lhes venha à cabeça. Os poucos que não têm o hábito, como Gersen, são vistos como esquisitos. Há planetas onde o maior medo das pessoas é que estranhos lhes conheçam o rosto, de modo que usam máscaras durante a vida toda. Planetas onde a riqueza e o prestígio de um homem são medidos pela suntuosidade do túmulo que ele constrói para si próprio (bem, isso até tem antecedentes na História antiga da Terra, mas deixem pra lá). O famigerado planeta Sarkoy, cujos habitantes se orgulham de serem mestres absolutos na arte de fabricar e usar venenos - e de proteger-se deles. E por aí afora. O universo de Jack Vance é o sonho de qualquer antropólogo.

Os cinco Príncipes-Demônios - Attel Malagate, Kokor Hekkus, Lens Larque, Viole Falushe e Howard Alan Treesong - são tão diferentes entre si quanto poderiam ser. Cada um deles possui uma característica distintiva: Kokor Hekkus é inventivo e inquieto, apaixonado por máquinas complicadas; Lens Larque é um megalomaníaco; Viole Falushe tende aos vícios sensuais; Howard Alan Treesong é um gerador de caos (não me perguntem o que isso significa na prática), e Attel Malagate, cognominado "o Maldito", é frio e inflexível, desprovido de qualquer emoção. Juntando uma peça aqui e outra ali ao longo de anos de investigações, Gersen descobre que Malagate não é inumano apenas por conta de sua conduta: é inumano também na origem, pois pertence a uma estranha raça reptiliana, originária de um planeta da estrela Lambda Grus, da constelação do Grou. Esses seres intitulam-se imodestamente de "Reis das Estrelas", nome que os próprios humanos acabaram adotando por convenção. O detalhe assustador a respeito dos Reis das Estrelas é que eles não se parecem com qualquer dos inúmeros répteis inteligentes que estamos acostumados a ver em filmes, livros ou quadrinhos de ficção científica: não são escamosos nem têm pupilas verticais, muito menos cauda ou garras. Por um singular capricho da natureza, evoluíram de modo a tornarem-se externamente idênticos aos seres humanos, impossíveis de distinguir com um mero exame visual. Sim, sei o que estão pensando, mas a verdade é que a capa que o livro recebeu no Brasil, apesar de belíssima e climática, pura sci-fi art, tem o defeito de causar no leitor uma ideia errada e persistente da aparência que os Star Kings deveriam ter. Imaginem-nos com aparência humana, ponto.

Agora com 34 anos, Gersen fez aparentemente pouco progresso na missão para a qual foi preparado desde a infância, mas, absolutamente meticuloso e paciente que é, sabe que os poucos indícios que conseguiu reunir têm grande importância, pois servir-lhe-ão de ponto de partida - por muito tempo, ele não teve nem isso. É quando a sorte decide favorecê-lo: Gersen está descansando numa estalagem num pequeno planeta do Além-Espaço quando conhece um sujeito que se apresenta como Lugo Teehalt, demarcador - o que parece ser o jargão técnico para alguém que vasculha o espaço profundo e investiga mundos inexplorados, seja de forma independente, ou a mando de outrem, ou patrocinado por alguma instituição, a ver se descobre algo de interessante ou de rentável. E Teehalt descobriu um belo e idílico planeta cheio de montanhas, florestas e água, com um ar límpido e formas de vida fascinantes, pelo qual se viu imediatamente seduzido e subjugado. Infelizmente, Teehalt está demarcando para Malagate, com cujos representantes assinou um contrato: deveria, em tese, entregar a seu empregador a localização do planeta, o que se recusa a fazer, já que Malagate corromperia o belo mundo transformando-o numa colônia de férias para os chefões interestelares do crime.

Teehalt, previsivelmente, acaba assassinado quase diante dos olhos de Gersen, mas os homens de Attel Malagate cometem um erro fatal: levam por engano a nave de Gersen, que, por acaso, estava agindo sob o disfarce de demarcador a fim de não levantar suspeita sobre suas investigações, e deixam a de Teehalt. Dessa forma, Gersen se vê de posse do monitor que guarda a localização do misterioso planeta - a melhor isca que poderia querer, pois agora Malagate certamente virá atrás dele.

Assim tem início um intrincado e perigosíssimo jogo de xadrez entre dois cérebros extraordinários. Gersen tem de prever os movimentos de Malagate e, ao mesmo tempo, levar em conta o fato de que ele também estará tentando prever os seus, pois o Rei das Estrelas sem dúvida terá rapidamente percebido estar lidando com um indivíduo muito astuto. Gersen leva aos extremos a velha máxima que diz que a vingança é um prato que se come frio: cada ato que executa é calculado; não tem pressa e não é movido pelo ódio. Como ele explica a outro personagem num dos livros seguintes da saga, seu avô era quem sentia a raiva e o ódio, e foi por isso que o preparou para ser o agente da vingança, embora soubesse que não viveria o suficiente para ver essa vingança consumar-se.

Disse acima que Kirth Gersen é um dos personagens mais fascinantes da ficção científica, e a razão disso é a dualidade que existe nele: por baixo da casca de homem frio e totalmente racional que construiu ao redor de si próprio com a ajuda do avô, nota-se que seu verdadeiro espírito tem uma natureza romântica, arrebatada e idealista, bem como uma tendência algo mística a acreditar que o destino o levará a cumprir sua missão com êxito, embora tudo pareça apontar que são remotas as possibilidades de que consiga eliminar sequer um dos Príncipes-Demônios, que dirá então todos os cinco. Noventa por cento do tempo, ele age racionalmente; uma vez ou outra, rende-se ao seu gênio, para geralmente arrepender-se logo em seguida. Um personagem e tanto.

Star King é escrito de uma forma peculiar, que se tornaria uma marca registrada da Saga dos Príncipes-Demônios: é como se fossem dois livros em um. Cada capítulo começa com uma longa epígrafe revelando detalhes sobre o universo por onde transita Kirth Gersen; os textos consistem em trechos de manuais sobre os planetas, trechos de livros de História, declarações à imprensa feitas por personalidades de destaque sobre assuntos relevantes para esse universo, e assim por diante - naturalmente, tudo fictício, saído da cabeça incrivelmente imaginosa de Jack Vance. Terminada a epígrafe, tem início a ação propriamente dita do capítulo. Essa estrutura é uma ideia inovadora e brilhante, que permite ao leitor uma imersão sem igual no ambiente da história. Porém, verdade seja dita, o sistema ainda precisava de um certo polimento: talvez por ser este o primeiro livro onde o empregou, parece que o autor ainda estava aperfeiçoando um certo pulo-do-gato para fazer com que a coisa funcionasse. Enquanto certos trechos das epígrafes deste primeiro volume da saga trazem informações fascinantes e vitais para entendermos o universo do autor, outros são bastante indigestos e sem muito propósito. Para crédito de Vance, deve-se observar que as epígrafes presentes nos dois volumes seguintes, A Máquina de Matar e O Palácio do Amor, mostram-se bem menos pretensiosas, mais acessíveis e agradáveis.

