quarta-feira, maio 22, 2013

Encantamentos

Certa vez, no editorial da revista de ficção científica que levava seu nome (e que chegou a ser publicada no Brasil, onde sobreviveu por 25 edições), Isaac Asimov propôs uma teoria classificando seus leitores (e os de publicações do gênero de modo geral) entre "exclusivistas" e "inclusivistas". Exclusivistas seriam aqueles que têm noções muito precisas a respeito do que esperam encontrar nas páginas de uma revista de ficção científica, e tendem a ficar contrariados com qualquer desvio da "norma": esse é o tipo de leitor que escreve ao editor para reclamar que tal ou qual conto é de fantasia, e, portanto, não deveria ter sido publicado numa revista que se pretende de ficção científica. Inclusivistas, em contrapartida, seriam os que, ou não têm uma definição muito rígida do que distingue seu gênero favorito, ou até têm uma definição, mas não a levam muito a sério: em princípio, não se opõem à publicação eventual de histórias que não sejam necessariamente de ficção científica, desde que tenham qualidade. Asimov concluía, se não me falha a memória, dizendo-se, ele próprio, um exclusivista enquanto escritor e, até certo ponto, também enquanto leitor, confessando, porém, que, por vezes, a única resposta que podia dar às reclamações veementes dos exclusivistas mais radicais que liam a revista, era que concordava que o conto em questão não se tratava de ficção científica - só que havia gostado tanto da história, que, como editor, sentira que não podia deixar de publicá-la, independentemente do gênero.

Felizmente, as reservas de Asimov em relação à literatura de fantasia, quaisquer que fossem, não o impediram de unir forças com Charles G. Waugh e Martin H. Greenberg para organizar a série de coletâneas Os Mundos Mágicos da Fantasia, da qual Encantamentos é o primeiro volume. Bem, "série" talvez seja exagero: pelo que me consta, existe apenas mais um volume, Magos. Um terceiro livro, Mutantes, embora com a capa seguindo o mesmo projeto gráfico, e coordenado (se não me engano) pelo mesmo trio, é voltado para a ficção científica.

O maior mérito de compilações como esta é o de tornarem novamente disponíveis histórias que talvez só tivessem sido publicadas antes em antologias há muito esgotadas, ou mesmo em revistas que são hoje itens de colecionador ("novamente" para os norte-americanos, é claro, pois, para nós, esta é a primeiríssima oportunidade de ler a grande maioria desses contos). E são histórias que vale a pena conhecer, pois representam um pouco do melhor que se pode encontrar em matéria de ficção curta ou média no gênero de fantasia. As três únicas que lembro de já ter visto publicadas em outro lugar são as dos autores mais conhecidos do público em geral: O Menino Invisível, do gigante Ray Bradbury, que (mais uma vez confiando na memória) está na antologia de autor único Os Frutos Dourados do Sol; Lote 249, de Sir Arthur Conan Doyle, presente anteriormente numa velha edição dedicada a seus contos não-Sherlock Holmes e, recentemente, também em Góticos; e Eu Sei do que Você Precisa, de Stephen King, encontrável em Sombras da Noite. Ao lado destas, Encantamentos apresenta-nos um punhado de pérolas de imaginação e de escrita. Um (para mim) ilustre desconhecido que atende por Robert Arthur comparece com Satã e Sam Shay, conto que, com sua combinação magistral de humor e elementos sinistros, chega muito perto da perfeição como história cujo objetivo é divertir e entreter. Trata das atribulações de Sam Shay, um malandro de marca maior, que jamais na vida considerou seriamente a possibilidade de trabalhar, acostumado que está a viver à custa de apostas, e acaba por granjear tamanha reputação nesse métier, que seus conhecidos, divididos entre a admiração e o despeito, começam a dizer que "Sam Shay é capaz de fazer três apostas com o diabo, e ganhar todas elas". Até que Satã em pessoa ouve os comentários, e, sendo ele próprio um notório apreciador de jogatinas, decide aparecer para tirar a prova…

Andre Norton leva-nos, em Os Sapos de Grimmerdale, a visitar um mundo medieval imaginário, mais exatamente um país que acaba de emergir de uma guerra cruel, tendo conseguido, com muito sacrifício, repelir uma invasão bárbara. Agora a terra vive os tempos de escassez e confusão que sempre se seguem às guerras, e, em muitos lugares, sofre com a falta de lideranças, já que grande parte de seus homens adultos e capazes (incluindo muitos de seus lordes) tombou no campo de batalha. Esse é o cenário por onde perambula Hertha, uma jovem de estirpe nobre que caiu em desgraça ao ser estuprada - seu irmão expulsou-a do feudo da família, como se ela fosse culpada do acontecido. Ainda pior: o responsável pela violação não foi um dos invasores, mas um homem de seu próprio povo. Agora, grávida e desamparada, ela está em busca de vingança, e, para conseguir seu objetivo, está disposta a tudo, até mesmo a barganhar com os seres misteriosos que habitavam a região antes da chegada dos humanos, e que agora vivem escondidos e, segundo se diz, conhecem magia antiga e poderosa.

Outro mergulho empolgante em um mundo de guerreiros, magos e criaturas fantásticas é proporcionado por Gerald W. Page, que, em O Herói que Voltou, nos conta sobre o dilema de Dunsan (o nome do personagem é uma discreta, porém clara homenagem a Lord Dunsany, escritor pioneiro do gênero sword & sorcery do início do século XX), um homem já de certa idade que, depois de ter ganho a vida como agricultor e como ferreiro, acabou tornando-se balseiro, e agora faz travessias num rio. Detalhe: tudo o que existe na outra margem, por uma grande extensão, é uma região selvagem e uma velha e arruinada fortaleza que todos acreditam ser assombrada… Por causa disso, só um tipo de passageiro vem pedir transporte a Dunsan: heróis rumando para a tal fortaleza para enfrentar o que quer que exista lá, e tentar pôr fim à maldição. Esses audazes aventureiros vão, mas jamais voltam, de modo que o balseiro tem que conviver com o fato de que a comida que ele coloca na mesa para si próprio e para sua esposa vem de levar homens para a morte certa. Para completar, ele teme que a esposa, Maelwyd, bem mais jovem que ele e sonhadora por natureza, esteja insatisfeita com a vida rotineira que levam, e a presença, ainda que ocasional e breve, de todos aqueles guerreiros cheios de histórias fascinantes para contar não contribui para tranquilizá-lo. Até que, numa viagem que em nada parece diferente de inúmeras outras, Dunsan descobre que também é capaz de atos heroicos.

É claro que nem todos os contos são tão legais assim. A Feiticeira Está Morta, de Edward D. Hoch, até começa bem, com algumas estudantes de um colégio interno adoecendo misteriosamente depois que uma velha charlatã conhecida como Mãe Sorte (que, na juventude, fora expulsa do mesmo colégio) lhes roga uma maldição, e quem aparece para investigar é um tal Simon Ark, "detetive especializado em casos de ocultismo e feitiçaria", um homem que, a julgar por diversos indícios, parece ter séculos de idade. O enredo poderia render uma boa história, mas Hoch faz questão de estragar tudo trazendo uma "explicação lógica e racional" para o que parecia ser um fato sobrenatural - no melhor estilo Scooby-Doo -, e é difícil pensar em coisa mais frustrante e irritante que isso para qualquer verdadeiro apreciador da literatura do insólito, que começa a ler uma história de boa-fé, só para descobrir-se ludibriado dessa forma.

Mas não se assustem: não é essa bobagem que irá fazer com que deixe de valer a pena ler Encantamentos, pois o livro tem muito mais coisas a oferecer, e muitíssimo melhores. Particularmente empolgante é encontrar em suas páginas uma história que integra uma das mais monumentais séries de espada e magia já escritas, a das aventuras de Fafhrd, o bárbaro, criadas pelo norte-americano de ascendência alemã Fritz Leiber (1910-1992), que as escreveu durante quase 50 anos: a primeira é de 1939, e a última, de 1988. As Mulheres da Neve, presente em Encantamentos, não foi uma das primeiras a serem escritas (a publicação original é de 1970), mas, pela cronologia interna, talvez seja mesmo a primeira de todas, pois nela Fafhrd é adolescente e ainda vive em sua terra natal, no Canto Frio - uma região inóspita e gelada do norte do mundo de Nehwon -, começando a insurgir-se contra a tirania da mãe, Mor, que, por falar nisso, é uma líder entre sua gente e uma feiticeira temida, não necessariamente nessa ordem. E Fafhrd não é de modo algum o único homem do Povo da Neve a viver na rédea curta sob o controle de uma mulher, seja mãe, esposa ou outra: trata-se de uma sociedade fortemente matriarcal, e na qual as mulheres não dependem apenas da força dos costumes para manter seus homens dominados - na verdade sua magia, toda baseada no frio, no gelo e na neve, é um "argumento" bem mais eficaz que qualquer costume. E, embora não tenha como provar, Fafhrd nutre grandes suspeitas de que a morte de seu pai tenha sido obra dos poderes de Mor, enraivecida por não conseguir dobrar o espírito independente do marido. Há mais: o rapaz sente-se entediado e oprimido com a vida no Canto Frio, e seu interesse pelo sul civilizado e de clima mais ameno só tem aumentado durante os meses que passaram desde que participou de sua primeira expedição pirata para aqueles lados (essas expedições parecem ser mais ou menos uma tradição - um toque viking na caracterização do Povo da Neve). E o acúmulo do descontentamento provocado por todos esses fatores vai fazendo com que Fafhrd - um jovem de sentimentos intensos, embora seus atos sejam frios e calculados - fique cada vez mais inclinado a tomar uma atitude drástica.