Por falar nisso, até onde sei, infelizmente apenas esses três primeiros volumes da Saga dos Príncipes-Demônios existem em português; todos foram publicados pela Francisco Alves ao longo da década de 80, e existe também uma edição de bolso do segundo volume pela Europa-América, de Portugal, com o título A Máquina Assassina. Esse narra a caçada de Gersen ao segundo Príncipe-Demônio, Kokor Hekkus, enquanto O Palácio do Amor trata do terceiro, Viole Falushe. Todos podem ser lidos independentemente uns dos outros, mas o leitor que optar por seguir a saga acumulará informações que lhe permitirão apreciar melhor cada volume. E, com a ressalva do parágrafo anterior, qualquer livro de Jack Vance pode ser entusiasticamente recomendado aos apreciadores da boa ficção científica.

sábado, maio 05, 2012

Sombras da Noite

Devido a certos fatos misteriosos (não no sentido interessante da palavra misterioso) e nunca esclarecidos que ocorreram na casa dos meus pais, onde ainda permanece a maior parte da minha coleção de livros, acabei ficando sem vários itens que prezava muito, alguns deles aquisições recentes que nem haviam sido lidas ainda, outros eu possuía há muito tempo e os considerava de estimação. Os do primeiro grupo podem ser repostos com facilidade, embora ninguém em seu juízo perfeito fique contente de pagar duas vezes para ter um mesmo item; os do segundo seriam muito mais complicados, se hoje não existisse a Estante Virtual (como já escrevi antes, apesar dos pesares  que são muitos , eu adoro viver no século XXI!). Assim foi que, depois de tomar certas providências para evitar um novo "êxodo" de livros, a próxima coisa que fiz foram algumas compras via computador. E, quando chegou o meu "novo velho" exemplar de Sombras da Noite, encomendado a um sebo de Belo Horizonte, foi impossível resistir a uma releitura. Esse é um dos inúmeros livros que só não ganharam comentários antes porque foram lidos antes que eu criasse o blog.

Publicado originalmente em 1978 e lançado no Brasil pela Francisco Alves, como parte da saudosa coleção Mestres do Horror e da Fantasia, em 1987, Sombras da Noite reúne vinte contos (embora o texto da orelha fale em 19) da primeira fase da carreira de Stephen King, quando o escritor ainda não tinha o status de monstro sagrado que possui hoje, sendo, ao invés, considerado um "jovem promissor". Essas histórias haviam aparecido em diversas revistas entre 1970 e 1977, estando entre as que asseguraram a King sua profissionalização como escritor e o início de um renome que, na época, poucos teriam ousado prever. O formidável talento do sujeito para lidar com o macabro e o sobrenatural de modo a fazê-los parecer críveis aparece com tanto vigor nestes contos quanto em romances como Christine, Zona Morta, O Cemitério ou 'Salem's Lot (este último foi publicado no Brasil com o ingênuo título A Hora do Vampiro; o nome 'Salem's Lot é uma contração de Jerusalem's Lot, nome da pequena cidade do Maine onde a ação se desenrola).

Jerusalem's Lot, aliás, é também o título do primeiro e, para mim, melhor conto da coletânea. Ambientado em 1850 e narrado sob a forma de cartas e trechos de diário (uma coisa meio Drácula, embora com pretensões mais modestas), é a história de Charles Boone, um sujeito sobre o qual não sabemos muito, exceto que descende de uma família que se alçou à nova burguesia norte-americana com o comércio de peles no século XVIII, e parece tratar-se de um escritor com preocupações humanistas, engajado na luta pela abolição da escravatura nos Estados Unidos. Boone vai viver em Chapelwaite, uma mansão à beira-mar construída décadas antes por seu avô, e ocupada por último por seu primo, Stephen, que, ao morrer (sob circunstâncias misteriosas), legou-a a ele, que vem a ser o último Boone vivo. Charles, um típico pensador esclarecido pós-Revolução Francesa, não acredita em fantasmas nem em nada que cheire a sobrenatural, mas o fato de não acreditar não o protege contra os ruídos sinistros que ecoam nos vãos das paredes de seu novo lar, nem contra o horror supersticioso com que os habitantes da cidadezinha próxima encaram tanto a casa quanto, agora, a ele, seu novo ocupante. O lugar está envolto num mistério tenebroso, cuja explicação (que Charles preferirá não ter descoberto) encontra-se num vilarejo abandonado a poucos quilômetros de Chapelwaite, chamado Jerusalem's Lot... Paro por aqui: leiam o conto e bons pesadelos! Observo apenas que, de todas as histórias de Stephen King que já li, essa é a de clima mais acentuadamente lovecraftiano  possivelmente uma homenagem a um dos escritores que mais o influenciaram. Também desperta a curiosidade imaginar se a Jerusalem's Lot do conto é a mesma do romance de King sobre vampiros, pois, embora o nome seja o mesmo, cada uma parece ter seus próprios horrores diferentes. A cidade é citada ainda em outro conto que também está em Sombras da Noite, chamado A Saideira.


Os pontos altos não param por aí: vários elementos que se tornariam marcas registradas de King e permanentemente presentes no imaginário de seus leitores aparecem pela primeira vez nestes contos. A combinação vida moderna comum/terror surge em sua expressão mais terrível em histórias como A Máquina de Passar Roupa, Caminhões e O Homem do Cortador de Grama, nas quais máquinas e objetos corriqueiros se transformam em coisas com vontade própria e sedentas de sangue; as crianças tomadas por uma forma de fanatismo religioso que combina traços distorcidos de cristianismo e paganismo, que fundaram uma comunidade à parte numa região rural de Nebraska, e que dão título ao conto As Crianças do Milharal, inspiraram toda uma série de filmes, conhecidos no Brasil com o título Colheita Maldita. Há ainda momentos surreais como em Campo de Batalha, no qual um assassino de aluguel enfrenta a vingança da mãe de uma de suas vítimas de uma maneira que jamais poderia prever, e pequenas pérolas de horror clássico, lidando com temas como mortos que retornam, criaturas escondidas no armário, ou vampiros  respectivamente Às Vezes Eles Voltam (belo título!), O Fantasma, e a já citada A Saideira. Sei do que Você Precisa combina de forma magistral psicologia, cotidiano universitário, paixões de infância e magia negra  com uma discreta homenagem a H. P. Lovecraft ao citar, de passagem, o famigerado Necronomicon. Já em Primavera Vermelha e O Homem que Adorava Flores, o horror surge das profundezas da mente humana, sem uma resposta definitiva para as indagações de como ou por que a violência homicida aflora em determinados momentos e situações, de forma totalmente inesperada. Ambos têm finais chocantes e surpreendentes, e o segundo potencializa o efeito ao começar de uma maneira lírica, poética, descrevendo uma tarde agradável em que tudo parece estar tão bem no mundo que as pessoas chegam até a ser cordiais umas com as outras  até o incauto leitor descobrir certos fatos. Um conto literariamente magnífico naquilo a que se propõe.