Encantamentos termina em grande estilo, com Os Milagreiros, do sempre magnífico Jack Vance, uma história de fantasia com background de ficção científica. Num passado distante (que para nós é futuro), 1600 anos antes dos fatos que vão ser narrados, aconteceram as agora legendárias guerras interestelares, e, no caos que veio depois delas, alguns planetas que a Terra havia colonizado foram esquecidos, ficando sem contato com o resto do universo humano. Pangborn foi um deles. Ao longo dos séculos, seu povo foi-se esquecendo da tecnologia, e agora os descendentes dos antigos viajantes espaciais vivem de maneira praticamente medieval. Com um detalhe curioso: na opinião dos pangbornianos de hoje em dia, o que houve foi progresso. Eles consideram os antigos uma gente primitiva e supersticiosa, que depositava sua confiança em "milagres" (é assim que os personagens se referem à tecnologia e a tudo o que dela derive, mas sem que o uso dessa palavra traga qualquer conotação de admiração; pelo contrário, ela é pronunciada com desprezo), e orgulham-se de atualmente utilizarem-se de meios mais lógicos e racionais para alcançar seus objetivos: feitiços, maldições, invocação de demônios… Apesar disso, algumas heranças dos dias antigos ainda são usadas, seja porque podem trazer vantagens práticas ou como meras insígnias de tradição e status: nobres de ilustres famílias antigas levam na cintura pistolas laser que não funcionam e que, de todo jeito, eles não saberiam manejar, e Lorde Faide, um dos protagonistas, locomove-se num carro que flutua acima do solo, mas que dá claros sinais de estar nas últimas. No topo da fortaleza que leva o nome de sua família, Faide mantém o temido "Boca do Inferno", um canhão energético outrora removido de uma nave de combate arruinada, e que constitui agora sua principal arma defensiva. Há um atendente cuja única tarefa é cuidar do Boca do Inferno - mas tudo o que ele faz é polir e azeitar a superfície metálica da arma, sem que lhe ocorra a possibilidade de algo como uma manutenção interna, pela simples razão de que nem ele, nem ninguém no planeta tem a mínima ideia de como uma coisa daquelas funciona. A não ser quando o Boca do Inferno ou seus congêneres de outras fortalezas entram em ação, a maior parte do combate praticado em Pangborn - onde, por sinal, os conflitos de poder entre os diferentes feudos parecem ser comuns -, é realizada usando cavalos, espadas, arco e flecha e assim por diante, à moda medieval mesmo. Porém, todo lorde sagaz sabe que tão importante quanto ter um exército aguerrido é dispor de uma boa equipe de azarentos, que são uma categoria de feiticeiros profissionais, encarregados de fazer mandingas contra o exército oponente, podendo também invocar demônios, mas somente em situações de extrema necessidade, pois o esforço e o dispêndio de energia envolvidos nisso são enormes, muitas vezes deixando o azarento à beira da morte; por isso mesmo, apenas os mestres da azaração se atrevem a fazê-lo. Os demônios, a propósito, podem servir a dois objetivos: espalhar o terror entre os inimigos ou inspirar um estado semelhante à fúria berserker nos soldados de seu próprio exército. Lorde Faide tem a seu serviço Hein Huss, tido por muitos como o maior azarento vivo, e Huss, por sua vez, tem um aprendiz, Sam Salazar, amiúde ridicularizado tanto por seu medíocre talento na arte de azarar, quanto por cultivar um interesse sem cabimento pelos "milagres" dos antigos. Mas talvez chegue o dia em que nem a espada nem o azar poderão salvar o Forte Faide, e então todos tenham que depositar suas esperanças nas ideias tresloucadas do adolescente que até aí consideravam um pateta. Enfim, Os Milagreiros é tudo aquilo que um leitor de Jack Vance está acostumado a esperar dele, e dizer isso é suficiente para chegar à conclusão de que vale, e muito a pena lê-lo.

Com os altos e baixos inevitáveis (e os baixos são realmente poucos), o mesmo pode ser dito de Encantamentos como um todo: temos aqui um livro que constitui companhia perfeita para muitas horas de viagens de imaginação, para quem quer dar-se um tempo para ler por prazer, deixando de lado todas as demais preocupações e tirando uma folga da dura realidade. E que bem isso faz…

segunda-feira, abril 29, 2013

O Terror

Imagino que todo leitor que já acumulou certa experiência tenha passado por isso ao menos uma vez: você vai, pela primeira vez, realmente ler um autor que foi muitíssimo bem recomendado. Leu muitos comentários tentadores sobre sua obra, e, ainda mais instigante que isso, sabe que um, ou até vários escritores dos quais você gosta, são, ou eram, fãs de carteirinha desse sujeito (no caso de Arthur Machen, ele coleciona "fãs" do naipe de H. P. Lovecraft, Stephen King e T. E. D. Klein). Naturalmente cheio de expectativas, e sentindo que está para viver um momento memorável, você se acomoda confortavelmente na cama ou em sua poltrona favorita, respira fundo, abre o livro... Meia hora mais tarde, começa a sentir-se ligeiramente impaciente. Ao fim de uma hora de leitura, você acha melhor fazer uma pausa e, enquanto vai até a cozinha preparar uma xícara de café, pensa com os seus botões: "Das três uma: ou esse livro ainda me reserva grandes surpresas, ou eu sou bem burrinho de não estar entendendo o que foi que levou tanta gente boa a considerar esse autor tão especial, ou então, vai ver, esse simplesmente não é um dos melhores trabalhos do cara". No que diz respeito a O Terror, ainda estou em dúvida entre as duas últimas possibilidades.

A editora Iluminuras, que também publica Lovecraft no Brasil, inteligentemente aproveitou as entusiásticas palavras de elogio que este último dedica a Machen em seu famoso ensaio O Horror Sobrenatural na Literatura, reproduzindo na contracapa e nas orelhas de O Terror boa parte do trecho que trata dele. Aqui vão dois pequenos excertos:

Dos criadores vivos do terror cósmico elevado ao seu mais alto expoente artístico, dificilmente poderá citar-se alguém que se iguale ao versátil Arthur Machen, autor de cerca de uma dúzia de composições longas e curtas em que os elementos de horror oculto e medo avassalador atingem uma substância e um realismo incomparáveis. (...) O encanto de seus textos está na narração. É impossível descrever o crescente suspense e o supremo horror que estão em cada parágrafo, sem seguir a sequência exata em que Machen vai, aos poucos, desvendando seus indícios e revelações. Com suas palavras e ambientações, ele constrói atmosferas de eletrizante tensão.

Não há dúvida de que uma tal avaliação, não feita por qualquer um, e sim por um mestre do terror como Lovecraft, constitui uma das melhores recomendações que um autor do gênero pode ter, e essa foi uma razão a mais para que eu estranhasse o fato de encontrar tão pouco dessa propalada "tensão eletrizante" nas páginas de O Terror. Nesse pequeno volume, a Iluminuras parece ter tentado apresentar ao leitor uma amostra de cada uma das duas principais "faces" de Machen: a do escritor de terror, através do longo conto que dá título ao livro, e a do autor naturalmente inclinado ao misticismo e à fantasia, por meio de Ornamentos em Jade, pequena coleção de textos curtos, difíceis de definir; poderíamos dizer que são minúsculos contos, embora não pareçam ter a menor pretensão de configurar narrativas com início, meio e fim – e alguns deles, nem sequer a pretensão de fazer sentido, segundo um ponto de vista lógico. Talvez o melhor seja aceitar a sugestão de José Antonio Arantes, tradutor e autor do ensaio A Demanda do Mistério, que encerra o livro, e dizer que são "poemas em prosa", pois a impressão que fica no leitor é a de que, ao escrevê-los, Machen estava muito mais preocupado com o clima que estava evocando e com os sentimentos que estimularia em quem os lesse, do que com aquilo que estava objetivamente dizendo. Sua biografia, da qual pude ter uma ideia graças às informações fornecidas por Arantes, por Lovecraft, e a mais algumas coisas que encontrei na internet, é realmente fascinante, sendo talvez o principal motivo para que eu ainda queira dar-lhe um voto de confiança, mesmo que meu primeiro contato com sua obra não tenha sido tudo o que eu esperava: um homem que viveu essa vida e ainda foi escritor não pode ter deixado de produzir coisas que valem a pena ler!

Arthur Llewellyn Jones nasceu em Caerleon-on-Usk, no antigo distrito de Gwent, sul do País de Gales, em 1863, numa família de longa tradição eclesiástica. Seu pai, o reverendo John Edward Jones, era pároco em Llanddewi, pequeno vilarejo onde a chegada dos tempos modernos parecia ter tido pouco efeito até então. A vigorosa herança celta que impregnava a história da região podia ser sentida na língua, nos costumes, no modo de ser de seu povo, assim como em seu folclore e no misticismo que lhe era inerente; misticismo esse com o qual Arthur sempre se sentiu inteiramente conectado. Foi um menino de hábitos solitários, que gostava de passar dias inteiros percorrendo as trilhas de sua região natal, sentindo-se à vontade em meio àquela paisagem de bosques seculares, colinas enevoadas e misteriosas ruínas romanas (Caerleon-on-Usk fora em tempos a próspera cidade romano-céltica de Isca Silurum, base da Legio II Augusta, a Segunda Legião Augusta, que chegou a ser comandada pelo então general e mais tarde imperador Vespasiano). Ainda durante a infância de Arthur, o reverendo John, para poder receber uma herança proveniente de parentes de sua esposa, adotou o sobrenome dela, passando a assinar Jones-Machen; mais tarde, o escritor optou por usar apenas seu primeiro e último nomes ao assinar suas obras. Viveu a maior parte de sua vida produtiva em Londres, onde veio a conhecer diversas figuras de destaque daquele período que esteve entre os mais importantes para a história da literatura de língua inglesa até hoje – Oscar Wilde, por exemplo. Machen atuou em diversos segmentos do ramo das Letras: deu aulas particulares de inglês, literatura e línguas clássicas para crianças e jovens de famílias abastadas, trabalhou como catalogador de obras raras para tradicionais livreiros londrinos (o que lhe rendeu sólidos conhecimentos sobre magia, esoterismo e ocultismo) e foi colaborador e editor de vários periódicos, tanto dirigidos à comunidade literária quanto publicações comuns de notícias e variedades; enfim, teve a felicidade de conseguir viver do que escrevia e de atividades relacionadas a isso – inclusive o jornalismo, embora não se sentisse muito contente nessa função.

Em setembro de 1914, com a Primeira Guerra Mundial começando, publicou, numa das revistas de que participava, o conto-crônica The Bowmen ('Os Arqueiros'), versão fantástica da Batalha de Mons, que acontecera cerca de um mês antes, nos arredores da cidade belga de mesmo nome, e foi o primeiro enfrentamento entre os exércitos britânico e alemão naquele conflito. No texto de Machen, os arqueiros galeses que lutaram por Henrique V na Batalha de Azincourt ressurgem em Mons, como misteriosas figuras sobrenaturais, para auxiliar seus compatriotas, o que explicaria a vitória britânica, apesar de os alemães terem começado com a vantagem. Por ocasião da publicação original, o autor deixou muito claro tratar-se de uma obra de ficção, sua modesta contribuição patriótica para elevar o moral do exército e do povo em geral; porém, durante os anos seguintes – que, convém não esquecermos, foram duros anos de guerra –, The Bowmen voltou a ser impresso muitas vezes Grã-Bretanha afora, em diferentes revistas, jornais e folhetos, nem sempre tendo o nome do autor creditado, e por vezes sendo apresentado como relato verídico!... Talvez porque agradasse em cheio à mentalidade dos britânicos (que gostavam de acreditar que glórias, vitórias e o domínio do mundo lhes cabiam por direito de "vontade divina"), o fato é que a história "pegou" de uma maneira que Machen jamais poderia ter imaginado: sem querer, ele havia dado início à lenda dos "Anjos de Mons", que daria muito o que falar e escrever a muita gente durante as décadas seguintes, e ainda hoje exerce sua parcela de poder sobre a imaginação de ingleses e galeses.

Machen casou cedo, com uma mulher mais velha, e, tendo enviuvado ainda jovem, casou-se novamente. Teve dois filhos. Curiosamente, fez parte, durante algum tempo, da famosa ordem mística Golden Dawn ('Aurora Dourada'), onde teve confrades de todos os tipos, desde os mais ilustres, como o poeta W. B. Yeats, até os menos recomendáveis, como o notório satanista e praticante de magia negra Aleister Crowley. Morreu em 1947.

Tendo terminado de ler O Terror (refiro-me ao livro como um todo), fiquei em dúvida sobre o motivo que teria levado o pessoal da Iluminuras a escolher para publicação o conto que lhe dá título, principalmente sabendo que esse seria o primeiro contato de muitos leitores com o autor e, quiçá, sua primeira publicação no Brasil (alguns trabalhos de Machen foram lançados em Portugal, mas são edições dificílimas de conseguir – eu sei porque tentei). Tanto Lovecraft em O Horror Sobrenatural... quanto Arantes em A Demanda do Mistério, falam-nos de várias histórias que, pela descrição, parecem muito mais interessantes, como O Grande Deus Pã, O Povo Branco, as narrativas que integram o livro Os Três Impostores, e por aí vai. O Terror até que tem uma ideia que poderia render bem, mas, pessoalmente, desgostei do modo como foi desenvolvida. Deixem-me detalhar um pouco mais.

A história passa-se durante os anos de 1915-16, portanto no auge da paranoia de guerra. No interior do País de Gales, e aparentemente por toda a Grã-Bretanha, pessoas começam a aparecer mortas de maneiras altamente improváveis ou completamente inexplicáveis: um aviador tem sua aeronave abatida por um bando de pombos, um homem é encontrado afogado num pântano apesar de haver uma trilha segura a poucos passos do local, uma família inteira aparece morta, com as cabeças destroçadas, bem em frente a sua casa, um barco levando estudantes vira em mar calmo e apesar de ser conduzido por um marinheiro experiente, outra família é achada morta, entrincheirada dentro de sua casa de fazenda, como se tivesse sofrido um cerco, e a causa da morte parece ter sido a sede, embora exista um poço a poucos metros de distância. Uma boa situação inicial para uma história de terror? Sem dúvida. O problema, ou o que eu considero ser o problema, é que Machen estende seu "suspense" muito além do que seria aconselhável: vai empilhando mais e mais "casos inexplicáveis" e "acontecimentos terríveis e misteriosos" – e mais, e mais, e mais, e mais… –, ao longo de um número excessivo de páginas, até chegar a um ponto em que o leitor, já impaciente, começa a pensar: "Tudo bem, Mr. Machen, o senhor já me convenceu de que algo de anormal está acontecendo; agora, que tal começar a tratar da resposta para o enigma?" Mas, em vez disso, o que o autor nos dá são longas e cansativas palestras entre os personagens, alguns deles propondo explicações teóricas para o mistério – explicações, em sua maioria, bastante extravagantes e ingênuas –, enquanto outros preferem pôr tudo na conta dos alemães, como era moda na época por causa da guerra. O clima de paranoia, aliás, é totalmente plausível e convincente, embora não se mostre suficiente para dissipar o tédio que se instala na narrativa a partir de certo ponto. Há partes em que a forçação de barra chega a ser constrangedora, como já perto do final, quando o Dr. Lewis, um médico do interior e o mais próximo que a história tem de um protagonista, acompanha um grupo de busca até a fazenda isolada onde, depois de serem obrigados a arrombar a porta, se deparam com a desnorteante cena da família morta dentro da própria casa, sem sinais de violência – com exceção do velho fazendeiro, o único encontrado fora da casa e com um buraco no peito. Em meio aos outros, Lewis descobre o corpo de um jovem que ele conhecia, um pintor que era hóspede da família, e uma carta, endereçada a ele próprio, que o rapaz aparentemente escreveu durante suas últimas horas de vida e nunca teve chance de enviar. A carta, entre outras coisas, diz:

"(…) Não quero deixar uma carta escrita por um louco, por isso não vou lhe relatar a história integral do que vi (…)".

A essa altura, minha vontade já era jogar o livro na parede. Mas fica ainda melhor:

"(…) O velho chamou, acho, o filho. Depois houve um barulho tremendo (…). Ouvi a filha gritando: 'É inútil, mãe, ele tá morto; na verdade o mataram' (…)."

Quem o matou, por favor?…

"Fui à janela e olhei para o terreiro. Não vou lhe contar tudo o que vi."

É, eu não esperava mesmo que fosse…

"Quis sair e trazê-lo para dentro. Porém elas me disseram que ele estava definitivamente morto, e também que era bastante claro que quem quer que saísse da casa não viveria mais do que um instante. Não podíamos acreditar no que víamos, mesmo enquanto olhávamos para o corpo do morto. (…) Mesmo então não acreditávamos que fosse durar. (…) Não podia durar, porque era impossível."

O que é que não podia durar, homem?!?

"(…) Ao meio-dia, o pequeno Griffith disse que iria até o poço pelo caminho de trás para buscar mais um balde de água. Fui até a porta e fiquei a postos. Ele mal tinha andado uns doze metros quando o atacaram."

QUEM O ATACOU, PORRA???

Acho que isso já basta como amostra.

Palavra de honra, não sou um desses chatos sem noção que ficam querendo cobrar "verossimilhança" em obras de fantasia, mas há uma enorme diferença entre o que é liberdade imaginativa e o que é simples incoerência. Acho muito difícil de "engolir" que um homem à beira da morte, sofrendo alucinações por causa da sede, ainda fosse impor a si mesmo toda essa rígida e minuciosa autocensura, abstendo-se de revelar a exata natureza do horror que estava enfrentando, meramente para resguardar uma imagem de "lucidez" perante um hipotético leitor. Isso se parece muito mais com uma enjambração capenga da qual o autor lança mão para preservar o suspense – numa altura da história em que ele não mais se justifica. Saber criar suspense é sem dúvida uma das mais valiosas habilidades para um escritor de qualquer gênero, mas talvez ainda mais importante seja saber até onde ele pode ser um recurso narrativo útil e a partir de que momento se transforma numa coisa forçada, artificial e irritante. Suspense tem prazo de validade – um fato do qual, ao menos em O Terror, Arthur Machen não demonstra ter ciência. Leitura muito mais agradável é Ornamentos em Jade, que, de forma despretensiosa, com lirismo e leveza, coloca-nos em contato com a atmosfera das remotas regiões rurais do País de Gales, com seu misticismo antigo, com a beleza de suas paisagens, e com o mesmo sentimento que devia encher o coração do menino Arthur quando ele vagava solitário por tais lugares: uma nostalgia melancólica por um mundo desaparecido há 1500 anos. Portanto, posso dizer que, se dependesse apenas de O Terror, eu não teria planos de voltar a ler Arthur Machen – mas, por causa de Ornamentos em Jade e das excelentes recomendações, sinto que ainda posso dar a ele uma segunda chance.


quinta-feira, março 21, 2013

Eu, Claudius, Imperador

Em seu clássico Declínio e Queda do Império Romano, Edward Gibbon define a lista oficial dos imperadores romanos como uma coleção completa de exemplos, tanto do mais alto grau de virtude quanto dos piores vícios de que os seres humanos são capazes (mais uma vez, estou citando de memória: sei que a frase não é exatamente assim, por isso não a pus entre aspas). E qualquer pessoa que haja estudado a história de Roma, mesmo que por simples curiosidade e sem nenhuma pretensão acadêmica, como este que vos escreve, concordará sem reservas com o célebre historiador britânico. Não deve surpreender a ninguém, portanto, que essa extensa e rica galeria do melhor e do pior do ser humano seja uma das mais interessantes fontes de assunto para um autor quando ele deseja escrever uma biografia, e não há de ser por outro motivo que várias biografias de imperadores romanos ocupam um lugar de destaque na literatura universal. De cabeça, no momento, lembro-me de César, de Max Gallo; Juliano, de Gore Vidal; e do belíssimo Memórias de Adriano, de Marguerite Yourcenar – sem dúvida, um dos livros mais artisticamente escritos que conheço. E, nessa seleta lista, é preciso reservar um lugar para Eu, Claudius, Imperador (I, Claudius), originalmente publicado em 1934, de autoria de Robert Graves (1895-1985), intelectual britânico polivalente: além de romancista, foi poeta, ensaísta e historiador. Sua obra mais famosa é provavelmente A Deusa Branca, um erudito mergulho na religião e no folclore dos antigos celtas.