Até aqui, tudo são coisas que naturalmente esperaríamos de Stephen King, um nome que é quase um sinônimo de narrativas de horror bem arquitetadas e de leitura viciante. Porém, há ainda algumas surpresas, sob a forma de histórias que não apresentam nenhum elemento sobrenatural em sua composição. O Ressalto é uma narrativa de puro suspense sobre um homem que tenta contornar um arranha-céu altíssimo andando num ressalto de doze centímetros e meio de largura, para ganhar uma aposta que é literalmente de vida ou morte, enquanto O Último Degrau da Escada é um drama sobre o sentimento de culpa. Por fim, como nem mesmo um livro de Stephen King é perfeito, este termina com A Mulher no Quarto, que não é nem assustador, nem eletrizante, nem dramático, nem mesmo comovente  a meu ver, é apenas triste, e não de um modo melancólico, que pode até ser bonito, mas simplesmente de modo deprimente. É a única história do livro da qual devo dizer que não gostei, e o fato de estar no final torna-a ainda mais prejudicial ao efeito do conjunto.

Não mencionei todos os contos do livro, mas todos os que não cheguei a citar são excelentes, e, graças à variação de temas, exploram um amplo espectro dentro do universo da narrativa de terror. Como se não bastasse, há ainda um interessantíssimo prefácio no qual King disserta sobre as origens tanto psíquicas quanto históricas desse gênero literário. Quem ler a mesma edição que eu tenho achará engraçado ver como o coitado do tradutor rebolou com as referências de King a algumas obras com as quais ele, tradutor, evidentemente não estava familiarizado, como O Senhor dos Anéis, que, na época, pouquíssima gente no Brasil conhecia: Middle-earth virou "Meio da Terra" em vez de Terra-média. Mas não deixem que isso os leve a pular o prefácio, que, ao contrário de muitos prefácios de diversos livros que andam por aí, recompensa perfeitamente o leitor pelo adiamento de chegar à "parte que interessa"  que, aqui, são os hipnotizantes contos de Stephen King.

quarta-feira, abril 25, 2012

Os Filhos de Anansi

Minha segunda visita ao universo de Neil Gaiman acabou não sendo por meio de O Mistério da Estrela nem de Coisas Frágeis, como eu havia planejado - e, pombas, eu estava planejando isso há bastante tempo!... Minha lista de livros por ler cresce muito mais depressa do que eu consigo dar conta dela, e confesso que nem sempre sigo uma rigorosa ordem de chegada: muitas vezes, a sequência em que os livros são lidos não segue lógica alguma. Então, certo domingo, há poucas semanas, estava eu em Porto Alegre e, ao passar pela Livraria Cultura no shopping Bourbon Country, fui irremediavelmente arrastado para dentro por algo que deve ter algum parentesco com o canto das sereias de que nos fala a Odisseia, com a diferença de que Ulisses só precisou entupir os ouvidos de seus homens com cera e amarrar-se ao mastro de seu navio para escapar dessa influência, enquanto eu ainda não encontrei um método preventivo que funcionasse. E, naquele delicioso exercício de percorrer estantes e mostruários de modo mais ou menos aleatório (está bem, vamos ser francos: completamente aleatório), topei com essa nova edição de Os Filhos de Anansi, livro que já tivera em mãos há alguns anos, quando tinha uma capa diferente e era publicado, creio, por outra editora, mas não cheguei a lê-lo na ocasião. Comprei-o, e, acontecendo que no dia seguinte embarcava para uma viagem de trabalho que duraria a semana toda, resolvi, num impulso, colocá-lo na mala. Como resultado, minhas noites de segunda a quinta-feira num quarto de hotel foram singularmente instigantes, empolgantes e engraçadas. Tentarei dar um vislumbre do quanto.

Charles Nancy (em quem o apelido de Fat Charlie, o 'Charlie Banha', ou, numa tradução mais livre, 'Charlie Gorducho', grudou como uma incômoda segunda pele) é um típico americano do sul, que agora mora na Inglaterra - percurso inverso ao do próprio Neil Gaiman, um inglês que hoje vive nos Estados Unidos. Filho único, ou assim ele pensava, Charlie, nascido na ensolarada Flórida, mudou-se ainda garoto para a nevoenta Londres com a mãe, quando ela se separou de seu pai, a respeito de quem tudo o que Charlie consegue lembrar é que tratava-se de um sujeito alegre, chegado às "boas coisas da vida" (segundo alguns pontos de vista), de conversa fluente, que cativava com facilidade os estranhos e tinha um senso de humor um tanto duvidoso, que o levava a divertir-se enormemente colocando as outras pessoas - sem excluir o próprio filho - em situações vexatórias. Por causa disso, o adjetivo que mais facilmente vem à memória de nosso herói ao pensar no pai é "constrangedor", e ele acha muito confortável ter toda a largura do Atlântico a separá-lo do velho. Isso estabelecido, Charlie é um homem comum que vive uma vida comum: um emprego chato numa firma de contabilidade, um apartamento, e uma noiva, Rosie, com quem está planejando o casamento próximo. Aliás, é só por insistência de Rosie, que não conhece a "peça", que Charlie decide convidar o pai para o casamento, e, com essa intenção, telefona para uma antiga vizinha na Flórida para tentar fazer contato com ele - e fica sabendo que seu pai acaba de morrer.

Sem saber direito por que faz isso, Charlie acaba viajando para os Estados Unidos para comparecer ao funeral do pai. Depois da cerimônia, a vizinha, Sra. Higgler, cumpre outro ritual, o de levar o rapaz para rever a antiga casa, ver se quer guardar algum dos objetos pessoais deixados pelo pai, etc. E também partilha com ele uma série de reminiscências e de coisas que ele não sabia sobre o próprio pai - como o fato, que a velha senhora joga como se não tivesse mais importância do que dizer o time de beisebol para o qual o homem torcia, de que o pai de Charlie era na verdade Anansi, o deus-aranha no panteão de certos povos africanos. E revela-lhe também que ele tem um irmão, e que, quando quiser vê-lo, só precisa pedir a uma aranha que passe o recado.

Entendam: Fat Charlie Nancy não apenas é um sujeito sem o menor interesse por qualquer assunto de natureza mística ou religiosa - é também um sujeito absolutamente comum e sem um pingo de imaginação. Jamais consideraria a possibilidade de que sua visão confortável do mundo talvez estivesse equivocada e de que algumas coisas estranhas e misteriosas pudessem ser reais. Assim, é num momento em que tem a mente nublada pelo álcool que ele realmente fala com uma aranha e pede-lhe para dizer a seu desconhecido irmão que apareça para vê-lo quando puder.

E o irmão, vejam só, aparece mesmo!

Spider (pois é assim que ele se apresenta) parece ter herdado toda a substância divina que havia no pai dos dois, da mesma forma como Fat Charlie ficou com todos os traços mais prosaicamente mortais: consegue fazer as coisas acontecerem conforme sua vontade, e, quando Charlie se refere a tais feitos como sendo "magia", Spider fica ofendido e explica que não é magia: são milagres. Mas essa não é a coisa a respeito do irmão que mais incomoda Charlie. O que há é que os dois se parecem, mas ao mesmo tempo não: é como se Spider fosse a versão idealizada que Charlie guarda de si mesmo em algum canto da mente - o cara que ele gostaria de ser. Enquanto Fat Charlie é tímido e desajeitado, Spider é "descolado" e esbanja autoconfiança; enquanto Charlie arrasta seu noivado um tanto sem graça com Rosie (que, aparentemente, está com ele mais para chatear a mãe ranzinza que por outro motivo qualquer), Spider é um verdadeiro ímã para mulheres. Tanto que acaba "pegando" também Rosie, que, acreditando que ele seja o irmão, sente repentinamente o afeto aguado que até então a ligava ao noivo transformar-se em paixão avassaladora. A fim de livrar-se de Spider - pois simplesmente pedir-lhe que vá embora não dá resultado -, Charlie viaja novamente aos Estados Unidos para pedir ajuda à Sra. Higgler, que, com o auxílio de outras vizinhas idosas, realiza um ritual mágico que leva Charlie a um lugar misterioso onde ele se encontra com uma série de criaturas estranhas - deuses-arquétipos comuns a todas as mitologias primitivas, cada um representado por um animal, com o qual se parece, ao mesmo tempo em que tem figura humana. Todos eles conhecem Anansi e sua fama de esperto e gozador, mas nenhum parece interessado em ajudar o filho dele. Quando finalmente encontra um deus que aceita fazer um pacto com ele, Charlie não tem ideia do que está desencadeando quando tudo o que realmente deseja é fazer com que Spider vá embora - mas não tardará a descobrir. Só para começar, ele se torna um alvo para o vingativo Tigre (Gaiman ressalta várias vezes que "tigre", aí, é um designativo genérico para qualquer grande felino, com a possível exceção do leão: leopardos, onças e vários parentes seus já foram, em alguma época e região, chamados de "tigre", o que explica a presença desse animal no folclore dos povos africanos, os quais obviamente não conheciam o tigre propriamente dito, que não existe na parte do mundo que habitam). O Tigre costumava ser o "dono das histórias" numa era sombria e esquecida, até ser tapeado por Anansi, que, assim, assumiu o papel de protagonista dessas histórias, alterando profundamente o caráter de cada uma delas e, por consequência, o próprio mundo em volta: quando as histórias pertenciam ao Tigre, o mundo era um lugar violento e sanguinário... Bem, ele ainda é assim, mas ao menos, com Anansi como dono das histórias, existem humor, riso e alegria para contrabalançar; nada disso existia quando o Tigre mandava.

E que histórias seriam essas? Quase todas. No livro estão recontadas várias delas, que a maioria de nós já ouviu ou leu: aquela do macaco que roubava bananas até ser apanhado com a ajuda de um boneco de piche, por exemplo, está aqui, apenas adaptada para ter Anansi como protagonista (ou seria a versão de Anansi a original e a que conhecemos a adaptação? Hum...). Essa história, assim como uma miríade de outras, é encontrada nas culturas de inúmeros povos ao redor do globo, desde os celtas da Irlanda até os ainos do norte do Japão - leia-se: povos sem nenhuma possibilidade de terem tido qualquer tipo de interação entre si antes do surgimento dos meios de comunicação modernos. Então como é que todos contavam as mesmas histórias, variando apenas nos detalhes? Carl Jung tinha uma teoria fascinante e, além disso, plausível para explicar esse fato. Neil Gaiman oferece-nos outra, ou, melhor dizendo, dá nova forma à teoria de Jung, recontando-a de modo a transformá-la em mais uma fábula. Brilhante!

Os Filhos de Anansi é um daqueles livros que a gente devora na primeira leitura, e que merecem uma segunda, mais lenta e refletida. Está cheio das marcas registradas de Neil Gaiman: personagens cativantes, situações divertidas, toques geniais de seu infalível humor britânico, e uma maneira absolutamente única de tratar a dualidade entre o mundo "real" e a infinita esfera dos inúmeros mundos místicos, oníricos ou legendários que compõem o imaginário humano - e que, por fazerem parte desse imaginário, são, a meu ver, perfeitamente reais a seu modo, sendo esse o motivo das aspas usadas quando me refiro ao mundo que vulgarmente chamamos de "real". Desconfio seriamente, e não pela primeira vez, que Gaiman seja um grande fã de Michael Ende, e que, se é que a recíproca não era verdadeira, deve ter sido apenas porque o autor de A História Sem Fim não viveu o suficiente para vê-lo alcançar a merecida fama e ter uma chance de conhecer sua obra. Gaiman cumpre com raro vigor e originalidade a missão de não apenas nos mostrar caminhos para chegar a Fantasia, como também de nos fazer refletir sobre o quanto nossas visitas periódicas a ela são essenciais para que nosso próprio mundo conserve alguma dose de equilíbrio e sanidade.

sexta-feira, março 30, 2012

Jogos Vorazes

Mais uma vez, muita gente vai torcer o nariz para uma coisa legal só porque ela está bombando na mídia – fala-se de Jogos Vorazes como uma "nova grande franquia", no rastro de Harry Potter ou Crepúsculo, o que significa que a indústria cultural está contando com ele para faturar os tubos, não só com livros e filmes, mas com todo tipo de memorabilia imaginável e com uma fornada de imitações mais ou menos óbvias, e isso será suficiente para que muitos nem sequer levem a sério a possibilidade de lê-lo. Como continuo acreditando que nenhum "dogma" deve ser colocado acima do julgamento individual, pus os preconceitos de lado e li.

E, vejam só, o que concluí foi que, se Jogos Vorazes vier mesmo a se tornar uma febre como aqueles outros, será preciso reconhecer que a autora Suzanne Collins visou – e acertou – um alvo bastante diferente do de suas antecessoras. Harry Potter, embora, em seus volumes finais, tenha-se permitido lidar com climas pesados e tratar de questões bastante sérias, começou de uma maneira leve, quase infantil mesmo – como escrevi em outro post, J. K. Rowling apostou em que uma geração de leitores amadureceria junto com o herói. Crepúsculo, por sua vez, é uma releitura romantizada dos vampiros do folclore e da literatura gótica. Nada disso se aplica a Jogos Vorazes. Há romance, sim, mas ele não é a mola propulsora da história. Trata-se de um universo bem mais sombrio e de um enredo bem mais cru e brutal que o de qualquer "grande franquia" que tenhamos visto recentemente. Uma aposta num público diferente?