Vi que I, Claudius ganhou há pouco tempo uma nova edição brasileira, por uma editora diferente e provavelmente numa nova tradução, mas o exemplar que possuo é da edição de 1983 da Abril Cultural, que tem um detalhe interessante a mais para nós, gaúchos: embora publicada em São Paulo, por essa editora lá sediada, essa edição saiu sob licença da nossa tradicional e querida Livraria do Globo, de Porto Alegre (que possuía sua própria editora e foi a primeira a publicar o livro no Brasil), e usa a mesma tradução, feita por ninguém menos que o nosso "poeta estadual", Mário Quintana, que por muito tempo trabalhou para a Globo como tradutor de inglês e francês. Numa nota logo nas primeiras páginas, Quintana esclarece que o estranho sistema de nomenclatura adotado apenas procura ater-se ao que o autor utilizara no original: nomes de pessoas são grafados em suas formas clássicas latinas, ou o mais próximo possível disso – Claudius em vez de Cláudio, Tiberius em vez de Tibério, e assim por diante; já com os topônimos, um tanto bizarramente, ocorre o inverso: usa-se França ao invés de Gália, Alemanha no lugar de Germânia... Pessoalmente, não gosto disso, primeiro porque tira muito do "sabor de época", prejudicando a imersão do leitor na narrativa, e, segundo, porque me parece uma excessiva simplificação das coisas: as antigas províncias do Império Romano não são sinônimos das nações modernas a que deram origem. Pode-se estabelecer uma equivalência aproximada, porém as fronteiras nunca serão exatamente as mesmas, e, quanto à identidade étnica e cultural, então, nem se fala. A Gália de dois mil anos atrás não é a mesma coisa que a França de hoje, e, a meu ver, não deveria ser chamada assim. Outros "modernismos" de linguagem que eu preferiria que não existissem são os do âmbito militar: Graves chama as legiões de "regimentos", e utiliza patentes modernas como capitão, coronel e sargento, que, é claro, não são as mesmas que eram usadas no exército romano. Mas, como devem ter notado, preferi colocar os "senões" logo no começo, porque, feitas essas ressalvas, I, Claudius é um estupendo livro.

Cláudio (10 a.C.-54 d.C.) foi o quarto imperador de Roma sem contar Júlio César, e teve a chance de observar de perto os governos de seus três antecessores, já que era sobrinho-neto de Augusto, sobrinho de Tibério e tio de Calígula. A dinastia a que todos eles pertenciam – e que foi a primeira a governar o Império Romano – passaria à História com o nome de Julioclaudiana, por ter-se originado da união de duas famílias da velha aristocracia romana: os Júlios e os Cláudios. Essa, por assim dizer, aliança, teve início quando Lívia Drusa, avó do nosso Cláudio, tendo-se separado do primeiro marido, casou-se com Augusto. Nunca encontrei muita informação sobre Lívia em livros de História, mas Graves retrata-a como extremamente maquiavélica e inescrupulosa, com enorme influência sobre Augusto – ele próprio um homem essencialmente honesto e benevolente, embora tenha, por vezes, eliminado adversários de forma arbitrária, quando acreditava que isso visava a um bem maior. Lívia, por outro lado, manipula, chantageia e manda assassinar sempre que acha que deve, sem qualquer contemplação.

Não causa surpresa, portanto, que Tibério, filho do primeiro casamento de Lívia, tenha visto, ao longo da vida, desaparecerem de forma conveniente todos os outros sucessores imaginados por Augusto, que, dessa forma, foi mais ou menos forçado a indicá-lo, apesar de, pelo menos na versão de Graves, não gostar muito do enteado. Lívia e Augusto não tiveram filhos, e ele, de seu casamento anterior, tivera apenas uma filha, Júlia. Ainda levaria séculos para o Império tornar-se uma "monarquia eletiva" (a expressão é de Gibbon), sistema que daria muito mais certo; por enquanto, Augusto precisava encontrar um sucessor em sua própria família, e, na falta de filhos homens, aventou como possíveis candidatos diversos de seus sobrinhos e netos – que, como vimos, foram morrendo um a um. Ele precisou, então, contentar-se com Tibério.

Ninguém deve censurar-se se, por acaso, se perder por completo em meio à árvore genealógica dos Julioclaudianos, que é complicadíssima: eu mesmo, que não sou propriamente um iniciante em História romana, fiquei confuso algumas vezes. Houve tantos casamentos políticos e reviravoltas na disputa pelo poder durante as décadas que antecederam o nascimento de Cláudio, que os adversários mais notórios também eram, não raro, parentes ou contraparentes; só como um exemplo ilustrativo, o próprio Cláudio, ao mesmo tempo em que era sobrinho-neto de Augusto, era também neto de Marco Antônio, o maior rival daquele (pois, quando os dois ainda eram aliados, Antônio houvera desposado Otávia, irmã de Augusto). Para completar, o casamento, que, para os romanos dos séculos anteriores, era coisa muito séria, nessa época já podia ser desfeito com uma facilidade ridícula, de modo que os membros da aristocracia e da família imperial casavam-se em média quatro ou cinco vezes ao longo da vida, com todas as complicações adicionais que isso acrescenta à tal árvore. Por fim, é preciso assinalar que, aparentemente, todos os homens dentro de um mesmo ramo familiar tinham nomes muito parecidos, de modo que era costume cada um ser comumente identificado por um "pedaço" do nome. Enquanto Tibério chamava-se Tiberius Claudius Nero Cæsar, Cláudio chamava-se Tiberius Claudius Drusus Nero Germanicus, e tinha um irmão mais velho chamado Nero Claudius Drusus Germanicus, conhecido por Germânico. O pai de ambos (filho de Lívia, irmão de Tibério) ganhara postumamente o agnomen de "Germânico", como homenagem prestada pelo senado por sua notável participação em campanhas militares contra as tribos da Germânia, e, como acontecia nesses casos, o agnomen foi incorporado formalmente ao nome, sendo, inclusive, transmitido aos descendentes. E não, Germânico não era o Nero em quem vocês estão pensando, embora ainda vão ouvir falar nele antes do fim deste post. Ufa!


Germânico, aliás, foi, desde a infância e até sua morte, o melhor amigo e o ídolo de Cláudio, e talvez tenha sido mesmo um dos melhores homens de seu tempo: valente, austero embora generoso, inflexível no cumprimento do dever, e de um patriotismo a toda prova, personificava de modo exemplar as velhas virtudes romanas. Era adorado por seus legionários e respeitado por todos os cidadãos de bem de Roma. Segundo relatos da época, era, ainda, um homem bonito e de extraordinário vigor físico. Além de ter ocupado, sempre de forma irrepreensível, diversos cargos políticos de importância, foi um general brilhante, obtendo, tal como seu pai, expressivas vitórias na Germânia, inclusive recuperando as águias de duas das três legiões que, sob o comando de Publius Quinctilius Varus, haviam sido massacradas na desastrosa batalha da Floresta de Teutoburgo, no ano 9 (para entender a importância moral que a recuperação das águias tinha para o exército romano, deem uma olhada aqui). Por ocasião da morte de Augusto, em 14, as legiões da Germânia chegaram a aclamar Germânico como imperador, e, se ele o quisesse, poderia ter marchado sobre Roma e tomado o poder – o povo o receberia de braços abertos, já que era muito mais popular que seu tio Tibério. Porém, movido por aquele senso inflexível do dever de que eu falava há pouco, ele mesmo pôs fim às pretensões de seus soldados, submetendo-se a Tibério, o sucessor legítimo. Depois de saber tudo isso sobre Germânico, não há mais como discordar do velho provérbio romano que diz que maçãs estragadas podem nascer até dos melhores ramos: Calígula (sim, aquele) era seu filho. Germânico morreu na Ásia Menor em 19, com apenas 34 anos de idade, oficialmente de doença, embora as suspeitas de envenenamento nunca tenham sido provadas falsas.

Germânico e Cláudio: ver os dois irmãos lado a lado era como ver o dia e a noite. Cláudio era tímido, manco, gago e meio surdo, e, embora tivesse uma inteligência aguçada, seus parentes – com exceção, novamente, de Germânico, que o amava e fez tudo o que pôde por ele – tinham-no na conta de atrasado mental. O que, no cômputo final, pode ter sido uma sorte: Cláudio sobreviveu à onda de assassinatos que vitimou muitos de seus parentes, primeiro sob a batuta de Lívia, depois de Tibério (afinal, para que alguém se daria ao trabalho de eliminar aquele "retardado inofensivo"?). Desde a infância interessou-se por História, e dedicou-se a ela durante décadas, tendo aprendido com alguns mestres notáveis: pelo menos dois historiadores célebres, Tito Lívio e Asínio Pollio, aparecem como personagens no romance, embora eu não tenha certeza se Cláudio de fato os conheceu pessoalmente. Não é improvável, já que eles eram figuras de destaque na sociedade, e ele, membro da família imperial.