Estamos alguns séculos no futuro. No local onde antes existiam os Estados Unidos da América, há agora um país chamado Panem, governado pelo Capitólio (no original, "the Capitol", que na tradução virou "a Capital"... Tradutores sem cultura me tiram do sério) e formado por doze distritos designados simplesmente por números. Os cidadãos do Capitólio vivem uma vida despreocupada e de abundância material, enquanto os habitantes dos distritos trabalham duramente para garantir a sobrevivência – uma sobrevivência bem mais magra e penosa em alguns deles do que em outros: aparentemente, os distritos são numerados de acordo com uma ordem, dos mais ricos para os mais pobres. Cada distrito exerce uma atividade principal: agricultura, pesca, mineração e assim por diante. Sabe-se que, décadas antes do início da história, houve uma guerra na qual os distritos, que então eram em número de 13, tentaram libertar-se do domínio do Capitólio. Doze deles foram subjugados, e o último, destruído por completo. A partir daí, o Capitólio promove anualmente os Jogos Vorazes – um evento para o qual cada distrito é obrigado a enviar um casal de jovens, de 12 a 18 anos, que serão colocados em uma imensa arena a céu aberto, onde lutarão entre si até que apenas um reste vivo. Esse retorna rico e famoso ao seu distrito, para servir (conforme a propaganda oficial) como uma "lembrança da benevolência e generosidade" do Capitólio. Detalhe: a competição, ou antes, a carnificina, é transmitida ao vivo, em rede nacional, pela televisão. Esses jovens recebem o nome de "tributos". Enquanto, na maioria dos distritos, é necessário um sorteio geral entre toda a população capaz dentro da faixa etária visada, nos distritos mais ricos, notoriamente no 1 e 2, existem os assim chamados "carreiristas", que são treinados intensivamente durante anos e, ao completarem 18, oferecem-se como voluntários. Desnecessário dizer que são quase sempre esses que vencem.

A heroína narradora é Katniss Everdeen, uma garota de 16 anos que vive no Distrito 12, onde a atividade econômica predominante é a extração de carvão. O pai de Katniss morreu cinco anos antes, numa explosão na mina onde trabalhava; a mãe caiu numa espécie de estupor causado pela depressão, ficando durante meses sem falar ou fazer coisa alguma, o que forçou Katniss, então com onze anos de idade, a, nas suas próprias palavras, assumir a liderança da família, tendo que, de algum modo, garantir sua própria sobrevivência, a da mãe e a da irmã, Prim, de sete anos. Felizmente, o Sr. Everdeen não era apenas um mineiro, mas também um homem que sabia como mover-se numa floresta, caçar e coletar plantas comestíveis ou medicinais, e, antes de morrer, teve tempo de ensinar um pouco disso à filha mais velha. Daí em diante, Katniss passa a maior parte do tempo perambulando pela região selvagem que fica além da cerca de seu distrito, seu arco garantindo carne para a mesa de sua família e para ser trocada pelas outras coisas de que precisam. Ter sido obrigada a arcar com tanta responsabilidade cedo demais fez de Katniss uma jovem aparentemente fria e dura, acostumada a reprimir as emoções. Só Prim e, em bem menor grau, o amigo e companheiro de caçada, Gale, conseguem, uma ou outra vez, fazer com que sorria ou demonstre algum débil traço de capacidade de interação afetiva.

É nesse pé que as coisas estão quando chega o dia da "Colheita" – o sorteio dos participantes – destinada à septuagésima quarta edição dos Jogos. Pela primeira vez, não só o nome de Katniss estará na urna, mas também o de Prim, que completou 12 anos desde a edição anterior. Como crianças dessa idade não têm, na prática, a menor chance contra competidores mais velhos, muito mais fortes e hábeis, a organização dos Jogos criou uma maneira de reduzir as chances de que sejam sorteadas: as inscrições são cumulativas, quer dizer, os de 12 anos têm seus nomes inscritos apenas uma vez, os de 13, duas, os de 14, três, e assim por diante até os 18. Além disso, há um sistema de distribuição de tésseras (um sinônimo arcaico para senhas) que dão direito a pequenas rações de grãos, mas, em troca de cada uma, o jovem ou a jovem tem seu nome inscrito uma vez a mais. Embora ela própria já tenha pego muitas tésseras para afastar de casa o fantasma da fome enquanto ainda não sabia caçar muito bem, Katniss jamais permitiria que Prim fizesse o mesmo. Porém, mesmo todas as probabilidades estando contra, Prim é sorteada logo em sua primeira vez, e Katniss, sabendo que a irmã estaria indo para uma morte certa, apresenta-se como voluntária no lugar dela.

(Parêntese: lendo a narrativa a respeito da Colheita, é impossível não lembrar de outro sorteio muito parecido, o que era realizado entre os jovens de Atenas para selecionar os que seriam levados a Creta para serem devorados pelo Minotauro. Collins ganhou alguns pontos comigo com essa citação clássica indireta.)

O outro tributo do ano é Peeta (uma variação futurista de Peter?) Mellark, filho do padeiro da cidade. Como Katniss observa, a boa alimentação e o trabalho constante sovando massa e carregando pesados sacos de farinha fizeram dele um rapaz forte e bem constituído, aparentemente capaz de ter alguma chance nos Jogos. O que ela não esperava era que, além disso, Peeta também se mostrasse um ator nato, capaz de tornar impossível saber quando está ou não mostrando seus verdadeiros sentimentos, seja ao dizer-se apaixonado por ela ou ao blefar na arena. Enfim, esse sujeito se daria bem nos revoltantes reality shows do século XXI. E, de qualquer forma, com ou sem paixão, há um fato implacável pairando sobre suas cabeças: só um pode sair vivo da arena. Na improvável hipótese de os outros 22 tributos morrerem e só os dois restarem, um será obrigado a matar o outro.

Mencionar os reality shows leva-me a outro ponto: eles são sem dúvida um dos muitos elementos aos quais Collins está fazendo referência em sua obra. Uma referência, por sinal, nada lisonjeira – e, vamos ser francos, eles não merecem outra coisa. Antes de os Jogos terem início, os tributos recebem um "polimento" nas mãos de estilistas, são entrevistados na TV, apresentados ao público e tudo o mais, e precisam angariar simpatias, pois isso pode significar a diferença entre a vida e a morte na arena: os Jogos Vorazes dependem de patrocinadores, que, mediante o pagamento de quantias obscenas, podem mandar algum tipo de ajuda para seus tributos favoritos, sob a forma de alimento, remédios ou outros itens vitais durante a competição. Naturalmente, os tributos mais populares têm mais chances de receber esses donativos. E, para ganhar popularidade, o que acontece, tanto nos Jogos Vorazes quanto nos Big Brothers da vida, é que as pessoas fingem ser o que não são. Embora a palavra realidade faça parte do próprio nome desse tipo de programa, tudo parece ser uma grande armação. Nos realities reais (dãã...), os participantes são, via de regra, pessoas tão rasas, vulgares e sem qualquer traço distintivo marcante, que a produção e os apresentadores procuram grudar um rótulo berrante em cada um para que o público consiga, pelo menos, distinguir um do outro: este é o palhaço, aquele é o atleta, aquele outro é o maquiavélico, e assim por diante. Romances de ocasião também ajudam. Da mesma forma, Peeta e seu mentor, Haymitch (mentor é uma pessoa que já venceu os Jogos uma vez e agora auxilia e orienta os atuais tributos) arquitetam cuidadosamente, juntos, o romance dele com Katniss, a fim de vender a imagem dos dois como os "amantes desafortunados do Distrito 12", o que faz com que sobressaiam e atraiam a atenção do público sedento de emoção – só que Peeta, o cara enigmático, mantém tanto Katniss quanto o leitor em suspense sobre se isso tudo é teatro ou se ele realmente gosta dela. Também é fato que, tanto nos realities quanto nos Jogos Vorazes, forjam-se alianças que são necessariamente temporárias, pois, caso um grupo de aliados derrote seus adversários, não restará outra alternativa a não ser apunhalarem-se uns aos outros logo depois. A única diferença é que, na arena de Panem, o apunhalamento é literal.