Enquanto Cláudio escreve seus livros de História e observa os acontecimentos de sua posição pouco gloriosa, mas relativamente segura, a política em Roma envereda por caminhos que teriam enfurecido Júlio e Augusto. Tibério fora em tempos um combatente corajoso e um general capaz, que, se por seu gênio rabugento não era exatamente estimado por seus legionários, ao menos contava com o respeito e a confiança deles, já que em muitas ocasiões demonstrara saber como conduzi-los à vitória. Tampouco fez má figura nos cargos políticos e administrativos que ocupou – e, de tudo isso, só se pode concluir que inteligência e talento não lhe faltavam. Ao subir ao trono, porém, ele converteu-se na prova viva da veracidade de outro velho aforismo: aquele que diz que, para conhecer o verdadeiro caráter de um homem, basta dar-lhe poder. O mau humor que o distinguia desde a infância demonstrou ser apenas a faceta mais visível de uma personalidade lúgubre, paranoica, rancorosa e invejosa, defeitos que a idade só viria agravar. Não hesitou em usar suas prerrogativas de imperador e influência junto ao Senado para vingar-se de antigos desafetos – coisa que seu pai adotivo Augusto classificava como "confissão pública de fraqueza, mesquinhez e covardia" –, e mais tarde patrocinou uma "caça às bruxas" estimulando a delação: qualquer um que houvesse (ou fosse suspeito de haver) falado contra o imperador ou "blasfemado" contra a memória de Augusto (a quem, por esse tempo, haviam deificado) poderia ser acusado, submetido a um simulacro de julgamento e, em pouquíssimo tempo, executado, caso em que seus bens eram confiscados, cabendo ao delator a quarta parte... Como seria de se esperar nessas condições, formou-se logo uma classe de delatores profissionais, e ninguém mais podia ter a certeza de continuar vivo até a semana seguinte. Como se não bastasse, Tibério era excessivamente supersticioso, mesmo para os padrões daquela época, quando todo mundo o era em algum grau: vivia cercado de magos, astrólogos, adivinhos e charlatães de toda espécie. A pessoa que quisesse livrar-se de outra tinha apenas que subornar um dos feiticeiros de Tibério para deixar cair no ouvido do imperador que fulano conspirava contra ele: era questão de dias que a cabeça do infeliz rolasse. Talvez o aspecto mais dramático de tudo isso fossem os suicídios. Muitos homens até então respeitados – cavaleiros e senadores idosos, veneráveis, com décadas de bons serviços prestados a Roma –, ao perceberem que não havia salvação, tiraram a vida com as próprias mãos, o que, para a cultura romana, era uma saída honrosa, preferível ao aviltamento de uma execução pública. Além disso, assim resguardavam os direitos de seus herdeiros, já que os bens que seriam confiscados com a execução não podiam sê-lo em caso de suicídio. Mas, em resumo, os últimos anos de Tibério foram um tempo de terror.

A parte bizarra é que, se é que um governante pode celebrizar-se por ter sido ao mesmo tempo um tirano sanguinário e um administrador sábio, foi isso o que Tibério fez. Manteve as boas práticas iniciadas por Augusto, lidou habilmente com a economia e com os conflitos nas fronteiras do Império, e nomeou governadores capazes para as províncias. O resultado foi que, enquanto a capital vivia a situação absurda já descrita, as províncias, e mesmo a maior parte da Itália, tinham dias de prosperidade, embora isso pouco ajudasse as vítimas de Tibério, e não servisse de consolo a seus parentes. Não admira que a notícia da morte do imperador, em 37, tenha sido recebida com festa nas ruas e grandes esperanças em seu sucessor. Pobre Roma: esse sucessor foi Calígula.

"Ora", pensaram por certo os romanos, "ele é filho de Germânico. Não pode ser tão diferente dele, pode?" Podia. Seu nome, aliás, era Caius Julius Cæsar Augustus Germanicus. Por conta da carreira do pai, passou boa parte da infância em acampamentos militares, principalmente na Germânia; os soldados o adoravam e consideravam uma espécie de mascote. Certa vez, num desses acampamentos, alguém, por brincadeira, fez para ele um par de sandálias como as usadas pelos legionários, adaptadas ao tamanho de seus pés infantis, e Caio gostou tanto que, daí por diante, recusava-se a calçar qualquer outra coisa. Em latim, esse tipo de sandália chama-se caliga, no diminutivo caligula; o apelido com que o jovem imperador ficaria tristemente célebre significa, portanto, "sandalinhas".

Se Tibério era paranoico, Calígula era um doido varrido. Se sempre o foi ou se o desarranjo mental deveu-se às sequelas de uma misteriosa "febre cerebral" que o acometeu meses depois de assumir o Império, historiadores discutem até hoje; em todo caso, a primeira impressão que ele deu foi de que seria um governante benévolo. Chamou exilados de volta e limpou os nomes de muitos dos que haviam sido condenados por traição durante o governo de Tibério, devolvendo às famílias os bens confiscados. E, é claro, não deixou de oferecer os espetáculos populares de praxe. O primeiro sinal visível de que o imperador não estava batendo bem (e que, coincidência ou não, manifestou-se logo após haver convalescido da tal febre) foi perder todo o senso de medida em relação a esses eventos: passou a promover festivais que duravam semanas, depois meses, com corridas de quadrigas e combates de gladiadores todos os dias, a população obrigada a comparecer. Daí em diante, as coisas só pioraram. Calígula esbanjava dinheiro de tal maneira que o tesouro, que Tibério deixara abarrotado, ficou pela metade em questão de meses. Obrigou um governador de província a separar-se da mulher para que ele, Calígula, pudesse casar com ela. Conduziu um exército ao litoral norte da Gália e ordenou um ataque contra o mar, alegando que Netuno o teria desafiado. Tentou nomear seu cavalo cônsul. Ao oficiar um sacrifício durante uma festa religiosa, bateu com o martelo cerimonial no sacerdote em vez de no animal que estava no altar. Todo imperador, inevitavelmente, tem seus aduladores, mas, em se tratando de Calígula, até puxar-lhe o saco era perigoso, pois seu comportamento era totalmente imprevisível: num dia podia cumular um "amigo" de honrarias e ricos presentes, para no dia seguinte mandar matá-lo sem o menor motivo. Tudo isso para não mencionar as supostas relações incestuosas com todas as suas três irmãs. Hoje em dia, estudiosos recomendam dar um desconto para algumas dessas histórias; parte das insanidades atribuídas a Calígula pode ser intriga da oposição, já que a maioria das informações que temos sobre seu governo foi escrita por seus inimigos. Em todo caso, parece ser fato que havia um bocado de gente que o odiava. Acabou assassinado, no ano 41, aos 29 anos de idade, por uma Guarda Pretoriana já farta de seus desmandos. Isso deixou o "pobre tio Claudius", como Calígula o chamava, como único membro masculino adulto sobrevivente da família imperial, de modo que as forças que haviam eliminado o imperador fizeram o óbvio: puseram-no no trono para que servisse de fantoche. Mas ele não seria um fantoche – longe disso.


Durante os quatro anos que seu terrível sobrinho permanecera no poder, Cláudio, sabiamente, esforçara-se por reforçar a imagem de débil mental que já tinha diante da corte graças a sua avó Lívia, que jamais escondera de ninguém seu desprezo pelo neto. Exagerara a gagueira e portara-se como um perfeito idiota em toda situação ridícula em que Calígula propositalmente o colocava. Embora haja exercido algumas funções políticas durante o principado do sobrinho – que, provavelmente, indicava-o mais por zombaria que por algum outro motivo –, somente ao chegar ao trono ele teve oportunidade de mostrar do que realmente era capaz.

O fato é que Cláudio, de idiota, nunca teve nada. Durante os 13 anos seguintes, provou ser mais digno de vestir a púrpura imperial do que outros que nela pareceram mais majestosos, antes e depois dele. Soube mostrar-se prudente, sagaz e, quando necessário, implacável. Foi durante seu principado, por exemplo, que a Bretanha foi verdadeiramente conquistada, pois a invasão liderada por Júlio César um século antes só tivera valor publicitário, não consolidando o domínio romano sobre a ilha. Cláudio também ampliou e melhorou a malha de estradas pelo Império, assegurou alguns direitos aos não-cidadãos (isto é, escravos, libertos e estrangeiros) e permitiu que os nativos das províncias tivessem seus representantes no Senado. Tomou, ainda, medidas contra a corrupção nos órgãos do governo e para agilizar as decisões da justiça. Isso tudo fez dele um imperador querido pelo povo, que até relevava algumas excentricidades suas, como na ocasião em que baixou um édito autorizando a todos a livre, hã... flatulência em qualquer lugar e momento (incluindo banquetes oficiais e cerimônias solenes), depois que ouviu de seu médico que ficar prendendo os gases fazia mal à saúde.

Sua vida pessoal/conjugal foi mais problemática. Antes de tornar-se imperador, Cláudio já passara por dois ou três casamentos (as fontes divergem), todos arranjados, é claro, e nenhum deles feliz. Por ocasião de sua ascensão ao trono, estava casado com Valéria Messalina, a quem, pelo menos na versão de Graves, ter-se-ia unido por sugestão de Calígula, e que seria uma parenta distante de ambos. Cláudio estava apaixonado por ela, que tinha apenas 15 anos (ele já estava nos seus 50) e era belíssima; ela não partilhava o sentimento, mas deu-lhe uma filha, Cláudia Otávia, e um filho, que levou o nome de Britânico em homenagem à conquista do pai. Com o tempo, a imperatriz revelou-se uma grande libertina (ao ponto de "messalina" ter virado substantivo comum em várias línguas, com o significado de mulher devassa ou imoral), que, não contente em ser infiel ao marido, conspirava constantemente contra ele com seus vários amantes. Cláudio acabou ordenando sua execução, juntamente com o amante da vez, Caio Sílio, em 48.

Seu último casamento foi com sua sobrinha Agripina, irmã de Calígula e digna herdeira de sua bisavó Lívia: primeiro conseguiu, por meios que não sabemos, que Cláudio adotasse seu filho Lúcio Domício e o nomeasse seu herdeiro, preterindo Britânico; depois, para garantir, deu um fim no rapaz (em 55). Não poucos biógrafos de Cláudio, aliás, também atribuem a ela a morte do próprio imperador, um ano antes da do filho, embora seja verdade que ele já estava com 64 anos – idade considerável para os padrões da época – e que sua saúde jamais fora das melhores. A propósito: Lúcio Domício, ao ser adotado por Cláudio, passou a chamar-se Nero Claudius Cæsar Augustus Germanicus, e a ser chamado comumente de Nero. Sim, O Nero – eu disse que ele ainda apareceria antes do fim do post...

Na verdade, I, Claudius, apesar do título que recebeu na tradução, não chega a mostrar o protagonista como imperador: termina com o assassinato de Calígula e a coroação de Cláudio. A continuação da história está em Claudius the God and his Wife Messalina (Claudius, o Deus, e Messalina), também publicado no Brasil pela Globo. Recomendo ambos a todos os apaixonados pela Antiguidade clássica como eu, pois, de uma forma muito agradável de acompanhar, narram uma vida que vale a pena conhecer – e da qual há algumas lições a tirar.

terça-feira, fevereiro 19, 2013

Rhóor, o Invencível

Ah, ser um leitor pré-adolescente, cheio de inocência, mas já muito consciente de todo o bem que os livros podiam fazer a quem lhes dedicasse um pouco de tempo e atenção… E, ao mesmo tempo, não estar (ainda) preocupado com coisas "sérias" como adquirir cultura, de modo que encarava o ato de ler exatamente do modo como toda criança deveria encará-lo: como uma grande e inesgotável brincadeira, melhor que qualquer outra - embora já estivesse, sim, construindo minha cultura, sem saber, enquanto acreditava que tudo o que estava fazendo era me divertir. Para completar, tinha a sorte de não depender apenas da biblioteca da escola e dos livros que existiam em casa: ao lado do condomínio onde morava na época, ficava uma unidade do SESI (Serviço Social da Indústria), onde havia, entre muitas outras coisas, uma biblioteca, não muito grande, mas recheada de itens empolgantes para um garoto-leitor com o meu perfil.

Foi lá que vi pela primeira vez a coleção Safári, publicada em Portugal durante os anos 70, pela editora Verbo, mediante acordo com a francesa Alsatia. Tratava-se de romances de aventuras com temas e estilos variados, todos escritos por nomes consagrados da literatura juvenil na França. Ao longo do ano que se seguiu a essa descoberta, li vários dos títulos da coleção, e todos os que li me ficaram na memória: O Passageiro da Noite, de Jean-Paul Benoit, com seu clima de mistério e heroísmo em meio à paisagem majestosa dos Alpes franceses; as aventuras de escotismo O Bando dos Ayacks e O Castelo dos Vendavais, ambas escritas por Jean-Louis Foncine e transbordantes de otimismo e fé no poder transformador da juventude (ah, como devia ser bom viver numa época e num lugar onde era possível acreditar nisso); e a ficção científica Nascido no Espaço, de Geoffrey X. Passover (também francês, apesar do pseudônimo). Com exceção deste último, todos eram abrilhantados pela arte do legendário Pierre Joubert, um ilustrador tão querido na época, que chegava a ser citado pelos próprios personagens de O Castelo dos Vendavais.

Não obstante, o primeiro volume da coleção que li foi a aventura pré-histórica Rhóor, o Invencível, por um certo Michel Grimaud, sobre quem eu nada sabia até o dia de hoje: quando garoto, só a obra em si é que me interessava, de modo que não me preocupava com informações sobre o autor - e, mesmo que assim não fosse, pouco teria podido fazer, já que o livro nada dizia sobre o tal Grimaud, e na época não havia Google nem Wikipédia. Hoje, então, ao me sentar para escrever este post, lembrei de lançar mão dessas maravilhas modernas, e descobri, não sem surpresa, que "Michel Grimaud" era o pseudônimo coletivo de um casal de escritores: Jean-Louis Fraysse (1946-2011) e Marcelle Perriod (1937-2011), e que eles possuem uma obra extensa, tanto no campo da literatura para adultos quanto para jovens, sendo, ainda, uma referência da ficção científica em seu país. Além de tudo, eis dois afortunados seres humanos: encontrar um amor e uma parceria criativa ao mesmo tempo é felicidade reservada a poucos.

Mas creio que já é hora de começar a falar do livro!

A história aqui narrada faz lembrar a do Êxodo, pois, como no segundo livro da Bíblia, há um povo em busca de uma terra prometida. Os Rhóors são uma das tribos de caçadores-coletores que tentam sobreviver numa Europa selvagem, que ainda esperaria dezenas de milênios para ser apresentada às primeiras civilizações. Anos antes do início dos acontecimentos relatados no romance, transformações climáticas, do tipo que era comum naqueles tempos pós-Era Glacial, causaram mudanças ecológicas que privaram a tribo das fontes de sustento de que estava acostumada a depender, nas terras que até então habitava, obrigando-a a vagar por regiões inóspitas, dominadas por povos nem sempre amistosos, em busca de um lugar onde possam viver e, quem sabe, reencontrar a antiga prosperidade. Seu chefe, Rhóor, o Vesgo, decide tomar sobre si o ônus da busca, e parte, acompanhado apenas pela própria família, enquanto a tribo espera, lutando contra a fome, o frio e diversos tipos de perigos. Eventualmente, a busca alcança êxito: em paragens muito distantes, Rhóor descobre uma região ampla e verdejante, com clima ameno e caça abundante, e ainda não reclamada por nenhuma outra tribo. O líder, então, incumbe o filho mais velho de fazer o longo caminho de volta e guiar seu povo até a nova pátria.

O jovem de 17 anos tem o mesmo nome que sua tribo e seu pai. Já é um caçador experiente, muito hábil no manejo do arco - arma que representa um trunfo para os Rhóors na competição pela sobrevivência, já que as outras tribos não a conhecem -, e sua velocidade e destreza valeram-lhe o cognome de O Ágil. Além desses talentos, ele confia, para o sucesso de sua arriscada missão, na ajuda de uma aliada muito especial: Táa, uma fêmea de lobo-tigre (um sinônimo hoje em desuso para guepardo ou cheetah), pois, nessa época em que alguns grupos humanos estavam apenas começando a domesticar cães para caça, guarda e companhia, outra peculiaridade dos Rhóors é a de preferirem os guepardos para essas funções. Juntos, os dois amigos deverão percorrer milhares de quilômetros, atravessando planícies desoladas, montanhas e florestas, precavendo-se contra animais perigosos, tribos hostis e, sim, contra o meio-termo entre as duas coisas: assustadores homens-fera, remanescentes de estágios mais primitivos da evolução humana, que ainda perambulam pelo planeta, também eles lutando para sobreviver - uma luta que, fatalmente, teria vencedores e perdedores.

Rhóor, o Invencível, por sinal, retrata uma era em que todas as ambições da humanidade resumiam-se ao simples feito de sobreviver: riqueza, poder e outras tentações que obcecariam gerações futuras, mal eram concebidas pela mente do homem pré-histórico. A cada amanhecer, esse homem renovava sua determinação de mobilizar todas as forças que pudesse, com o único objetivo de manter-se vivo, a si e aos que dele dependiam, até o pôr-do-sol, e, se o conseguisse, isso era a melhor coisa que poderia esperar (sem contar que ficar vivo entre o pôr e o nascer do sol podia ser ainda mais difícil). Todo o tempo, energia e inteligência que os seres humanos possuíssem tinham que ser direcionados a essa única finalidade, apenas para que houvesse uma chance. Sabendo que as condições eram essas, podemos, a princípio, achar estranha a informação de que também foi nessa época que surgiram a música, a dança, as artes plásticas, a literatura, as competições atléticas, e diversas outras atividades nas quais estamos acostumados a pensar como sendo de lazer, desporto ou enriquecimento cultural - "luxos" que o homem só pode se permitir depois que a bendita sobrevivência já está assegurada. Porém, existe uma explicação bastante simples para essa aparente contradição.

Não fiquem demasiado surpresos se digo que a literatura nasceu na pré-história: por mais curioso que isso pareça, ela é muitíssimo mais antiga que a invenção da escrita. Pessoas que se sentavam à volta de uma fogueira à noite e contavam histórias, já estavam fazendo literatura, embora com objetivos a princípio muito pragmáticos: as histórias serviam para que os caçadores trocassem informações úteis entre si e as transmitissem aos membros mais jovens da tribo, que, a seu tempo, também seriam caçadores. O mesmo se dava com as outras atividades: cantos e danças destinavam-se a agradar aos espíritos da natureza (a primeira noção que o homem teve a respeito da divindade) para ganhar suas boas graças, a fim de que propiciassem boas caçadas e protegessem o povo contra doenças e desastres; desafios de corrida, lutas, arremesso de pesos e assim por diante, eram para aprimorar força e habilidade para a caça e o combate. É claro que, com o tempo, as tribos foram desenvolvendo o gosto por tais coisas, descobrindo o prazer que existia em ouvir boas histórias, em assistir a uma dança ou a uma competição, ou em delas participar, e também foi ficando evidente que algumas pessoas tinham um talento acima da média para alguma dessas atividades, e com isso foram começando a granjear popularidade e admiração - e é graças a isso que hoje temos Homero, Shakespeare, Beethoven, os Jogos Olímpicos, e outras riquezas inestimáveis que fazem parte de uma herança cultural que pertence a toda a humanidade; porém, o importante para nós, no momento, é compreender que as artes, em suas origens, tinham uma função prática, e, como tudo o que se fazia naquela época, eram um esforço a mais na luta constante pela sobrevivência. Isso incluía, naturalmente, as artes plásticas, como Rhóor, o Invencível, nos mostra de maneira interessante.


Ocorre que o artista pré-histórico que dedicava longas horas de trabalho a pintar figuras de animais nas paredes da caverna onde sua tribo vivia, muito provavelmente não o fazia movido por um simples desejo de morar num lugar mais bonito. Antropólogos acreditam que essas imagens tivessem finalidades mágicas: desenhar um animal, da maneira mais vívida e acurada possível, era considerado uma forma de capturar-lhe o espírito, reduzindo suas defesas e tornando-o mais fácil de abater. Isso explica, inclusive, por que a figura humana aparece tão raramente na arte rupestre, e, quando aparece, é de forma tosca, num contraste gritante com as minuciosas e coloridas representações de bisões, cavalos, cervos e outros animais de caça. Saber pintar, portanto, significava ter poder. O jovem Rhóor aprende essa arte com um ancião de uma tribo que encontra durante suas andanças. Mais tarde, é feito prisioneiro por outra tribo não tão amigável, liderada por Bisão Furioso, um gigante embrutecido em quem esse nome cai perfeitamente. A tribo de Bisão Furioso especializou-se em viver de rapina, chegando ao ponto de depender mais, para sua sobrevivência, de saques e extorsões do que da própria caça. Aprisionado entre eles, e com pouca perspectiva de escapar vivo, Rhóor propõe trocar sua liberdade pelo segredo do poder das imagens - mas antes, terá que convencer os salteadores de que a magia funciona.