Registre-se também que, como não podia deixar de ser em se tratando de uma história sobre pessoas que lutam até a morte para a diversão de outras, há citações bastante claras aos combates de gladiadores da Roma antiga, o que aparece até mesmo no fato de muitos dos habitantes do Capitólio terem nomes romanos: Caesar, Claudius, Portia, Cinna... Capitólio, aliás, embora o tradutor Alexandre D'Elia, pelo visto, não saiba disso, era o nome de uma das sete colinas de Roma, onde ficava o templo de Júpiter Capitolino, protetor da cidade. Séculos mais tarde, o nome foi dado ao prédio do centro legislativo dos Estados Unidos, em Washington. A qual dos Capitólios estaria Collins fazendo alusão? Acho que a ambos. O próprio nome do país onde tudo acontece também não foi escolhido gratuitamente. Panem é pão em latim, e faz parte de uma das mais célebres expressões proverbiais da História: Panem et circenses, ou seja, 'pão e atrações de circo', significando que, enquanto o povo tiver a barriga cheia e alguma distração que não demande muito cérebro, ele não causará problemas aos poderosos, façam estes o que fizerem. Tudo a ver com Jogos Vorazes e, infelizmente, também com a nossa realidade.

Certo, não há nada de radicalmente inovador na obra de Suzanne Collins: quadros sombrios de civilizações distópicas no futuro existem em quantidade na literatura e no cinema de ficção científica (1984, Blade Runner, O Exterminador do Futuro, e isso mal serve de início se quisermos fazer uma lista), e a ideia de um programa de TV ao vivo com pessoas lutando e matando-se já aparecia num filme de 1987, The Running Man, exibido no Brasil como O Sobrevivente, com Arnold Schwarzenegger, que, por sua vez, era livremente inspirado (e bota livremente nisso...) num romance de Stephen King publicado em 1982, mas não dá para tirar o mérito da autora se ela soube recombinar esses elementos e criar algo tão capaz de prender a atenção quanto Jogos Vorazes, que, de quebra, ainda vale por uma intencional e louvável cuspida na cara de certos setores da indústria do entretenimento em nossos dias. As sequências, Em Chamas e A Esperança, estão desde já na minha lista de leitura.

terça-feira, fevereiro 28, 2012

A Assombrosa Viagem de Pompônio Flato

Eu não conhecia o escritor espanhol Eduardo Mendoza até questão de dias atrás. Então, enquanto esperava por um voo no aeroporto de Porto Alegre, entrei na livraria LaSelva e, na caixa de "oportunidades", encontrei este livro por menos de dez reais. Comprei-o; ao desembarcar no meu destino poucas horas depois, já tinha lido metade dele, pois é uma leitura fácil sem ser rasa, que prende a atenção e, de quebra, divertidíssima. O livro encaixa-se com perfeição na curiosa definição que aparece na sinopse da contracapa: "cruzamento de romance histórico, romance policial, hagiografia e paródia de todos esses gêneros".

Pompônio Flato (nenhum prêmio por identificar o trocadilho do último nome) é um filósofo e erudito romano do primeiro século de nossa era, que, levado por suas pesquisas de história natural, viaja até os confins da Palestina em busca de uma fonte cujas águas teriam a propriedade de aumentar a sabedoria de quem as bebe. Depois de provar a água de diversas fontes sem nada conseguir além de um persistente desarranjo intestinal, acaba perdido no deserto, sem montaria, sem dinheiro e praticamente só com a roupa do corpo. É socorrido por um grupo de mercadores árabes, que o levam em sua companhia até cruzarem com a comitiva de um magistrado romano, Ápio Pulcro, que se dirige a uma cidadezinha da Galileia a fim de administrar justiça num caso de assassinato. Pompônio então se junta a Pulcro, que promete conseguir-lhe meios de voltar a Roma assim que tiver resolvido o assunto. E, sem ter planejado isso, o nosso filósofo acaba chegando à tal cidadezinha, denominada Nazaré.

O caso em questão é a respeito do assassinato de um certo Epulão, o homem mais rico da cidade, que foi encontrado morto em sua biblioteca, com a porta e a janela fechadas e sem que nenhuma fechadura tivesse sido forçada. A arma do crime, encontrada no local, foi um formão para madeira, o que faz com que as acusações recaiam sobre o carpinteiro que estava fazendo um serviço para o morto e em razão disso tinha acesso ao interior de sua casa. O nome do carpinteiro: José.

As autoridades judaicas locais já decidiram que José é culpado e o condenaram à morte, mas tal sentença não pode ser aplicada sem ser antes referendada por uma autoridade romana. Ápio Pulcro, entediado e ansioso por partir, dá logo o seu aval e fica marcada a execução para o entardecer do dia seguinte. Entretanto, Pompônio é procurado pelo filho do condenado, um menino muito esperto e ao mesmo tempo adoravelmente ingênuo, Jesus, que lhe oferece parte das economias do pai para que sirva ao mesmo tempo de detetive e advogado de defesa, a fim de descobrir o verdadeiro assassino e provar a inocência do carpinteiro. Separado de seus recursos e sem nada para fazer enquanto espera a hora de voltar para casa, o filósofo aceita.

Assim tem início uma parceria insólita e que dá origem a situações ora interessantes, ora muito engraçadas. Pompônio tem como instrumentos sua mente lógica de filósofo e a habilidade oratória que lhe permite extrair de vários habitantes da cidade as informações de que necessita; o menino Jesus, por seu turno, possui o conhecimento do terreno e dos costumes locais. Os dois interagem com vários personagens já conhecidos de quem leu os Evangelhos e com outros que é fácil imaginar que poderiam ter vivido naquela época e região: operários, comerciantes, sacerdotes, prostitutas, soldados, mendigos. Um destes últimos é Lázaro, o leproso (não confundir com o amigo de Jesus que seria ressuscitado por ele: os judeus possuíam poucos nomes próprios, de modo que a maioria das pessoas tinha inúmeros homônimos), que, junto com o rico Epulão, mais tarde se tornaria personagem de uma parábola de Jesus. No decorrer das investigações, Pompônio vai ensinando a Jesus um pouco da filosofia e da mitologia greco-romanas - e, para sua surpresa, também aprendendo algumas coisas com o menino. Como ocorre numa boa trama policial, a história vai se desenrolando como um tapete no ritmo das pistas encontradas, pistas essas que vão se encadeando até conduzir a um final clássico para o gênero - ou seja, inesperado.