Mesmo sem disporem de embasamento científico comparável, por exemplo, ao de uma Jean M. Auel, Fraysse e Perriod escreveram uma saga pré-histórica cativante e eficiente, capaz de apresentar ao leitor jovem um painel convincente (ainda que um tanto romantizado) do mundo da época. Todos os pontos principais que uma pessoa precisa saber para adquirir a compreensão do que foi a pré-história são abordados: o fato de que, durante a maior parte de sua existência, o homem adaptou-se aos ritmos e regras da natureza para sobreviver, vendo-se como parte dela, não como seu dono; os graus diversos de desenvolvimento técnico e cultural observáveis entre as diferentes tribos (já que o progresso humano não se deu de maneira simultânea e uniforme em toda parte); a importância essencial que tiveram a cooperação e a solidariedade para impedir que a humanidade fosse extinta no confronto desigual com o meio ambiente hostil; e, é claro, a já citada luta incessante pela sobrevivência. O ponto mais discutível que encontrei foi a questão do arco: é verdade que em lugar algum do livro é explicitado o período exato em que a história estaria ambientada, mas, se for o que as evidências parecem apontar - até alguns milênios depois do fim da última Era Glacial -, então o arco é um anacronismo, pois só seria inventado bem mais tarde. Também não parece muito plausível que ele fosse a "arma secreta" de uma única tribo, e encarado com assombro por todas as outras, como se fosse algo além de sua compreensão, quase uma habilidade sobrenatural. É claro que fabricar e manejar um arco não são coisas fáceis, exigem uma série de conhecimentos e muita, muita prática, mas, ainda assim, trata-se de uma arma conceitualmente simples: mesmo para uma pessoa que não o conhecesse, bastaria observar alguém utilizando-o para compreender o princípio e poder tentar imitar. As primeiras tentativas, fatalmente, seriam desastrosas, mas nada que persistência e paciência não resolvessem. E pronto: o "monopólio Rhóor do arco" estaria quebrado. Se a intenção (muito natural) dos autores era que a tribo do herói possuísse um diferencial em relação às outras, essa foi uma escolha um tanto ingênua. Porém, isso não tira os méritos de Rhóor, o Invencível, que continua sendo diversão de primeira.

Em tempo: a capa e as duas ilustrações do livro que aqui reproduzo são de Pierre Joubert, só para dar a meus leitores uma pequena amostra do trabalho desse admirável artista.

terça-feira, janeiro 15, 2013

O Hobbit: Uma Jornada Inesperada


Eu quis reler O Hobbit, de propósito, durante os últimos dias antes da estreia do primeiro filme da nova trilogia cinematográfica de Peter Jackson, porque desejava ter a chance de, por uma última vez, reviver a história com as minhas próprias imagens, aquelas que um leitor vai construindo na imaginação à medida em que percorre as páginas de um livro de que gosta. Não tinha qualquer dúvida de que Jackson, mais uma vez, não iria frustrar as expectativas (inevitavelmente, altas) que todos nós, fãs de Tolkien espalhados pelo mundo, estávamos depositando nele; mas, ao mesmo tempo, as minhas visões pessoais de O Hobbit eram-me, e ainda me são, muito caras. Afinal, foram as primeiras visões que tive da Terra-média, nos meus já distantes 17 anos, quando só havia a tosca e hoje quase esquecida edição da Artenova (confiram a capa logo abaixo) e, no Brasil, apenas os raros iniciados em literatura de fantasia sabiam o que diabos vinha a ser um hobbit ou quem foi John Ronald Reuel Tolkien.

Não me considero um grande conhecedor da obra do Professor, li apenas O Hobbit e O Senhor dos Anéis – o suficiente para me apaixonar, mas não para ficar à vontade em qualquer desses fóruns em que até o mais neófito participante sabe tudo sobre as diferentes eras da história de Arda, sobre os Valar, os Noldor e assim por diante. Tentei os Contos Inacabados e, depois de um bocado de esforço, tive que admitir que mesmo os fragmentos propriamente ditos deixados pelo mestre pressupunham um nível de conhecimento bem superior ao que eu possuía. Já as introduções e notas redigidas por Christopher Tolkien na qualidade de compilador da obra do pai, revelaram-se um inextricável emaranhado de referências misteriosas e nomes exóticos (por vezes, até mesmo determinar se tais nomes referiam-se a pessoas ou a lugares era difícil). Concluí que esse é o livro que o fã deve deixar para ler por último, como uma espécie de doutorado em Tolkien. Talvez um dia eu esteja à altura do desafio. Para não dizer que não consegui aproveitar nada, há um fragmento muito interessante que quem leu O Hobbit e O Senhor dos Anéis não terá dificuldade em acompanhar: chama-se À Procura de Erebor e seu lugar na cronologia seria dentro de O Retorno do Rei, embora trate basicamente de fatos anteriores ou simultâneos aos narrados em O Hobbit. Enquanto todos descansam em Valfenda ('Rivendell') após os lances finais da Guerra do Anel, Gandalf finalmente abre o jogo com Frodo, Merry, Pippin e Gimli sobre os acontecimentos que cercaram o início daquela jornada mais de 60 anos antes, em especial sobre o porquê de ele próprio haver considerado tão indispensável, na época, fazer com que Bilbo estivesse junto de Thorin e seus companheiros em sua busca pelo antigo tesouro dos anões.

Se Contos Inacabados é o livro que deve ficar por último, O Hobbit é a iniciação ideal ao universo de Tolkien, e, depois de ver a primeira parte de sua adaptação para a tela, ficou evidente que o voto de confiança dado a Peter Jackson não foi baldado... Embora eu não possa negar que fiquei seriamente receoso (e duvido que eu tenha sido o único) ao ouvir a notícia de que não seria um, mas dois filmes – e, mais tarde, a da mudança de planos: não seriam dois, não... Seriam três! Por Júpiter! Depois de suar para comprimir as cerca de 1200 páginas (variando conforme a edição) e a espantosa complexidade de O Senhor dos Anéis em três filmes com pouco menos de três horas cada – e tê-lo feito com tanta competência, a ponto de merecer o aplauso da maioria dos apaixonados e sabidamente exigentes fãs de Tolkien –, iria Jackson rebaixar-se a fazer o inverso, espichando artificialmente a modesta extensão e o enredo simples de O Hobbit, até conseguir fazer com que preenchesse uma quantidade equivalente de película?

Agora já temos a resposta, e a resposta, para infinito alívio de toda a nação tolkienmaníaca, é: não, Jackson não fez isso. Pelo contrário, continuou tratando a obra do Professor com o devido e merecido respeito, como já o fizera em seus filmes anteriores. Mais ainda, ele e seus roteiristas demonstram uma compreensão profunda do lugar que O Hobbit ocupa e do papel que desempenha dentro desse intrincado e apaixonante universo, de modo que as adições feitas tratam-se, quase todas (ou, ao menos, na grande maioria) de coisas tomadas de empréstimo a outras obras do autor, ou de desdobramentos lógicos de situações por ele delineadas.

Aos não iniciados em Tolkien que porventura me estejam lendo, é importante esclarecer que, por mais bizarro que isso pareça, o próprio Tolkien, a exemplo de seu herói Bilbo ao encontrar o Um Anel, ainda não sabia o que tinha em mãos enquanto escrevia O Hobbit ou logo após a sua publicação; ele nem imaginava as dimensões, o nível de complexidade, e menos ainda a importância e influência que sua criação chegaria a ter: como diz o prefácio de O Senhor dos Anéis, a história "cresceu conforme foi sendo contada". Tudo indica que, ao começar O Hobbit, o Professor nada mais pretendia que divertir-se contando uma boa história para (pensava ele) crianças e adolescentes, e, com sorte, colher alguma merecida recompensa material, caso conseguisse interessar algum editor no projeto. Mesmo assim, já se nota sua preocupação em dar um background para a história, em inseri-la num contexto convincente, num mundo com história e geografia próprias, ainda que de forma rudimentar em comparação ao que faria mais tarde. O essencial, aqui, é notar que, quando O Hobbit foi escrito, o SdA ainda não existia e seu mundo estava apenas tomando forma (se bem que a Terra-média continuaria a tomar forma até o fim da vida de Tolkien...); já ao transformar o livro em filme, Peter Jackson precisava ter em mente que o público dessa nova produção já teria visto, e, parte dele, também lido o SdA, e esperaria ver conexões entre ambos. Também não devemos esquecer que a Terra-média e toda a sua história surgiram da vontade de Tolkien de criar um background, ainda que fictício, para as línguas élficas, que ele, um linguista de mão cheia, havia inventado por puro prazer. Isso mesmo: nas horas vagas, o cara se divertia inventando línguas.

A primeira conexão entre este novo filme e a trilogia do SdA é criada com a adoção de uma narrativa em flashback: o filme inicia exatamente no mesmo ponto que A Sociedade do Anel, isto é, em plenos preparativos da festa de arromba que celebrará o aniversário de "onzenta e um" anos de Bilbo Bolseiro, o que permitiu que os atores Elijah Wood e Ian Holm retornassem a seus velhos papéis como Frodo e Bilbo. Holm quase não mudou nada, mas até para o melhor maquiador do mundo é tarefa complicada fazer com que Wood, aos 31 anos, volte a ter a cara que tinha aos 19!... Bilbo, então, começa a escrever as memórias de sua aventura, para que Frodo as leia depois que ele tiver partido para Valfenda, e é nessas memórias que a história propriamente dita do filme se desenvolve, começando com a substituição de Holm por Martin Freeman, que encarna Bilbo quando mais jovem.