A história é contada em primeira pessoa, sob a forma de uma carta que Pompônio redige a um amigo, um tal Fábio, e a linguagem é bem a que se esperaria de um filósofo romano, o que resulta fazer de A Assombrosa Viagem... uma leitura deliciosa para quem possui um bom vocabulário, mas talvez impraticável para quem não preenche esse requisito. Mendoza explora com habilidade as personalidades que os personagens bíblicos poderiam ter tido - personalidades plausíveis com base no que sabemos sobre eles: quando Maria, mãe de Jesus, conversa com Pompônio, humildemente declara-se uma "mulher ignorante" (que no livro está grafado "ingnorante", num dos mais pavorosos erros de digitação/revisão que já vi), mas seu próprio discurso desmente isso, pois ela demonstra uma visão aguçada e inteligente da sociedade de seu país e mostra-se desejosa de que seu filho aprenda as coisas de que necessitará para viver no "mundo lá fora", razão pela qual vê com bons olhos o laço afetivo e a relação de mestre e discípulo que se formaram entre o menino e o filósofo, a despeito de este último ser pagão, fato que, aos olhos da maioria dos judeus da época, anularia por si só qualquer boa qualidade que ele pudesse ter.

Sempre sob o filtro da ironia e do bom humor, o livro também enfoca a diferença essencial que havia entre os judeus e os demais povos que faziam parte do Império Romano: um zelo religioso muitas vezes intransigente, que se sobrepunha a qualquer ditame lógico ou constatação prática. Explicando mais claramente: logo que um país era conquistado, seus habitantes naturalmente tomavam-se de um ódio apaixonado contra Roma e tudo o que dela viesse - mas algum tempo depois, se não eles próprios, seus filhos e netos aprendiam a ver as vantagens de fazer parte do Império, o que, via de regra, significava uma vida mais segura e farta do que antes, além de boas estradas, banhos públicos, planejamento urbano, incremento da economia e da cultura, e um sistema de justiça diferente da tradicional "lei do mais forte", que era a única lei que a maioria desses povos conhecia até então. Para muita gente, esses benefícios concretos pesavam mais que uma noção abstrata como a de liberdade, de modo que acabavam passando a cooperar voluntariamente com os romanos; decorrendo mais tempo, a própria separação entre conquistadores e conquistados tornava-se indistinta, e gradualmente ocorria uma miscigenação étnica e cultural, que está na origem de não poucos povos modernos. Já com os judeus, ou ao menos com certos setores de sua sociedade, isso não acontecia. Para esses, religião e política não apenas estavam estreitamente ligados: eram, na prática, uma coisa só, de modo que, para eles, era ao mesmo tempo uma questão de virtude e de patriotismo manterem-se impermeáveis a qualquer influência cultural e avessos a qualquer tipo de cooperação ou tolerância.

Há pouco a reclamar de Mendoza no quesito de conhecimentos históricos e bíblicos, mas não deixei de notar uma séria distorção temporal: primeiro Ápio Pulcro conta a Pompônio ter sido partidário de Júlio César, mas que, depois da morte deste, teria passado para a facção de Brutus e Cássio para lutar contra Otávio (depois imperador com o nome de Augusto, e que era quem governava o Império no tempo da narrativa); mais tarde, um soldado de nome Quadrato declara haver lutado sob as ordens de Pompeu, contra César, na batalha de Farsália. Ora, se Jesus era então um menino, e se as Metamorfoses de Ovídio haviam sido publicadas recentemente (Pompônio menciona esse livro), então já deveriam ter passado mais de 50 anos desde a morte de Júlio César. Claro, pode ser tudo bravata de um soldado pouco instruído e sem-noção, o que, aliás, estaria plenamente de acordo com o estilo irônico do livro. Por outro lado, deixou-me um tanto desconfortável o fato de o tempo dos verbos ficar variando a toda hora do presente para o pretérito e vice-versa - coisa que costumo apontar como uma falha de redação quando alguém me pede um parecer sobre algum texto. Mas não é nada que não dê para relevar, e quem ler o livro irá sem dúvida divertir-se muito.

sexta-feira, janeiro 13, 2012

Queda de Gigantes

Vou confessar: eu tinha um certo preconceito com Ken Follett. Não sei por que, mas ele sempre me pareceu ser um outro Sidney Sheldon - que, por sua vez, embora não seja o melhor escritor do mundo, está longe de ser o pior: como já escrevi antes, é incomparavelmente melhor ler Sidney Sheldon do que não ler coisa nenhuma. Em todo caso, neste momento estou dando a mão à palmatória: como sempre acontece com os preconceitos, esse ruiu assim que travei verdadeiro conhecimento com a coisa sobre a qual pensava saber algo. Queda de Gigantes é um livraço, e não só por ter mais de 900 páginas. Aliás, se não fosse um livraço também no outro sentido, chegar ao fim de um livro dessa extensão seria praticamente impossível.

Este é o primeiro volume de uma trilogia intitulada O Século, que, conforme informações presentes nas orelhas do livro, prosseguirá com outro a respeito da Grande Depressão e da Segunda Guerra Mundial, e um terceiro sobre a Guerra Fria. Queda de Gigantes está ambientado durante a segunda década do século XX, e seu título, muito bem dado, refere-se ao colapso dos impérios coloniais europeus que haviam ditado as regras ao resto do planeta durante os dois séculos anteriores. Embora esses impérios já mantivessem seu equilíbrio com dificuldade há décadas, um evento específico precipitou o fim quase simultâneo de todos eles e redesenhou de forma radical o mapa geopolítico da Europa. Esse evento foi a Primeira Guerra Mundial, que serve de eixo à narrativa de Follett.

O livro não tem propriamente um protagonista, pois não há um personagem único que capitalize as ações mais importantes da narrativa. Ao invés disso, a história foca os acontecimentos da vida de cinco diferentes famílias: os Williams, galeses; os Peshkov, russos; os Fitzherbert, ingleses; os Von Ulrich, alemães; e os Dewar, norte-americanos. Enquanto as duas primeiras famílias são das classes trabalhadoras, as três últimas são privilegiadas: tanto os Fitzherbert quanto os Von Ulrich, além de ricos, fazem parte das aristocracias seculares de seus respectivos países; já os Dewar, embora sem origens ilustres, são igualmente abastados. Como romance histórico extremamente bem escrito, Queda de Gigantes leva a um alto grau de maestria aquilo que define esse gênero: uma história dentro da História, personagens ficcionais movendo-se sobre um pano de fundo real, reconstituído com base numa pesquisa extensa e minuciosa, que englobou desde táticas e armamentos de guerra até o que era servido tanto nas mesas humildes quanto nas mais luxuosas, e o que estava na moda em matéria de música e vestuário na época - além, é claro, da intrincada situação política que o mundo vivia.

A princípio, o leitor pode até achar cansativo o grande número de personagens cujas características, backgrounds e atos é preciso lembrar e concatenar a fim de compreender o desenvolvimento do romance, mas, aos poucos, o próprio entrelaçamento de todas essas vidas vai tornando essa tarefa mais fácil: um personagem está ligado a outro, que está ligado a outro, e assim sucessivamente, numa cadeia que abrange vários países. O galês Billy Williams, um jovem mineiro e mais tarde soldado, é o que de mais próximo do ideal heroico encontramos no livro: corajoso, gentil, dono de um caráter irrepreensível, Billy é filho de David Williams, líder sindical na pequena cidade mineradora de Aberowen, no país de Gales, e irmão de Ethel, uma jovem bonita, inteligente e ambiciosa que trabalha como criada na mansão dos Fitzherbert, donos das minas onde trabalha quase toda a população da cidade. O atual chefe da rica família é o jovem conde Edward Fitzherbert, chamado pelos amigos de "Fitz", um homem vaidoso e arrogante, como seria de se esperar de alguém de sua posição social; apesar de não ser desprovido de bons sentimentos, Fitz parece ter um caráter demasiado fraco para agir de acordo com sua consciência, quando isso significar desafiar convenções e talvez perder o apreço de seus pares. Em compensação, sua irmã, lady Maud, é uma feminista convicta, que, ao invés de gastar seus dias no absoluto ócio que era considerado a "atividade" normal para as mulheres da aristocracia inglesa de então, dedica-se com ardor à causa do voto feminino, que era uma das grandes lutas sociais e políticas em andamento na época. Maud acaba apaixonando-se pelo jovem diplomata Walter Von Ulrich, antigo colega de colégio de Fitz e filho de Otto Von Ulrich, também da carreira diplomática, amigo e conselheiro direto do Kaiser alemão Wilhelm (ou Guilherme) II. Ainda falando em Fitz, o conde é casado com Elizaveta, apelidada de "Bea", uma princesa russa, que, juntamente com seu irmão, o príncipe Andrei, tem um histórico de anos de abusos e arbitrariedades para com camponeses e operários em seu país natal. Entre esses, estão os irmãos Grigori e Lev Peshkov, atualmente trabalhando numa metalúrgica em São Petersburgo, que perderam o pai na infância, enforcado por ordem de Andrei, e a mãe na adolescência, morta pelos guardas do czar ao participar de uma manifestação da classe operária. Com cinco anos de diferença, e tão parecidos fisicamente que as pessoas chegam a confundi-los, os dois irmãos são personalidades opostas: Grigori é um sujeito tranquilo, sério e responsável, acostumado a fazer as vezes de pai e mãe para o irmão mais novo - que, por sua vez, é um boêmio e mulherengo incorrigível, chegado ao jogo e à vodka. Grigori sonha em emigrar para os Estados Unidos, que ele e muitos outros russos da época veem como uma espécie de terra prometida, pelo simples fato de que lá não existe czar nem nobreza, e de que os donos de terras ou de indústrias não podem mandar açoitar ou enforcar seus trabalhadores a seu bel-prazer (!). Só que, quando ele finalmente consegue juntar dinheiro suficiente para sua passagem de navio, devido a um imprevisto quem acaba viajando é Lev, deixando o pobre Grigori sem nada e, de quebra, responsável pela namorada grávida que o irmão deixou para trás.


E, como Grigori acaba descobrindo, se fosse só isso ele ainda não teria do que se queixar... É 1914 e o arquiduque Francisco Ferdinando, herdeiro do trono do Império Austro-húngaro, é assassinado na cidade bósnia de Sarajevo, pelo estudante e nacionalista sérvio Gavrilo Princip. Em represália, os austríacos e seus aliados alemães invadem a Sérvia, que está sob a proteção da Rússia... Inicia-se uma reação em cadeia que mexe com antigos rancores e interesses políticos e econômicos de todas essas e de outras nações, como a França e a Grã-Bretanha, ambas aliadas à Rússia. A Europa entra em guerra, desta vez uma guerra de proporções jamais imaginadas antes, devido aos avanços tecnológicos e ao encurtamento das distâncias pelos novos meios de transporte e de comunicação. Das consequências dessa guerra, ninguém é poupado: Grigori Peshkov, Billy Williams, Walter Von Ulrich e o conde Fitzherbert, todos se veem às voltas com o perigo e o terror dos campos de batalha, sem ao menos a chance de escolherem ao lado de quem preferem estar: Billy serve sob as ordens de Fitz, a quem detesta por ter seduzido e engravidado sua irmã, levando ao rompimento dela com a família, enquanto Walter se vê diante da possibilidade muito concreta de precisar atirar no conde, seu amigo desde a adolescência e, ainda por cima, cunhado.

Enquanto o exército russo invade a região alemã da Prússia, do outro lado do continente os alemães enfrentam britânicos e franceses. A Primeira Guerra Mundial forçou uma transição brusca entre as formas de guerrear antigas e modernas: nas primeiras batalhas ainda se tentou utilizar a cavalaria, que desde a Antiguidade era considerada uma arma decisiva na maioria das guerras, mas que logo se mostrou impotente diante de tanques e metralhadoras. Pela primeira vez foram usados aviões e bombas de alta potência, elevando a guerra a um novo patamar de horror. As metralhadoras fixas (ainda não existiam as leves, que poderiam ser usadas por soldados de infantaria) eram um poderoso instrumento para a defesa de posições, praticamente à prova das formas tradicionais de ataque, o que teve como consequência uma taxa terrível de baixas: a infantaria precisava atravessar correndo as várias centenas de metros da "terra de ninguém" que separava as trincheiras de cada lado - e tinha que fazer isso indo ao encontro das rajadas das metralhadoras inimigas.

Os Estados Unidos entraram tardiamente na guerra, em 1917, oficialmente em resposta ao torpedeamento de navios americanos por submarinos alemães no Atlântico norte com o objetivo de cortar o fornecimento de suprimentos a ingleses e franceses, mas fica claro com uma análise mais cuidadosa que isso foi apenas parte do motivo: os americanos sabiam bem o que perderiam no campo econômico se alemães e austríacos vencessem a guerra e ficassem senhores da Europa. Para a Inglaterra e a França, a adesão dos ianques foi, literalmente, a salva
ção, principalmente depois que a Rússia se retirou da guerra por causa da Revolução Comunista ocorrida em outubro desse mesmo ano. Para relatar o que acontece na Casa Branca, Follett usa o jovem Gus Dewar, então um dos assessores diretos do presidente Woodrow Wilson.

Queda de Gigantes é um daqueles livros cuja leitura torna-se rapidamente compulsiva - você começa a ler e, quando se dá conta, percorreu 50 páginas sem sentir, e ainda fica contrariado por ter outros afazeres que o obriguem a deixar a leitura de lado por algum tempo. Por tratarem basicamente de guerra, estas páginas mostram um pouco (na verdade, muito) do melhor e do pior que existe nos seres humanos, pois talvez nenhuma outra situação seja tão propícia à revelação desses extremos. É fascinante ler um autor com a capacidade de nos fazer entender como a História é construída, pedra por pedra, pelas ações de seres humanos iguais a nós, tanto os milhares de anônimos que lutaram na guerra e os milhões que sofreram seus efeitos, quanto os grandes líderes que precisaram arcar com o peso de decisões que definiriam o futuro de países inteiros - e, infelizmente, nem sempre se mostraram à altura de tal responsabilidade. E a guerra não é mostrada de uma maneira simplista, como se tivesse sido um confronto do "bem" contra o "mal": o leitor conhece personagens de ambos os lados, estima-os igualmente e torce para que sobrevivam e voltem para suas famílias, o que dá à coisa toda, antes de mais nada, um sentido profundamente humano.