E, por mais que já saibamos o que são os hobbits e qual o tipo de vida que lhes agrada, é sempre um prazer reler uma vez mais a singela e, ao mesmo tempo, certeira descrição do início do livro. É fácil perceber que essa pequena e pacata raça teve como modelo direto os camponeses do interior da Inglaterra – uma gente simples, que pouco sabe ou se interessa pelo mundo lá fora, gosta do trabalho rotineiro, das coisas que já conhece, de boa comida e de festas, mas que, quando necessário, pode também demonstrar um grau insuspeitado de resistência e coragem, como Tolkien teve ocasião de verificar pessoalmente, ao ver muitos desses camponeses virarem soldados na Primeira Guerra. Bilbo, o hobbit do título, é um tanto diferente de seus vizinhos da Vila dos Hobbits, principalmente devido a seus pendores intelectuais, e, sendo rico, pode dispor de seu tempo como melhor lhe aprouver, em geral lidando com livros e mapas, o que aponta para uma grande e bem pouco hobbitesca curiosidade sobre o mundo... Só que Bilbo nunca havia cogitado a sério a possibilidade de um dia sair para ver com os próprios olhos as coisas sobre as quais tanto já leu, até que Gandalf entra em cena, Gandalf, o mago (no filme, Sir Ian McKellen, também de volta a seu antigo papel, continua dando o mesmo show de mais de uma década atrás), que era amigo do avô de Bilbo quando este era criança, e parece não ter mudado nada desde então. Por intermédio dele, e de um jeito engraçadíssimo, o hobbit vem a conhecer uma companhia de 13 anões liderados por Thorin Escudo-de-Carvalho, neto do rei Thror, que outrora governou o rico e poderoso reino anão situado dentro e embaixo de Erebor, a Montanha Solitária, de onde ele e seu povo foram expulsos há muitos anos pelo ataque de Smaug, o dragão. E agora Thorin e seu bando planejam justamente retornar a Erebor, tomar de volta o lar ancestral de seu povo e o fabuloso tesouro acumulado pelos antigos anões ao longo de séculos de mineração. Para o bom êxito desse plano, na opinião de Gandalf, os anões não podem prescindir da participação de Bilbo, que ele recomenda como um gatuno de vasta habilidade e audácia – e, tendo em vista a índole e a vida pregressa do hobbit, é difícil dizer quem é que encara essa afirmação com maior ceticismo, se os anões ou o próprio Bilbo. De qualquer forma, Thorin não discute com um conselho direto de Gandalf, e, além disso, uma expedição com 13 membros não atrairia boa sorte, de modo que Bilbo é efetivamente incorporado à comitiva, que parte no dia seguinte.



(Mais um dos meus parênteses: fiquei encantado ao ver que Peter Jackson e/ou um de seus roteiristas fez questão de incluir as duas canções entoadas pelos anões na toca de Bilbo – a alegre e despretensiosa "canção de lavar pratos", e a canção solene e nostálgica sobre seu lar perdido, embora esta última apareça de forma bem compacta, enquanto, no livro, tratava-se de um poema de extensão considerável. Aliás, embora a tradução antiga, da Artenova, feita por Luiz Alberto Monjardim, seja realmente tosca, com erros de português que não seriam admissíveis numa redação da sexta série, é preciso conceder-lhe isso: a tradução desse poema ficou, em minha opinião, bem mais bonita e tocante que aquela que aparece na edição da Martins Fontes atualmente encontrada nas livrarias. Aliás, fiquei com a curiosidade de saber se a canção, tal como está no filme, traz os versos originais de Tolkien ou se eles foram adaptados. Se alguém tiver O Hobbit em inglês e puder me tirar essa dúvida, agradeço.)

Como, a essas alturas do campeonato, quem estiver me lendo terá, na certa, visto ao menos o filme, creio que não é necessário me alongar falando das peripécias que o grupo enfrenta e das criaturas fantásticas que encontra; prefiro aproveitar o espaço que me resta para comentar o modo como a história começou a ser contada nas telas.

O Hobbit, em sua versão para o cinema, teve uma história bastante atribulada. As primeiras notícias já eram de que Peter Jackson seria o diretor, o que foi recebido com satisfação pela maioria dos fãs. Mais tarde, soube-se que Jackson deixara o projeto e que a direção seria assumida por Guillermo del Toro; não ouvi grandes coisas sobre a repercussão disso, mas, de minha parte, embora lamentando a saída de Jackson, considerei o diretor mexicano uma das melhores substituições possíveis, devido à sólida carreira que já construiu no cinema de fantasia. Mas, por fim, como o mundo dá voltas!... Jackson retornou e a direção do filme acabou mesmo levando sua assinatura, sendo preservadas as contribuições de Del Toro para o roteiro, e resultando disso que O Hobbit teve quatro roteiristas: Jackson, Fran Walsh, Philippa Boyens (ou seja, o mesmo trio de O Senhor dos Anéis) e Del Toro. Um quarteto cujo trabalho não decepciona: souberam cumprir as exigências inerentes a qualquer história que esteja sendo transcrita das páginas para a tela, deixando intacta a essência do livro.

Não custa lembrar, como sei que já fiz em outros posts, que literatura e cinema são linguagens diferentes, e que, por isso, é impossível transformar um livro em filme sem mudar nada. E as grandes "mexidas" que Jackson e sua gangue deram em O Hobbit, pelo que foi possível ver nessa primeira parte, foram duas. Em primeiro lugar, como já referi, eles introduziram um monte de coisas que o próprio Tolkien ainda não sabia quando escreveu o livro, mas que hoje todos os seus leitores sabem (mesmo os que ainda não fizeram o doutorado) e estariam esperando ver. Isso explica as aparições de Saruman e Galadriel, personagens que, nos livros, o leitor só viria a conhecer em O Senhor dos Anéis. Também explica a notável atenção dispensada à descoberta das atividades do "Necromante" pelo mago Radagast – o Necromante, que obviamente é Sauron, só era mencionado muito de passagem no livro O Hobbit; seu futuro papel como grande vilão ainda estava numa fase embrionária na cabeça do autor. Por falar em Radagast, sua aparição e a parte relativamente importante que desempenha na ação do filme são uma surpresa: também ele só figurava no livro como uma menção fugidia durante uma conversa entre Gandalf e Beorn, o homem-urso. Pareceu-me o inverso do que ocorreu com Tom Bombadil, excluído do filme A Sociedade do Anel por não ser absolutamente essencial num enredo onde já havia tanta coisa que não podia ser deixada de fora. Já em O Hobbit, há tempo para o não-essencial.

A outra grande mexida de que falei está no fato de a história, no cinema, ter ficado muito mais "épica" – ou, no mínimo, muito mais violenta. Há muitas cenas de batalha, incomparavelmente mais que no livro, mas são batalhas totalmente antissépticas: por mais que machados e espadas trabalhem, não se vê uma gota de sangue (li em algum lugar que, com isso, consegue-se baixar a classificação indicativa do filme em dois anos, o que significa o acréscimo de uma expressiva fatia de público em potencial). Tirando isso, as batalhas são visualmente perfeitas, empolgantes, e o personagem Thorin (belíssima atuação de Richard Armitage) ganha uma dimensão nova, de heroísmo, que estava pouco presente no livro. O episódio que explica a origem de seu apelido Escudo-de-Carvalho é, numa palavra, emocionante, embora envolva uma infidelidade à história da Terra-média tal como delineada por Tolkien: o chefe orc Azog, que matou em batalha o avô de Thorin, foi, por sua vez, morto por um outro parente, Dain, muito antes da época retratada em O Hobbit, mas, no filme, os roteiristas optaram por ignorar esse fato e colocar Azog em cena, para ser o arqui-inimigo que Thorin, como herói guerreiro, precisava ter. E já que falamos de guerras envolvendo anões, aqui vai uma observação digna do mais nerd dos tolkienmaníacos: gostei muito do design das espadas dos anões, que se parecem deveras com armas que anões forjariam – angulosas, robustas, feitas muito mais para usar do que para exibir.

No filme, além do mais, é dada uma individualidade a cada anão, com variados níveis de profundidade, é claro, mas muito mais do que no livro, no qual apenas três ou quatro dos companheiros de Thorin tinham alguma característica marcante ou faziam algo que os destacasse do grupo. Nesse quesito, depois do próprio Thorin, o anão mais carismático é sem dúvida o velho Balin, o primeiro a reconhecer o valor de Bilbo e fazer-se amigo do hobbit, e que mais tarde se tornaria lorde de Moria, onde... Opa, melhor parar. Talvez haja alguém que ainda não leu O Senhor dos Anéis me lendo. Alguns dos anões estão muito bem caracterizados – troncudos, pesados, de aparência resistente, ombros muito largos e vastas barbas –, enquanto outros parecem apenas humanos baixinhos, sendo que, como durante a maior parte do tempo contracenam apenas com outros anões e com o hobbit, sua altura passa despercebida. Agora, alguém entendeu qual é a do anão Kili? Até mesmo um iniciante em Tolkien sabe que qualquer anão que já tenha deixado a infância tem invariavelmente uma vistosa barba (na verdade, algumas fontes informam que eles já nascem barbudos), então por que esse indivíduo mal tem uma ligeira penugem no queixo? Talvez para melhor exibir os traços apolíneos do ator irlandês Aidan Turner, que o interpreta, e assim chamar um pouco a atenção do público feminino. Um anão galã, pois sim.

Num balanço final, O Hobbit: uma Jornada Inesperada é mais uma demonstração de que, sempre que a adaptação de uma obra de J. R. R. Tolkien estiver entregue às mãos de Peter Jackson, podemos ficar absolutamente tranquilos, pois trata-se de alguém que a ama tanto quanto nós; é mais um mergulho feito com extrema competência por Jackson no universo criado pelo Professor, e tão bem-sucedido em capturar a magia única desse universo quanto o foram as três partes de sua já clássica filmagem de O Senhor dos Anéis, embora, naturalmente, com características diferentes. Tem defeitos, é claro, mas isso não impede que tudo o que amamos na obra de Tolkien esteja lá: a aventura, o humor, o drama, a fantasia, os momentos evocativos e melancólicos, a celebração da amizade e dos valores humanos, tudo embalado por um visual que é positivamente de encher os olhos – um coquetel que não falha em nos fazer sair do cinema com o coração mais leve e um início de nostalgia por nossa pátria espiritual, a Terra-média. Nostalgia essa que sempre podemos satisfazer com uma releitura dos livros de Tolkien ou uma reprise em casa dos filmes de O Senhor dos Anéis, enquanto encaramos a longa espera de um ano pela segunda parte, que deverá chamar-se O Hobbit: a Desolação de Smaug. Vejo vocês em Erebor!